I – Perante as três teses existentes quanto à valoração e função das declarações de parte , é entendimento deste Tribunal que no encontro de todas as teses, resulta uma quarta tese no sentido que as declarações de parte devem ser livremente apreciadas pelo Tribunal que, caso a caso, atento o modo como são prestadas, deve ou não valorá-las de modo positivo ou negativo, conjugada ou não com outros meios probatórios, sustentando ou não a sua convicção.
II – Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso e definir o âmbito do conhecimento do Tribunal da Relação, o Recorrente tem obrigatoriamente, sob pena de rejeição, total ou parcial, de indicar nas conclusões os concretos pontos da matéria de facto que pretende ser alterados ou eliminados e indicar em concreto quais as alterações que pretende.
III – O procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse importa que se verifiquem cumulativamente três requisitos, a saber: a) A posse; b) O esbulho; e c) A violência.
IV - Não se mostrando verificada a existência de esbulho violento, há que averiguar se poderá prosseguir como procedimento cautelar comum nos termos gerais e de acordo com o disposto no artigo 379º do mesmo Código.
V – Verificando-se que os actos praticados pelo Requerente/Recorrente podem ser aproveitados e o seu aproveitamento não interfere ou prejudica os direitos da Requerida/Recorrida é de convolar o procedimento cautelar especificado em procedimento cautelar comum.
VI – Por regra, os procedimentos cautelares exigem a verificação de dois pressupostos essenciais, a saber: 1.º - A verificação da aparência de um direito (fumus boni iuris), consubstanciada na elementar probabilidade da sua efectiva existência; e 2.º - A demonstração do perigo de insatisfação desse direito aparente (periculum in mora), o qual se traduz no fundado receio que a demora natural da tramitação do pleito cause um prejuízo grave e de difícil reparação.
VII - Em conformidade com o disposto no artigo 2079º do Código Civil a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal e dentro dos actos de administração cabe a celebração de contratos de arrendamento desde que estes não tenham um prazo superior a seis anos.
VIII – Não se verificando o pressuposto de existência de fundado receio de que outrem, antes de acção proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito, improcede a providência cautelar comum.
- art.º 20º e 21º do requerimento inicial.
1.17. A requerida manteve-se a residir no imóvel e recusa celebrar um contrato de arrendamento – art.º 23º do requerimento inicial.
1.18. Por escritura de habilitação notarial, outorgada em 11 de Maio de 2022, BB, na qualidade de cabeça-de-casal, declarou que:
“no dia cinco de junho de dois mil e vinte e um, sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de sua última vontade, faleceu sua mãe DD (…) no estado de casada em comunhão de adquiridos com EE, tendo deixado como seus únicos e universais herdeiros, por vocação legal e sem preferência ou concorrência de outrem, seu referido marido;
EE, viúvo, já falecido (…);
HH; e a filha de ambos;
BB (…)
E que no dia ...de janeiro de dois mil e vinte e dois, igualmente sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de sua última vontade, faleceu seu pai EE (…) no estado de viúvo de DD (…) tendo deixado como sua única e universal herdeira, por vocação legal e sem preferência ou concorrência de outrem, a filha já acima identificada BB. (…)
Que, não tem conhecimento de que existam outras pessoas que, segundo a Lei, lhes prefiram ou que com eles possam concorrer na sucessão às heranças dos referidos autores.” – art.º 2º do requerimento inicial e 14º a 17º da oposição.
1.19. O referido em 1.11. ocorreu com autorização do requerente – art.º 19º da oposição.
1.20. Em 15 de Novembro de 2022, BB, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de EE, e como primeira contraente, e CC, na qualidade de segunda contraente, subscreveram o escrito de fls. 72 e ss., designado por “Contrato de Comodato”, mediante o qual declararam:
“A Primeira contraente na qualidade de cabeça-de-casal herança indivisa a qual pertence do prédio urbano, sito na Rua..., Alverca do Ribatejo (…) descrito na Conservatória do Registo predial de Vila Franca e Xira sob o n.º ..., da freguesia de Alverca do Ribatejo.
2ª Pelo presente contrato, a primeira contraente entrega à segunda contraente, e esta aceita, o imóvel descrito na cláusula 1ª, a título gratuito para que dele exclusivamente se sirva.
(…)
4ª O prazo do presente contrato é de 2 (dois) anos a contar da data da assinatura do mesmo, renovando-se automaticamente por períodos de 1 ano.” – art.º 26º da oposição.”
*
III. 2. Como indiciariamente não provados os seguintes Factos:
“2.1. Após a data referida em 1.3. o requerente sempre aí residiu – art.º 1º B do requerimento inicial aperfeiçoado.
2.2. Em data não concretamente apurada o requerente permaneceu a residir, por período não concretamente apurado no apartamento referido em 1.1. – art.º 1º D do requerimento inicial aperfeiçoado.
2.3. Muitos dos objectos existentes no apartamento referido em 1.1. foram comprados pelo requerente, designadamente estantes, livros e outro mobiliário – art.º 1º F do requerimento inicial aperfeiçoado.
2.4. O requerente pagou metade do preço do apartamento referido em 1.1. – art.º 1º G do requerimento inicial aperfeiçoado.
2.5. O requerente deu entrada, para aquisição da fracção id. em 1.1., ao montante não mutuado e, aquando da amortização do crédito pagou metade do valor ainda em dívida – art.º 1º H do requerimento inicial aperfeiçoado.
2.6. O requerente pagou os impostos municipais relativamente ao imóvel referido em 1.1. – art.º 1º J do requerimento inicial aperfeiçoado.
2.7. O requerente está impedido de exercer cabalmente as suas funções de cabeça-de-casal – art.º 7º do requerimento inicial.
2.8. O requerente encontra-se impedido de usar o quarto que mantém na fracção referida em 1.1. – art.º 24º do requerimento inicial.
2.9. O requerente tem colegas professores que estariam interessados em arrendar um quarto na fracção referida em 1.1. – art.º 25º do requerimento inicial.
2.10. Os bens que integram o acervo da herança de DD estão a deteriorar-se – art.º 26º do requerimento inicial.
2.11. A fechadura da fracção referida em 1.1. foi mudada pela requerida – art.º 34º do requerimento inicial.”
*
IV. O Direito
Como referido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cf. artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
IV. 1 – Impugnação da matéria de facto
Em conformidade com o disposto no artigo 640º do Código de Processo Civil:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
Por força deste normativo o Recorrente tem o dever de especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Todavia, este artigo deve ser interpretado com parcimónia, ou seja, tal como vem defendendo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, os efeitos cominatórios contemplados no artigo 640º devem ser aplicados com razoabilidade e proporcionalidade (neste sentido vide Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 171 (nota 279) e 174). Assim, podemos afirmar que apenas se mostra vinculativa a identificação dos pontos de facto impugnados nas conclusões recursórias. As respostas alternativas propostas pelo recorrente, os fundamentos da impugnação e a enumeração dos meios probatórios que sustentam uma decisão diferente, podem ser explicitados no segmento da motivação, entendendo-se como cumprido o ónus de impugnação nesses termos.
Atente-se ainda, quanto à decisão alternativa, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 12/2023, de 17 de Outubro de 2023, Diário da República nº 220/2023, Série I, de 14/11/2023, fixa que: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”
Neste sentido veja-se o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2023, in www.dgsi.pt, cujo sumário se passa a transcrever:
“I - Afigura-se que a interpretação da alínea a) do n.º 2 do art.º 640.º do CPC, que conduziu, no caso dos autos, à rejeição liminar do recurso da impugnação da matéria de facto desrespeita o princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art.º 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art.º 20.º, n.º 4 da CRP.
II. De acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, o n.º 1 do art.º 640.º do CPC não exige que o apelante se pronuncie sobre a valoração alegadamente correcta dos meios de prova por si indicados, ou seja, sobre as razões pelas quais cada um deles deverá conduzir a decisão diversa da impugnada; pelo que a posição do tribunal a quo em rejeitar, também por este motivo, apreciar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto extravasa as exigências legais.”
No que diz respeito aos demais pressupostos, “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objecto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.” (Acórdão do Supremo Tribunal de 01 de Outubro de 2015, www.dgsi.pt, entre outros).
O incumprimento dos ónus processuais previstos no nº 1 do artigo 640º conduz à imediata rejeição da impugnação.
O incumprimento dos ónus exigidos no nº 2 do citado artigo 640º, no que tange à indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso, tem uma eficácia mais reduzida, ou seja, exige-se que essa omissão dificulte gravemente o exercício do contraditório pela parte contrária ou o exame pelo tribunal de recurso, pela complexidade dos factos controvertidos, extensão dos meios de prova produzidos ou ausência de transcrição dos trechos relevantes.
Por último, qualquer alteração da matéria de facto pretendida tem de ser relevante para a tomada de decisão quanto ao mérito da acção, isto é, a impugnação de factos que tenham sido considerados provados ou não provados e que não sejam importantes para a decisão da causa, não deve ser apreciada, na medida em que alteração pretendida não é susceptível de interferir na mesma, atenta a inutilidade de tal acto, sendo certo que de acordo com o princípio da limitação dos actos, previsto no artigo 130º do Código de Processo Civil não é sequer lícita a prática de actos inúteis no processo.
No âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica deve ser observado o princípio da economia processual porquanto apenas o que assume relevância é que merece tutela jurídica. Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (artigos 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do Código de Processo Civil).
Preceitua ainda o artigo 662º, nº 1 do Código de Processo Civil que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Este artigo atribui ao Tribunal da Relação os mesmos poderes de apreciação da prova que os Tribunais de 1ª instância, por forma a garantir um segundo grau de jurisdição em matéria de facto.
Como consequência, o Tribunal da Relação tem de apreciar a prova e sindicar a formação da convicção do juiz, analisando o processo lógico da decisão, recorrendo às regras de experiência comum e demais princípios da livre apreciação da prova, reexaminando as provas indicadas pelo recorrente, pelo recorrido e na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto (vide António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 287). O Tribunal da Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.
O Tribunal não está vinculado a optar entre alterar a decisão no sentido pugnado pelo recorrente ou manter a mesma tal como se encontra, antes goza de inteira liberdade para apreciar a prova, respeitando obviamente os mesmos princípios e limites a que a 1ª instância se acha vinculada.
Regressando aos presentes autos de recurso, o recorrente quer em sede de alegações, quer em sede de conclusões concretiza quais os pontos que, no seu entender, foram incorrectamente considerados como indiciariamente não provados que deveriam ser considerados como indiciariamente provados, cumprindo, nesta parte, o ónus que sobre ele pendia.
Posto isto, passemos à apreciação da impugnação da matéria de facto apresentada pelo Recorrente.
a.1) Do ponto 2.2. dos factos não indiciariamente provados
Visa o Recorrente/Requerente que este Tribunal de Recurso determine que os factos vertidos no ponto 2.2. seja eliminado dos factos considerados como não indiciariamente não provados e levados aos factos indiciariamente provados, atentas as declarações de parte prestadas pelo Requerente, o qual foi corroborado pelo depoimento da testemunha BB.
O Tribunal de 1ª Instância ao considerar esta factualidade como não provada firmou a sua convicção do seguinte modo:
“No que concerne ao descrito em 1.4. pese embora os depoimentos das testemunhas sejam consonantes com as declarações do requerente, na medida em que todos apresentam a mesma versão quanto à residência do requerente com sua mãe e padrasto na fracção (explicitando de forma uniforme os termos em que o casal se mudou para a mesma fracção), os depoimentos já não são uniformes quanto à data a partir da qual tal residência ocorreu, nem mesmo quanto aos termos da permanência do requerente a residir com os respectivos progenitores.
Todas as testemunhas referem a mudança como consequência das cheias que terão ocorrido na zona de Alhandra na década 60 (que se sabe terem decorrido no ano de 1967) e que terá inutilizado a casa que a família do requerente habitava em Alhandra. Nessa medida, foram realojados em Alverca, na fracção em apreço, sendo que a testemunha II– que também foi realojada nas mesmas circunstâncias que a família do requerente -, refere ter tal ocorrido há 50 anos (o que nos situa em 1974/1975). Das demais testemunhas apenas BB aponta o ano de 1974. O próprio requerente alude ao ano de 1975.
Inexistindo qualquer elemento que assinale de forma inequívoca tal data, atendeu-se, neste ponto à data mais próxima indicada, que foi o ano de 1975.
No que concerne ao vertido em 1.5. os depoimentos e declarações prestados não permitem traçar uma cronologia precisa do período de residência do requerente na fracção. As testemunhas II e JJ, KK e BB, referem um período em que o requerente teria saído de casa para estudar num seminário, pese embora desconheçam o período de tempo em que tal ocorreu, sendo que, no mesmo, raramente se deslocava à fracção referida em 1.1. II refere, ainda, um ingresso subsequente na Universidade Católica.
O requerente, nega qualquer permanência no seminário nos moldes aludidos pelas testemunhas, a não ser por um período de um ano e no contexto do curso superior na Universidade Católica. Ora, inexiste qualquer elemento que ateste objectivamente o percurso académico do A., sendo que, da conjugação de todos os depoimentos apenas é possível considerar que este, em algum momento da sua vida, terá deixado de residir em permanência na fracção da progenitora para estudar e, subsequentemente, trabalhar. Atendendo a que as testemunhas ouvidas assentam na sua profissão de professor, é compatível com tanto a versão de que o mesmo andaria deslocado pelo país – o que, aliás, o requerente não nega.
No que concerne à frequência do requerente do apartamento em questão, também não resulta evidente qual a mesma frequência, sendo que as testemunhas aludem à deslocação em férias a casa da progenitora.
Já o vertido em 1.7. resulta evidente de as testemunhas se terem apercebido dos factos relatados, o que permite concluir que o requerente acedia à fracção para visitar a mãe e o padrasto e que o fazia à vista de todos.
Tendo por base os elementos ora indicados deu-se como não demonstrado o vertido em 2.1. e 2.2., sendo que quanto a este último ponto apenas o requerente, desacompanhado de qualquer outro depoimento, veio sustentar aquele período mais longo de permanência já após se ter ausentado de casa para estudar/trabalhar.
(…)”.
Vejamos se assiste razão ao Recorrente.
Este Tribunal de Recurso ouviu e ponderou toda a prova produzida, bem como apreciou os documentos juntos aos autos.
Das declarações de parte do Recorrente conjugadas com o depoimento de BB, ao invés do que defende o Recorrente, não resulta indiciariamente provada a factualidade constante do ponto 2.2. dos factos indiciariamente não provados.
O Requerente em declarações de parte afirma que sempre residiu no imóvel referido no ponto 1.1. dos factos indiciariamente provados.
Como é sabido a doutrina e jurisprudência entende que as declarações de parte não são um meio seguro e credível, mas nada impede que as mesmas sejam apreciadas livremente pelo Tribunal e que nessa medida estribe no teor das declarações a sua convicção. As declarações de parte que não constituem confissão, são livremente apreciadas.
No essencial, existem três teses que são defendidas na nossa doutrina e a jurisprudência quanto à função e valoração das declarações de parte.
Uma primeira tese defende que as declarações de parte são supletivas e apenas se encontram vinculadas ao conhecimento dos factos, uma segunda tese preconiza que as declarações de parte constituem um princípio de prova e uma terceira tese que defende que as declarações de parte são por si só suficientes.
Em defesa da primeira tese temos o Prof. Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa Comum, À Luz do Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 2013, pág. 278, para quem “A apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.”
De acordo com a segunda tese, que tende a ser a maioritária na nossa jurisprudência, as declarações de parte não são por si só suficientes para estabelecer qualquer juízo positivo, pelo que enquanto meio probatório apenas coadjuvar a prova de um facto desde que existam outros meios de prova que com aquelas possam ser conjugáveis. (neste sentido vide entre outros Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20 de Novembro de 2014).
Como é referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26 de Junho de 2014, in www.dgsi.pt, “As declarações de parte (…) devem ser entendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais, não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação. Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles, documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.”
Miguel Teixeira de Sousa, in Blog do IPPC, de 25/5/2018, Para que serve afinal a prova por declarações de parte?, https://blogippc.blogspot.com/2018/05/para-que-serve-afinal-prova-por.html, critica esta posição defendendo que “(…)não se pode acompanhar a orientação segundo a qual a prova por declarações de parte deve ser entendida como um meio de prova complementar ou com uma função de clarificação de outras provas. Não se ignora, como é evidente, que a prova por declarações de parte merece uma especial ponderação pelo tribunal, dado que é a própria parte que depõe em juízo sobre factos que, em princípio, lhe são favoráveis. Isto é, no entanto, coisa completamente diferente de se entender que, à partida e independentemente de qualquer valoração específica em função das circunstâncias do caso concreto, a prova por declarações de parte não pode ter um valor probatório próprio.
(…)
Pela perspectiva do direito português, há que referir que a não atribuição de um valor probatório próprio à prova por declarações de parte é contraditória com a faculdade, resultante da conjugação do disposto no art.º 466.º, n.º 2, CPC com o estabelecido no art.º 452.º, n.º 1, CPC, de o juiz ordenar oficiosamente essa prova. Se o tribunal tem o poder de ouvir as partes sobre, por exemplo, um aspecto das negociações de um contrato, isso só pode querer significar que o tribunal tem o poder de avaliar, para efeitos probatórios, as declarações que as partes venham a produzir (ou mesmo, como é claro, a declaração que só uma delas venha a produzir, pela recusa de depoimento ou por um depoimento evasivo da outra). Qualquer outra interpretação diminuiria a relevância ou retiraria mesmo qualquer justificação para os poderes oficiosos atribuídos ao tribunal pelos referidos preceitos.
(…)
Se é certo que se impõe apreciar a prova por declarações de parte sem ilusões ingénuas, também é verdade que não há que, à partida, desqualificar o valor probatório dessa prova. Em suma: a prova por declarações de parte tem, sem quaisquer apriorismos, o valor probatório que lhe deva ser reconhecido pela prudente convicção do juiz; nem mais, nem menos, pode ainda precisar-se”.
Para a terceira tese, a convicção do Juiz pode-se ancorar apenas nas declarações de parte.
Mariana Fidalgo, in A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, pág. 80, defende que “(…) ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objeto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. Não olvidando o carácter aparentemente subsidiário das declarações de parte, certo é que foram legalmente consagradas como um meio de prova a ser livremente valorado, e não como passíveis de estabelecer um mero princípio de prova ou indício probatório, a necessitar forçosamente de ser complementado por outros. Assim sendo, e ainda que tal possa naturalmente suceder com pouca frequência na prática, defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova.”
Perante as três teses existentes, é entendimento deste Tribunal que no encontro de todas as teses, resulta uma quarta tese no sentido que as declarações de parte devem ser livremente apreciadas pelo Tribunal que, caso a caso, atento o modo como são prestadas, deve ou não valorá-las de modo positivo ou negativo, conjugando-se ou não com outros meios probatórios, sustentando ou não a sua convicção.
Revertendo ao caso em apreço a verdade é que as declarações de parte prestadas pelo Requerente foram contrariadas pelo depoimento prestado pela testemunha LL.
Esta testemunha disse que o Requerente desde que saiu para ingressar no Mosteiro em Torres Vedras nunca mais passou a residir com a mãe e padrasto no imóvel. O que sucedia, de acordo com esta testemunha, é que o Requerente ia visitar a mãe e o padrasto e por vezes aí pernoitava. Tratava-se de meras visitas em fins de semana e férias, mas nunca com carácter de permanência como se aí residisse.
Referiu ainda que o Requerente após o óbito da mãe e padrasto disse que pretendia ir residir para o imóvel, o que nunca ocorreu.
O depoimento desta testemunha foi devidamente corroborado pelas testemunhas II, MM e KK que confirmaram que o Requerente deixou de residir na casa da mãe assim que ingressou no Seminário e que só voltava muito esporadicamente de visita e nas férias de Natal, Páscoa e Verão, mas nunca por muito tempo, no máximo uma a duas semanas no Verão.
De toda a prova produzida não existem dúvidas que o Requerente sempre teve e tem um quarto seu no imóvel, mas tal facto não permite concluir que o Requerente reside no imóvel.
Assim, atenta a prova produzida é nosso entendimento que as declarações de parte, até pelo modo parcial como foram prestadas, não permitem por si só gerar uma convicção positiva e firme conforme pretende o Recorrente.
É jurisprudência consolidada que o Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se formar a convicção segura da ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados.
E o julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida. Cada elemento de prova tem de ser ponderado por si, mas, também, em relação/articulação com os demais.
Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas – como a prova por declarações de parte e a prova testemunhal –, a respectiva sindicância tem de ser exercida com o máximo cuidado e o Tribunal de Recurso só deve alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando, efectivamente, se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança elevada, que houve erro na 1.ª Instância.
Em caso de dúvida, deve, aquele Tribunal, manter o decidido em 1ª Instância, onde os princípios da imediação e oralidade assumem o seu máximo esplendor, dos quais podem resultar elementos decisivos na formação da convicção do julgador, que não passam para a gravação.
No caso dos presentes autos, a audição das gravações quanto às declarações de parte do Requerente e depoimentos das referidas testemunhas, nem sequer chegou ao patamar de colocar o Tribunal numa situação de dúvida relativamente aos factos que o Recorrente pretende ver alterados do ponto 2.2. dos factos não provados para os factos provados.
Deste modo, e sem necessidade de maiores considerandos, não se antevêem razões para se alterar a convicção feita pelo Tribunal de 1ª Instância e consequentemente mantém-se a factualidade vertida no ponto 2.2. no elenco dos factos indiciariamente considerados como não provados.
Improcede nesta parte a impugnação da matéria de facto.
a.2) Dos pontos 2.7. e 2.8 dos factos não indiciariamente provados
Defende ainda o Recorrente que foram erroneamente considerados não provados os factos 2.7 e 2.8, o primeiro porque sendo o Recorrente cabeça de casal, no âmbito do processo de inventário, não tendo a posse plena do apartamento nunca poderá exercer cabalmente a administração do bem, mormente celebrar contratos de arrendamento.
O Tribunal deu como indiciariamente não provado nos pontos aqui em análise os seguintes factos:
“2.7. O requerente está impedido de exercer cabalmente as suas funções de cabeça-de-casal – art.º 7º do requerimento inicial.
2.8. O requerente encontra-se impedido de usar o quarto que mantém na fracção referida em 1.1. – art.º 24º do requerimento inicial.”
No que diz respeito a tarefa encontra-se facilitada.
Conforme refere Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, “(…) a matéria de facto “(…) não pode conter qualquer apreciação de direito, seja, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica”, isto é as questões de direito, juízos, valorações e conclusões que constarem da selecção da matéria de facto devem considerar-se não escritas.
Não se suscita dúvidas que no actual regime processual, tal como no pretérito, na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito, pois que o artigo 607º, nº 4, do actual Código de Processo Civil, refere que “Na fundamentação (da sentença) o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados (…)”. Repete-se: os factos e não conclusões, generalidades ou matéria de direito.
Assim no âmbito da vigência do actual Código de Processo Civil, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito e sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise da questão jurídica que define o objecto da acção, deve o mesmo deve ser eliminado.
Impõe-se, deste modo, uma apreciação da matéria de facto fixada sob esta perspectiva, não se podendo incluir nos mesmos segmentos conclusivos, mas apenas as circunstâncias concretas (factos) que possam vir a sustentar uma conclusão.
O ponto 2.7. dos factos indiciariamente não provados encerra matéria conclusiva, pois, só com a alegação e prova de factos que traduzam actos cuja prática cabe, via de regra, ao cabeça de casal é que se pode concluir que o Requerente está impedido de exercer as funções de cabeça de casal, sendo certo que esta conclusão a ser extraída, ou não, apenas será realizada em sede de enquadramento jurídico.
Nestes termos, é de concluir que o ponto 2.7. contém matéria conclusiva, impondo-se a sua eliminação e, como tal, também não será carreada ao elenco dos factos indiciariamente provados.
Esta tem sido, aliás, a orientação já consistentemente firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça (entre outros Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Abril de 2015), relativamente à eliminação do elenco da matéria de facto das expressões e asserções na mesma incluídas que não revistam tal natureza fáctica, já que as asserções de natureza conclusiva reconduzem-se à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum, devendo, por isso, as afirmações de natureza conclusiva ser excluídas do acervo factual a considerar.
Assim, no presente caso, a intervenção desta Relação não se dará, nem terá necessidade de se reportar ao nível da (re)apreciação da prova, mas antes “na despistagem (identificação/qualificação/expurgação), nos pontos da matéria de facto em causa, das afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito”, ao abrigo da previsão constante do nº 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil (que não no âmbito do disposto nos artigos 640º (impugnação da decisão relativa à matéria de facto feita pela parte/recorrente) ou 662º (modificabilidade da decisão de facto) do Código de Processo Civil (neste sentido ver por todos Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça já supra citado).
Pelo exposto, elimina-se do elenco dos Factos Indiciariamente Não Provados o ponto 2.7. com o seguinte teor:
“2.7. O requerente está impedido de exercer cabalmente as suas funções de cabeça-de-casal – art.º 7º do requerimento inicial.”
No que tange aos factos vertidos no ponto 2.8 dos factos indiciariamente não provados o Tribunal de 1ª Instância na motivação de facto refere: “Note-se que quanto ao vertido em 2.8., reconhecendo o requerente deter as chaves da fracção e desconhecendo se a fechadura foi mudada, reconhece ser mais por questões de confrangimento, face à situação, que não se desloca à fracção.”
Não se alcança como possível a pretensão do Recorrente.
Com efeito, ouvida toda a prova produzida, resulta à saciedade que o Apelante sempre teve, manteve e mantém o seu quarto no imóvel e que dentro desse quarto estão todos os seus pertences pessoais, factos estes afirmados de modo unânime por todas as testemunhas inquiridas e até das declarações de parte prestadas pelo próprio.
Mais resulta que o Recorrente possui as chaves de acesso ao imóvel, que nunca foi impedido de aceder ao imóvel, de nele permanecer e de nele pernoitar.
É evidente que a pretensão do Requerente quanto à eliminação do ponto 2.8. e consequente integração de tal factualidade no elenco dos factos provados é manifestamente improcedente.
Improcede, ainda, nesta parte a impugnação.
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Em sede de alegações veio o Recorrente invocar a existência de contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada, mais precisamente entre os factos provados nos pontos 1.11, 1.12 e 1.14 com os factos vertidos no ponto 2.8. dos factos não provados, uma vez que o Recorrente é cabeça de casal no processo de inventário, o imóvel objecto dos autos integra o acervo hereditário cuja partilha se visa nos autos de inventário e, estando o apartamento ocupado pela Recorrida, existem limitações na administração do bem por parte do cabeça de casal, desde logo, porque carece da liberdade de celebrar contratos de arrendamento.
Todavia, em sede de conclusões o Recorrente nada refere quanto a esta contradição.
O Tribunal da Relação, apreciando os elementos probatórios constantes dos autos, procede à sindicância da matéria de facto julgada provada e não provada pelo Tribunal de 1ª Instância, em cumprimento do princípio do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto. Todavia, a sindicância não se compadece com o recurso em que o Recorrente se limita de modo genérico a discordar da posição do Tribunal de 1ª Instância.
Em conformidade com o disposto no artigo 640º, nº 1 do Código de Processo Civil quando é impugnada a matéria de facto o Recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Tendo presente que as conclusões constantes das alegações têm como finalidade delimitar o objecto do recurso, delas devem constar, com precisão, os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando que, quanto aos demais requisitos, constem de forma explícita na motivação do recurso.
A rejeição, parcial ou total, do recurso quanto à impugnação da matéria de facto ocorre perante:
Por isso, quando a impugnação recursória verse sobre matéria de facto, deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição: 1) quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; 2) quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre a matéria de facto impugnada. Neste último caso, havendo gravação de prova, incumbe à parte, igualmente sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos e as exactas passagens da gravação da prova em que se funda.
No caso em apreço, não obstante ter indicado no corpo das suas alegações a existência de contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada, mais precisamente entre os factos provados nos pontos 1.11, 1.12 e 1.14 com os factos vertidos no ponto 2.8. dos factos não provados, é indubitável que em sede de conclusões omitiu completamente qualquer referência à alegada contradição, motivo pelo qual nesta parte nada se impõe a este Tribunal conhecer.
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IV. 2 – - Errada interpretação e aplicação do direito
Na sentença proferida pela 1ª Instância foi julgada improcedente a presente providência.
No entender do Recorrente, o facto de nunca ter optado por residir em permanência em nenhum outro local demonstra o animus do Requerente relativamente à posse do apartamento, tendo este sempre expressado, em termos subjectivos, a intenção de ter naquele local e não em qualquer outro, o seu domicílio habitual.
Entende ainda o Recorrente que, não tendo a posse plena do apartamento, nunca poderá exercer cabalmente a administração do bem, de acordo com o artigo 2079º do Código Civil, mormente celebrar contratos de arrendamento.
Vejamos se lhe assiste razão.
Em primeiro lugar impõe-se desde já fazer uma correcção.
O Recorrente veio intentar procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse nos termos do disposto no artigo 377º do Código de Processo Civil peticionando que seja ordenada a restituição provisória da posse sobre o imóvel a que aludem os autos ao Recorrente/Requerente.
Ao invés do afirmado em sede de despacho final, o presente procedimento cautelar especificado nunca foi convolado em procedimento cautelar comum.
O que sucedeu foi que por despacho datado de 27 de Fevereiro de 2024 por se entender que BB não ocupou a referida fracção, nem praticou actos de onde se infira ter também a sua posse, não tem aquela interesse em contradizer o presente procedimento cautelar, nos termos do artigo 30º, nº 2 do Código de Processo Civil, tendo sido, nesta sequência e ao abrigo do artigo 590º, nº 1 do Código de Processo Civil, indeferido liminarmente o presente procedimento cautelar quanto à requerida BB.
E tanto assim foi que posteriormente, por despacho datado de 20 de Novembro de 2024 foi proferido despacho a ordenar a notificação do Requerente para, em 10 dias, aperfeiçoar o seu requerimento inicial, esclarecendo quais os actos de posse praticados pela falecida e/ou pelo próprio sobre a fracção identificada nos autos e a sua caracterização por se tratar de um procedimento cautelar com vista à restituição da posse.
Efectuada esta correcção cumpre apurar se se têm por reunidos os pressupostos necessários ao decretamento do procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse.
Em conformidade com o disposto no artigo 377º do Código de Processo Civil, “No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.”
O artigo 378º do Código de Processo Civil, determina que “Se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador.”
Assim, deverá ocorrer a restituição provisória de posse quando se verifiquem cumulativamente os três requisitos elencados nos citados preceitos, a saber:
a) A posse;
b) O esbulho;
c) A violência.
A particularidade desta providência reside na inexistência de exigência legal de verificação do requisito atinente ao periculum in mora para efeito de determinação judicial da restituição.
Na verdade, a restituição provisória da posse, como explica o Professor Alberto dos Reis, “… não é rigorosamente uma providência cautelar. É, sem dúvida, uma providência preventiva e conservatória; mas não é uma providência cautelar, porque lhe falta a característica do periculum in mora.
Para obter a restituição o requerente não precisa de alegar e provar que corre um risco, que a demora da decisão definitiva na acção possessória o expõe à ameaça de dano jurídico; basta (…) que alegue e prove a posse, o esbulho e a violência. O benefício da providência é concedido, não em atenção a um perigo de dano iminente, mas como compensação da violência de que o possuidor foi vítima.” (“Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, Ld.ª, Coimbra, 1948, pág. 670).
A posse vem definida no artigo 1251º do Código Civil, como correspondendo ao poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
São conhecidas as divergências doutrinárias e jurisprudenciais relativas à qualificação da posse (para uns, um direito; para outros, um direito real provisório; para aqueloutros, tão só uma situação de facto juridicamente protegida). Também quanto ao próprio conceito de posse se estabeleceram discordâncias, defendendo uns uma tese objectivista e outros uma tese subjectivista.
Não cumprindo nesta sede proceder à análise de tal discussão conceptual, impõe-se apenas referir que se adopta a posição que encara a posse como uma situação de facto com protecção jurídica fundamentada pela aparência da titularidade de um direito pessoal de gozo e que se adere a uma tese subjectivista, a qual se pauta pela exigência de dois elementos consubstanciadores da posse, a saber: o corpus (exercício do poderes de facto correspondentes à titularidade de um direito real de gozo) e o animus (a intenção de agir como titular do direito real de gozo a que o exercício dos poderes de facto se reporta).
Como se sabe, a propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei (artigo 1316º do Código Civil).
Os artigos 1276º e seguintes do Código Civil, consagram os meios de defesa da posse. De entre as normas que regulamentam os meios de tutela da posse, encontra-se precisamente o artigo 1279º, o qual prescreve, em consonância com o preceituado nos artigos 377º e 378º do Código de Processo Civil, que o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.
No que se refere à noção do pressuposto atinente ao esbulho, conforme clarifica o Professor Alberto dos Reis (Ob. cit. pág. 669), o mesmo pressupõe “… que o possuidor foi privado da posse que tinha, foi colocado em condições de não poder continuar a exercer a posse, e por isso é que o pedido que lhe corresponde é a restituição; o esbulhado é restituído à posse que o facto do esbulho lhe fez perder (…).”
Com relação à violência, a doutrina e jurisprudência adoptaram duas orientações distintas: para uns, a violência refere-se à posse (e não ao esbulho) e apenas pode ser exercida contra as pessoas nos moldes estabelecidos no artigo 1261º, nº 2 do Código Civil (isto é, mediante coacção física ou moral nos termos estabelecidos pelo artigo 255º do Código Civil); para outros, a violência refere-se ao esbulho (e não à posse), podendo ser exercida contra as pessoas ou contra as próprias coisas.
Sem necessidade de discorrer sobre os argumentos subjacentes a cada uma das descritas posições, adopta-se a segunda das mencionadas teses (António Menezes Cordeiro, in A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª edição actualizada, Almedina, pág. 100 e 142; Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 2.ª edição revista e actualizada, Almedina, pág. 44 e ss.; Durval Ferreira, in Posse e Usucapião, Almedina, pág. 375 e ss.).
Isto porque, por via do recurso ao elemento histórico que deve presidir na interpretação da norma, sabe-se que, aquando da discussão na Comissão Revisora dos primitivos artigos 400º a 403º do Código de Processo Civil (actuais artigos 377º a 379º), se entendeu não ser necessário estabelecer expressamente que se considerava violento o esbulho exercido quer sobre as pessoas, quer sobre as coisas, pois era doutrina geralmente seguida aquela que entendia que a violência tanto poderia ser perpetrada sobre as pessoas como sobre as coisas (Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 670).
Neste sentido vide ainda Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de Outubro de 1986, BMJ 360, 514 e de 03 de Maio de 2000, in Boletim nº 41 dos Sumários do Supremo Tribunal de Justiça.
Efectuada esta breve exposição jurídica atenta a factualidade considerada como provada e não provada não subsistem dúvidas que não se mostra reunido o pressuposto de existência de esbulho violento, pois, não logrou o Recorrente provar, por um lado, que a fechadura foi mudada e que está impedido de aceder ao imóvel e de nele poder residir.
Não podendo o presente procedimento seguir como procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse, há que averiguar se poderá prosseguir como procedimento cautelar comum nos termos gerais e de acordo com o disposto no artigo 379º do mesmo Código.
Neste sentido refere António Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 2ª Edição revista e actualizada, Almedina, pág. 26 e 27, que “ (…) se o esbulho não puder qualificar-se como violento, não é na restituição provisória que se encontrará o esteio necessário para regularizar a situação.”
(…)
Já o residual procedimento cautelar comum regulado nos arts. 381º e segs., quando envolva litígios de natureza possessória, é instrumental em relação a acções de prevenção e de manutenção da posse, cobrindo ainda uma fatia das acções de restituição de posse, quando o esbulho não tenha atingido a matiz violenta que subjaz àquela providência.”
Trata-se de uma situação de erro na forma de processo, porquanto o Requerente/Recorrente usou de procedimento cautelar especificado quando se deveria ter socorrido de procedimento cautelar comum.
Como é sabido, o erro na forma de processo, previsto no artigo 193º do Código de Processo Civil, significa que o Requerente/Apelante lançou mão de uma forma processual inadequada para fazer valer a sua pretensão (vide Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, I, 3ª ed., pág. 261).
Termos que, e conforme posição jurisprudencial defendida, haverá erro na forma de processo quando o autor, para fazer valer a sua pretensão, usa de uma forma de processo inadequada, isto independentemente das razões de procedência ou improcedência da acção (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 1990, BMJ 394, pág. 426 e Acórdão de 30 de Junho de 1988, in www.dgsi.pt.
A lei processual configura a situação de erro na forma de processo (artigo 193º do Código de Processo Civil) na dupla qualidade de nulidade processual e de excepção dilatória (artigo 577º, al b) do Código de Processo Civil). Todavia, o que é relevante para a situação de erro na forma de processo é que, ao pedido formulado, corresponda forma de processo ou processo especial diverso do empregado, e que não se mostre possível através da adequação formal, fazer com que, com a forma de processo utilizada se venha, de todo o modo, a conseguir o efeito jurídico pretendido pelo autor. Assim, só em caso extremo é que o erro na forma de processo pode conduzir à absolvição da instância, visto que a lei impõe (artigo 193º do Código de Processo Civil) o aproveitamento de todos os actos que puderem aproveitar-se.
Como o refere o Prof. Lebre de Freitas in A Acção Declarativa Comum à Luz do Código Revisto, 2000, pág. 39 e seguintes, “os actos praticados até ao momento em que o juiz conheça o erro, só são anulados se não puderem ser aproveitados para a forma adequada, devendo o juiz ordenar a prática dos actos que forem estritamente necessários para que a sequência processual já decorrida se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei (art.º 199º, nº 1), bem como o prosseguimento do processo segundo a forma adequada. Não são, porém, aproveitados os actos já praticados se daí resultar diminuição das garantias do réu. Excepcionalmente, caso não se possa aproveitar a petição inicial, todo o processo é considerado nulo, tendo lugar a absolvição do réu da instância (art.º 288º-1 b)”.
Nas palavras do citado Prof. “Este erro é aferido em face do pedido deduzido, e não perante a natureza objectiva da relação jurídica material ou da situação jurídica que serve de base à acção, sem prejuízo da (…) da adequação formal». E acrescenta ainda que “Não deve, efectivamente, confundir-se a questão de fundo com a questão de forma: se o pedido for deduzido com base num direito que o autor não tem, embora tendo outro direito em que podia ter fundado um pedido diverso que desse lugar a uma forma de processo distinta, o erro está no pedido e não na forma de processo, pelo que a consequência a tirar é a improcedência da acção”.
No caso em apreço os actos praticados pelo Requerente/Recorrente podem ser aproveitados e o seu aproveitamento não interfere ou prejudica os direitos da Requerida/Recorrida.
Nesta medida, vejamos se, o procedimento cautelar especificado agora convolado em procedimento cautelar comum, reúne todos os requisitos necessários à sua procedência.
Por regra, os procedimentos cautelares exigem a verificação de dois pressupostos essenciais, a saber:
1.º - A verificação da aparência de um direito (fumus boni iuris), consubstanciada na elementar probabilidade da sua efectiva existência.
2.º - A demonstração do perigo de insatisfação desse direito aparente (periculum in mora), o qual se traduz no fundado receio que a demora natural da tramitação do pleito cause um prejuízo grave e de difícil reparação.
No que se refere ao primeiro requisito, “… pede-se ao tribunal uma apreciação ou um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança; quanto ao 2.º, pede-se-lhe mais alguma coisa: um juízo, senão de certeza e segurança absoluta, ao menos de probabilidade mais forte e convincente.” (Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, Ld.ª, Coimbra, 1948, pág. 621).
Em conformidade com o disposto no artigo 2079º do Código Civil a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal.
Não existem dúvidas que dentro dos actos de administração cabe a celebração de contratos de arrendamento desde que estes não tenham um prazo superior a seis anos, ou seja, o cabeça de casal tem legitimidade, em termos genéricos, para dar de arrendamento um bem integrante do acervo hereditário desde que o contrato celebrado ou a celebrar não exceda o prazo de seis anos.
Independentemente de o Recorrente ter ou não ter tido a posse do imóvel objecto dos autos, cabe-lhe por ser cabeça de casal da herança a administração dos bens integrantes da herança nos termos dos artigos 2079º e 1024º ambos do Código Civil.
Somos de concluir pela verificação do primeiro pressuposto, ou seja, tem-se por verificada a probabilidade séria da existência do direito invocado pelo Recorrente/Requerente, sobre cuja verificação se exige um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança.
E ter-se-á por verificado o segundo pressuposto de existência de fundado receio de que outrem, antes de acção proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito, sobre o que se exige um juízo de probabilidade mais forte e persuasiva, embora não de certeza e segurança absolutas?
Neste domínio impõe-se considerar que não existem dúvidas que o imóvel integra a herança e que o Recorrente é o cabeça de casal.
No entanto, é entendimento deste Tribunal da Relação que não se tem por verificado o pressuposto de existência de fundado receio de que outrem, antes de acção proposta ou na pendência dela cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum in mora).
Vejamos.
No tocante a este segundo pressuposto concernente ao prejuízo grave e de difícil reparação proveniente da lesão em curso associado à demora natural inerente à decisão de uma acção judicial, temos que ter presente que o periculum in mora, no caso vertente, não se presume, tendo que ser demonstrado através de determinados factos concretos que permitam evidenciá-lo ou que permitam fundar uma presunção judicial de sua verificação.
Importa, pois, neste âmbito, ponderar novamente o factualismo indiciariamente provado e não provado.
Conforme se alcança desta factualidade o Recorrente, para além de não ter logrado provar que está impedido de aceder e utilizar o imóvel, também não provou que existem pessoas interessadas na celebração de contrato de arrendamento, bem como não logrou provar que a Requerida está a depreciar o valor do imóvel através de uma utilização destrutiva do imóvel.
Mais se refira que o cabeça de casal, em sede de acção própria, poderá sempre exigir da Requerida o pagamento de uma indemnização pelo uso do imóvel alegando e provando que o poderia ter arrendado por determinado valor, o que não ocorreu por causa imputável à Requerida.
A eventual lesão, até porque nada resultou indiciariamente provado nesse sentido, não reveste importância, não se verificando também qualquer facto indiciador de deterioração e desvalorização, advenientes da utilização que lhe vem sendo dada pela Requerida diariamente.
A tanto acresce que não logrou o Recorrente provar que a eventual lesão, dada a natureza do direito violado, é de difícil reparação ou que essa utilização conduza à perda de propriedade sobre o imóvel.
Termos em que não se tem por verificado o pressuposto de existência de fundado receio de que outrem, antes de acção proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito.
Tudo visto, resta concluir, com fundamentos distintos, pela improcedência do presente procedimento cautelar, mantendo-se a decisão recorrida.
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V. Decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam, com fundamentos distintos, em julgar improcedente a apelação e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente.
Lisboa, 08 de Maio de 2025
Cláudia Barata
Nuno Gonçalves
Maria Teresa F. Mascarenhas Garcia