INVENTÁRIO
ADITAMENTO À RELAÇÃO DE BENS
Sumário

I - O atual modelo processual do inventário não comporta sucessivos aditamentos à relação de bens e, nomeadamente, ao passivo, salvo nos casos de superveniência.
II - Decorrido o prazo de 30 dias para reclamar contra a relação de bens previsto na alínea d) do nº 1 do artigo 1104º do Código de Processo Civil, não existe uma preclusão absoluta de reclamar bens, pois que ainda será possível acusar a falta de relacionamento de bens desde que alegados e demonstrados pelo reclamante os pressupostos próprios da admissibilidade dos articulados supervenientes, seja alicerçados numa superveniência objetiva, subjetiva ou em ambas (artigos 588º e 589º do Código de Processo Civil).

Texto Integral

Processo nº 7385/21.3T8VNG.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 2

Recorrente: AA

Recorrido: BB

Relatora: Juíza Desembargadora Teresa Pinto da Silva

1ª Adjunta: Juíza Desembargadora Teresa Fonseca

2º Adjunto: Juiz Desembargador Jorge Martins Ribeiro

Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório

Os presentes autos de inventário para partilha de herança aberta por óbito de CC, ocorrido em 20 de setembro de 2016, foram intentados em 2 de maio de 2017, por requerimento apresentado pela interessada AA, invocando a qualidade de descendente em 1º grau e cabeça de casal.

Nessa qualidade veio, em 11 de setembro de 2017, apresentar relação de bens, conforme requerimento com a referência 428865843.

Após a citação dos interessados diretos na partilha que ainda não tinham tido intervenção no processo, veio o interessado BB, em 4 de outubro de 2017, impugnar os valores constantes da relação de bens quanto às verbas 25, 26, 27, 28 e 29 e requerer a nomeação de um perito para a atribuição do valor de cada uma das verbas impugnadas.

Após suspensão dos autos, a requerimento dos interessados, tendo em vista alcançarem um acordo, o qual não lograram obter, realizaram-se diligências instrutórias relativas à avaliação da verba nº3 da relação de bens (cuja avaliação foi entretanto requerida pelo interessado BB, que veio, no mesmo requerimento, datado 7 de junho de 2019, com a referência 428865724, declarar não manter interesse na avaliação das verbas nºs 25, 26, 27, 28 e 29 da relação de bens).

Na sequência dos requerimentos de remessa do presente inventário para o Tribunal competente, apresentados pelos Interessados DD em 20 de junho de 2021 e BB em 21 de junho de 2021, a Srª Notária, em 14 de julho de 2021, determinou a remessa do presente processo de inventário ao Tribunal competente, nos termos do disposto no artigo 12º n.º 3 da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro.

Por despacho datado de 12 de dezembro de 2022, o Tribunal a quo indeferiu a diligência de avaliação da verba nº 3 da relação de bens, por falta de pagamento dos encargos, nos termos do nº1, do artigo 23º, do Regulamento das Custas Processuais.

Foi designada data para a conferência de interessados, para a qual foram estes devidamente notificados, na sequência do que o interessado BB veio, por requerimento de 29 de março de 2023, alegar que não foi proferido o despacho previsto no artigo 1110º, nº1, do Código de Processo Civil, nem o despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada um dos interessados, nos termos do artigo 1110º, nº2, al. a), do Código de Processo Civil.

Termos em que considerou estarmos perante nulidades, por terem sido omitidos atos e formalidades legais que podem influir no exame ou decisão da causa e não terem sido conhecidas questões que o deveriam ter sido, pelo que requereu que fossem declaradas as nulidades arguidas, proferindo-se os despachos omitidos, nos termos legalmente previstos. Requereu ainda a avaliação dos bens relacionados sob as verbas 3, 25, 26, 27, 28 e 29 da relação de bens.

Notificada desse requerimento, veio a cabeça de casal, em 30 de março de 2023, pugnar pelo indeferimento daquelas pretensões do interessado BB.

Em 3 de maio de 2023, este interessado, na sequência da junção no apenso A) (prestação de contas), por parte da cabeça de casal, do requerimento com a referência 35425000, de 20 de abril de 2023, veio requerer que se oficie ao Banco de Portugal para identificar as instituições bancárias onde o inventariado tinha contas abertas à data do seu falecimento, mais requerendo que, posteriormente, sejam notificadas as entidades bancárias que vierem a ser identificadas pelo Banco de Portugal para juntarem os extratos das contas tituladas pelo inventariado, desde 3 meses antes da data do óbito até ao presente.

Notificada desse requerimento, veio a cabeça de casal, em 4 de maio de 2023, pugnar pelo desentranhamento do mesmo e a sua restituição ao apresentante, sustentando que o requerimento apresentado é extemporâneo, também o sendo a junção de documentos e a restante prova requerida.

Por despacho de 23 de maio de 2023, o Tribunal a quo considerou que o expediente de 3 de maio de 2023 consubstanciava incidente de reclamação à relação de bens, ordenando a notificação do interessado BB para demonstrar nos autos que procedeu à liquidação da taxa de justiça devida pela dedução desse incidente.

Mais deu sem efeito a realização da conferência de interessados agendada para o dia 22 de junho de 2023 e considerou prejudicada a apreciação do arguido em 1º a 6º do expediente de 29 de março de 2023, consignando que o pedido de realização de avaliação formulado de 7º a 10º desse mesmo expediente teria oportuna apreciação.

Em 29 de maio de 2023, veio o interessado BB alegar que beneficia de apoio judiciário, requerendo esclarecimentos quanto ao despacho de 23 de maio de 2023, na sequência do que o Tribunal a quo deferiu o que por ele havia sido requerido em 3 de maio de 2023.

Perante a informação prestada pelo Banco de Portugal em 5 de setembro de 2023, veio o interessado BB, em 6 de setembro de 2023, requerer a notificação das entidades bancárias identificadas pelo Banco de Portugal, designadamente, Banco 1... S.A., Banco 2..., S.A., Banco 3..., S.A., e Banco 4..., S.A., para juntarem os extratos das contas tituladas pelo inventariado, desde 3 meses antes da data do seu óbito até à presente data.

Em 10 de novembro de 2023, o Tribunal a quo ordenou a notificação dos demais interessados da reclamação contra a relação de bens apresentada por BB em 3 de maio de 2023, para os efeitos previstos no artigo 1105º, nº1, do Código de Processo Civil, tendo a cabeça de casal exercido o contraditório por requerimento datado de 14 de novembro de 20’23, no qual conclui pelo indeferimento daquela reclamação, atenta a sua extemporaneidade.

Por despacho de 28 de fevereiro de 2024, o Tribunal recorrido, na sequência da informação prestada pelo Banco de Portugal e do requerimento apresentado pelo interessado reclamante BB, determinou a notificação do Banco 1..., SA, o Banco 2..., SA, o Banco 3..., SA, e a Banco 4... para juntarem extrato das contas bancárias tituladas ou co-tituladas pelo inventariado CC que abranja a data do seu óbito, o dia 20 de setembro de 2016, vindo estas instituições bancárias a prestar as informações requeridas em 15 de março, 4 de abril e 29 de abril.

Notificados os interessados dessas informações, veio o interessado BB, por requerimento de 9 de maio de 2024, requerer que o Tribunal declare ilegítima a recusa do Banco 1... em prestar a informação solicitada, e ordene a sua prestação – art. 135º, n.º 2, do CPP, ex vi art. 417º, n.º 4 do Código de Processo Civil. Caso o Tribunal conclua pela legitimidade da recusa, requer a intervenção do Tribunal da Relação do Porto para decidir da prestação da informação com quebra do segredo profissional – art. 135º, n.º 3, do CPP, ex vi art. 417º, n.º 4 do Código de Processo Civil. Requer ainda a correção do valor relativo à verba nº 6 da Relação de Bens, o qual deverá passar a ser de 48.209,71€ e que seja aditada à relação de bens o saldo da conta bancária D. O. PARTICULARES, com o nº ..., do Banco 2..., com o valor de 1.915,31€ e o saldo da conta bancária com nº ..., da Banco 4..., com o valor de 381,67€.

Após ter sido proferido despacho, em 9 de maio de 2024, a ordenar que se insistisse junto do Banco 1... pelo envio das informações solicitadas, veio aquele a fazê-lo por email junto aos autos em 15 de julho de 2024.

Em 4 de outubro de 2024, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

“Reclamação à relação de bens, créditos e de dívidas da herança

I. A 3 de Maio de 2023, o interessado BB apresentou reclamação à relação de bens, alegando ter tomado conhecimento no âmbito do apenso de prestação de contas da existência de conta bancária titulada pelo inventariado não incluída na relação de bens deste processo de inventário.

A cabeça-de-casal deduziu oposição ao incidente, sustentando que a reclamação carece de qualquer fundamento e que é extemporânea.

II. Embora a lei processual civil preveja prazo para dedução da reclamação à relação de bens – matéria actualmente regulada pelo artigo 1104.º do Código de Processo Civil, que prevê o prazo de trinta dias após citação ou, no caso do requerente, notificação da apresentação da relação de bens pelo cabeça-de-casal –, prazo este que já havia decorrido inteiramente, a reclamação apresentada tem por objecto bens de cuja existência o reclamante apenas tomou conhecimento supervenientemente, no âmbito do apenso de prestação de contas.

Assim, atendendo à superveniência subjectiva do objecto da reclamação, considero a mesma tempestiva.

III. No âmbito das diligências instrutórias requeridas pelo reclamante – ofício ao Banco de Portugal e às instituições bancárias por este identificadas - veio-se a apurar que o inventariado, à data da abertura da sucessão, era titular das seguintes contas bancárias, que apresentavam os saldos seguintes:

- A conta bancária domiciliada no Banco 2..., identificada na verba n.º 6 da relação de bens, com o saldo de €48.209,71;

- A conta bancária D. O. PARTICULARES, domiciliada no Banco 2..., com o nº ..., com o saldo de €1.915,31

- A conta bancária nº ..., domiciliada na Banco 4..., com o saldo de €380,88 (e não de € 381,67, como pretende o reclamante, porquanto este saldo resulta de movimento a crédito posterior à data da abertura da sucessão);

- A conta bancária n.º ..., domiciliada no Banco 1..., com o saldo de €3.672,62.

IV. Assim sendo, considero a reclamação apresentada procedente e, em consequência, determino:

a) A alteração do valor do saldo bancário identificado na verba n.º 6 da relação de bens para €48.209,71;

b) O aditamento à relação de bens dos saldos das seguintes contas bancárias:

- A conta bancária D. O. PARTICULARES, domiciliada no Banco 2..., com o nº ..., com o saldo de €1.915,31;

- A conta bancária nº ..., domiciliada na Banco 4..., com o saldo de €380,88;

- A conta bancária n.º ..., domiciliada no Banco 1..., com o saldo de €3.672,62.

Condeno a cabeça-de-casal no pagamento das custas processuais respeitantes ao incidente de reclamação à relação de bens (artigo 527.º do Código de Processo Civil).

Fixo ao presente incidente o valor de €5.980,44, nos termos do disposto nos artigos 296.º e 304.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Civil.


*

Notifique a cabeça-de-casal para que, no prazo de dez dias, junte nova relação de bens modificada em conformidade com o ora decidido.

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Fixo como valor da acção o correspondente à soma dos bens a partilhar (artigo 302.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

Não existem nulidades, excepções ou questões prévias ou incidentais que possam influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar (artigo 1100.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).


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Notifique os interessados para, no prazo de 20 dias, proporem a forma da partilha.”

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Inconformada com esta decisão, veio a cabeça de casal AA dela interpor recurso, apresentando, em 23 de outubro de 2024, alegações que culminou com o seguinte acervo conclusivo:

1º - A reclamação à relação de bens apresentada pelo recorrido é de 3 de maio de 2023;

2º - Em 12/01/2017 o recorrido foi notificado da Relação de Bens junta ao processo nº ... que corria termos no Cartório Notarial da Drª EE e não deduziu qualquer reclamação que contemplasse o teor da reclamação de 3 de maio de 2023;

3º - Ao presente inventario a Lei 117/2019, é aqui aplicável por força do disposto no a rtº 11º, do citado diploma e que textualmente refere no seu artº 1104,1,b)

1-Os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenham intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação: d) Apresentar reclamação à relação de bens”.

4º - O recorrido apresentou a reclamação em 3 de Maio de 2023, quando há muito tinha precludido o seu direito.

5º - No atual regime do processo de Inventário passou a vigorar o princípio da concentração, o princípio da preclusão dos atos respeitantes a cada fase processual, e o princípio de auto-responsabilidade das partes na gestão do processo, tudo como forma de potenciar a celeridade e a eficácia da tramitação.

6º - Assim, decorrido o prazo de 30 dias previsto no art. 1104.º, nº 1 do CPC, fica precludida a possibilidade de apresentar reclamação contra a relação de bens.

7º - Esta disposição em nada contende com os direitos de qualquer herdeiro poder solicitar a partilha adicional de bens não contemplados na Relação de Bens.

8º - Admitindo-se a reclamação à relação de bens para além do prazo de 30 dias abrir-se-á um precedente para poder eternizar a resolução da partilha com sucessivas reclamações;

9º - A verba de 3.672,62€ referente à conta bancária n.º ... domiciliada no Banco 1... já foi relacionada sob a verba nº 4 da Relação de Bens pelo que não deve ser aditada.

10º - O douto despacho recorrido que decidiu pela tempestividade da reclamação de 3/05/2023, violou ou, pelo menos, fez incorreta aplicação e interpretação do disposto nos a artºsº 11º, e 1.104º, 1, d) da Lei 117/2019.

Termos em que conclui pelo provimento do presente recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido, devendo julgar-se intempestiva a reclamação deduzida, com as legais consequências. Caso assim se não entenda, pugna pela revogação parcial do despacho recorrido no que respeita à relacionação da quantia de €3.672,62, domiciliada no Banco 1..., uma vez que tal verba já faz parte da relação de bens.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo Tribunal recorrido.

Mercê do exposto, da análise das conclusões apresentadas pela Recorrente nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

- Da tempestividade / intempestividade da reclamação deduzida.

- Subsidiariamente, caso se conclua pela tempestividade da reclamação apresentada, se o despacho proferido pelo Tribunal a quo deve ser revogado parcialmente no que respeita à relacionação da quantia de €3.672,62, domiciliada no Banco 1..., em virtude de tal verba já fazer parte da relação de bens.


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II – Fundamentação
A) Fundamentação de Facto
Os factos provados com relevância para a decisão constam já do relatório que antecede, resultando a sua prova dos autos, não se procedendo à reprodução dos mesmos, por tal se revelar desnecessário.
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B) Fundamentação de Direito

1) Da tempestividade / intempestividade da reclamação deduzida

O presente processo de inventário foi intentado em 2 de maio de 2017, sendo-lhe aplicável a Lei nº 117/2019 de 13 de setembro, que alterou o regime do processo de inventário, porquanto esta Lei aplica-se não só aos processos iniciados a partir da sua vigência (ou seja, 1 de janeiro de 2020 – art. 15º), como também aos processos que, nessa data, estejam pendentes nos cartórios notariais, mas sejam remetidos ao Tribunal nos termos previstos nos artigos 11º a 13º de tal diploma – artigo 11º, nº1.

Tal como salientam Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres[1],“O novo modelo do processo de inventário assenta em fases processuais relativamente estanques e consagra um princípio de concentração dado que fixa para cada ato das partes um momento próprio para a sua realização.”

De acordo com os ensinamentos destes autores, no modelo ora instituído, o processo de inventário para fazer cessar a comunhão hereditária comporta as seguintes fases:

* Uma fase dos articulados, na qual as partes, para além de requererem a instauração do processo, têm de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respetivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, ativo e passivo, que constitui objeto da sucessão.

Esta fase abrange a subfase inicial (arts. 1097º a 1002º) e a subfase da oposição (arts. 1104º a 1107º).

No articulado de oposição devem os interessados impugnar concentradamente todas as questões que podem condicionar a partilha, nomeadamente, apresentar reclamação à relação de bens (v. art. 1104º do Código de Processo Civil).

* A fase de saneamento, na qual o juiz, após a realização das diligências necessárias – entre as quais se inclui a possibilidade de realizar uma audiência prévia – deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar e também proferir despacho sobre a forma da partilha.

* A fase da partilha, onde ocorrerá a conferência de interessados, na qual se devem realizar todas as diligências que culminam na realização da partilha.

Como bem evidenciam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa [2]“Para além do recuo na experiência de desjudicialização que foi adoptada pela Lei nº23/13, importa sublinhar a vontade de alteração do paradigma a que obedecia o processo de inventário judicial quando era regulado segundo as normas inscritas no CPC de 1961. É este o verdadeiro contraponto do novo regime legal, sendo de notar que recebe os contributos das regras gerais do processo e da acção declarativa, o que especialmente se evidencia pelo que se dispõe acerca da concentração e da preclusão dos actos respeitantes a cada fase processual, como forma de potenciar a celeridade e a eficácia da tramitação. Assim, fixada a pessoa que irá desempenhar o cargo de cabeça de casal, por designação do juiz ou por confirmação judicial quem se arrogue tal qualidade, e juntos aos autos os elementos essenciais atinentes à abertura da herança, identificação dos interessados e acervo patrimonial hereditário, é estabelecido um verdadeiro contraditório, recaindo sobre cada interessado que venha a ser convocado o ónus de deduzir todos os meios de defesa e de alegar tudo o que se revele pertinente para a tutela dos seus interesses e para o objectivo final do inventário… É nesta primeira fase (fase dos articulados, que engloba a fase inicial e das oposições e verificação do passivo), em face do requerimento inicial e dos actos e documentos apresentados pelo requerente (arts. 1097º e l099º) ou pelo cabeça de casal judicialmente designado ou confirmado (art. 1100º, nº1, al. b)), que deve ser concentrada a discussão de todos os aspectos essenciais relevantes. Sem embargo das excepções salvaguardadas por regras gerais de processo (Vg. meios de defesa supervenientes) ou por regras específicas do inventario que permitem o diferimento (v.g. avaliação dos bens, incidente de inoficiosidade), cada interessado tem o ónus de suscitar nesta ocasião, com efeitos preclusivos, as questões pertinentes para o objetivo final do inventário (art. 1104º), designadamente tudo quanto respeite à sua admissibilidade, identificação e convocação dos interessados, relacionamento e identificação dos bens a partilhar, dividas e encargos da herança e outras questões atinentes à divisão do acervo patrimonial….

Este regime diverge do que estava consagrado no CPC de 1961 (art. 1348) e integra-se, agora, no modelo geral dos processos de natureza contenciosa, sendo o efeito preclusivo justificado, além do mais, por razões de celeridade e de eficácia da resposta a um conflito de interesses, que importa resolver, em torno da partilha…”

Já quanto à reclamação contra a relação de bens, defendem os mesmos autores[3] que “Contrariando a solução prevista no art. 1348° CPC de 1961, a reclamação relativa à relação de bens não suporta o diferimento que tal regime permitia. Uma vez que os bens são relacionados pelo cabeça de casal e só depois se procede a citação dos interessados, facilmente se compreende que também tenha sido marcado um prazo peremptório para o exercício do direito de defesa mediante reclamação, de modo que, uma vez exercido o contraditório e produzidas as provas pertinentes, as questões atinentes ao ativo e passivo da herança estejam definitivamente decididas quando for convocada a conferência de interessados...”.

Esta tramitação demonstra, como faz notar Lopes do Rego, in “A Recapitulação do Inventário”, Julgar on line, Dezembro 2019, p. 12 e 13, que “(…) toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, ativo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo atuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo da oposição, dando origem à apresentação de um verdadeiro articulado superveniente), que a lei admita expressamente passado esse momento (como sucede com a contestação do valor dos bens relacionados e o pedido da respetiva avaliação, que, por razões pragmáticas, o legislador admitiu que pudesse ser deduzido até ao início das licitações) ou com as questões que sejam de conhecimento oficioso pelo tribunal.

Daqui decorre, por exemplo, que as reclamações contra a relação de bens tenham de ser necessariamente deduzidas, salvo demonstração de superveniência objetiva ou subjetiva, na fase das oposições – e não a todo o tempo, em termos idênticos à junção de prova documental, como parecia admitir o art. 1348.º, n.º 6, do anterior CPC.”.

Quer isto dizer que embora, no atual sistema, o prazo das reclamações seja, necessariamente, o previsto no nº1, do artigo 1104º, do Código de Processo Civil, sob pena de preclusão do direito de reclamar, tal não afasta a possibilidade de, após o decurso desse prazo, ser apresentada reclamação à relação de bens, com fundamento na invocação de uma situação de superveniência, seja ela objetiva ou subjetiva, nos termos previstos no artigo 588º, nº2, do Código de Processo Civil, seja porque os factos que fundamentam essa reclamação são supervenientes, seja porque, não o sendo, o interessado apenas teve conhecimento destes factos depois de decorrido o prazo para apresentar reclamação à relação de bens, mas sempre tendo como limite temporal o da sentença homologatória da partilha.

Por outras palavras, dir-se-á que, sendo o processo de inventário um processo especial, decorre do disposto no nº1, do artigo 549º, do Código de Processo Civil, que se lhe aplicam as disposições que lhe são próprias e as disposições gerais e comuns e, em tudo o que não estiver previsto numas e noutras, observar-se o que está estabelecido no processo comum.

Consequentemente, desta aplicação subsidiária do processo comum ao processo de inventário decorre que, decorrido o prazo de 30 dias para reclamar contra a relação de bens previsto na alínea d) do nº 1 do artigo 1104º do Código de Processo Civil, não existe uma preclusão absoluta de reclamar bens, pois que ainda será possível acusar a falta de relacionamento de bens desde que alegados e demonstrados pelo reclamante os pressupostos próprios da admissibilidade dos articulados supervenientes, seja alicerçados numa superveniência objetiva, subjetiva ou em ambas (artigos 588º e 589º do Código de Processo Civil). Estaremos perante uma superveniência objetiva quando os factos ocorram depois daquele prazo de 30 dias, enquanto a superveniência subjetiva respeita aos factos que chegam ao conhecimento do reclamante depois desse prazo.

Reconduzindo tais considerações ao caso concreto, logo se alcança que ao tempo da apresentação do requerimento do interessado BB de 3 de maio de 2023 já se mostrava esgotado o prazo de 30 dias previsto na alínea d), do nº 1, do artigo 1104º do Código de Processo Civil.

No entanto, em tal requerimento, aquele interessado alegou que:

1º- No apenso de Prestação de Contas (7385/21.3T8VNG-A), a Cabeça-de-Casal juntou com o Requerimento ref.ª 35425000, de 20/04/2023, como Doc. 1, um contrato de arrendamento.

2.º- Consta desse contrato que a renda referente ao mesmo seria paga por transferência bancária para a conta com o NIB ... do Banco 5....

3.º- Esta conta bancária seria da titularidade do Inventariado.

4.º- No entanto, esta conta não se encontra relacionada na Relação de Bens.

5.º- Estes factos levam o aqui Requerente a, fundadamente, suspeitar da existência de bens, designadamente contas bancárias, que não foram relacionadas na Relação de Bens e cuja existência foi dolosamente ocultada pela Cabeça-de-Casal.

6.º- Só com o Requerimento supra referido, o aqui Requerente teve conhecimento desta factualidade.

Na oposição que deduziu àquele incidente de reclamação a cabeça de casal não impugnou aquela factualidade, limitando-se a alegar a extemporaneidade da reclamação apresentada, por há muito se mostrar ultrapassado o prazo previsto no nº1, do artigo 1104º, do Código de Processo Civil, bem como a não demonstração do pagamento da taxa devida pelo incidente.

O Tribunal a quo concluiu pela tempestividade da reclamação apresentada, porquanto, não obstante reconhecer que o prazo de trinta dias previsto no artigo 1104º, nº1, al. d) do Código de P do Código de Processo Civil já se mostrar ultrapassado, ali se considerou que “a reclamação apresentada tem por objecto bens de cuja existência o reclamante apenas tomou conhecimento supervenientemente, no âmbito do apenso de prestação de contas.

Assim, atendendo à superveniência subjectiva do objecto da reclamação, considero a mesma tempestiva.”

De facto, um dos requisitos essenciais para ser admitido um articulado superveniente, quando seja alegado o conhecimento de novo acervo patrimonial a partilhar, é que seja alegada e provada essa superveniência (artigo 588º, nº 2, do CPC).

Se assim não for e o juiz concluir que a arguição da falta de bens relacionáveis foi feita fora de prazo, por culpa do arguente, deve rejeitar liminarmente essa arguição, nos termos do disposto no artigo 588º, nº 4, 1ª parte, do Código de Processo Civil.

Segundo José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[4], «o que o preceito significa, em harmonia com o regime geral do art. 140-1 (justo impedimento), é que o autor do articulado superveniente terá, (…), de alegar e provar (ainda que por admissão da parte contrária) que tal não lhe é imputável».

E, “agir sem culpa significa atuar em termos tais que a conduta, nas circunstâncias concretas em que se desenvolve, não é passível de qualquer censura ou reprovação pessoal ao seu autor”[5].

Impendia assim sobre o interessado BB o ónus de alegação e prova da sua falta de culpa na ausência de oportuna reclamação com vista à inclusão de novas verbas na relação de bens, o que, no caso concreto, logrou demonstrar. De facto, aquele interessado alegou que só com o contrato de arrendamento junto com o requerimento ref.ª 35425000, de 20/04/2023 pela cabeça-de-casal no apenso de Prestação de Contas (7385/21.3T8VNG-A), é que teve conhecimento que a renda referente ao mesmo seria paga por transferência bancária para a conta com o NIB  ... do Banco 5..., que seria da titularidade do Inventariado. No entanto, esta conta não se encontra relacionada na Relação de Bens, o que o levou a suspeitar da existência de bens, designadamente contas bancárias, que não foram relacionadas na Relação de Bens e cuja existência foi dolosamente ocultada pela Cabeça-de-Casal.

Esta factualidade não foi impugnada pela Cabeça-de-Casal na oposição àquela reclamação, nem resulta dos autos qualquer indício quanto ao conhecimento anterior da factualidade alegada pelo interessado BB no seu requerimento de 3 de maio de 2023.

E sendo assim, concluímos pela tempestividade do que por ele foi requerido em 3 de maio de 2023.

Consequentemente, o decidido pelo despacho recorrido, a propósito da reclamação apresentada, deve ser confirmado, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto.


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B) Se o despacho proferido pelo Tribunal a quo deve ser revogado parcialmente no que respeita à relacionação da quantia de €3.672,62, domiciliada no Banco 1..., em virtude de tal verba já fazer parte da relação de bens

Uma vez que concluímos pela tempestividade da reclamação deduzida, cumpre decidir da segunda questão suscitada pela Recorrente, no que respeita à relacionação da quantia de €3.672,62, domiciliada no Banco 1....

Sustenta a Recorrente que tal verba já faz parte da relação de bens e, nessa medida, haverá que revogar o despacho recorrido na parte em que determina o aditamento à relação de bens do saldo da conta bancária n.º ..., domiciliada no Banco 1..., no montante €3.672,62.

Analisada a relação de bens apresentada pela Cabeça-de-casal em 11 de setembro de 2017, constata-se que sob a verba nº4 daquela relação de bens foi relacionado o “Saldo, à data do óbito, constante da conta de depósitos à ordem nº ... do Banco 1... S.A., no montante de 3.672,62 euros (três mil seiscentos e setenta e dois euros e sessenta e dois cêntimos).

Por seu lado, no despacho de 4 de outubro de 2024 o Tribunal a quo, na procedência da reclamação apresentada, determinou, entre o mais, o aditamento à relação de bens do saldo da “conta bancária n.º ..., domiciliada no Banco 1..., com o saldo de € 3.672,62.”

Conclui-se, por conseguinte, assistir razão nesta parte à Recorrente, pois que o Tribunal a quo determinou o aditamento à relação de bens do saldo de uma conta bancária que já fazia parte da relação de bens apresentada pela cabeça de casal, procedendo assim parcialmente o recurso.

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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527º do Código de Processo Civil, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.

Como a apelação foi julgada parcialmente procedente, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade da Recorrente e do Recorrido em partes iguais.

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Síntese conclusiva (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando a decisão recorrida na parte em que determinou o aditamento à relação de bens do saldo da conta bancária n.º ..., domiciliada no Banco 1..., no montante de €3.672,62. No mais, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a meias pela Apelante / Recorrente e pelo Apelado /Recorrido, sem prejuízo do beneficio do apoio judiciário que foi concedido ao Recorrido.

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Porto, 28 de abril de 2025
Os Juízes Desembargadores
Teresa Pinto da Silva
Teresa Fonseca
Jorge Martins Ribeiro
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[1] Cfr. O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, 2020, pág. 8.
[2] Cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ªedição, p. 553 e 554.
[3] Cfr. ob. cit., p. 606.
[4] Cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição, Almedina, p. 616.
[5] Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 14.12.2022, proc. 224/17.1T8GDM-B.P1, in www.dgsi.pt.