PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
CONFISSÃO
Sumário


I – Nas obrigações sujeitas a prescrição presuntiva, o decurso do prazo não tem uma eficácia extintiva da obrigação, posto não conferir ao devedor, como na prescrição ordinária ou extintiva, a faculdade de recusar o cumprimento ou manifestar oposição ao direito do credor (art. 304º, n. 1, do CC); invocada a prescrição presuntiva, gera-se não um efeito extintivo, mas de mera presunção de cumprimento (art. 312º do CC), dispensando a respetiva demonstração (art. 350º, n.º 1 e 344º, n.º 1, ambos do CC).
II – Existindo a presunção de pagamento a favor do devedor pelo decurso do prazo, competirá ao credor ilidir essa presunção mediante prova em contrário, demonstrando que aquele não pagou, embora nos termos restritivos e limitados indicados nos arts. 313º e 314º do CC.
III – Tais meios de prova específicos tendentes a ilidir as prescrições presuntivas consistem na confissão judicial do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão ou na confissão extrajudicial, só relevando esta quando for realizada por escrito (arts. 313º, n.ºs 1 e 2 e 314º do CC).
IV – A confissão judicial, podendo ser expressa ou tácita (art. 314º do CC), assume as formas previstas no art. 356º, ou seja, a forma espontânea ou a forma provocada, sobretudo em sede de depoimento de parte (art. 452º e ss. do CPC e o art. 352º e ss. do CC).
V – Pedindo a Autora o depoimento de parte do Réus, nomeadamente sobre o alegado não pagamento da obrigação, não pode a excepção de prescrição ser conhecida e julgada verificada no despacho saneador, dada a factualidade se mostrar ainda controvertida, podendo a A. vir a fazer prova (através da confissão dos RR. ou da recusa destes em depor ou prestar juramento) do não cumprimento da dívida.

Texto Integral


Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

EMP01... UNIPESSOAL, LDA, instaurou, no Juízo Local Cível de Braga – Juiz ... – do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, e mulher BB, pedindo a condenação dos réus a pagar à autora:

1. a quantia de 7.785,55 €, por conta de serviços de arquitetura prestados pela autora no âmbito de uma obra de reconstrução de um prédio urbano sito na Rua ..., ..., da cidade ....
2. a quantia de 6.629,68 €, por conta de serviços de arquitetura prestados pela autora no âmbito de uma obra de reconstrução que os réus pretendiam levar a cabo num prédio urbano sito na Av. ..., ..., da cidade ....
3. juros de mora sobre as quantias em divida, calculados à taxa legal para dívidas de natureza comercial, atualmente fixada em 12%, desde a data de vencimento das faturas, em 29/10/2020, até efetivo e integral reembolso, perfazendo os vencidos nesta data quantia global de 5.363,62 €.

Para tanto, e em síntese, o autor alega que os réus o contrataram para realizar projectos de arquitectura em vista à remodelação de dois apartamentos sitos na cidade ..., os quais se destinariam a posteriormente ser colocados no arrendamento urbano, não tendo pago as respectivas facturas.

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Citados, os Réus apresentaram contestação (Ref.ª ...01), concluindo pela total improcedência da acção.
Para tanto, invocaram a excepção de prescrição das facturas peticionadas, com fundamento no disposto nos arts 312º e 317º do Cód. Civil.
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No exercício do contraditório, veio a autora responder à excepção arguida pelos réus, pugnando pela sua improcedência (Ref.ª ...31).
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Dispensada a realização da audiência prévia e fixado o valor da causa, foi proferido despacho saneador-sentença, datado de 8/01/2025, nos termos do qual julgou a «acção totalmente improcedente, por verificação da excepção peremptória da prescrição presuntiva, absolvendo os requeridos do peticionado» (ref.ª ...40).
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Inconformada, a Autora interpôs recurso dessa sentença (ref.ª ...90) e, a terminar as respetivas alegações, formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«A. As prescrições, como instituto pelo qual uma parte tem a faculdade de se ao exercício de um direito, podem ser extintivas ou verdadeiras e presuntivas.
B. As prescrições presuntivas vêm claramente definidas nos artigos 312.º a 317.º do Código Civil;
C. Naquelas, o devedor pode invocar a prescrição e recusar o cumprimento, porque a dívida se extinguiu;
D. Nestas, o cumprimento da obrigação apenas se presume, presunção esta de que o devedor beneficia, cabendo ao credor alegar e provar não ter ocorrido a prescrição por confissão do devedor originário, nos termos do artigo 313.º do CC, ou por confissão tácita se o devedor se recusar a depor, ou pela prática de atos incompatíveis com a presunção de cumprimento;
E. A recorrente requereu o depoimento do recorrido para obter confissão, quer expressa, quer tácita na eventualidade de recusa em depor.
F. Por isso, o tribunal recorrido ao decidir do mérito com fundamento na extinção da dívida pelo decurso do prazo de prescrição de dois anos, incorreu em erro de julgamento e aplicou mal o direito.
G. Acresce que os recorridos, com as comunicações escritas – Doc. 36, 37, 38 e 39 –que mantiveram com a recorrente, praticaram atos incompatíveis com a presunção de cumprimento, nos termos do artigo 314º do CC.
H. O que tem como consequência a elisão da presunção de cumprimento.
I. Além disto, estes documentos não foram impugnados especificadamente, o que se traduz na prática em juízo, pelos recorridos, de atos incompatíveis com a presunção de pagamento.
J. Por isso, tribunal recorrido ao não relevar a existência destes documentos e o facto de não terem sido impugnados pelo recorrente, violou o disposto no artigo 314º do CC.
K. Acresce que que este segmento de decisão quanto não se encontra minimamente fundamentado, em clara violação ao disposto no artigo 607.º do CPC,
L. Pelo que, nesta parte, a sentença é nula.
M. Pelo que a sentença em recurso deve ser revogada, prosseguindo os autos os seus termos até final.
Por tudo isto e pelo mais que o Venerando Tribunal se dignará suprir, deve ser revogada a sentença em recurso e elaboração dos temas de prova, prosseguindo os seus termos até final.
COMO É DE JUSTIÇA»
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Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (ref.ª ...24).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Delimitação do objeto do recurso             

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].
No caso, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:               
i) - Nulidade da sentença com fundamento na al. b) do n.º 1 do art. 615º do CPC;
ii) - Dos pressupostos da verificação da exceção da prescrição presuntiva.
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III. Fundamentos

IV. Fundamentação de facto
As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os que decorrem do relatório supra (que, por brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidos).
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V. Fundamentação de direito                       

1. Nulidade da sentença com fundamento na al. b) do n.º 1 do art. 615º do CPC.
Invoca a A. a nulidade do despacho saneador-sentença aduzindo para o efeito que o Mm.º Julgador não fundamentou a decisão do último parágrafo da sentença em recurso, ao afirmar que “Por último, importa referir que o Tribunal considera que os Réus não praticaram, em juízo, quaisquer atos incompatíveis com a presunção de cumprimento, pelo que não se verifica aqui a hipótese da parte final do artº 314º do Doc. Civil”,
Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art. 615º do CPC, a sentença é nula quando «[n]ão especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».
A apontada nulidade está relacionada com o dever de fundamentação que decorre do princípio enunciado no art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República, nos termos do qual as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei, reiterando-se o referido princípio no art. 154.º, n.º 1, do CPC, onde se diz que as «decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas», não podendo essa justificação/fundamentação «consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade» (n.º 2 do art. 154º).
Relativamente aos fundamentos de direito, entende-se que o julgador não tem de analisar um por um todos os argumentos ou razões que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes; por outro lado, não se lhe impõe, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença indique, uma por uma, todas as disposições legais que fundamentam a decisão, sendo suficiente que faça menção aos princípios, às regras e normas em que a sentença se apoia.
A falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (enquanto causa de nulidade e vício de natureza processual) não pode confundir-se com a eventual ou imputável falta de adequação ou lógica jurídica entre a fundamentação apresentada e a decisão. Como salientam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora[1], «não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, e não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário».
Por outro lado, como tem sido reiteradamente apontado pela doutrina[2] e jurisprudência[3], só integra o apontado vício a falta absoluta de fundamentação da sentença, que não uma fundamentação simplesmente escassa, deficiente, incompleta, medíocre, não convincente ou mesmo errada.
De facto, o vício da alínea b) do n.º 1 do art 615.º do CPC supõe o silenciar dos seus fundamentos de facto e de direito da questão “sub judicio”, não ocorrendo perante uma motivação aligeirada, não exaustiva, menos eivada de erudição ou tirada com menor minúcia e cuidado formal[4].
Desde já se dirá que, no caso, se tem por inverificada a aludida causa de nulidade da sentença.
Efetivamente, ao analisar os específicos pressupostos da excepção de prescrição presuntiva o Mm.º Julgador explicitou que, no seu entendimento, «os réus não praticaram em juízo quaisquer actos incompatíveis com a presunção de cumprimento, pelo que não se verifica aqui a hipótese da parte final do art 314º do Cód Civil».
Ainda que eventualmente se possa dizer que a referida fundamentação de direito, no tocante à apreciação do referido pressuposto, é escassa diminuta e incompleta e exígua, a verdade é que não poderá afirmar-se que ocorre completa ausência ou falta de fundamentação, o que sempre nos reconduziria à inverificação da invocada nulidade da sentença. Como se disse, só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC[5].
Se o faz de forma correcta ou não é matéria que pode revestir a forma de erro de julgamento, mas não integra qualquer deficiência processual.
Denota-se, aliás, que o verdadeiro motivo do vício apontado pelos RR./recorrentes à sentença recorrida não consubstancia a referida nulidade, tendo antes a ver com um eventual erro de julgamento da matéria de direito. Isto porque os RR./recorrentes dirigem essencialmente a sua crítica à subsunção jurídica firmada nos autos, imputando uma errada interpretação e aplicação das normas jurídicas – posto concluírem pela prematuridade do conhecimento da exceção da prescrição presuntiva –, impugnável nos termos do disposto no art. 639º do CPC, o que foi feito pela RR./recorrentes.
Podendo estar-se, portanto, perante um erro de julgamento (error in judicando), mas não é possível surpreender e, consequentemente, reconhecer, nessa sede, a comissão de qualquer vício gerador de nulidade da sentença (error in procedendo).
Trata-se, contudo, de circunstâncias, de vício e de regime completamente diversos do da nulidade da sentença.
Nesta conformidade, conclui-se pela improcedência da invocada nulidade da sentença.
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2. Dos pressupostos da verificação da excepção da prescrição presuntiva (art. 317º, al. b), do Cód. Civil).
Peticiona a A., na presente acção, a condenação dos RR. a pagar-lhe a quantia global em dívida de 19.779,30 €, relativa aos serviços de arquitetura e fiscalização prestados a pedido dos RR..
O Tribunal recorrido, no despacho saneador, fazendo aplicação do disposto no art. 317º, al. b) do Cód. Civil, julgou prescrito o direito da A. a reclamar dos RR. a quantia peticionada.
Insurge-se a A. contra o decidido, sustentando que, estando em causa uma prescrição presuntiva que pode ser ilidida mediante prova pelo credor da existência da dívida, embora apenas por confissão do devedor, quer expressa, quer tácita, não podia o tribunal recorrido apreciar a excepção invocada no despacho saneador, uma vez que a A./apelante requereu o depoimento de parte dos RR..
Apreciemos, desde já adiantando que assiste razão à apelante.
Como é sabido, o pagamento é a forma normal de cumprimento das obrigações que envolvam uma prestação pecuniária e, por conseguinte, de extinção das mesmas (art. 762º do Código Civil - CC).
Apenas podem prescrever as obrigações não extintas e, por isso, as que, sendo pecuniárias, o devedor não tenha realizado a sua prestação, pagando o que tiver acordado com a parte contrária.
Deste modo, podemos concluir que o pagamento é um acto jurídico de todo incompatível com a prescrição da respectiva obrigação.
Todavia, se assim é quanto à prescrição extintiva ou liberatória – pois que, completado o prazo de prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao direito prescrito (art. 304º do CC), bastando ao devedor alegar e provar que já decorreu o prazo da prescrição, não precisando alegar que nunca deveu ou já pagou –, o mesmo já não se pode dizer no que concerne à prescrição presuntiva.
De facto, a prescrição presuntiva é autonomizável da extintiva quanto aos respetivos fundamentos, efeitos e prazos.
Do fundamento apontado às prescrições presuntivas – qual seja, a presunção de cumprimento ou de pagamento pelo decurso do prazo (art. 312º do CC), considerados os contornos das obrigações em causa – decorre a sua finalidade específica: a tutela da posição do devedor, obstando ao cumprimento duplicado da obrigação, por se entender não ser, nestes casos, usual que o credor espere muito tempo para ser pago, como não é usual que o devedor deixe de pagar essas suas dívidas e, ainda, não é usual passar-se recibo da quitação ou, passando-se a quitação, guardar o devedor essa quitação durante muito tempo[6].

Com o art. 312º do CC o legislador considera que, para as situações tipificadas nos arts. 316º e 317º do CC, o curso do prazo presume o cumprimento, não necessitando o devedor de provar o facto extintivo, embora deva alegar o cumprimento[7].
Enquanto através da prescrição ordinária se reage contra a inércia ou a negligência injustificada do credor que não exerce o direito em período razoável, pelo que, uma vez esgotado o prazo, não pode exigir que o devedor cumpra aquilo a que se obrigara, ainda que confesse estar em dívida, na prescrição presuntiva promove-se o tráfico jurídico, não se visando coarctar em absoluto ao credor a prova do seu crédito, malgrado esta se limite à confissão expressa ou tácita do devedor[8].
A razão de ser deste regime especial desenhado para este tipo de prescrições de curto prazo assenta em considerações de ordem prática, colhidos da experiência comum e conexionadas com o tipo de relações contratuais (seus sujeitos e objecto) que estão em causa[9].
Como refere Manuel de Andrade[10], a lei “estabeleceu curtos prazos para a prescrição de créditos do merceeiro, do hoteleiro, do advogado, do procurador, etc., etc., porque se trata de créditos que o credor adquire pelo exercício da sua profissão, da qual vive. Ao fim de um prazo relativamente curto o credor, em regra, exige o seu crédito, pois precisa do seu montante para viver. Por outro lado, o devedor, em regra, paga as suas dívidas dentro de prazo curto, porque são dívidas que ele contraiu para prover às suas necessidades mais urgentes. Mesmo quando o devedor é pessoa de más contas, prefere não pagar outras dívidas e ir pagando estas, até porque de outra maneira, acabaria por não ter quem o servisse. Finalmente, o devedor em regra não cobra recibo destas dívidas, quando paga e se exige recibo não o conserva muito tempo”.
A prescrição presuntiva, como resulta do art. 312º do CC, funda-se na presunção de cumprimento.
Decorrido o prazo legal, presume, pois, a lei que o pagamento está efectuado, dispensando, assim, o devedor da prova deste, prova que poderia ser-lhe difícil, dada a ausência de quitação[11].
Tratando-se de uma particular categoria de prescrição breve, determina a presunção de pagamento ou cumprimento e não a extinção da prestação debitória[12].
A presunção de cumprimento por banda do devedor faz deslocar o ónus da prova do não pagamento para o credor. Ou seja, existindo a presunção de pagamento a favor do devedor pelo decurso do prazo, competirá ao credor ilidir essa presunção mediante prova em contrário, demonstrando que aquele não pagou, embora nos termos restritivos e limitados indicados nos arts. 313º e 314º do CC.
Na verdade, visando as prescrições presuntivas conferir protecção ao devedor que paga uma dívida e dela não exige ou não guarda quitação, “não poderia admitir-se que o credor contrariasse a presunção de pagamento com quaisquer meios de prova. Exige-se, por isso, que os meios de prova do não pagamento provenham do devedor[13]
Constituem, por isso, estas presunções uma “natureza intermédia, que não são apenas presunções juris tantum, mas que não chegam a ser presunções iuris et iure[14].
Ou, no dizer de Calvão da Silva[15], o disposto no artigo 313º reforça “a natureza híbrida ou mista da prescrição presuntiva: não sendo apenas uma prescrição relativa ou presunção iuris tantum, ilidível por todo e qualquer meio de prova em geral admitido em direito (art. 350.º, n.º 2, do Código Civil), não chega todavia a ser presunção absoluta ou presunção iuris et iure, já que é ilidível por confissão judicial ou extrajudicial escrita do devedor, o único meio susceptível de provar o contrário, vale dizer, o único meio admitido ao credor para contrariar a presunção de cumprimento, demonstrando o não cumprimento”.
Tais meios de prova específicos tendentes a ilidir as prescrições presuntivas consistem na confissão judicial do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão ou na confissão extrajudicial, só relevando esta quando for realizada por escrito (arts. 313º, n.ºs 1 e 2 e 314º do CC)[16].
A confissão judicial[17], podendo ser expressa ou tácita (art. 314º), assume as formas previstas no art. 356º, ou seja, a forma espontânea [«feita nos articulados, (…) ou em qualquer outro acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado»] ou a forma provocada, sobretudo em sede de depoimento de parte [arts. 452º e ss. do CPC e o art. 357º, n.º 2, do CC, para o efeito do não comparecimento ou da recusa do depoimento, sendo que o art. 459º, n.º 3, do CPC, equipara a recusa a depor e a recusa de prestar juramento, e o teor específico do art. 314º do CC permite concluir por uma confissão tácita em caso de recusa do depoimento ou prestação de juramento][18].
E, em conformidade com o art. 314.º (“Confissão tácita”) do mesmo Código, uma das formas de se considerar como judicialmente confessada a dívida é a de o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento.
Significa isto que se o devedor assumir em tribunal uma posição que seja, em si mesma, contrária à presunção de cumprimento, estará a confessar a existência da dívida.
Como salienta Sousa Ribeiro[19], “[c]onstituindo uma mera presunção de pagamento, ela não poderá aproveitar a quem tenha uma actuação em juízo que logicamente o exclua. Quando alega a prescrição e, simultaneamente, pratica um acto inconciliável com o seu pressuposto fundante, o devedor está a contradizer-se a si próprio, pois, ao mesmo tempo que pretende ver reconhecida a extinção do vínculo, com base num presumível cumprimento, não deixa de admitir que ele ainda não se efectuou”.
Essa incompatibilidade lógica da posição do devedor com a presunção de cumprimento dá-se, por exemplo, quando aquele discute a existência, o montante, a remissão da sua fixação para o tribunal, o vencimento ou outras características da dívida; quando (o devedor) invoca a compensação de créditos[20] ou outra forma de extinção da obrigação diferente do cumprimento; quando invoca a gratuitidade dos serviços prestados; a contestação da solidariedade da dívida, reivindicando o benefício da divisão[21], quando invoca a invalidade do contrato donde emerge a dívida[22]; quando não impugna a alegação de falta de pagamento, feita pelo credor[23] (art. 574º, n.º 2, do CPC).
A solução enunciada no citado art. 314º do CC introduz um desvio à regra de livre apreciação do julgador quanto à determinação para efeitos probatórios da conduta assumida pela parte no tribunal, firmada no art. 357º, n.º 2, do CC, o que se compreende em face da natureza do juízo em que assenta a prescrição presuntiva.
Por fim, dizer que, no caso das obrigações sujeitas a prescrição presuntiva, o decurso do prazo não tem uma eficácia extintiva (ou modificativa) da obrigação, ou seja, não confere ao devedor, como na prescrição ordinária ou extintiva, a faculdade de recusar o cumprimento ou manifestar oposição ao direito do credor. Invocada a prescrição presuntiva, gera-se não um efeito extintivo, mas de mera presunção de cumprimento[24], dispensando a respetiva demonstração (art. 350º, n.º 1 e 344º, n.º 1, ambos do CC).
Traçado o quadro teórico em que nos movemos, vejamos agora o caso concreto submetido à nossa apreciação.

O Tribunal recorrido, no despacho saneador, com vista a concluir pela verificação da excepção peremptória da prescrição presuntiva estabelecida no art. 317º, al. b)[25], do Cód. Civil aduziu as seguintes considerações:
i) - As facturas peticionadas têm por fonte o exercício de uma indústria de arquitecto, pelo que se encontra preenchido o pressuposto atinente ao facto do crédito ser de comerciante ou de industrial;
ii) - o prazo prescricional de dois anos terminou a 11/01/2023, sendo que a acção deu entrada em 18/09/2024, pelo que aquele prazo não foi respeitado;
iii) – inexistem elementos aptos a qualificar os réus como comerciantes ou a concluir que destinassem as habitações ao exercício do seu comércio;
iv) - os réus não praticaram em juízo quaisquer actos incompatíveis com a presunção de cumprimento, pelo que não se verifica a hipótese da parte final do art. 314º do Cód Civil.
Sucede que, como vimos, decorrido que seja o prazo legal, não exercendo o credor o seu direito e invocando o devedor a prescrição presuntiva, o legislador presume o cumprimento, libertando o devedor do ónus da prova, mas sem excluir, de todo, a prova do não cumprimento, ou seja, a ilisão da presunção.
Ao Autor/credor incumbe impugnar o invocado cumprimento e demonstrar o contrário, ou seja, o não cumprimento: a alegada prescrição presuntiva é afastada, não mediante a prova da dívida, mas sim através do não pagamento da dívida.
Na verdade, face ao disposto nos arts. 350º, n.º 2, 313º e 314º, do CC e art. 452º do CPC, o credor pode ilidir a presunção (de cumprimento) mas apenas através dos meios de prova específicos aí indicados, quais sejam, a confissão extrajudicial escrita ou judicial (mesmo tácita) do devedor originário ou do seu sucessor mortis causa.  
Ora, no caso em apreço, a A., na P.I., requereu o depoimento de parte dos RR. à matéria alegada na petição inicial (cfr. ref.ª ...31), circunstância esta que não foi valorada pelo Tribunal recorrido, posto não ter sequer feito referência à possibilidade de afastamento da presunção de cumprimento mediante prova do não pagamento da dívida através de confissão (judicial), não tirando as ilações necessárias daquele específico meio de prova requerido; tão pouco considerou a eventualidade de os devedores se recusarem a depor ou a prestar juramento no tribunal[26].
Do que se deixa dito conclui-se que não deveria, pois, o tribunal recorrido ter conhecido da excepção invocada no despacho saneador, uma vez que a factualidade se mostra, ainda, controvertida nesta matéria, podendo a A. vir a fazer prova (através da confissão dos RR. resultante do depoimento de parte ou da recusa destes em depor ou prestar juramento) do não cumprimento ou do não pagamento da divida.
Como se sabe, no despacho saneador, depois de ter concluído pela inexistência de exceções dilatórias (art. 595º, n.º 1, al. a), do CPC), o juiz vê-se confrontado com a hipótese de conhecimento imediato do mérito da causa, o que sucederá, na expressão da lei (al. b) do n.º 1 do art. 595º do CPC), “sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.” Quando assim não suceda – isto é, quando, atingida a fase do saneamento, os aspetos fácticos relevantes, debatidos pelas partes nos respetivos articulados, se mostrem controvertidos –, o processo terá de avançar para as fases ulteriores, com vista à instrução e julgamento, o que pressupõe a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova (art. 596º do CPC).
No caso, é indubitável que o processo não reunia os requisitos necessários ao conhecimento imediato da invocada excepção da prescrição presuntiva, sob pena de se cercear à Autora a possibilidade de ilidir a presunção de cumprimento.
Tudo ponderado, o recurso merece provimento, havendo que revogar o despacho saneador no que tange ao conhecimento da excepção da prescrição presuntiva, para que a causa prossiga com a identificação do objeto do litígio e o enunciado dos temas da prova.
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3. Custas.

De acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
Como a recorrente teve êxito no recurso e os recorridos são por ele negativamente afetados, estes são a parte vencida e, consequentemente, deram causa as custas concernentes, conforme a referida presunção.
Em consequência, os recorridos, porque vencidos no recurso, apesar de não terem contra-alegado, são responsáveis pelo pagamento das custas respetivas, pelo que se impõe a sua condenação[27].
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VI. DECISÃO

Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Autora e, em consequência, revogam o despacho saneador-sentença recorrido na parte em que conheceu da excepção da prescrição presuntiva, substituindo-o por decisão a determinar o prosseguimento da causa com a identificação do objeto do litígio e o enunciado dos temas da prova
Custas da apelação a cargo dos recorridos (art. 527º do CPC).
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Guimarães, 30 de abril de 2025

Alcides Rodrigues (relator)
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira (1ª adjunta)
Ana Cristina Duarte (2ª adjunta)
 

[1] Cfr. Manual de Processo Civil, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, p. 686.
[2] Cfr., entre outros, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, Coimbra Editora, p. 140, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 736, Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, obra citada, p. 603.
[3] Cfr. Acs. da RP de 28/10/2013 (relator Oliveira Abreu) e de 2/05/2016 (relator Correia Pinto), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. do STJ de 16/02/2016 (relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Ac. do STJ de 2/06/2016 (relatora Fernanda Isabel Pereira), in www.dgsi.pt.
[6]  Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., 1987, Coimbra Editora, pp. 281/282, Rita Canas Silva, Código Civil Anotado (Ana Prata Coord.), volume I, 2017, Almedina, p. 383 e José Carlos Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 3ª ed., Universidade Católica Editora Porto, 2019, p. 120.
[7] Cfr. José Carlos Brandão Proença, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2ª ed., UCP/Editora 2023, p. 924 (nota 4 ao art. 312º do CC).
[8] Cfr. Ac. da RC de 15/11/2016 (relator Manuel Capelo), in www.dgsi.pt., que cita diversa jurisprudência e doutrina.
[9] Cfr. Ac. do STJ de 8.05.2013 (relator Moreira Alves), in www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 1987, Almedina, p. 452.
[11] Cfr. Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, BMJ n.º 106, p. 45.
[12] Cfr. Calvão da Silva, A prescrição presuntiva e a armadilha do ónus da prova, in RLJ, ano 138º, n.º 3956, p. 267.
[13] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, (…), p. 282 e Vaz Serra, estudo citado, p. 55.
[14]  Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, (…), p. 282, em anotação ao artigo 313º.
[15]  Cfr. RLJ, ano 138, p. 267
[16] Como se afirma no Ac. da RC de 26-06-2007 (relator Teles Pereira), in www.dgsi.pt. “o carácter ilidível destas presunções tem com efeito, fundamentalmente, a inversão do ónus da prova, embora em termos tão restritivos que quase perde sentido a afirmação dessa ilidibilidade, já que a contraprova admitida do facto presumido se restringe à situação muito específica da confissão do devedor originário”.
[17] Conforme o art. 352º do CC, a “confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária”.
[18] Cfr. José Carlos Brandão Proença, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, (…), p. 926 (nota 4 ao art. 313º do CC).
[19] Cfr. Prescrições presuntivas: sua compatibilidade com a não impugnação dos factos articulados pelo autor, na Revista de Direito e Economia, Ano V, nº 2, p. 393.
[20] Como se decidiu no Ac. do STJ de 8.05.2013 (relator Moreira Alves), in www.dgsi.pt., tendo a ré invocado a prescrição do art. 317.º, al. b), do CC, mas vindo depois alegar que o crédito se extinguiu por compensação, está a confessar claramente que não pagou o preço dos serviços prestados pela autora.
[21] Cfr. Sousa Ribeiro, obra citada, p. 397 e ss.
[22] Cfr. Calvão da Silva, obra citada, p. 268.
[23] Cfr. Ac. do STJ de 19/05/2010 (relator Nuno Cameira), in www.dgsi.pt.
[24] Cfr. José Carlos Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 3ª ed., Universidade Católica Editora Porto, 2019, p. 121.
[25] O citado normativo estabelece:
«Prescrevem no prazo de dois anos:
a) (…)
b) Os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor;
c) (…)».
[26] Cfr., numa situação similar, o Ac. da RL de 14/01/2014 (relatora Cristina Coelho), in www.dgsi.pt.
[27] Sobre o tema, ver os ensinamentos de Salvador da Costa, disponíveis no blog do Instituto Português de Processo Civil:
1. Condenação do pagamento de custas da parte vencida a final, comentário ao acórdão do Tribunal Relação da Relação de Évora de 2 de Outubro de 2018, disponível em
https://drive.google.com/file/d/1MtOBWIpTJeuWORomYNKKWpzFb8Sbxmns/view;
2. Custas a final pela parte vencida, comentário ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de Novembro de 2018, disponível em
https://drive.google.com/file/d/1PE3yHd7MS-g5p-HWs17yXXba05vQnC4m/view;
3. Custas pela parte vencida a final ou na proporção da respectiva sucumbência, comentário à decisão singular do tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Novembro de 2018, disponível em
https://drive.google.com/file/d/1Q4B9Xv8lsXAxlPgBjt3-sbnMlFXN1nVs/view;
4. Custas a final pela parte vencida, comentário ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Dezembro de 2018, disponível em
https://drive.google.com/file/d/1hay3ROnY-S19XlGT94V98WjVq7JFJ5KZ/view;
5. Custas pela parte vencida a final face aos princípios da causalidade e do proveito, comentário ao acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 10 de Janeiro de 2019, disponível em
https://drive.google.com/file/d/10dGk8pIOmmmGuqFdaP9PU0kqED-37sX2/view;
6. Custas do recurso conforme for devido a final, comentário ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Janeiro de 2019, disponível em
https://drive.google.com/file/d/11TKiaNCLg7evemtxM4BPT6unz1L25Hr7/view.).
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Ver também o Ac. do STA de 18/09/2019 (relator Francisco Rothes), in www.dgsi.pt.