CRÉDITO DOCUMENTÁRIO
UCP 500
UCP 600
CARTA
DOCUMENTOS
DISCREPÂNCIAS
Sumário

(art.º 663º nº 7 do CPC)
1- Em matéria de Crédito Documentário, da comparação dos artºs 13º e 14º da UCP 500, respectivamente relativos a “Normas para o exame de documentos” (art.º 13º UCP 500) e “Documentos com divergências e notificações divergentes”, (art.º 14º UCP 500) com os artºs 14º e 16º da UCP 600, verifica-se os artºs 13º e 14º da UCP 500 englobava, três princípios: a)- Da justiça; b)- Dever de cuidado e, c)- Razoabilidade no tempo.
2- Isto é, no âmbito da UCP 500 os bancos deveriam aplicar o princípio da justiça no tratamento das partes envolvidas na operação do crédito documentário; o uso de cuidado na revisão dos documentos apresentados (considerando as previsões da UCP e do ISBP) e, a aplicação da regra do razoável em toda a relação jurídica documentária e para as partes.
3- A UCP 600 acabou por estabelecer diferente abordagem: o art.º 14º da UCP 600 estabelece que o exame será realizado exclusivamente com base nos documentos (art.º 14º a), UCP 600), sem se referir ao ISBP e aos três princípios acima referidas da UCP 500; o “devido cuidado” foi suprimido, bem como também foi suprimido o “princípio da razoabilidade” do tempo da verificação dos documentos, passando a um prazo máximo de 5 dias úteis a contar da recepção dos documentos pelo banco emitente (art.º 14º b) da UCP 600).
4- Havendo conformidade dos documentos apresentados, o banco emitente deve honrar a carta de crédito documentário que emitiu (15º UCP 600).
5- Sendo os documentos discrepantes, rectius, sendo encontradas divergências entre a carta de crédito documentário e os documentos recebidos provenientes do banco designado, o banqueiro emitente pode recusar o cumprimento da carta de crédito documentário, elaborando uma breve nota justificativa para o apresentante/banco designado (art.º 16º C), da UCP 600) com conteúdo estabelecido nas alíneas do art.º 16º C) da UCP 600.
6- No caso dos autos, tendo a ré, banco emitente da Carta de Crédito Documentário, encontrado discrepâncias entre os documentos enviados pelo banco designado e a carta de crédito documentário, á luz do art.º 16º a) da UCP 600, era-lhe lícito recusar o pagamento da carta de crédito documentário.

Texto Integral

Acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO.
1-But Fashion Solutions – Comércio e Indústria de Artigos em Pele, SA, instaurou acção declarativa, com processo comum, contra Caixa Geral de Depósitos, SA, pedindo:
-a) Ser a Ré condenada, em cumprimento da carta de crédito nº M016073 de 08/05/19, a proceder ao pagamento imediato e integral à Autora do valor de 497.468,60 USD, correspondentes a 405.672,30€ (quatrocentos e cinco mil, seiscentos e setenta e dois euros e trinta cêntimos), valor que teve de ser adiantado pela Autora ao grupo Arezzo, em virtude do incumprimento pela Ré do crédito documentário irrevogável de importação nº M016073 de 08/05/19;
b) Ser a Ré condenada a pagar à Autora a título de danos patrimoniais causados pelo incumprimento da carta de crédito em referência:
- 1.170.856,28€, de perda de receitas de vendas;
- 125.266,35€, de perdas de lucros, resultante de um aumento do preço de compra dos produtos aos fornecedores e uma diminuição do preço de venda.
Alegou, em síntese, que no exercício de actividade de importação, fabricação e exportação de calçado, malas e cintos, vem operando no mercado com diversas marcas, e vendendo para vários países da Europa e das Américas; tem especiais relações comerciais com o Grupo Arezzo e, face ao grande volume de mercadoria que a autora encomenda em cada estação, este Grupo Arezzo exige, para proceder ao fabrico do calçado e malas e remessa dos produtos à autora, que esta faculte uma carta de crédito irrevogável a favor do seu banco, o Santander Brasil; só com a emissão desse documento é que o Grupo Arezzo inicia a fabricação da mercadoria. Nos últimos 10 anos tem sido a ré a emitir essas cartas de crédito. Após contabilizar especificadamente os produtos a encomendar ao Grupo Arezzo, este emite uma factura proforma a favor da autora e esta solicita à ré a emissão de uma carta de crédito irrevogável a favor do banco Santander Brasil no montante do valor dos produtos encomendados. A ré aprova a emissão da carta de crédito por parte da autora e comunica-a àquele banco do Brasil e este informa o Grupo Arezzo que, somente então inicia a fabricação dos produtos encomendados pela autora e, é solicitado que a ré pague o valor das mercadorias; podem ocorrer pequenas discrepâncias entre o que foi inicialmente encomendado e o que veio a ser efectivamente vendido pelo Grupo Arezzo e, a ré confronta a autora com essas discrepâncias e, se a autora as confirmar, a ré sempre tem pago o preço das mercadorias.
Em 30/04/2019, a autora solicitou à ré a abertura de carta de crédito e enviou-lhe os documentos de suporte; em 08/05/2019, a ré procedeu à emissão do crédito documentário, registado com o nº M016073, consubstanciando um crédito documentário de importação irrevogável com o valor corrente de 562 013,63USD e validade até 13/10/2019. Foi estabelecido como data limite da expedição da mercadoria o dia 15/09/2019. A Autora e a Ré submeteram esta operação ao regime das regras e usos uniformes relativos aos créditos documentários (RUU), de acordo com o estipulado pela Câmara de Comércio Internacional - normas UCP 600. Recebida a mercadoria em Portugal, o banco Santander Brasil solicitou à ré o pagamento e a ré recusou-o, invocando desconformidades entre o peso das mercadorias das facturas proforma da carta de crédito e as mercadorias constantes dos documentos de desembarque. A ré não notificou a autora, como vinha acontecendo, dessas desconformidades. A autora enviou à ré carta registada com A/R de 07/10/2019, a comunicar que aceitava as discrepâncias existentes; a ré respondeu que em face das discrepâncias e nos termos das Regras e Usos Uniformes Relativos aos Créditos documentários suspendeu a garantia de pagamento.
A ré veio a reclamar o crédito relacionado nesta carta de crédito no Processo Especial de Revitalização (PER) da autora. Significa isso que apesar de a ré não ter pago ao banco do Grupo Arezzo, a autora tem vindo a pagar essa quantia à ré nos termos do PER.
O não pagamento do valor acordado levou à quebra de contratos com clientes e fornecedores por incapacidade de a autor colocar os produtos no mercado; a autora viu-se obrigada a celebrar acordo de pagamento com o Grupo Arezzo; conhecedores da situação, os demais fornecedores recusaram-se a fornecer produtos sem que a autora fizesse o respectivo prévio pagamento, o que a levou a ter de avançar com pagamentos prévios de encomendas, a sete fornecedores, no montante de 468 923€, levando a diminuição de capacidade de obter encomendas e consequente diminuição de vendas, perdendo fornecedores e clientes e quebra de receitas. Entre a recusa de pagamento pela ré, em Setembro de 2019 e Março de 2020, a autora teve uma quebra de receitas de vendas de 1 170 856,28€; teve de reduzir a sua margem de lucro o que levou a perdas de receita de 227 030,77€; a ré tem um prejuízo que quantifica em 1 296 122,63€.
À situação em apreço são aplicadas as Regras e Usos Uniformes sobre Crédito Documentário; a ré não cumpriu as diligências exigidas pela RUU para recusa de pagamento do valor da carta de crédito documentário e, por isso, causou os mencionados prejuízos à autora.
2- Citada, a ré contestou.
Impugna, no essencial a factualidade alegada pela autora.
A informação de não conformidade nos documentos recebidos no banco da beneficiária não é vinculativa para a CGD; em matéria de créditos documentários internacionais, as instituições de crédito regulam-se pelas Regras e Usos Uniformes para os Créditos Documentários (UCP600) emitidas pela Câmara de Comércio Internacional, pelas Práticas Bancárias Internacionais Correntes para análise Documentos ao abrigo das UCP 600 emitidas pela Câmara de Comércio Internacional e Opiniões emitidas pela mesma entidade assim como pela Prática Bancária Internacional para estas operações. Situações anteriores em que a ré não tenha recusado o pagamento de créditos documentários deveu-se a mera opção comercial. A CGD não é obrigada ao pagamento dos Créditos documentários quando detecte divergências ou desconformidades na documentação e facturas com o termos e condições do crédito documentário, sejam essas divergências, grandes, médias ou pequenas. Em situações anteriores de desconformidades a ré aceitou pagar os créditos documentários mas mediante a emissão de 12 livranças, com datas de vencimento em Julho e Agosto de 2019, no montante total de 308 400€ que não foram pagas nas datas dos respectivos vencimento, tendo essas livranças sido integradas na reclamação de créditos no PER da autora que esta deu entrada em 31/05/2019, circunstância que constitui um factor totalmente novo no relacionamento comercial entre a ré e a autora, alterando-o radicalmente; a ré reclamou créditos em 27/06/2019 no montante de 3 830 764,95€. Nunca existiu qualquer acordo entre autora e ré que obrigasse esta a pagar créditos documentários quando se verificassem divergências ou desconformidades nos documentos subjacentes à emissão desse crédito documentário como de resto consta do Contrato de Abertura de Crédito para Desconto de Remessas de Exportação, outorgado a 06/03/3013 e da respectiva Alteração ao Contrato de Abertura de Crédito de 03/01/2019.
Invoca as Regras UCP 600, mormente art.ºs 14º e 16º.
Estava já em curso o PER da autora pelo que a ré arriscava a ver o seu crédito não pago integralmente como com uma dilação de pagamento inaceitável.
A autora litiga de má fé ao afirmar que a ré reclamou no PER da autora os créditos deste Crédito Documentário quando sabe que a recusa de pagamento do Crédito Documentário ocorreu muito após a reclamação de créditos, os quais nada têm a ver com o CDI em causa nesta acção.
Não foi a legítima recusa de a ré não ter pago o Crédito Documentário em causa que levou à degradação financeira da autora, como decorre da circunstância de previamente ter requerido o seu próprio PER e da factualidade ali alegada.
3- Notificada para o efeito, a autora, em 16/02/2022, respondeu à matéria da contestação.
Reitera que a partir do momento que a ré aceitou a carta de crédito irrevogável, estava obrigada o cumpri-la; a existência de pequenas desconformidades é um subterfúgio para o não cumprimento.
A documentação junta pela ré demonstra que esta notificou a autora para declarar se aceitava os documentos com as divergências apontadas e autorizavam o pagamento, o que nos termos do art.º 16º, al. b) da UCP a ré contactou a autora para a aceitação de divergências e esta aceitou-as; não foi cumprido o prazo de 5 dias úteis a contar da apresentação para determinar se os documentos estavam em conformidade.
Não há fundamento para o pedido de condenação da autora como litigante de má fé.
4- Em audiência prévia foi saneado o processo, indicado o objecto do litígio e os temas de prova.
Ainda em audiência prévia, foi proferido o seguinte despacho:
Compulsados os autos, resulta que a peça processual da A. datada de 16.02.2022, foi junta após ter sido notificada do despacho de 14.12.2021 no qual se alude à existência de excepções.
Acontece que, nem a A. na referida peça, nem a R. na contestação, identificaram qualquer excepção que imponha o exercício do contraditório.
A A. apesar de defender a inexistência de excepções, tece considerações sobre o teor da contestação apresentada. Tais considerações não têm fundamento legal. Assim sendo, importa considerar como não escrito o constante do artigo 9.º e ss. do articulado em causa.”
5- Teve lugar a audiência final, em quatro sessões e, com data de 29/11/2023 foi proferida sentença, com o seguinte teor decisório:
3. Decisão
Pelos fundamentos expostos, julgo a presente acção improcedente por não provada e, em consequência, absolvo a R. do pedido deduzido pela A.
Mais absolvo a A. do pedido de condenação como litigante de má fé.”
***
6- Inconformada, a autora interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
A) O mui douto despacho de fls…, de 14.10.22, que julgou não escrita a matéria de resposta apresentada pela Autora nos artigos 9º e ss, nomeadamente, mas não só, nos artigos 46º a 48º, violou o disposto no artigo 3º do CPC e o elementar direito ao contraditório pela Autora, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que considere todos os factos incluídos na resposta nos artigos 9º e ss, nomeadamente o disposto nos artigos 46º a 48º da mesma.
B) Em consequência deveria ter sido aditado um tema da prova sobre a comunicação ao Banco apresentante da recusa de pagamento da CGD, padecendo os temas da prova de omissão, face a um tema central no processo;
C) Deve ser alterada a matéria de facto dada como provada, nomeadamente o artigo 77 dos factos dados como provados e as alíneas iii) a x) dos factos não provados;
D) Assim, impunha uma decisão diversa do artigo 77 dos factos provados, por forma a completá-lo, tal como, alias, alegado pela Ré, no sentido de dar por reproduzido e transcrever os aludidos documentos na íntegra, bem como os documentos números 8 a 12 juntos com a contestação da Ré.
E) Assim, deveria ter sido dado como provado:
“A Ré enviou as notificações/swifts ao Banco Apresentante/Banco do beneficiário
(Banco Santander (Brasil)) identificando as divergências (“advise of refusal”) como recusa do pagamento dos documentos com as n/refª M016073 010 de 14/06/2019, M016073 050 de 26/08/2019 e M016073 060 de 06/09/2019, nos termos seguintes:





F) Acresce, ainda, que nos artigos 193º e ss da sua petição inicial, a Autora já havia invocado que a Ré não havia cumprido as diligências supra mencionadas, nomeadamente o prazo de 5 dias para comunicar a recusa;
G) Deveria a mui douta sentença recorrida, ter considerado, como provados os pontos iii), iv) e v) dos factos não provados, porque assim impunha a prova carreada para os autos, nomeadamente, os depoimentos das testemunhas AA, prestado na sessão de 05-07-2023, com a duração de 01h:12m:24s, segmento 00h:11:38s a 00h:07m:08s e o depoimento de BB, prestado na sessão de 20-09-2023, com a duração de 00h:39m:11s, segmento 00h:03m:29s a 00h:07m:06s;
H) Deveria, ainda, a mui douta sentença recorrida, ter considerado, como provados os pontos vi), vii), vii), ix) e x) dos factos não provados, porque assim impunha a prova carreada para os autos, nomeadamente, CC, prestado na sessão de 18-05-2023, com a duração de 01h:23m:31s, segmento 00h:11:25s a 00h:44m:18s; AA, prestado na sessão de 05-07- 2023, com a duração de 01h:12m:24s segmento 00h:23:15s a 00h:36m:31s e BB, prestado na sessão de 20-09-2023, com a duração de 00h:39m:11s, segmento 00h:12m:31s a 00h:21m:35s;
I) A recusa de pagamento da Ré CGD de um crédito documentário irrevogável é ilegal porquanto:
- Foi comunicado extemporaneamente;
- Inexistiam divergências materiais entre os documentos apresentados.
J) Os pedidos de pagamento dos créditos documentários irrevogáveis, com o valor de 206.132€ apresentados a 15.08.19 e reapresentados a 14.10.19, foram recusados, pela Ré CGD, quando já não o poderia fazer (7 e 10 dias úteis depois da apresentação – dias 26.08.19 e 28.10.19).
K) O pedido de pagamento do crédito documentário com o valor de 290.538€, reapresentado a 14.10.19, foi recusado, pela CGD, quando já não o poderia fazer (10 dias depois da apresentação – 28.10.19).
L) A mui douta sentença recorrida violou o disposto na cláusula 16ª, ponto d., das Regras e Usos Uniformes da CCI para os créditos documentários (regras UCP600), pelo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue que a Caixa Geral de Depósitos não poderia ter recusado o pagamento dos créditos documentários que lhe foram apresentados pelo Banco Santander Brasil com as referências M016073050, aos 15.08.19, M016073100, aos 14.10.19 e M0160731110, aos 14.10.19, nos valores respetivos de 206.132€ e de 290.538€.
M) ao recusar o pagamento da carta violou o Banco emissor as regras uniformes sobre crédito documentário internacional, nomeadamente, o disposto no artigo 16º, visto que inexistiam discrepâncias que permitissem a recusa do pagamento do crédito documentário.
N) Ao considerar que a recusa de pagamento foi legítima, a mui douta sentença recorrida violou o disposto no artigo 16º das Regras Uniformes sobre Crédito Documentário Internacional, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue a recusa de pagamento da Ré foi ilícita e ilegal.
O) A existência de um lapso de escrita na digitação do número da fatura proforma (faltava um número) quando a mercadoria, referências, quantidades e peso é igual não pode ser fundamento da recusa de pagamento, visto que a Ré, colocada na posição de um declaratário normal, percebeu perfeitamente a declaração negocial e compreendeu perfeitamente que se tratava de um simples lapso de escrita.
P) A existência de um lapso de escrita na digitação do número da fatura proforma (faltava um número) quando a mercadoria, referências, quantidades e peso é igual não pode ser fundamento da recusa de pagamento, visto que a Ré, colocada na posição de um declaratário normal, percebeu perfeitamente a declaração negocial e compreendeu perfeitamente que se tratava de um simples lapso de escrita.
Q) Quando a Ré está perante uma proforma e uma fatura que têm as mesmas referências, quantidades, pesos e preços, e verifica uma inversão na digitação do peso, compreende perfeitamente que declaração negocial e compreendeu perfeitamente que se tratava de um simples lapso de escrita.
R) A mui douta sentença violou o disposto nos artigos 236º e 249º do Código Civil, bem como o disposto no artigo 16º das regras uniformes do crédito documentário internacional pelo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue ilícita e ilegal a recusa de pagamento da Caixa Geral de Depósitos.
S) Ao não condenar a Ré nos termos peticionados, a mui douta sentença violou o disposto no artigo 798º do Código Civil, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que condene a Ré nos termos peticionados.
Termos em que deve ser o presente recurso julgado procedente, por provado, e, em consequência,
a) ser revogado o mui douto despacho de fls…, de 14.10.2022, que deu por não escrito os artigos 9º e ss. da resposta às excepões deduzidas pela Ré na sua contestação, sendo tal matéria incorporada nos temas da prova, máxime a falta de comunicação atempada ao Banco Santander Brasil das alegadas divergências;
b) ser revogada a mui douta sentença de fls.., e, em sua substituição, ser proferido
Acórdão que condene a Ré nos termos peticionados.
***
7- A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência dos recursos, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1) Quanto ao primeiro dos interpostos recursos (douto despacho de 19.10.2022), nada há a censurar ao dito despacho porquanto o que o Tribunal fez foi reconhecer a inexistência de defesa por exceção na contestação da R., o que aliás podia perfeitamente fazer não obstante a prévia prolação do despacho (meramente tabelar) de 14.12.2021, no qual se aludiu à existência de “exceções”, cabendo-lhe interpretar e aplicar o Direito e exercer a gestão processual (art.º 6º do CPC);
2) Com efeito, o douto despacho de 14.12.2021 no qual o Tribunal aludiu à existência de “exceções” não faz caso julgado formal tratando-se de um despacho meramente ordenador proferido no âmbito do dever de gestão processual, podendo, portanto, tal despacho ser “revisto” como efetivamente foi, sem qualquer violação da lei processual;
3) De qualquer forma a matéria que a A. através deste recurso a apelante pretende aditar à Base Instrutória consta já dos factos dados como provados (cfr. ponto 77 da douta fundamentação de facto da sentença), pelo que o recurso se encontra desprovido de conteúdo e de efeito útil, atendendo a que pretende introduzir na Base Instrutória matéria que foi já objeto de apreciação judicial;
4) Quanto à impugnação pela apelante da matéria de facto dada como provada não se justifica que haja qualquer alteração do ponto 77 dos factos provados (com a pretendida reprodução na íntegra os documentos 8 a 12 juntos com a contestação) porquanto esta alteração nada acrescenta de útil para a decisão do mérito da causa;
5) Com efeito, a apelante pretende que seja dado como provado o texto integral dos swifts de comunicação das divergências juntos pela R. na respetiva contestação porque parte do equivocado princípio que desses documentos se pode concluir que as comunicações das divergências por parte da GD ao Banco Santander (banco apresentador) foram efetuadas já após o decurso do prazo de cinco dias úteis previsto na alínea D) do art.º 16º das Regras Uniformes UCP 600, situação esta que não corresponde à verdade;
6) As datas que a apelante só agora em sede de recurso refere como sendo as datas de receção dos documentos na CGD provenientes do banco apresentador – e a partir das quais se inicia a contagem do prazo de 5 dias úteis - não são as corretas, pelo que inexiste razão para se poder concluir que o ponto 77 se encontra “escasso na sua descrição”;
7) Acresce que as datas que a apelante só agora em sede de recurso refere como sendo as datas de apresentação/receção dos documentos na CGD são as datas de envio dos documentos pelo banco Santander Brasil (banco apresentador), sendo certo que incumbia à apelante nos termos do princípio dispositivo e das regras do ónus da prova alegar/indicar na petição inicial (ou em articulado superveniente) qual o concreto termo inicial da contagem do prazo de 5 dias úteis, ónus este que não cumpriu;
8) As alegações de recurso não são o momento processual próprio para a apelante alegar factos essenciais para o direito que invoca, sendo certo que é a apelante que invoca que a CGD deixou precludir o prazo de 5 dias úteis que as RUU definem como sendo o prazo limite para serem comunicadas as divergências que a CGD detetou, tratando-se, portanto, da alegação de factos essenciais face ao pretenso direito invocado pela apelante, que lhe competia alegar no momento processual próprio;
9) Os pontos vi), vii), viii), ix) e x) dos factos não provados devem manter-se como tal; com efeito, a situação económica, financeira e de tesouraria da A. já se verificava muito antes da situação resultante do crédito documentário em causa nestes autos, factos estes que a própria A. expressamente confessa no requerimento inicial do PER que apresentou em juízo (cfr. os pontos 69 e 77 dos factos provados);
10) Do depoimento das testemunhas arroladas pela A. Sr. CC e Sr. AA, bem como das declarações de parte de BB, não resulta justificação para dar como provada aquela matéria (pontos vi), vii), viii), ix) e x) dos factos não provados) sublinhando-se aqui que a testemunha arrolada pela A. e seu funcionário CC “…admitiu claramente que o PER da A. teve efeitos: a A. passou a ser considerada de “alto risco” e até que antes disso a situação era “terrível”, como aliás a douta sentença reconhece;
11) Com efeito, a mercadoria a que se referia o crédito documentário em questão foi toda levantada pela apelante, conforme se constata dos pontos 78 a 80 dos factos provados, tendo a A. “procedido à comercialização das mercadorias que levantou com recurso a cópias dos documentos originais” nos termos e condições que em entendeu, facto este que foi aliás confirmado pela própria testemunha arrolada pela A. Sr. AA;
12) E, quanto às alegadas consequências que alegadamente derivaram para a A. pelo facto de terem incumprido com o prazo de pagamento à Arezzo, esta testemunha (AA) não identifica nem concretiza negócios, clientes, fornecedores, e fez completa tábua rasa da situação económica em que se encontrava a empresa e que a levou a requerer um PER ainda antes da recusa de pagamento do crédito documentário pela CGD, situação que aliás foi repetida por BB nas respetivas declarações de parte;
13) Aliás, não foi junta pela A. prova documental (faturas, notas de encomenda, contratos com a Arezzo) que servissem de amparo às alegadas perdas de clientes, de faturação, de encomendas e fornecedores, e que pudesse comprovar o histórico de vendas da empresa bem como dos seus clientes e fornecedores, não tendo sido requerida pela A. qualquer prova pericial de onde pudesse resultar a evidência de tais alegadas quebras, não tendo sequer sido juntos os relatórios e contas oficiais e seus anexos O e P das IES respeitantes à A. com a demonstração dos resultados anteriores e posteriores à recusa de pagamento por parte da CGD, o que se traduz na total falta de suporte documental credível às perdas que alega;
14) Conclui-se, assim, que a apelante não demonstra nenhum vício no exame crítico da prova efetivado pelo Tribunal a quo, e que apenas pretende substituir a livre convicção do Tribunal na apreciação da prova à sua própria convicção, obviamente interessada no desfecho da causa;
15) Quanto à aplicação do Direito não se verifica qualquer erro do Tribunal na apreciação que fez, na qual concluiu pela existência de divergências nos documentos apresentados tendo-as comunicado ao Banco apresentador no prazo de 5 dias úteis, em total respeito pelas RUU;
16) Com efeito, quanto às datas que a apelante (só agora, em sede de recurso) indica como sendo as datas de apresentação/receção dos documentos na CGD as mesmas correspondem às datas de envio dos documentos pelo Banco apresentador e não às datas de receção desses mesmos documentos pela CGD;
17) A apelante parte do equivocado princípio que nos documentos que constituem os swifts de comunicação das divergências nomeadamente do seu campo 32A se pode concluir que tais comunicações ao Banco Santander (banco apresentador) foram efetuadas já após o decurso do prazo de cinco dias úteis previsto na alínea D) do art.º 16º das RUU.;
18) Com efeito, de acordo com as Regras internacionais Swift, para a mensagem de recusa de documentos a data indicada no campo 32A corresponde à data de envio das respetivas cartas pelo Banco apresentante que capeiam os documentos;
19) Aliás, que a apelante não explicita como é que chegou à conclusão de que as datas constantes do campo 32A eram as datas de receção dos documentos pela CGD, limitando-se apenas a tal afirmar, sendo certo que tratando-se de matéria integradora dos factos constitutivos do alegado direito incumbia à A. alegar e provar no momento processual próprio (e não em fase de alegações de recurso) qual o termo inicial e qual o termo final do prazo de cinco dias úteis, coisa que a A. não fez;
20) Com efeito, só agora já em sede de recurso – cfr. pág.ª 50 das doutas alegações de recurso – veio a A. concretizar quais as datas que entende constituírem o termo inicial do prazo de 5 dias, e fá-lo com recurso à utilização dos swifts de recusa do pagamento juntos pela CGD na sua contestação, sendo certo que a apelante não pode agora em sede de recurso vir alegar factos que nunca antes alegou, tratando-se aliás de factos essenciais para a demonstração do seu direito;
21) Ademais, a apelante indica datas que não provou serem as datas de receção dos documentos pela CGD, data essa que constitui o termo inicial de contagem do prazo de 5 dias úteis para a comunicação de recusa dos documentos, sendo certo que não resulta da leitura do campo 32A dos swifts que a data aí indicada se trata da data de receção dos documentos pela CGD (data de apresentação dos documentos) recaindo sobre a A. o ónus de tal prova;
22) Sucede, aliás, que a aqui apelante teve oportunidade de instar/confrontar a testemunha – Sr.ª Dr.ª DD, ouvida na sessão de julgamento ocorrida em 20 de setembro de 2023, a partir das 13.30 horas, cujo depoimento ficou registado em suporte digital do Tribunal de 00m 02s a 56m - que foi a pessoa responsável pela apreciação e recusa dos documentos que foram remetidos pelo Banco apresentante (Santander Brasil) e que superintendeu à dita recusa quanto às datas de receção dos documentos pela CGD, e não o fez;
23) Esta testemunha a partir de minutos 6,10 do seu depoimento esclareceu as datas de apresentação/receção dos documentos pela CGD, esclarecendo que quanto à primeira utilização no valor de 798,60 USD a apresentação dos documentos foi efetuada à CGD em 11.06.2019, tendo a notificação da recusa sido efetuada pela CGD em 14.06.2019” (cfr. 6,20 minutos e ss. do depoimento), “a segunda utilização, no valor de 206.132,00 USD foi recebida pela CGD em 21.08.2019 tendo a notificação da recusa ocorrido em 26.08.2019.” (cfr. minutos 8,43 e ss.), e a terceira utilização no valor de 290.538,00 USD, os documentos foram recebidos pela CGD em 03.09.2019 e foi dado conhecimento da recusa ao banco apresentador em 06.09.2019” (cfr. Minutos 17,30 e ss.);
24) Também quanto às reapresentações dos documentos (docs. 11 e 12 juntos com a contestação) não assiste razão à apelante quanto à alegada violação do prazo;
25) Com efeito, após a verificada recusa de pagamento pela CGD acima indicada e comunicada em 26.08.2019 e 06.09.2019 respetivamente, ao banco Santander Brasil este voltou posteriormente a apresentar a pagamento estes dois valores mediante o reenvio de documentação;
26) E efetivamente podia fazê-lo dentro do prazo de 28 dias a contar da data de embarque das mercadorias, tudo factos que competia à A. alegar em sede e momento processual próprios, e, seguidamente, provar, seja este aludido prazo de 28 dias seja o seu termo inicial e final, o que não fez;
27) Devendo, todavia, processar a apresentação destes documentos, obviamente já sem as divergências que a CGD tinha detetado e comunicado previamente;
28) Só que tal não sucedeu, conforme a aludida testemunha Sr.ª Dr.ª DD teve oportunidade de esclarecer em Tribunal, tendo o banco Santander Brasil reenviado à CGD os mesmíssimos documentos que já antes haviam sido recusados por esta ((cfr. minutos 30,16 e ss. e 42,20 e ss e 53,00 ss do depoimento);
29) Também relativamente a estas duas reapresentações a apelante nunca alegou no momento processual próprio qual a data que, para si, constituía para si o termo inicial da contagem do prazo de 5 dias úteis, concluindo agora a apelada da leitura das alegações de recurso que, tal como acima se mencionou, voltou a partir do equivocado princípio que tal prazo se contava das datas constantes do campo 32A, e daí concluindo, tout court, que estava ultrapassado o dito prazo;
30) A apelante não alegou nem fez prova das datas de termo inicial da contagem destes prazos de reapresentação dos documentos, nem tão pouco instou/confrontou a testemunha Sr.ª Dr.ª DD com os documentos 11 e 12 juntos com a contestação por forma a demonstrar que o prazo de cinco dias úteis no que respeita a estas reapresentações se encontrava ultrapassado, pelo que não será certamente em fase recursória que colmatará tais lacunas;
31) Quanto à alegada questão da “inexistência de divergências materiais entre os documentos apresentados” também não assiste qualquer razão à apelante;
32) É a própria A. que logo na sua petição inicial expressamente admite a existência de divergências entre os documentos usados para a aprovação do crédito documentário e os documentos apresentados a final à CGD, clamando, todavia, que se tratava de “pequenas desconformidades” (cfr. nº 68 da p.i.), e “mínimas discrepâncias existentes” (cfr. nº 77 da p.i.);
33) E entende a apelante que o “aproveitamento” que fez do embarque aéreo para nele fazer transportar para além de toda a mercadoria constante da carta de crédito, mercadoria não constante da carta de crédito não consubstancia divergência alguma e que, portanto, não assistia à CGD o direito de recusar o pagamento da utilização do crédito documentário em causa, o que não é verdade;
34) Incumbia-lhe, portanto, a prova de tal alegação, nos termos das regras de distribuição do ónus da prova, atendendo a que se trata de facto essencial, ou seja, integrador da existência do alegado direito à indemnização, sendo certo que a A. não logrou fazer qualquer prova de que estas alegadas “pequenas desconformidades” e “mínimas discrepâncias” não são suficientes para fundamentar a recusa de pagamento do crédito documentário;
35) E, em sede recursória, a apelante limita-se a repetir o que alegou na sua petição inicial, sem sequer explicar como e porquê entende que deve ser revogada a douta sentença quanto a esta parte da decisão;
36) A este respeito a testemunha Sr.ª Dr.ª DD esclareceu no seu depoimento quais as divergências verificadas, enumerando-as e concretizando-as relativamente a cada uma das três utilizações acima mencionadas, igualmente esclarecendo que o conceito de divergências não admite grau (não há divergências mínimas ou máximas) pelo que havendo divergências sejam elas quais o banco pode recusar os documentos e o pagamento, bastando ouvir a este respeito o dito depoimento a partir dos minutos 7,30 e ss.;
37) E esclareceu que o Fornecedor (Arezzo) “podia ter facultado (ao banco apresentador) e enviado novos documentos, com faturas substituídas, desde que fossem apresentadas no prazo máximo de 28 dias após o embarque das mercadorias” (cfr. minutos 30,16 e 31,35 do seu depoimento, mas em vez disso “tornou a enviar os mesmos documentos que já haviam sido recusados e já após o decurso do prazo de 28 dias” (cfr. minutos 42,43 do depoimento);
38) Esclarecendo que o conceito de divergências não admite grau (não há divergências mínimas ou máximas) pelo que havendo divergências sejam elas quais o banco pode recusar os documentos e o pagamento, bastando ouvir a este respeito o dito depoimento a partir dos minutos 7,30 e ss.
39) Aliás, caso fosse necessário destrinçar entre divergências mínimas (que, no entender da apelante, não poderiam fundamentar a recusa dos documentos) e as outras divergências (que poderiam fundamentar a recusa dos documentos) estar-se-ia a cair no domínio da pura subjetividade, o que não pode servir de modelo de atuação;
40) E, mais uma vez, o Il. Mandº da apelante rigorosamente nada instou/perguntou a esta testemunha quanto a este seu argumento (inexistência de divergências suscetíveis de fundamentar recusa válida dos documentos apresentados);
41) Por último pretende a apelante que a CGD “compreendeu perfeitamente que a divergência “se tratava de um simples lapso de escrita” clamando pela violação dos artigos 236º e 249º do Código Civil;
42) Tratando-se como se trata de um crédito documentário irrevogável – nenhuma das partes suscitou qualquer oposição a esta qualificação - a obrigação do banco Emitente é autónoma e independente relativamente ao contrato base, ou seja, ao contrato de compra e venda entre fornecedor (Arezzo) e cliente (But Fashion);
43) Com esta interpretação jurídica o que a apelante pretende é que a CGD deveria proceder a um esforço interpretativo entre as faturas proforma (que serviram para a abertura do crédito documentário) e os documentos apresentados para o pagamento (faturas definitivas e airway bills) para ajuizar e concluir sponte sua sobre a existência de alegados erro/lapsos de escrita;
44) Todavia, a CGD na qualidade de banco Pagador não tem nem deve interpretar documentos por forma a ajuizar alegados erros ou lapsos de escrita, limitando a sua intervenção a verificar se existem ou não existem desconformidades entre documentos;
45) Aliás nem sequer conseguiria apurar qual dos documentos estaria “errado”, se a fatura proforma se a definitiva se os airway bills, porque para isso teria de interferir na relação causal, no negócio de compra e venda subjacente que deu causa à emissão do crédito documentário, e, atenta a autonomia do crédito documentário, tal não lhe pode ser exigido;
46) A “apresentação em conformidade” aludida na alínea D) do art.º 14º das RUU apenas exige a deteção de desconformidades/divergências entre os documentos apresentados e os documentos que serviram de base à emissão do crédito documentário, e não qualquer esforço interpretativo dos documentos apresentados;
47) Por último afirmar, como faz a apelante, que “a Ré, colocada na posição de um declaratário normal, percebeu perfeitamente a declaração negocial e compreendeu perfeitamente que se tratava de um simples lapso de escrita, o mesmo se dizendo relativamente à inversão da ordem de um número na digitação do peso” é afirmar algo que também não foi alegado (a não ser agora, em fase de recurso) e muito menos provado.
48) Pelo que não se verifica violação alguma do disposto nos artigos 236º e 249º do Código Civil nem tão pouco do disposto no artigo 16º das regras uniformes do crédito documentário.
Termos em que se conclui que a douta sentença não merece qualquer censura ou reparo devendo assim ser integralmente mantida.
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8- Na sequência de despacho proferido para o efeito pela 1ª instância, a autora/apelante veio esclarecer que o recurso de decisão intercalar que interpôs em conjunto com o recurso da sentença, é do despacho de 19/10/2022, que deu por não escrito os pontos 9 e segs de requerimento de resposta apresentada pela autora.
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II-FUNDAMENTAÇÃO.
1-Objecto dos Recursos.
1-É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
a)- Se há fundamento para revogar o despacho proferido em sede de audiência prévia (de 19/10/2022) a dar como não escrito parte (ponto 9º e segs.) do articulado de resposta, apresentado pela autora e, determinar o aditamento aos temas de prova a falta de comunicação atempada pelo réu, ao Santander Brasil, das alegadas divergências;
b)- A Impugnação da Matéria de Facto;
c)- A revogação da sentença, com a consequente procedência da acção.
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2- Fundamentação de Facto.
É a seguinte a matéria de facto decidida pela 1ª instância:
Factos provados
1) A A. é uma sociedade comercial anónima, constituída em 1997, que dedica a sua atividade à importação, exportação, fabricação e comercialização de todo o tipo de artigos em pele, calçados e mercadorias de moda, assim como complementos em geral, com foco no mercado de retalho português.
2) A R. é uma instituição bancária, com a qual a A. tem celebrado, há alguns anos, diversas operações financeiras, de modo a viabilizar as suas operações comerciais.
3) Ao longo dos anos, A. e R. celebraram vários contratos de emissão de crédito documentário, com vista à garantia da segurança das transações comerciais internacionais da A.
4) A A. conta atualmente com uma rede nacional de 14 lojas e uma loja online: www.madein-shops.com.
5) A A. tem presença ainda no comércio por grosso, vendendo para o mercado interno e para o mercado externo, para países como Itália, Espanha e Grécia.
6) As principais marcas comercializadas pela A. são as seguintes: Alexandre Birman, Cubanas, Made|in, Arezzo, Unisa e Schutz,
7) As marcas Alexandre Birman, Arezzo e Schutz, são marcas brasileiras e pertencentes ao mesmo grupo económico Arezzo&Co.
8) As marcas do grupo Arezzo&Co correspondem a mais de 50% do volume de negócios e mais de 90% do volume de exportações da A.
9) A A. e o Grupo Arezzo&CO acordaram que a compra e venda de mercadoria é processada da seguinte forma:
i) A A. apresenta as mercadorias do Grupo Arezzo&Co a clientes lojistas em Portugal e na Europa.
ii) Em negociações com os clientes lojistas, a A. efetua a venda das mesmas com a promessa de entrega futura, registando estas vendas em Notas de Encomenda.
iii) No término de um período de vendas, seja uma estação ou coleção, a A. faz a
consolidação destas vendas, criando ordens de compra, que descrevem as encomendas das mercadorias vendidas, junto ao Grupo Arezzo&Co.
iv) As ordens de compra são encaminhadas para o Grupo Arezzo&Co, formalizando a encomenda das mercadorias, da A. ao Grupo Arezzo&Co.
v) A empresa do Grupo Arezzo&Co recebe as Ordens de Compra da A., faz a sua consolidação, confirma todos os dados, e formaliza o recebimento da compra através da emissão de um documento próprio a favor da A.: a fatura proforma que detalha toda a operação física e financeira envolvida.
vi) Na posse da fatura proforma, a A. solicita à R. uma garantia financeira através
da emissão de um crédito documentário irrevogável, a saber: uma carta de crédito irrevogável a favor do banco Santander Brasil, S.A., no montante da operação das ordens de compra emitidas a favor do Grupo Arezzo&Co.
vii) A R. aprova a solicitação da emissão da referida carta de crédito por parte da A. e comunica-a ao Banco Santander do Brasil S.A., apresentando as garantias financeiras exigidas, e dando fiabilidade e credibilidade a toda a operação.
viii) O banco Santander Brasil S.A. recebe as aprovações por parte da R. e informa a empresa exportadora indicada pelo grupo Arezzo da emissão do crédito documentário, dando assim a sua aprovação financeira da operação de compra da parte da A. ao Grupo Arezzo&Co.
ix) O Grupo Arezzo&Co só inicia a produção das mercadorias quando recebe os documentos de compra – Ordens de Compra Internacionais, bem como as garantias de crédito equivalentes – carta de crédito irrevogável a favor do seu banco, Santander Brasil, S.A.
x) Logo que a produção das mercadorias vendidas pela A. para os seus clientes em Portugal e Europa é concluída pela Arezzo&Co, a mesma comunica este fato à A. e ao Banco Santander S.A.
xi) O Banco Santander, na posse das garantias de crédito (a carta de crédito emitida pela R.), recebe a comunicação de parte do Grupo Arezzo&Co e faz as devidas verificações financeiras.
xii) No caso das verificações financeiras efetuadas pelo Banco Santander S.A. resultarem como corretas, ou seja, as mercadorias estão prontas e o montante das
mesmas é devidamente coberto pelo valor da carta de crédito, o mesmo efetua a solicitação para que a R. pague pelas mercadorias, consoante o que foi contratado por ocasião da emissão da carta de crédito solicitada pela A.
xiii) Por fim, a R. examina os documentos e, se nada obstar, procede ao pagamento da mercadoria, ou comunica-o como aceite para uma data de cumprimento, entregando os respectivos documentos à A.
10) Aos 30/04/2019, a A. solicitou à R. abertura de carta de crédito através do portal online da R.
11) Tendo, acto contínuo, enviado à R. os documentos de suporte à emissão da carta de crédito, nomeadamente, as faturas proforma.
12) Estando na posse de todos os elementos necessários, a R., aos 08/05/2019, procedeu à emissão do crédito documentário, nos seguintes termos:



13) Tendo debitado à A. os custos da respetiva emissão, no valor de 3.000,00€.
14) Esta operação documentária de comércio internacional ficou registada com o n.º M016073 de carta de crédito (campo 20 da carta de crédito de fls.89).
15) Consubstanciando um crédito documentário de importação irrevogável, com o valor corrente de 562.013,63 USD e validade até 13/10/2019 (campos 31D, 32B e 40A, da carta de crédito de fls.89).
16) O pagamento seria diferido em 150 dias, após o contrato de AWB (AIR WAYBILL), (campo 42P da carta de crédito de fls. 89).
17) Ficou ainda prevista a possibilidade de embarques e transbordos parciais (campos 43P e 43T da carta de crédito de fls. 89).
18) O dia 15/09/2019 foi estabelecido como data limite para a mercadoria ser expedida (campo 44C da carta de crédito de fls. 89).
19) A mercadoria em causa era a seguinte:
- 14476 pares de sapatos feminino - “proforma invoice” 1062458, 1061526, 1069314, 1092420, 1095879, 1105440, 1112107, 1120792, 1120745, 1120731, 1120665, 1120662, 1120621, 1120611, 1120583, 1120501, 1120947, 1120346, 1120304, 1120267, 1119785, 1117196, 1115849, 1114260; e - 106 malas de mão - “proforma invoice” 1021734, 1024854, 1068430, 1069318 e 1070344. (campo 45 da carta de crédito de fls. 89)
20) A A. e a R. submeteram esta operação ao regime das regras e usos uniformes relativos aos créditos documentários (RUU), de acordo com o estipulado pela Câmara de Comércio Internacional - normas UCP 600 (campo 40E da carta de crédito de fls. 89).
21) A R., após aprovar o pedido da A. e emitir a carta de crédito, comunicou-a ao banco do grupo Arezzo, o banco Santander Brasil S.A.
22) Por sua vez, o banco Santander Brasil S.A. comunicou a recepção da dita carta à empresa exportadora indicada pelo grupo Arezzo - ZZEXP Comercial Exportadora.
23) De seguida, o grupo Arezzo, através da sua exportadora, emitiu as faturas definitivas de venda da mercadoria à A. e procedeu à sua exportação para Portugal.
24) Após receber os documentos da exportação, o banco Santander Brasil S.A verificou a conformidade destes documentos com a carta de crédito emitida, remetendo-os posteriormente para a R.
25) Chegada a mercadoria a Portugal, foi a mesma levantada pela A.
26) Quando a R. foi interpelada pelo banco Santander Brasil para pagar o crédito em causa, que abarcava um conjunto de faturas, a R. pagou parte, porquanto não apresentava desconformidades/divergências face à carta de crédito/documentos de embarque, e outro conjunto de faturas não foi pago porque apresentava divergências.
27) A R. invocou junto desse banco, as seguintes desconformidades/divergências:
- Discrepância de peso decorrente de ter sido remetida outra mercadoria
juntamente com a mercadoria referente à carta de crédito.
- A Fatura 0638/19 foi embarcada junto com a Fatura 0640/19, e por esse motivo o peso bruto diferia do contrato AWB;
- A Fatura 0666/19, referia o número de fatura proforma incompleto:
- A Fatura 5048/19 continha tinha o número de peso de 11,823 KGS e o AWB tinha o número 11,283 KGS.
28) A A. tomou conhecimento desta situação através do grupo Arezzo, pelas comunicações juntas a fls. 100 a 102.
29) Ao tomar conhecimento desta situação pelo grupo Arezzo, a A. enviou à R., aos 07/10/2019, por carta registada com aviso de recepção e também por email, a seguinte missiva:
“Exmos. Senhores,
Tomamos, agora, conhecimento, através do nosso fornecedor à margem referenciado, que terão invocado discrepâncias junto do Banco Santander (Brasil), SA, para não pagar a carta de crédito irrevogável relativa às “proforma invoices”:
-1062458, 1061526, 1069314, 1092420, 1095879, 1105440, 1112107, 1120792, 1120745, 1120731, 1120665, 1120662, 1120621, 1120611, 1120583, 1120501, 121120947, 1120346, 1120304, 1120267, 1119785, 1117196, 1115849 e 1114260 (sapatos de senhora);
-1021734. 1024854, 1068430, 1069318 e 1070344 (Malas).
Recordamos que o procedimento que sempre tiveram foi o de comunicar eventuais discrepâncias nas cargas, submetendo-as à nossa aceitação ou não.
Recordamos, ainda, que relativamente a estes créditos, V. Exas. reclamaram, e foram reconhecidos, os vossos créditos no Plano de Revitalização.
Estamos, assim, perante uma clara situação de má fé da vossa parte.
Desde já, vos comunicamos que aceitamos as mínimas discrepâncias existentes, referentes ao embarque de mercadoria sem carta de crédito, juntamente com mercadoria da carta de crédito.
O que é certo é que, relativamente às “proforma invoices” e à mercadoria embarcada com carta de crédito não existe qualquer discrepância.
A mercadoria constante das “proforma invoices” foi embarcada tal como constava nas mesmas.
O facto de se aproveitar um embarque para, para além da mercadoria constante das “proforma invoices”, se embarcar outra mercadoria, que não é paga pela carta, não é motivo de recusa de pagamento da ordem irrevogável que deram.
Por último, declaramos, sendo que os documentos novamente enviados, que aceitamos, desde já, as discrepâncias existentes.
Informamos que daremos conhecimento desta missiva ao nosso fornecedor e agradecemos que procedam ao pagamento devido ao Banco Santander (Brasil), S. A.
Cumprimentos,
BUT FASHION SOLUTIONS, S. A.”
30) Como resposta à missiva que lhe foi remetida pela A., a R. respondeu, por email datado de 15/10/2019, o seguinte:
Boa tarde,
Em primeiro lugar, queremos por começar a agradecer a sua missiva, que nos mereceu a melhor atenção e cuidado.
A CGD regista o desagrado que V.Exa. que demonstra em toda a carta que nos dirige, mas gostaria de aproveitar a oportunidade para refutar as acusações que impendem sobre a sua atuação.
As referidas operações de apoio à importação – CDI’s – reger-se-ão pelas clausulas e condições usadas nas transações internacionais, a Câmara de Comércio
Internacional encarregou-se de coligir, de forma ordenada e sistemática, os princípios aceites no comércio jurídico internacional, fazendo-o com êxito e ora catalogados sob a denominação de “Regras e Usos Uniformes Relativos aos Créditos Documentários”.
A CGD, obrigatoriamente, rege-se por estas regras, indicando que qualquer divergência encontrada suspende a garantia de pagamento. Mais informamos, que a CGD deu conhecimento, através de mensagem SWIFT, ao Banco Santander (Brasil), SA do não pagamento dos CDI’s e quais os motivos.
Adicionalmente, referimos que é do amplo conhecimento de V. Exa., que a CGD sempre teve uma postura ativa em todo este processo através das diversas reuniões, telefonemas, e-mails, etc.
Obrigado, AFL
EE | Gestor Negocial”.
31) A R. reclamou o crédito atinente a esta carta de crédito no Processo Especial de Revitalização da A. que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo do Comércio de Santarém, Juiz 1, processo n.º 1535/19.7T8STR.
32) Tal crédito não foi impugnado pela A., foi reconhecido, e a R. votou contra o plano.
33) A A. pagou, no âmbito do acordo de pagamentos a que chegou com todos os seus credores, as seguintes prestações:
- 3.000,00€ (três mil euros), pagos pela A. à R. aos 26/11/2019;
- 508,71€ (quinhentos e oito euros e setenta e um cêntimos), pagos pela A. à R. aos 17/02/2020;
- 433,90€ (quatrocentos e trinta e três euros e noventa cêntimos), pagos pela A. à R. aos 10/03/2020;
- 431,84€ (quatrocentos e trinta e um euros e oitenta e quatro cêntimos), pagos pela Autora à Ré aos 14/04/2020.
34) A A. pagou ao grupo Arrezo a parte da carta de crédito que a R. recusou pagar, no âmbito de um acordo que assumiu para manter as relações comerciais com este.
35) Anteriormente, a R. detectou discrepâncias entre a mercadoria constante das faturas proforma e a mercadoria final faturada, tendo feito a sua comunicação à A., como em 03/08/2018, relativa a uma carta de crédito anterior, nos termos seguintes:
“Comunicação nº M014963PAY050, COMUNICAÇÃO DE DIVERGÊNCIAS CRÉDITO DOCUMENTÁRIO IMPORTAÇÃO Para: AUTORA SOLUTIONS – COMERCIO E N/ Refª. M014963 V/ Refª. AREZZO INDUSTRIA E COMERCIO SA Exmo(s) Senhor(es)
Informamos a utilização do crédito documentário acima indicado. Passamos a discriminar o(s) pagamento(s) solicitados:
Moeda USD Montante 76.698,00 Vencimento 2019-01-14 Os documentos
apresentam as seguintes divergências:
-AWB: PESO BRUTO, NÚMERO DE EMBALAGENS E NÚMERO DE PARES DIFERENTES DA CARTA DE CRÉDITO, INDICA NÚMERO DE FATURA NÃO APRESENTADA
Queiram informar-nos, o mais breve possível, se aceitam os documentos com as citadas divergências e autorizam o respectivo pagamento.
Estamos a enviar documentos referentes a este crédito documentário para 2542
- GABINETE DE EMPRESAS DE TORRES NOVAS.
Com os melhores cumprimentos
CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S. A.
Processado por computador em 2018-09-03”
36) A A., face às divergências e discrepâncias mencionadas pela R., aceitou-as e autorizou o pagamento, nos seguintes termos:
“Exmos. Senhores,
Vimos pelo presente aceitar as divergências do Crédito documentário MO14963
autorizando o seu pagamento na data de vencimento respectiva.
Sem outro assunto de momento, subscrevemo-nos com os nossos melhores cumprimentos.”
37) Noutra situação, a R. detectou discrepâncias entre a mercadoria constante das faturas proforma e a mercadoria final faturada, tendo enviado à A. a comunicação de divergências nº M015525PAY280, aos 25/02/2019, com o seguinte teor:
“Comunicação nº M015525PAY280 COMUNICAÇÃO DE DIVERGÊNCIAS CRÉDITO DOCUMENTÁRIO IMPORTAÇÃO Para: BUT SOLUTIONS - COMERCIO E N/ Refª. M015525 V/ Refª. AREZZO INDUSTRIA E COMERCIO SA Exmo(s) Senhor(es)
Informamos a utilização do crédito documentário acima indicado. Passamos a discriminar o(s) pagamento(s) solicitados:
Moeda USD Montante 9.174,00 Vencimento 2019-06-11
Os documentos apresentam as seguintes divergências:
-AWB: PESO BRUTO E NÚMERO DE CARTÕES INCONGRUENTE COM FATURAS APRESENTADAS.
Queiram informar-nos, o mais breve possível, se aceitam os documentos com as citadas divergências e autorizam o respectivo pagamento.
Estamos a enviar documentos referentes a este crédito documentário para 2542
- GABINETE DE EMPRESAS DE TORRES NOVAS.
Com os melhores cumprimentos CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S. A.
Processado por computador em 2019-02-25”.
38) A carta de crédito em causa nos autos, servia para dar ordem de pagamento das Facturas n.ºs:
- 5048/19;
- 5050/19;
- 0636/19;
- 0637/19;
- 0639/19;
- 0634/19;
- 0635/19 – B;
- 0635/19 – A;
- 0638/19;
- 0663/19 A;
- 0663/19 B;
- 0665/19;
- 0666/19;
- 0667/19,
- 0679/19;
- 0678/19;
- 0677/19;
- 0676/19,
- 0664/19 A;
-0664/19 B,
- 5070/19,
- 5071/19;
- 0750/19,
- 0751/19,
- 0752/19
- 5075/19,
- 5056/19.
39) Ao abrigo desta carta de crédito, foi embarcada e recebida pela A., mercadoria no valor total de 535.792,93 USD.
40) A R. pagou as seguintes quantias:
- 340,50 USD, referentes à Factura 5050;
- 8.106,84 USD, referentes à Factura 5070/19;
- 197,50 USD, referentes à Factura 5071/19;
- 2.678,00 USD, referentes à Factura 0750/19;
- 4.316,00 USD, referentes à Factura 0751/19;
- 12.692,00 USD, referentes à Factura 0752/19;
- 5.345,84 USD, referentes à Factura 5075/19;
- 4.647,65 USD, referentes à Factura 5056/19, no montante total de 38.324,30 USD.
41) Os restantes 497.468,60 USD, a R. não pagou, devido às divergências invocadas em 27).
42) Havia sido convencionado entre as partes um prazo de 150 dias para pagamento do crédito (campo 42P da carta de crédito de fls. 89).
43) Prazo esse que começou a correr da celebração do contrato de AWB (transporte aéreo dos bens).
44) Os créditos documentários representam uma grande fatia do investimento realizado pela A. incidindo maioritariamente sobre transações comerciais relativas a produtos essenciais para a sua actividade.
45) Entre Setembro e Dezembro de 2019, a A. verificou uma série de atrasos, da parte do grupo Arezzo, no embarque/exportação de mercadorias.
46) Como consequência do acordado entre A. e o grupo Arezzo, desde Dezembro de 2019 até Dezembro de 2020, a A. esteve a pagar ao grupo Arezzo, em prestações, o valor em causa.
47) Tendo já pago a totalidade do montante que tinha em dívida a esse Grupo.
48) O receio de que não fossem pagos nos termos acordados, levou alguns dos fornecedores a solicitarem à A. uma antecipação do pagamento das encomendas que lhes
haviam sido feitas, sob pena de interromperem a produção dos produtos encomendados.
49) O pagamento ao grupo Arezzo e aos fornecedores supra citados, diminuiu o número e volume das suas encomendas aos fornecedores e diminuiu a sua capacidade de venda e distribuição de produtos aos seus habituais clientes.
50) A A. perdeu fornecedores e clientes.
51) E sofreu quebras bastante significativas nas suas receitas.
52) No período de Setembro de 2019 a Março de 2020 e o período análogo anterior, de Setembro de 2018 a Março de 2019, a A. perdeu 18% da sua habitual carteira de fornecedores, o que corresponde a uma redução para zero das compras feitas a 3 daqueles que eram os seus fornecedores habituais.
53) - A A. reduziu parcialmente as suas compras relativamente a 12 dos seus fornecedores habituais, representativos de 71% da sua carteira de fornecedores.
54) - A nota de compra média da A. aos seus fornecedores foi reduzida em 40%, o que gerou um aumento do preço dos produtos comprados pela A., em decorrência da redução do número de produtos comprados.
55) - Como resultado, o preço médio de venda da A. caiu 8%, fruto da queda de vendas, e o preço médio de compra aumentou 9%.
56) - Com o aumento dos custos de compra, a A. perdeu lucros contabilizados em 125.266,35€.
57) - Em consequência das dificuldades de compras e da perda de 3 fornecedores, a A. foi obrigada a aumentar a quantidade de fornecedores em 35%.
58) No que respeita a vendas, 429 clientes da A. reduziram para zero as suas encomendas, 174 clientes da A. reduziram parcialmente as suas encomendas, o que gerou uma perda de receitas de vendas na ordem de 1.170.856,28€.
59) Em pares de sapatos, a A. teve perda de vendas de 15.808.
60) Para minimizar essa perda de mercado em pares, teve de optar por reduzir a sua margem de lucro em cerca de 4,27€ por par entregue, reduzindo a receita em 227.030,77€.
61) A A. perdeu cerca de 27% da sua base instalada de clientes activos, que era de 742 clientes e passou a ser de 439.
62) Perdendo cerca de 203 pontos de venda dos seus produtos.
63) Com a redução de facturação, o valor das comissões ganhas pelos agentes diminuiu consideravelmente, levando 3 dos agentes comerciais da A. a cessarem a sua colaboração.
64) Do “Pedido de Crédito Documentário de Importação”, junto a fls. 22v a 24, consta o seguinte:
“Fica expressamente convencionado que:
1. O presente crédito documentário se regerá pelas “Regras e Usos Uniformes da CCI para os créditos documentários, versão em vigor, correspondente à brochura editada pela Camara de Comércio Internacional, cujo conteúdo é do nosso perfeito conhecimento pelo que se dão aqui os seus termos como inteiramente reproduzidos sendo-lhe aplicada a lei portuguesa.
(....)
5. Nem essa instituição nem os bancos vossos correspondentes intervenientes nesta operação bancária, ainda que a iniciativa da respetiva designação seja vossa, terão qualquer responsabilidade por:
(...)
d) qualquer perda, dano ou lucro cessante ainda que resultante da demora ou extravio dos documentos, ou parte deles.
(...)
65) Em operações de crédito anteriores às dos autos em que foram detectadas divergências nos documentos, a R., por opção comercial sua, e após contactos com a A. (que aceitava as divergências), aceitou proceder ao pagamento ao fornecedor entregando à A. os originais das faturas e dos documentos que lhe permitiam proceder ao imediato levantamento da mercadoria na alfândega.
66) Isto mediante outorga pela A. de financiamento através da subscrição/emissão de livranças por parte desta, em que assumia o pagamento da quantia já previamente desembolsada pela R. para pagamento do seu fornecedor.
67) Estas livranças, num total de doze, todas elas com datas de vencimento em Julho e Agosto de 2019, perfazendo o valor global de 308.400,00 €, não foram pagas pela A. nas respetivas datas de vencimento, nem após.
68) Tendo tais livranças integrado a Reclamação de Créditos que a R. deduziu no PER apresentado pela A.
69) O PER da A. entrou em Tribunal no dia 31.05.2019.
70) A entrada do PER alterou a confiança que a R. antes depositava na A., com repercussões quanto à concessão de crédito.
71) A Reclamação de Créditos, apresentada pela CGD em 27.06.2019 tinha o valor de 3.830.746,95 €, sendo este o montante de crédito em causa com esta cliente àquela
data.
72) Consta do denominado “CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO PARA DESCONTO DE REMESSAS DE EXPORTAÇÃO”, junto a fls. 502 a 506, outorgado pelas partes em 06.03.2013 e respetiva “ALTERAÇÃO AO CONTRATO DE ABERTURA DECRÉDITO (DE UTILIZAÇÃO MÚLTIPLA)”, junta a fls. 508 a 513, outorgada em 03.01.2019, que:
(…)
Cláusula Segunda
(…)
2 - Fica desde já estabelecido e mutuamente aceite pelas partes que a celebração do presente contrato não constitui a CGD na obrigação de descontar todas as remessas de exportação que lhe sejam solicitadas pela CLIENTE, reservando-se a CGD o direito de, casuisticamente, e após análise da documentação que para o efeito lhe for apresentada, decidir sobre a realização de cada uma das operações de desconto que lhe venham a ser solicitadas”.
73) Da Cláusula 7.º “MODALIDADES DE UTILIZAÇÃO DO CRÉDITO” da
alteração consta:
“(…)
7.1. O crédito aqui disponibilizado pode ser utilizado pela CLIENTE de acordo
com as seguintes modalidades:
(…)
b) Utilização do crédito através da realização de operações especiais de apoio à importação – CDI’s;
(…)
7.2. Fica desde já estabelecido e mutuamente aceite pelas partes que a celebração do presente contrato não constitui a CGD na obrigação de financiar as operações que lhe sejam solicitadas pela CLIENTE ao abrigo das alíneas a) a c) do número anterior, reservando-se a CGD o direito de casuisticamente, decidir sobre a realização de cada uma das utilizações.”
74) Da cláusula 8ª, “FUNCIONAMENTO DO LIMITE DE CRÉDITO E REGISTO DOS MOVIMENTOS”, consta:
75) “(…)
8.4. A CAIXA tem a faculdade de suspender as utilizações solicitadas e não permitir mais utilizações do crédito aberto a favor da CLIENTE caso se verifique (i) alguma casa de exigibilidade antecipada nos termos estabelecidos no presente
contrato…”.
76) Na cláusula 10ª, “DAS UTILIZAÇÕES A EFETUAR ATRAVÉS DA REALIZAÇÃO DE OPERAÇÕES ESPECIAIS DE APOIO À IMPORTAÇÃO – PROCEDIMENTOS E REGIME”, consta:
10.3.- As referidas utilizações reger-se-ão pelas cláusulas e condições particulares que em cada caso forem comunicadas pela CGD à CLIENTE e por esta aceites e pelas cláusulas gerais estipuladas neste contrato”.
(…)”.
77) A R. comunicou ao banco Santander Brasil a existência de desconformidades/divergências na documentação, através das notificações/swifts com a referência M016073 010 de 14/06/2019, M016073 050 de 26/08/2019 e M016073 060 de 06/09/2019.
78) A A. para proceder ao levantamento das mercadorias teria de apresentar os originais dos documentos que se encontravam em poder da R. e que não foram facultados à A. pela R. na sequência da recusa desta em proceder ao pagamento ao fornecedor face à ocorrência de divergências/desconformidades na documentação relativamente à carta de crédito/documentos de embarque.
79) A tramitação normal face à existência de documentos divergentes/não conformes com a carta de crédito/documentos de embarque seria a imediata devolução dessa mercadoria ao exportador.
80) A A. procedeu à comercialização das mercadorias que levantou com recurso a cópias dos documentos originais.
81) A reclamação de créditos apresentada pela R. incluiu este CDI porquanto à data em que foi apresentado a juízo o PER ainda não tinham sido recusados os pagamentos pela R.
82) O PER foi implementado com um valor de 2.789.023,58€, valor inferior ao inicialmente reclamado de 3.830.746,95 € pela CGD.
83) A diferença deve-se à:
a) Liquidação dos financiamentos PT00352542001241191 e PT00352542001487291 (631.723,37 €) por parte das SGM’s (Sociedades de Garantia) e do avalista e ex-sócio da A. FF, realizado em 21.09.2020;
b) Não pagamento do Crédito Documentário Importação - M016073, no valor de USD 497.468,60 (câmbio em euros aprox. 410.000 €).
84) Ao abrigo do Crédito Documentário Internacional aberto junto da R. foram entregues oito conjuntos de documentos dos quais a R. devolveu três.
85) Cada conjunto de documentação dá origem a uma utilização do CDI.
86) Em cada utilização podem ser entregues diversas faturas.
87) No total das oito utilizações deste concreto CDI não foram pagas três com os seguintes montantes:
(i) 798,60 USD,
(ii) 290.538,00 USD e
(iii) 206.132,00 USD.
88) Ficou por utilizar um saldo de 14.925,22 USD do CDI.
***
Factos não provados
i) Não se provou que o foco da A. seja principalmente a exportação para a União Europeia.
ii) Não se provou que a A. remeteu à R., nos termos constantes de 11), o seguro.
iii) Não se provou que ao longo de 10 anos, era frequente a existência de discrepâncias, entre a mercadoria constante das faturas proforma e a mercadoria final faturada.
iv) Não se provou que ao longo de 10 anos sempre que eram detetadas discrepâncias entre a mercadoria constante das faturas proforma e a mercadoria final faturada, a R. notificava a A. para aceitar as discrepâncias e que após a aceitação das mesmas, a R. efectuava o pagamento.
v) Não se provou que nunca a R. havia recusado qualquer pagamento, sem antes notificar a A. para esta informar se aceitava as divergências e autorizava o pagamento ao banco do grupo Arezzo.
vi) Não se provou que o não pagamento do valor acordado pela R., repercutiu-se na quebra de contratos e na perda da confiança dos seus fornecedores e clientes, bem como na incapacidade da A. colocar os produtos nos demais mercados onde opera, em tempo útil
vii) Não se provou que os atrasos verificados entre Setembro e Dezembro de 2019, da parte do grupo Arezzo, no embarque/exportação de mercadorias deveram-se ao não pagamento das facturas pela R.
viii) Não se provou que a situação de tensão entre a A. e a R., rapidamente chegou ao conhecimento dos restantes fornecedores da A, gerando um ambiente de pressão e desconfiança nas relações comercias da A.
ix) Não se provou que a A. pagou, em consequência da recusa de pagamento da R., os seguintes valores aos seus fornecedores:
- 18 093,47€ ao fornecedor de sapatos APS;
- 27 197,06€ ao fornecedor de malas ASADELTA;
- 37 438,00 € ao fornecedor de malas COLORBAGS;
- 189 074,17 € ao fornecedor de sapatos GG & Filhos;
- 104 052,63 € ao fornecedor de sapatos M A2;
- 26 816,07 € ao fornecedor de sapatos SOMBRA PRIORITÁRIA;
- 66 251,60 € ao fornecedor de sapatos UNISA.
x) Não se provou que toda a cadeia de compra e venda da A. saiu gravemente afectada desta situação criada pela R. e que esta tenha causado graves prejuízos à A., no valor e 1.170.856,28€, relativos a perda de receitas de vendas e de 125.266,35€, relativos a perdas de lucros, resultante de um aumento do preço de compra dos produtos aos fornecedores e uma diminuição do preço de venda.
xi) Não se provou que a R. comunicou à A. a existência de desconformidades/divergências na documentação, quer telefonicamente quer on line através das plataformas de comunicação eletrónica usadas pelas partes.
***
3- As Questões Enunciadas.
3.1- Da Revogação do despacho proferido em sede de audiência prévia (de 19/10/2022) a dar como não escrito parte (ponto 9º e segs.) do articulado de resposta, apresentado pela autora e, determinar o aditamento aos temas de prova: a falta de comunicação atempada pelo réu, ao Santander Brasil, das alegadas divergências.
A autora recorreu, a final, juntamente com o recurso interposto da sentença, do despacho proferido em sede de audiência prévia que rejeitou, rectius, deu por não escritos os pontos 9 e seguintes do requerimento de resposta à contestação.
Invoca que foi coartada da possibilidade de resposta que havia dado á matéria da excepção deduzida na contestação sobre a alegada comunicação atempada ao banco designado (Santander Brasil), tendo para o efeito alegado, nos pontos 46º a 48º do articulado de resposta, que a ré não cumpriu o prazo de 5 dias, a contar da apresentação dos documentos pelo Banco Designado (Santander Brasil); e que já havia alegado na petição inicial o não cumprimento das formalidades, pela ré, para a recusa de pagamento, nomeadamente o prazo de 5 dias úteis. Conclui pela revogação de tal despacho e pela determinação de ser aditado um tema de prova: a falta de comunicação atempada pelo réu, ao Santander Brasil, das alegadas divergências.
Terá a autora razão?
Adiantando a resposta, afirmamos que não, pelas seguintes três razões:
-Primeira: O prazo de recurso seria o previsto no art.º 638º nº 1, 2ª parte, conjugado com o art.º 644º nº 2, al. d) do CPC: 15 dias a contar da prolação do despacho;
-Segunda: Ausência de reclamação do despacho que enunciou os temas de prova;
-Terceira: Inadmissibilidade, de modificação/ampliação da causa de pedir na falta de acordo.
Vejamos cada um destes fundamentos/razões.
3.1.1- Quanto ao primeiro: o prazo de interposição do recurso.
O despacho ora sob impugnação, proferido em sede de audiência prévia determinou, como vimos acima – “Compulsados os autos, resulta que a peça processual da A. datada de 16.02.2022, foi junta após ter sido notificada do despacho de 14.12.2021 no qual se alude à existência de excepções. Acontece que, nem a A. na referida peça, nem a R. na contestação, identificaram qualquer excepção que imponha o exercício do contraditório. A A. apesar de defender a inexistência de excepções, tece considerações sobre o teor da contestação apresentada. Tais considerações não têm fundamento legal. Assim sendo, importa considerar como não escrito o constante do artigo 9.º e ss. do articulado em causa.” – considerar não escritos os pontos 9 e seguintes do “articulado de resposta às excepções”. Trata-se, materialmente, de uma rejeição de articulado, ainda que parcial; ou dito de outro modo, aquele despacho rejeitou parcialmente aquele articulado.
Como é sabido, o art.º 644º nº 2, al. d) do CPC determina que cabe recurso autónomo, a interpor imediatamente, do despacho que rejeite articulado. E embora a norma não o diga expressamente, deve entender-se que cabe na previsão da normativa – rejeição de articulado – tanto os casos de rejeição total como de rejeição parcial.
Na verdade, a razão de ser do preceito tem subjacente a preocupação de o Legislador em atenuar eventual inutilização do processado: se o recurso da decisão que rejeita um articulado ou meio de prova apenas pudesse ser interposto com o recurso de alguma das decisões referidas no nº 1 do art.º 644º, entre elas a sentença, corria-se o risco de inutilização de tudo o que tivesse, entretanto, sido processado posteriormente ao despacho de rejeição (ou de aceitação) – Cf. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª edição, pág. 178. – Ou, nas palavras de Rui Pinto (Oportunidade Processual de interposição de apelação à luz do art.º 644º do CPC, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI, 2020, nº 2, pág. 639) “…percebeu-se que, por ex., o desentranhamento de uma réplica ou a admissão de um articulado superveniente, tem consequências demasiado importantes que não compensam a economia processual de se deixar o processo ir avançando até final, sem imediata possibilidade de recurso.
Daqui decorre que, apesar de ser uma rejeição parcial de um articulado, a autora deveria ter interposto imediato recurso desse despacho de rejeição, como lho determina os referidos art.ºs 638º nº 1, 2ª parte, conjugado com o art.º 644º nº 2, al. d) do CPC: 15 dias a contar da prolação do despacho.
Não o fez e, por conseguinte, o recurso seria intempestivo e, por isso, inadmissível.
3.1.2- Segunda razão: Ausência de reclamação do despacho que enunciou os temas de prova.
Mesmo a entender-se que o recurso seria admissível porque, no fundo, consubstanciaria uma pretensão de alteração, por ampliação, dos temas de prova, a verdade é que, também por esta via o recurso não poderia ser admissível.
Com efeito, quando no art.º 596º nº 3 do CPC se determina que o recurso sobre o despacho determinativo dos temas de prova apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final, pressupõe que, no decurso da audiência prévia, alguma ou ambas as partes hajam reclamado, isto é, apresentado reclamação, quer por deficiência quer por excesso dos temas de prova enunciados pelo juiz.
Ora, no caso dos autos, resulta directamente da acta de audiência prévia que, após terem sido enunciados os temas de prova:
Em seguida, foi dada a palavra aos Ilustres mandatários das partes para que, querendo, apresentassem as suas reclamações sobre os temas da prova, nada tendo sido dito”.
Ou seja, nenhuma das partes reclamou da enunciação dos temas de prova.
A ser assim, não há fundamento para, à luz do art.º 596º nº 3 do CPC, protelar a interposição do recurso para o momento de recurso da sentença.
O mesmo é dizer que, também por esta via o recuso do despacho proferido na audiência prévia não pode ser admitido.
3.1.3- Terceira razão: Inadmissibilidade, de modificação/ampliação da causa de pedir na falta de acordo.
Na alegação do recurso, a autora invoca, em síntese, ter alegado, nos pontos 46º a 48º do articulado de resposta, que a ré não cumpriu o prazo de 5 dias, a contar da apresentação dos documentos pelo Banco Designado (Santander Brasil); mais refere que já havia alegado na petição inicial o não cumprimento das formalidades, pela ré, para a recusa de pagamento, nomeadamente o prazo de 5 dias úteis.
Vejamos se é assim.
Em primeiro lugar importa esclarecer que na petição inicial a autora não invocou o pretenso incumprimento, pela ré, do prazo de 5 dias de resposta ao Banco Designado (Santander Brasil).
Na verdade, na petição inicial, a autora alegou, nos pontos 58 a 62, que o Grupo Arezzo (beneficiária) emitiu as facturas definitivas de venda da mercadoria (58); após receber os documentos de exportação o Banco Santander (banco designado) verificou a conformidade destes documentos com a carta de crédito emitida, remetendo-os posteriormente à ré (59); quando a ré foi interpelada pelo banco do Grupo Arezzo (Banco Designado) para pagar o crédito em causa, recusou o pagamento (61); invocando desconformidades entre o peso da mercadoria que constava das facturas proforma das cartas de crédito e as mercadorias constantes dos documentos de embarque, bem como pequenos erros de escrita (62); e, a autora apenas tomou conhecimento desta situação através do Grupo Arezzo (65); a ré não notificou a autora das alegadas desconformidades (65).
Posteriormente, ainda na petição inicial, depois de fazer referência a diversas normas das RUU, designadamente artigos 15º, 16º e 14º, menciona, no ponto 196 que “… Lamentavelmente, perante tais desconformidades, a Ré não cumpriu as diligências supra mencionadas, limitando-se a recusar o pagamento ao Banco Confirmador, sem nunca notificar a Autora, que só teve conhecimento da situação através do seu próprio
fornecedor.” e, “…Face às discrepâncias observadas, a Ré deveria ter-se limitado a notificar a Autora …” (197) “…Não o tendo feito, e tendo passado o período de 5 dias de que dispunha para alegar possíveis discrepâncias (após recebimento dos documentos pelo Banco Confirmador), não se vislumbra qualquer motivo para o incumprimento do crédito por si irrevogavelmente assumido.” (198).
Ora, destas referências da petição inicial resulta que a autora, naquela peça, petição inicial, jamais alegou o facto que agora pretende ver aditado aos temas de prova: a falta de comunicação atempada pelo réu, ao Santander Brasil, das alegadas divergências.
Somente em sede de articulado de resposta é que a autora veio invocar este novo fundamento de recusa ilícita de cumprimento da obrigação de pagamento do crédito documentário, concretamente nos pontos 46, 47 daquele articulado,
Trata-se de uma modificação, por ampliação, da causa de pedir: a autora invoca um novo fundamento da ilicitude da recusa do pagamento do crédito documentário.
Como é sabido, em termos simples, a modificação da causa de pedir ocorre quando são alegados factos distintos daqueles que integravam a anterior causa de pedir, ou seja, quando são alegados factos que preencham a concreta previsão legal diferente daquela a que eram subsumíveis os factos anteriormente alegados.
Ora resulta do art.º 265º nº 1 do CPC que não havendo acordo entre as partes, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu a aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação.
No caso dos autos, não é feito qualquer enquadramento com base neste regime legal. Simplesmente, a autora usou o articulado de resposta à contestação para ampliar a causa de pedir, fora dos limites em que a lei permite.
Daqui resulta que a pretensão da autora de anulação do despacho que rejeitou parte do articulado e consequente ampliação dos temas de prova, não pode proceder.
É certo que a nesse articulado a autora respondeu à matéria do seu pedido de condenação como litigante de má fé que havia sido deduzido pela ré e, ela própria, autora, aproveitou para pedir a condenação da ré como litigante de má fé.
Embora quanto a estas questões fosse lícito à autora responder à imputada litigância de má fé e, ela própria deduzir um contra pedido semelhante contra a ré – neste aspecto, não haveria fundamento para rejeitar o articulado da autora quanto a esse âmbito – a verdade é que a autora não reagiu contra essa decisão de improcedência da pretensão de condenação da ré como litigante de má fé e, por isso, trata-se de questão fora do objecto do recurso, não podendo, por isso, ser apreciada.
Do que fica exposto, resta concluir pela improcedência do recurso na parte relativa à impugnação do despacho proferido em audiência prévia de rejeição parcial do articulado apresentado pela autora e de aditamento de um tema de prova.
***
3.2- Da Impugnação da Matéria de Facto.
A autora entende que devem ser dados como provados os pontos iii) a x) dos factos não provados e, complementado o ponto 77 dos factos provados.
Vejamos cada um desses pontos de facto.
Assim:
- Quanto ao 77 dos Factos Provados.
Entende a apelante que no ponto 77 dos factos provados a 1ª instância deveria ter reproduzido, integralmente, o teor, rectius, conteúdo dos documentos 8 a 12 juntos pela ré na sua contestação. Diz que a autora aceitou esses documentos e, que a ré, na contestação os considerou como reproduzidos; e que desses documentos resulta que, no caso, o fundamento da recusa de pagamento diziam respeito a uma pequena discrepância do peso da mercadoria e irrelevantes lapsos de escrita que não colocavam em causa o valor comercial que se pretendia acautelar.
Haverá fundamento para “reproduzir integralmente” os teores dos documentos 8 a 12 (swifts) juntos com a contestação?
Antecipando a resposta, entendemos que não.
Vejamos porquê.
Como é sabido, os documentos constituem meios de prova e não, necessariamente, suporte aleatório. No caso dos autos, a 1ª instância deu como provado no ponto 77º dos factos provados:
77) A R. comunicou ao banco Santander Brasil a existência de desconformidades/divergências na documentação, através das notificações/swifts com a referência M016073 010 de 14/06/2019, M016073 050 de 26/08/2019 e M016073 060 de 06/09/2019.”
Na fundamentação da decisão sobre este ponto de facto, a 1ª instância escreveu:
O facto provado constante de 77) está comprovados pelas comunicações de fls. 557 a 559.”
Ora bem, as comunicações que constam de fls 557 a 559 correspondem aos documentos 8 a 12 juntos com a contestação. E, desses documentos, que constituem cópias dos swifts que a ré (Banco Emitente) remeteu ao Santander Brasil (Banco Designado), decorre, no essencial, as datas dos envios das comunicações, que coincidem com as que constam elencadas no ponto 77, bem como a especificação discrepâncias detectadas que, no essencial, estão mencionadas no ponto 27 dos factos provados.
A esta vista, entendemos não se justificar a reprodução integral dos documentos 8 a 12 juntos com a contestação.
É certo que no ponto 12 dos factos provados a 1ª instância reproduziu, integralmente, o teor do documento de emissão do crédito documentário em causa, mas verdade é que, nos pontos 14 a 20, enunciou os factos essenciais relevantes desse crédito documentário.
Seja como for, quanto ao ponto 77 dos factos provados, somos a entender que não existe fundamento para complementar esse facto com a reprodução integral dos documentos 8 a 12 juntos com a contestação.
- Quanto aos pontos iii), iv) e v) dos factos não provados.
Entende a autora que os pontos iii), iv) e v) dos factos não provados deve ser tida como provada; invoca, para o efeito, os depoimentos das testemunhas AA e BB, de que transcreve partes dos respectivos depoimentos.
Vejamos.
Recordemos a letra dos pontos iii), iv) e v) dos factos não provados:
iii) Não se provou que ao longo de 10 anos, era frequente a existência de discrepâncias, entre a mercadoria constante das faturas proforma e a mercadoria final faturada.
iv) Não se provou que ao longo de 10 anos sempre que eram detetadas discrepâncias entre a mercadoria constante das faturas proforma e a mercadoria final faturada, a R. notificava a A. para aceitar as discrepâncias e que após a aceitação das mesmas, a R. efectuava o pagamento.
v) Não se provou que nunca a R. havia recusado qualquer pagamento, sem antes notificar a A. para esta informar se aceitava as divergências e autorizava o pagamento ao banco do grupo Arezzo.”
Pois bem, do teor dos trechos do depoimento da testemunha AA, transcritos na alegação da autora resulta que, em síntese, ele depôs sobre as discrepâncias existentes entre as facturas relativamente ao crédito documentário em causa nestes autos e, referiu-se, genericamente, sem concretizar quando ou quantas vezes, ocorreram, anteriormente, situações de divergências e que a ré informava previamente a autora. Não especificou se essas divergências ocorreram nos últimos 10 anos ou em quantos créditos documentários. Quanto ao depoimento da testemunha BB, dos trechos transcritos do seu depoimento decorre que ele se referiu a outras cartas de crédito durante anos e anos (sem os concretizar); mencionou que no crédito documentário em causa a ré não informou a autora das divergências; referiu que em situações semelhantes, ao longo de anos a ré sempre informou a autora das divergências.
Portanto, daqui resulta que os depoimentos de AA e de BB se revelam inócuos para permitir dar como provado os pontos iii), iv) e v) dos factos não provados.
Recorde-se que nos pontos 37 dos factos provados foi concretizada uma situação em que a ré detectou discrepâncias entre a mercadoria constante das facturas proforma e a mercadoria final fatcurada, tendo enviado à autora a comunicação de divergências nº M015525PAY280, aos 25/02/2019, nos termos melhor especificados nesse ponto de facto. E, no ponto 35 dos factos provados foi, igualmente, concretizada uma outra situação em que a ré detectou discrepâncias entre a mercadoria constante das faturas proforma e a mercadoria final faturada, tendo feito a sua comunicação à autora, em 03/08/2018, relativa a uma carta de crédito anterior, sendo nesse ponto especificada a concreta comunicação de discrepâncias à autora, que a as aceitou.
Não foram provadas outras concretas situações de verificação de discrepâncias pela ré e sua comunicação à autora, muito menos que isso sucedeu ao longo de 10 anos.
Em face do que se expôs, somos a entender não existir fundamento para alterar a decisão dos pontos iii), iv) e v) dos factos não provados.
-Quanto aos pontos vi), vii), viii), ix) e x) dos factos não provados.
Pretende a autora que os pontos vi), vii), viii), ix) e x) dos factos provados sejam tidos como provados.
Para o efeito, baseia-se nos depoimentos das testemunhas CC, AA e BB, de que transcreve trechos dos respectivos depoimentos.
Vejamos.
Recordemos o teor destes cinco pontos de facto que a autora pretende ver revertidos:
vi) Não se provou que o não pagamento do valor acordado pela R., repercutiu-se na quebra de contratos e na perda da confiança dos seus fornecedores e clientes, bem como na incapacidade da A. colocar os produtos nos demais mercados onde opera, em tempo útil
vii) Não se provou que os atrasos verificados entre Setembro e Dezembro de 2019, da parte do grupo Arezzo, no embarque/exportação de mercadorias deveram-se ao não pagamento das facturas pela R.
viii) Não se provou que a situação de tensão entre a A. e a R., rapidamente chegou ao conhecimento dos restantes fornecedores da A, gerando um ambiente de pressão e desconfiança nas relações comercias da A.
ix) Não se provou que a A. pagou, em consequência da recusa de pagamento da R., os seguintes valores aos seus fornecedores:
- 18 093,47€ ao fornecedor de sapatos APS;
- 27 197,06€ ao fornecedor de malas ASADELTA;
- 37 438,00 € ao fornecedor de malas COLORBAGS;
- 189 074,17 € ao fornecedor de sapatos GG & Filhos;
- 104 052,63 € ao fornecedor de sapatos M A2;
- 26 816,07 € ao fornecedor de sapatos SOMBRA PRIORITÁRIA;
- 66 251,60 € ao fornecedor de sapatos UNISA.
x) Não se provou que toda a cadeia de compra e venda da A. saiu gravemente afectada desta situação criada pela R. e que esta tenha causado graves prejuízos à A., no valor e 1.170.856,28€, relativos a perda de receitas de vendas e de 125.266,35€, relativos a perdas de lucros, resultante de um aumento do preço de compra dos produtos aos fornecedores e uma diminuição do preço de venda.”
Para fundamentar a sua decisão sobre esta factualidade, a 1ª instância escreveu:
Os factos não provados descritos em vi) a x) decorrem da ausência de prova.
A A. alegou que a R., ao recusar pagar a totalidade do crédito documentário internacional em causa nestes autos, causou grandes efeitos na sua situação económica, financeira e de tesouraria, nos termos constantes da pi.
Acontece que a esta situação económica, financeira e de tesouraria da A. já se verificava muito antes da situação resultante do crédito documentário em causa nestes autos, factos estes que a própria A. expressamente confessa no requerimento inicial do PER que apresentou em juízo.
Com efeito, basta ler o requerimento inicial para se perceber que:
- “(…) os primeiros três trimestres de 2018 foram marcados por um abrandamento da actividade da actividade da indústria portuguesa de calçado, ao nível da produção, encomendas e emprego, muito devido às condições climatéricas atípicas, que levaram grande parte dos seus clientes a adiar ou suspender aquisições.
- O volume de negócios (…) decresceu de cerca de 11 ME em 2017 para 10 ME em 2018 (…).
- Quanto à dívida bancária, esta ascendia a 8 M€ a 31 de dezembro de 2018 (…) situando-se me maio de 2019 em 8,9 M€.
- (…) a distribuição da Requerente para o mercado internacional registou quebras consideráveis, essencialmente em resultado da melhor seleção de clientes/distribuidores internacionais, da perda estratégica de grandes clientes online da Alemanha e Espanha e, ainda, da retração económica observada nesses países.”
- Fruto da contração generalizada do mercado em que opera, no ano de 2018 a Requerente teve um decréscimo significativo do seu volume de negócios, prevendo-se que essa tendência se mantenha no presente ano”.
- “Encontra-se, assim, a Requerente, numa situação difícil do ponto de vista financeiro e na iminente possibilidade de incumprir com as suas obrigações”.
Ora, como resulta das citações acima feitas, a própria A. refere na sua justificação para se apresentar ao PER, que a sua situação económica, financeira e de tesouraria era má, pelo que não se pode imputar à R. os efeitos que a A. alega nestes autos.
Aliás, a recusa de pagamento por parte da R. ocorreu já depois do PER ter sido apresentado, o que denota a falta de relação com a saúde financeira da A.
Aliás, CC admitiu claramente que o PER da A. teve efeitos: a A. passou a ser considerada de “alto risco” e até que antes disso a situação era “terrível”.
Perante o quadro de dificuldade que a A. apresentava antes do PER, não é possível estabelecer qualquer relação de causa/efeito entre a recusa de pagamento da R. e
dificuldades surgidas junto dos fornecedores, quebra de volume de vendas e perda de postos de vendas, como a A. defende na sua petição inicial. Os prejuízo e perdas indicados terão várias justificações, nomeadamente as apontadas no requerimento do PER. Associar tal à recusa da R. está totalmente por demonstrar nestes autos.”
Serão os meios de prova convocados pela autora neste recurso suficientes para infirmar a decisão da 1ª instância?
Adiantando a resposta diremos que não.
Mas, antes de mais, importa fazer a seguinte nota: o STJ tem vindo a entender que o recorrente que impugna matéria de facto tem o ónus de fazer a correspondência directa entre os concretos meios de prova por si indicados e cada um dos factos que pretende impugnar, ou seja, de fazer corresponder a cada facto impugnado os concretos meios de prova em que se baseia justificando o porquê dessa pretendida alteração.
Neste sentido, veja-se, por exemplo, o acórdão do STJ, de 16/01/2024 (Proc. 818/18, Luís Espírito Santo):
I – A alínea b) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil impõe ao impugnante a obrigação processual que consiste no dever de efectuar a correspondência directa, concreta e objectiva, entre os meios probatórios por si indicados e a justificação (por eles representada) para a modificação dos pontos de facto considerados incorrectamente valorados.
II – O que significa que não é suficiente, para se considerar cumprida a exigência da alínea b) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, a mera reunião aglomerada dos diversos meios de prova entendidos por relevantes, feita genericamente e em estilo descritivo, numa amálgama indiferenciada, sem nenhuma referência concreta e objectiva aos pontos de facto em causa, individualmente identificados.
III – É, deste modo e no caso concreto, correcta a decisão do Tribunal da Relação de rejeição do conhecimento da impugnação de facto por incumprimento do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil.”
Aliás, esse é igualmente o entendimento do Tribunal Constitucional, recentemente vertido no acórdão nº 148/2025, de 18/02/2025 (Proc. 245/2024, Maria Benedita Urbano) que decidiu:
a)Não julgar inconstitucional o artigo 640.°, n.º 1, do Código de Processo Civil, quando interpretado no sentido de que ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto se impõe o ónus suplementar de, no tocante à especificação dos pontos de facto que considera mal julgados, referenciar cada um com o correspondente meio de prova que se indica para o evidencia.”
No caso dos autos, a apelante, impugna cinco ponto dos factos não provados e limita-se a indicar os depoimentos de três testemunhas, transcrevendo partes dos seus depoimentos sem, no entanto, especificar, correlacionadamente, cada facto de que discorda com os concretos meios que, em concreto, são aptos, do seu ponto de vista, a levar à alteração factual pretendida. Relembre-se que no recurso da matéria de facto importa que o impugnante demonstre, através dos meios de prova, que deve especificar, que o julgador não decidiu de acordo com a prova que foi produzida. No fundo, impõe-se que o impugnante convença o tribunal ad quem que, perante aqueles meios de prova, o resultado do juízo probatório deveria ter sido outro. Isto pressupõe, além dos mais, que os meios de prova em que o recorrente/impugnante se baseia sejam enunciados em termos relacionais e lógicos com cada um dos factos visados para permitir que o tribunal perceba ou alcance o raciocínio persuasivo que o recorrente pretende demonstrar acerca de cada facto que impugna.
Em rigor, esta forma de impugnar matéria de facto – indicar um grupo de pontos de facto e, referir depoimentos de testemunhas, sem fazer uma correspondência lógica entre cada depoimento e cada facto impugnado – poderia levar à rejeição da impugnação da matéria de facto.
No entanto, considerando que a ré compreendeu o alcance e o âmbito da impugnação, visto que lhe respondeu especificadamente, entendemos, no caso, atento o princípio da proporcionalidade, não rejeitar, nesta parte, a impugnação da matéria de facto e, fazer a respectiva reapreciação.
Como se referiu acima, afigura-se-nos que os meios probatórios convocados pela autora não são suficientes para levar à alteração pretendida destes cinco pontos da matéria de facto.
Na verdade, decorre dos trechos transcritos dos depoimentos das indicadas três testemunhas que, o que elas mencionaram, não coloca em crise a decisão da 1ª instância que, de resto, se mostra bem fundamentada quanto a estes concretos cinco pontos de facto.
Com efeito, no que respeita à testemunha CC, referiu que com a recusa de pagamento do crédito documentário, o Grupo Arezzo suspendeu as entregas; a relação com a Arezzo quase que se perdeu e, igualmente, com os lojistas; muitos fornecedores recusaram-se a fazer negócio com a autora; acha que 60% da carteira de clientes se perdeu. Mais disse que no momento em que a ré parou os pagamentos aconteceu o PER da autora. Como a autora não tinha disponibilidades líquidas para pagar a mercadoria, a Arezzo não entregou a mercadoria que não chegou a 15 de Dezembro, mas somente em Fevereiro. Como a autora estava em PER, ninguém arriscava a conceder linhas de crédito. Confrontado com o documento 48, disse ter sido ele a elaborá-lo, comparando carteira de encomendas de setembro de 2018 a março de 2019 e, de setembro de 2019 a março de 2020; que 420 clientes deixaram de comprar; perdeu 213 pontos de venda, perdeu seis fornecedores; os fornecedores exigiam garantias ou pré-pagamento para entregarem mercadoria; mencionou que a autora teve perda de vendas de 1 170 856,20€ e de margem perdeu 125 mil euros “…não erraria se dissesse dois milhões de euros nesse ano…provavelmente mais…”.
Desta síntese do depoimento da testemunha CC, decorre que ele parece olvidar que a situação económica e financeira da autora era muito difícil já antes do momento em que a ré decidiu não proceder ao pagamento de parte das mercadorias remetidas pelo Grupo Arezzo. Com efeito, a autora apresentou-se a PER em 31/05/2019, antes, portanto, dos momentos em que a ré não pagou a totalidade dos valores das facturas de embarque. Como é sabido, decorre do art.º 17º-A nº 1 do CIRE, a apresentação a PER tem como pressuposto que a empresa se encontre em situação económica difícil ou em situação e insolvência meramente iminente. E essa era a situação da autora antes de a ré não ter pago os créditos documentários ao banco confirmador da Arezzo; ou seja, a autora já se debatia com graves problemas económicos e financeiros antes da recusa da ré de pagar os créditos documentário. De resto, esta circunstância relevante foi correctamente salientada pela 1ª instância na fundamentação da decisão de considerar não provados os pontos vi) a x) dos factos não provados.
Por outro lado, decorre do ponto 80 dos factos provados, que a autora procedeu ao levantamento e comercialização dos produtos fornecidos pela Arezzo. Saliente-se ainda que nos pontos 45 a 63 dos factos dados como provados, deu-se como demonstrado, em síntese, o atraso na exportação de mercadoria pela Arezzo, o receio de outros fornecedores na capacidade de pagamento da autora e a exigência de antecipação de pagamento de mercadorias, a diminuição do volume de encomendas e de capacidade de venda e distribuição, a perda de fornecedores e clientes, a quebra de receitas; perdas de carteiras de fornecedores, perdas de compras, perdas de receitas, perda de lucros, perda de clientes, total ou parcialmente, perdas de pontos de vendas, perdas de agentes, tudo conforme melhor consta desses pontos de factos 45 a 63 dos factos provados.
Por sua vez, do depoimento da testemunha AA retira-se que ele disse que a Arezzo não enviou a mercadoria enquanto a autora não pagou o preço; não conseguiram fornecer os seus clientes ou forneceram-nos com atrasos e isso levou a que na estação seguinte, muitos clientes deixaram de comprar, o que levou à redução da carteira de clientes, por volta de 25%. Quanto aos fornecedores muitos começaram a exigir que a autora pagasse os produtos adiantadamente. Iam conseguindo pagar as encomendas com as receitas das vendas; referiu nomes de alguns fornecedores com quem a autora trabalhava; não tinham capacidade financeira para comprar toda a mercadoria que tinham previsto adquirir, o que gerou quebras de vendas; referiu o número de clientes perdidos; mencionou ocorrência de perda de receitas na ordem de um milhão de euros.
Pois bem, acerca deste depoimento pode repetir-se o que se mencionou sobre o depoimento da testemunha CC: olvidou a apresentação a PER anteriormente à recusa de pagamento, pela ré, dos créditos documentários, a situação económica e financeira em que se encontrava a autora já em momento anterior; o levantamento, pela autora e comercialização dos produtos fornecidos pela Arezzo (ponto 80 dos factos provados); e, no fundo, o seu depoimento releva para a factualidade considerada provada nos pontos 45 a 63 dos factos provados mas, não infirma a decisão negativa sobre os pontos vi) vii) e viii), porque a apresentação a PER tem efeitos sobre a forma como a empresa sob recuperação passa a ser vista “na praça”; não demostrou/provou – nada disse – sobre o ponto ix); nem fez uma relação directa, de causa efeito, entre o não pagamento dos créditos documentários e as perdas de clientes, fornecedores, lojas e prejuízos.
Enfim, também o depoimento da testemunha AA não se mostra apto para alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto.
Quanto ao depoimento da testemunha BB.
Referiu que enquanto não chegou a acordo com a Arezzo, não teve, praticamente entregas de mercadoria, o que teve consequências juntos dos clientes, que deixaram de encomendar, perderam cerca de 200 pontos de venda; o CC fez um levantamento das perdas da autora, à volta de um milhão ou milhão e duzentos mil de quebra de facturação; perderam clientes; teve um forte impacto negativo, porque no mercado tudo se sabe, começam a exigir pagamentos a pronto, pagar mais caro; referiu os fornecedores a quem tiveram (a autora) de pagar antecipadamente; a empresa deixou de ter caixa.
Pois bem, o que se referiu acima sobre os depoimentos das testemunhas CC e AA, aplica-se ao que foi trazido aos autos pelo depoimento da testemunha BB: o seu depoimento tem relevância para os pontos 45 a 63º dos factos provados – de resto não impugnados – e não tem o efeito de permitir alterar a decisão sobre os pontos vi), vii), viii), ix) e x) dos factos não provados.
Em suma: em face do que se expôs, resulta improcedente o recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto.
***
3.3- A revogação da sentença, com a consequente procedência da acção.
Entende a autora que a sentença deve ser revogada argumentando que a recusa de pagamento, pela ré, foi ilícita e ilegal, porque:
a)- é extemporânea; e,
b)- não tinha fundamento para a recusa, por não existirem divergências materiais entre os documentos apresentados.
A autora fundamenta que a recusa de pagamento pela ré é ilegal e ilícita por, segundo ela, ser extemporânea nos termos do art.º 16º als. c) e d) da UCP 600, dado que a recusa ocorreu posteriormente aos 5 dias a contar da apresentação do banco confirmador (o Santander Brasil):
i)- que a recusa da apresentação M016073050, feita pelo Santander Brasil, a 15/08/19, relativo ao embarque com o valor 206 132€, foi efetuada depois dos 5 dias úteis, tendo sido efetuada ao 7º dia útil, a 26/08/19, pelo que foi efetuada fora de prazo;
ii)- O Santander reapresentou pedido de pagamento da carta de crédito, a 14/10/2019, pelas as referências M016073100 e M016073110 e a ré comunicou a recusa a 28/10/2019.
Quanto à falta de fundamento para a recusa, invoca que as discrepâncias quanto ao peso resultam de a Arezzo ter aproveitado o embarque aéreo e juntar outra encomenda não constante da carta de crédito e, a circunstância de haver mercadoria a mais da que consta na carta de crédito não é fundamento para recusa de pagamento.
As restantes discrepâncias invocadas devem-se a pequenos lapsos de escrita.
Finalmente, baseando na pretendida prova dos pontos iii) a x) dos factos não provados, entende que todas as perdas e prejuízos que teve foram causados pela recusa de pagamento do crédito documentário e, daí, concluir pela condenação da ré no pedido.
Vejamos se a autora tem razão.
3.3.1- Quanto à pretendida extemporaneidade da comunicação da recusa.
A autora baseia o seu entendimento da invocada extemporaneidade da recusa da ré, argumentando que a apresentação M016073050 foi feita pelo Santander Brasil, a 15/08/19 e, a recusa pela ré foi efectuada a 26/08/19, concluindo, daí, que a comunicação da recusa é extemporânea por ter sido comunicada depois do prazo de cinco dias úteis (art.º 14º b) da UCP 600).
E o mesmo argumento utiliza a autora quanto à reapresentação do pedido de pagamento da carta de crédito pelas referências M016073100 e M016073110, dizendo que o Banco Designado notificou a ré a 14/10/2019 e, esta apenas comunicou a recusa a 28/10/2019.
Pois bem, salvo o devido respeito, esta pretensão da ré de invocada extemporaneidade da comunicação de recusa, não pode proceder.
E não pode proceder, por duas razões:
i)- funda-se em factualidade que não está demonstrada no processo;
ii)- trata-se de questão nova.
Vejamos cada uma destas razões.
3.3.1.1- Quanto à primeira: factualidade não demonstrada no processo.
Não será por acaso que a autora, em sede de recurso, rectius, somente em sede de recurso, aquando da impugnação da matéria de facto, acerca do ponto 77 dos factos provados, pretendeu que se dessem como provados, na sua integralidade, os documentos 8 a 12.
Como referimos acima, a autora jamais alegou, na petição inicial, factualidade relativa à pretendida extemporaneidade das comunicações de recusa do pagamento do crédito documentário ao banco designado (Santander Brasil). Escreveu-se que a autora, na petição inicial, “…jamais alegou o facto que agora pretende ver aditado aos temas de prova: a falta de comunicação atempada pelo réu, ao Santander Brasil, das alegadas divergências.
Somente em sede de articulado de resposta é que a autora veio invocar este novo fundamento de recusa ilícita de cumprimento da obrigação de pagamento do crédito documentário, concretamente nos pontos 46, 47 daquele articulado.
Trata-se de uma modificação, por ampliação, da causa de pedir: a autora invoca um novo fundamento da ilicitude da recusa do pagamento do crédito documentário.
Resulta do art.º 265º nº 1 do CPC que não havendo acordo entre as partes, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu a aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação.”
Justamente por ser assim, recusou-se a pretendida ampliação da matéria de facto. Significando isso que, não está alegado (oportunamente) nem provado nos autos, as datas de recebimento/recepção, pela ré, dos pedidos de pagamento apresentados pelo Santander do Brasil.
A esta vista, sem estes factos, não pode ser apreciado, nem concluído que as recusas, pela ré, foram feitas em momento posterior ao do prazo de cinco dias úteis (art.º 14º b) da UCP 600) contados do recebimento da notificação pelo banco designado (Santander Brasil).
Tanto bastaria para concluir que a pretensão de ilicitude da recusa de pagamento, por extemporaneidade dessa recusa, não podia proceder.
3.3.1.2- Questão nova.
Há, ainda, um outro fundamento que obsta à apreciação dessa questão da extemporaneidade da recusa: trata-se de questão nova, não discutida nem abordada ou decidida na 1ª instância.
Como é sabido, em Portugal, os recursos ordinários são recursos de revisão ou de reponderação da decisão recorrida (Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, pág. 81) e visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados (Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, pág. 395). Ou seja, os recursos interpostos para a Relação visam normalmente reapreciar o pedido e as questões formulados na 1ª instância.
O recurso ordinário consubstancia-se, pois, num pedido de reapreciação de uma decisão, ainda não transitada em julgado, dirigido ao tribunal hierarquicamente superior e com fundamento na ilegalidade da decisão, visando revogá-la ou substituí-la por outra mais favorável ao recorrente. Desta forma, os recursos ordinários incidem sobre ou têm por objecto o juízo ou julgamento realizado pelo tribunal recorrido.
Portanto, nos recursos de reponderação, sistema que vigora em Portugal (Cf. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em processo Civil, 8ª edição, pág. 147) não é concedida às partes a possibilidade de alegação de questões novas (ius novorum). O objecto do recurso é constituído por um pedido que tem por objecto a decisão recorrida e visa a sua revogação total ou parcial. Assim sendo, a natureza do recurso como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma importante limitação ao seu objecto decorrente do factor de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª edição, pág. 97).
Portanto, também por aqui não procede a pretensão de ilicitude da recusa de pagamento pela ré por extemporaneidade.
3.3.2- Falta de fundamento para a recusa, por não existirem divergências materiais entre os documentos apresentados.
Entende a autora que inexiste fundamento para a recusa, por as divergências detectadas serem irrelevantes meramente decorrentes, quanto ao peso, da circunstância de a Arezzo ter aproveitado o embarque aéreo e juntar outra encomenda não constante da carta de crédito e, a circunstância de haver mercadoria a mais da que consta na carta de crédito não é fundamento para recusa de pagamento. E que as restantes discrepâncias invocadas devem-se a pequenos lapsos de escrita.
Será assim?
Em primeiro lugar importa salientar que está fora de discussão que, conforme resulta provado do ponto 27 dos factos provados, a ré verificou a existência de divergências em face dos documentos remetidos pelo Santander Brasil:
- Discrepância de peso decorrente de ter sido remetida outra mercadoria juntamente com a mercadoria referente à carta de crédito.
- A Fatura 0638/19 foi embarcada junto com a Fatura 0640/19, e por esse motivo o peso bruto diferia do contrato AWB;
- A Fatura 0666/19, referia o número de fatura proforma incompleto:
- A Fatura 5048/19 continha tinha o número de peso de 11,823 KGS e o AWB
tinha o número 11,283 KGS.
A questão que se coloca é a de saber se essas divergentes podem, ou não, justificar a recusa de pagamento pela ré.
O problema da conformidade dos documentos com as exigências do crédito tem sido causa de conflitos ente os bancos emitentes do crédito documentário e os clientes que contrataram/solicitaram esse crédito.
No âmbito da UCP 500, de 1993, a questão da conformidade/desconformidade dos documentos, oscilava entre duas teses essenciais: a conformidade estrita e a conformidade razoável.
Dum ponto de vista formal, a tese da conformidade estrita apresentava-se mais conforme à natureza do crédito documentário na medida em que os documentos devem corresponder à descrição contida na carta de crédito e, por conseguinte, a menor divergência seria motivo para a recusa válida da realização do crédito documentário; os documentos devem estar exteriormente correctos e o seu conteúdo, na aparência, corresponder à descrição feita na carta de crédito (Cf. Marta Daniela Vieira Martins, Fraude no Crédito Documentário, dissertação apresentada à Universidade de Coimbra, 2017, pág. 51). A exigência de que os documentos a apresentar estejam em conformidade com os termos da carta de crédito tem por base o princípio do formalismo do crédito documentário, que se justifica pela relação de autonomia face ao contrato base. (A. e ob. cit., pág. cit.).
Por sua vez, no que respeita à tese da conformidade razoável, era defendido: i)- a aplicação de uma regra da insignificância ou de divergência mínima; ii)- a atendibilidade dos usos bancários; iii)- a equidade; iv)- ou a regra da contra proferentem. (Cf. Carlos Costa Pina, Créditos Documentários, 2000, pág. 100 e seg.).
Segundo este autor, a aplicação da regra da insignificância ou de divergência mínima, apresentava dificuldades de aplicação: o banco dificilmente está em condições de saber se as divergências são ou não insignificantes.
A segunda e terceira regras, não apresentam grande utilidade operativa dada a ausência do conhecimento dos usos comerciais e da globalidade das situações em que o crédito documentário se enquadra.
A regra contra proferentem, consiste em as dúvidas que se colocarem se resolverem contra o banco emitente. No entanto esta solução falha pela sua unilateralidade e esquece a situação mais simples da existência de uma desconformidade dos documentos com um crédito emitido regularmente. (A. e ob. cit., pág. 101 e seg.).
Mais recentemente, no âmbito do uso da expressão “reasonable compliance”, surgiram duas teses: a da conformidade substancial e a da conformidade razoável.
A primeira, da conformidade substancial, pressupunha, como medida de divergência admitida, o estabelecimento de um nexo entre os documentos e o contrato e a obrigação de aceitação dos documentos pelo banco verificar-se-ia sempre que da mesma não pudesse resultar qualquer prejuízo; esta tese padece das insuficiências que resultam do recurso a elementos externos ao crédito documentário.
De acordo com a tese da conformidade razoável consideram-se aceitáveis as divergências tais como a utilização de letras maiúsculas quando no crédito se exigem letras minúsculas; a utilização de abreviaturas quando se exigiam expressões por extenso; erros tipográficos notórios; ou de diferenças derivadas de conversão entre diferentes unidades de medida. (A. e ob. cit., pág. 103 e seg.).
Entretanto, em 2007 surgiu uma nova versão dos RUU, a actual, a UCP 600.
E nesta UCP 600 importa ter em conta os artigos 14º e 16º, respectivamente, relativos a “Regras quanto ao exame de documentos” (14º) e, “Documentos discrepantes, notificação e auto” (16º), com os seguintes teores;
14- a. Um banco designado actuando nos termos da sua designação, um banco
confirmador, se houver, e o banco emitente, deverão examinar qualquer apresentação a fim de determinarem, exclusivamente com base nos documentos, se estes aparentam ou não constituir uma apresentação em conformidade.
b. Um banco designado atuando nos termos da sua designação, um banco confirmador, se houver, e o banco emitente disporão, cada um deles, de um período máximo de cinco dias úteis depois do dia da apresentação, para determinar se a apresentação está em conformidade. Tal período não será reduzido ou de qualquer modo afetado pela ocorrência, seja na data da apresentação seja numa data posterior, de qualquer termo de validade ou último dia para apresentação.”.
16º- a. Quando um banco designado atuando nos termos da sua designação, um banco confirmador, se houver, ou o banco emitente determina que uma apresentação não está em conformidade, pode recusar-se a honrar ou a negociar.
b. Quando um banco emitente determina que uma apresentação não está em conformidade pode, por sua própria iniciativa, contactar o ordenador para a aceitação das divergências. Tal não implica, contudo, a prorrogação do período mencionado no artigo 14 (b).
c. Sempre que um banco designado atuando nos termos da sua designação, um banco confirmador, se houver, ou o banco emitente decidir recusar-se a honrar ou a negociar, terá de dar conhecimento disso ao apresentador, mediante uma única notificação.
Essa notificação terá obrigatoriamente de indicar:
i. que o banco se recusa a honrar ou a negociar; e
ii. cada uma das divergências em virtude das quais o banco se recusa a honrar ou a negociar; e
iii. a) que o banco mantém os documentos em seu poder aguardando novas instruções do apresentador; ou
b) que o banco emitente mantém os documentos em seu poder até receber o acordo às divergências por parte do ordenador e concordar em aceitá-lo, ou até receber novas instruções do apresentador antes de ter concordado em aceitar o acordo do ordenador às divergências; ou
c) que o banco está a devolver os documentos; ou
d) que o banco está a proceder de acordo com instruções previamente recebidas do apresentador.
d. A notificação requerida no artigo 16 (c) deve ser efetuada por telecomunicação
ou, caso tal não seja possível, por qualquer outro meio expedito e o mais tarda até ao fecho do quinto dia útil depois do dia da apresentação.
e. Um banco designado atuando nos termos da sua designação, um banco confirmador, se houver, ou o banco emitente poderão, depois de terem providenciado a notificação requerida no artigo 16 (c) (iii) (a) ou (b) devolver, a qualquer altura, os documentos ao apresentador.”.
Da comparação dos artºs 13º e 14º da UCP 500, respectivamente relativos a “Normas para o exame de documentos” (art.º 13º UCP 500) e “Documentos com divergências e notificações divergentes”, (art.º 14º UCP 500) com os artºs 14º e 16º da UCP 600, verifica-se os artºs 13º e 14º da UCP 500 englobava, três princípios: a)- Da justiça; b)- Dever de cuidado e, c)- Razoabilidade no tempo.
Isto é, no âmbito da UCP 500 os bancos deveriam aplicar o princípio da justiça no tratamento das partes envolvidas na operação do crédito documentário; o uso do cuidado na revisão dos documentos apresentados (considerando a previsões da UCP e do ISBP) e a aplicação da regra do razoável em toda a relação jurídica documentária e para as partes.
A UCP 600 acabou por estabelecer diferente abordagem: o art.º 14º estabelece que o exame será realizado exclusivamente com base nos documentos, sem se referir ao ISBP e aos três princípios acima referidas na UCP 500; o “devido cuidado” foi suprimido bem como também foi suprimido o princípio da razoabilidade do tempo e da verificação dos documentos. (Cf. Luís Alexandre Carta Winter/Martinho Martins Botelho, UCP 600: Modificações e novos aspectos jurídicos nas relações de pagamentos internacionais, ponto 4, disponível online).
Quer dizer, actualmente, a UCP 600 eliminou aqueles três princípios da UCP 500: da justiça; dever de cuidado e, a razoabilidade no tempo.
De acordo com o art.º 14º da UCP 600, o exame dos documentos é agora realizado através da avaliação da conformidade, ou não, inexistindo nenhuma obrigação de o verificador executar esse exame “com o devido cuidado”. (Luís Alexandre Carta Winter/Martinho Martins Botelho, UCP 600…, cit., ponto 4.2). Tanto mais que, deixou de existir o prazo razoável de exame e passou a cinco dias úteis.
Menezes Cordeiro/A. Barreto Menezes Cordeiro (Direito Bancário, I, 7ª edição, 2023, pág. 644) referem, acerca do exame dos documentos, “…deve haver uma confluência geral entre as descrições dos bens e serviços exarados na carta de crédito e nos documentos.” (…) “Havendo conformidade dos documentos apresentados, o banco deve honrar a carta (15º). Sendo os documentos discrepantes, o banqueiro pode recusar, elaborando uma breve nota justificativa para o apresentante (16 C) com determinado conteúdo.”
No caso dos autos, verificamos que a ré encontrou discrepâncias entre os documentos enviados pelo banco designado e a carta de crédito. Á luz do art.º 16º a) da UCP 600 era-lhe lícito recusar o pagamento (honrar) a carta.
Acrescente-se mais a seguinte nota: no acórdão desta Relação, de 05/11/2002 (Pimentel Marcos, in CJ, ano XXVII, tomo V, pág. 63 e segs.) foi apreciado um caso com enormes semelhanças com a dos presentes autos: a apelante invocava que i)- as divergências verificadas não eram de tal modo graves que justificassem o não pagamento, não tendo a menor importância; ii)- o réu várias vezes lhe havia pago outras quantias inscritas em vários créditos documentários, com idênticas discrepâncias, sem ter feito qualquer referência ao facto de os mesmos não se encontrarem devidamente preenchidos. O recurso foi julgado improcedente e confirmada a sentença recorrida que havia absolvido o banco do pedido.
A esta vista, somos a entender que não há fundamento para conceder razão à apelante quanto a pretendida ilicitude da recusa de pagamento.
3.3.3- A pretensão de condenação da ré no pedido.
A autora baseando-se, por um lado, na pretensa ilicitude da recusa de pagamento pela ré e, por outro, na factualidade que, pretendia se desse como provada, dos pontos iii) a x) dos factos não provados, entende que todas as perdas e prejuízos que teve foram causados pela recusa de pagamento do crédito documentário e, daí, concluir pela condenação da ré no pedido.
Pois bem, de modo sintético bastará constatar:
i)- arredou-se a pretendida ilicitude da recusa; e,
ii)- os pontos iii) a x) dos factos não provados mantiveram-se inalterados.
O mesmo é dizer que os fundamentos da pretensão de procedência da acção soçobraram em absoluto.
A esta vista, sem necessidade de mais considerações resta concluir que o recurso improcede.
***
III-DECISÃO.
Em face do exposto, acordam os juízes desembargadores que constituem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso improcedente e, por consequência, confirmam a sentença sob impugnação.
Custas na instância de recurso, pela autora/apelante.
Quanto ao pagamento do remanescente da taxa de justiça por valor superior a 275 000€, considerando que a questão em análise é de alguma complexidade jurídica, pouco comum nos tribunais, justifica que não seja dispensado o pagamento da totalidade do remanescente da taxa de justiça; embora não seja proporcional a exigência do pagamento dessa totalidade.
Assim, nos termos do art.º 6º nº 7 do RCP, acha-se proporcionado dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça por valor superior a 300 000€.

Lisboa, 08/05/2025
Adeodato Brotas
João Paulo Brasão
Teresa Pardal