PROCESSO DE INVENTÁRIO PARA PARTILHA DE BENS COMUNS DO EX-CASAL
DÍVIDAS DA RESPONSABILIDADE DE AMBOS OS CÔNJUGES
COMPENSAÇÕES PATRIMONIAIS
RELAÇÃO DE BENS
Sumário


1. Se, após a cessação das relações patrimoniais que decorrem do casamento, um dos cônjuges pagar dívidas pelas quais respondiam em primeira linha os bens comuns, o mesmo tem direito a ser reembolsado de metade do montante global de tais pagamentos, o que é feito preferencialmente pela meação do cônjuge devedor no património comum (artigos 1730.º, 524.º e 1697.º e 1689º nº 3 do Código Civil).
2. As dívidas de compensação devem ser incluídas na relação de bens, porquanto se deve concentrar na fase do saneamento a definição do acervo a dividir e das dívidas e compensações a efetuar.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

.I-Relatório

Nos presentes autos, o cabeça-de-casal apresentou a relação de bens em 23 de março de 2023, na qual incluiu, além do ativo, o seguinte passivo:

Verba 1 – Dívida hipotecária decorrente de crédito à habitação, contraído junto da Banco 1..., cujo capital atual aproximado em dívida, se cifra em € 49 600,73 – Cfr. Doc. n.º 4.
Verba 2 – Dívida hipotecária decorrente de crédito à habitação, contraído junto da Banco 1..., cujo capital atual aproximado em dívida, se cifra em € 17 851,88 – Cfr. Doc. n.º 4.

Citada a credora, veio informar que os seus créditos gozavam de  garantia hipotecária e que à data de 03 de abril de 2023 a dívida ascendia a € 68.441,38.
Em 19-6-2023, a Requerente, além do mais,  veio pedir  que fosse relacionada a dívida do Cabeça-de-Casal à requerente, referente a metade das quantias que a requerente entregou junto da credora, Banco 1..., desde finais de maio de 2016, por causa dos créditos respeitantes ao imóvel. Invocou que essa data suportou integralmente todas as quantias devidas por causa dos créditos garantidos pelo imóvel objeto da partilha. Mais defendeu que o Cabeça-de-Casal é ainda devedor perante a requerente de metade do IMI referente ao imóvel em partilha e suportado aquela entre 2015 e 2022.
Em 25-20-2023, foi proferido o seguinte despacho: "Notifique-se a Banco 1..., conforme se requer. Ante o silêncio do cabeça-de-casal, quanto à reclamação apresentada, determina-se a sua notificação para, em 10 dias, apresentar nova reclamação de bens, em conformidade."
O cabeça de casal apresentou relação de bens, com o seguinte teor, no que toca ao passivo: "Passivo: Verba 1 – Dívida hipotecária decorrente de crédito à habitação, contraído junto da Banco 1..., no valor de € 50.325,79 (cinquenta mil trezentos e vinte e cinco euros e setenta e nove cêntimos), proveniente do contrato de mútuo com hipoteca identificado pelo n.º ...85, conforme consta dos autos a fls. ; Verba 2 – Dívida hipotecária decorrente de crédito à habitação, contraído junto da Banco 1..., no valor de € 18.115,59 (dezoito mil cento e quinze euros e cinquenta e nove cêntimos), proveniente do contrato de mútuo com hipoteca identificado pelo n.º ...85, conforme consta dos autos a fls. , sendo que, conforme consta dos presentes autos a fls. , à data de 03 de Abril de 2023, a dívida emergente dos supra referidos contratos ascende ao montante global de € 68.441,38 (sessenta e oito mil quatrocentos e quarenta e um euros e trinta e oito cêntimos); Verba 3 - Dívida à Requerente, referente a metade das quantias pagas por esta, à credora, Banco 1..., desde a data em que foi decretado o divórcio e que se vier a apurar nos presentes autos, relativa aos montantes pagos para liquidar os empréstimos hipotecários referidos supra (verbas 1 e 2 do passivo), conforme consta da reclamação à relação de bens (Cfr. Ponto 18 – Reclamação RB); Verba 4 - Dívida à Requerente, referente a metade das quantias pagas por esta, referentes ao IMI referido na reclamação à relação de bens(Cfr. Ponto 19 – Reclamação RB)), que se vier a apurar nos presentes autos.”
A cabeça-de-casal veio reclamar desta relação de bens.
Veio a ser proferida, no que aqui releva, a seguinte decisão:
“No que toca à reclamada inclusão no passivo dos montantes referentes às prestações mensais do crédito hipotecário contraído pelo casal para aquisição do bem imóvel comum, relacionado sob a verba n.º 4, e as referentes às quantias liquidadas, a título do IMI, importa chamar à colação o princípio enunciado no nº. 1 do artº. 1789º do CCivil, no sentido de que os efeitos do divórcio se produzem a partir do trânsito em julgado da sentença, exceção feita às relações patrimoniais entre os cônjuges em que os efeitos do divórcio retroagem à data da propositura da ação. Dito de outro modo, determinado o divórcio e a dissolução do casamento tudo se passa, a partir do trânsito em julgado da sentença que o decretou, como se tivesse ocorrido a morte de um dos cônjuges (art.º 1788.º do CCivil), à exceção do que ao seu relacionamento jurídico-patrimonial diz respeito, uma vez que, neste tocante, tem relevância o momento em que entra em juízo a ação de divórcio.
A restrição àquela regra geral tem como objetivo evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos atos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a proposição da ação, sobre valores do património comum (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela; Código Civil Anotado, IV, p.561), ou seja, o princípio de retroatividade consagrado no nº. 1 do artº. 1789º do C. Civil visa defender cada um dos cônjuges contra delapidações e abusos que o outro possa cometer na pendência da ação (cfr. Prof. Pereira Coelho; Reforma do Código Civil, p.48).
No caso de estar provada, no processo, a data da separação de facto, qualquer dos cônjuges pode requerer que os efeitos do divórcio retroajam à data, que a sentença fixará, em que a separação tenha começado (cfr. n.º 3 do artigo 1789.º do Código Civil).
Por outro lado, e como é consabido, o processo de inventário não se destina apenas à partilha de bens, mas à liquidação definitiva das responsabilidades dos cônjuges para com terceiros e das responsabilidades entre os próprios cônjuges.
No caso dos autos, os efeitos do divórcio retroagem ao dia ../../2016 (data da propositura da ação de divórcio, conforme resulta da consulta dos autos).
As alegadas despesas relativas à amortização do crédito bancário para aquisição de habitação e IMI, por se tratar de despesas relativas a bem comum, são da responsabilidade de ambos os ex-cônjuges. A tal não obsta o facto do uso do imóvel ter estado afeto, em exclusivo, à requerente. Desde logo, trata-se de despesas relativas ao próprio bem, que é comum, e não são geradas pelo seu uso.
Seguindo Lopes Cardoso, na obra “Partilhas Judiciais”, vol.III, 4ª Ed., 1991, p.392, “… no decurso da sociedade conjugal (...) os cônjuges tornam-se reciprocamente devedores entre si e tal situação verifica-se sempre que (...), tratando-se de dívida da responsabilidade solidária de ambos, um dos cônjuges satisfez voluntariamente maior quantia que o outro.”
Todavia, tal “disciplina não impõe que na partilha se dê pagamento ao cônjuge credor do que o outro cônjuge lhe está devendo” (loc. cit.) dado que tais créditos “não respeitam ao património comum mas ao património individual do cônjuge credor, constituindo, em contrapartida um elemento negativo do cônjuge devedor” (loc. cit.).
Nessa medida, e ainda segundo Lopes Cardoso (loc. cit.) tais créditos “não deverão ser objeto de relacionação, isto mau grado deverem ser considerados no momento da partilha para serem satisfeitos na conformidade do disposto no artº. 1698º/3 do Cod. Civil”, respondendo pelos mesmos, em primeira linha, a meação do cônjuge devedor no património comum e na, insuficiência desta, os bens próprios do devedor.
Por conseguinte, a satisfação do crédito à habitação e do IMI até à data da instauração da acção de divórcio, são tratados como se os ex-cônjuges vivessem em economia comum, sendo irrelevantes para este efeito. Aqueles suportados depois da instauração da acção serão atendidos, desde que documentalmente comprovados, para serem considerados, a final, no momento da partilha, com vista a serem, eventualmente, deduzidos à meação do cabeça de casal. De todo o modo, não são incluídos, pelas razões invocadas, na relação de bens.
Concluindo, deve ser elaborada nova relação de bens, aditando, na verba n.º 2, relativa ao recheio, os móveis, supra, mencionados, bem como, eliminando as verbas 3 e 4 do passivo, por não respeitarem ao património comum do casal, mas ao património individual da requerente/credora, devendo, documentalmente, comprovada ser levadas em conta em sede de partilha, o que se determina.”

É desta decisão que a Recorrente apela, apresentando as seguintes
conclusões:
“I – A recorrente não se conforma com o douto Despacho Saneador de 03/12/2024, quando se decide da seguinte forma: “…Por conseguinte, a satisfação do crédito à habitação e do IMI até à data da instauração da acção de divórcio, são tratados como se os ex-cônjuges vivessem em economia comum, sendo irrelevantes para este efeito. Aqueles suportados depois da instauração da acção serão atendidos, desde que documentalmente comprovados, para serem considerados, a final, no momento da partilha, com vista a serem, eventualmente, deduzidos à meação do cabeça de casal. De todo o modo, não são incluídos, pelas razões invocadas, na relação de bens…”;
II  – Por requerimento de 19/12/2024, supratranscrito e que se considera aqui integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, a recorrente expôs, designadamente, que resulta dos factos provados na douta Sentença de divórcio que, desde a Páscoa de 2015, o réu deixou de vir de férias a Portugal, e que, desde fim de maio de 2016, réu deixou de contribuir para as despesas comuns da casa, designadamente, para pagamento do crédito à habitação;
III – Resulta ainda de diversas normas a obrigação de contribuição dos cônjuges, e que originam os subsequentes créditos, incluindo na constância do casamento, designadamente o artigo 1676º, do CC, referindo expressamente no seu n.º 3 que tal crédito “…só é exigível no momento da partilha dos bens do casal…” (sublinhado nosso);
IV – Do mesmo modo, o artigo 1697º, do CC, dispõe no seu número 1 que “…Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal…” (sublinhado nosso);
V – Por outro lado, será pacífico na jurisprudência que: “…1. No processo de inventário em consequência de divórcio devem considerar-se, no que ao passivo concerne, quer os créditos da responsabilidade de ambos os cônjuges, quer os créditos entre cônjuges, que tenham sido originados no âmbito do casamento. 2. Quando o património próprio de um dos cônjuges responde por dívidas do património comum, esse cônjuge tem direito a ser compensado do que pagou em excesso (é a que se chama uma dívida de compensação stricto sensu). 3. Mesmo que tal pagamento ocorra depois da data em que terminaram as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, desde que a dívida satisfeita tenha sido contraída no decurso da comunhão e a ambos responsabilize, deve ser considerada na partilha, porque tem origem em crédito comum anterior, que integrava o passivo comum. 4. As dívidas entre cônjuges (que não sejam de compensação stricto sensu) originadas em ato anterior ao terminus das relações patrimoniais entre estes, também devem ser relacionadas no inventário, porquanto observam o regime do 1689º nº 3 do Código Civil: “os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum…” ;
VI – Ou seja: “…1- Na partilha da comunhão conjugal, quando há movimentos entre o património comum e os patrimónios próprios dos cônjuges aparece a obrigação de fazer a compensação entre tais deslocações, equilibrando transferências não queridas pelo direito, como os casos em que um destes patrimónios responde por dívidas de outro património. .2- Assim, quando um dos cônjuges responde com bens próprios por dívidas que a ambos responsabilizava ou injeta o valor de bens próprios no património comum, tem direito a ser reembolsado de metade do montante global de tais pagamentos, surgindo um crédito de compensação a seu favor, o qual só é exigível no momento da partilha dos bens do casal; esta compensação tem lugar preferencialmente na meação do cônjuge devedor no património comum (artigos 1697º nº 1 e 2, 1730.º, 524.º e 1697.º e 1689º nº 3 do Código Civil)…” (sublinhado nosso);
VII – E que: “…5. O processo de inventário subsequente ao divórcio é o meio adequado para se conhecer dos chamados “créditos de compensação” entre os cônjuges, e não o processo especial de prestação de contas…” (sublinhado nosso);
VIII – Bem como: “…III - Apenas tem justificação a remessa dos interessados para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão controvertida tornar inconveniente a decisão incidental no processo de inventário, por implicar redução das garantias das partes (art. 1093º, n.º 1, do CPC)…” (sublinhado nosso);
IX – Conforme resulta dos autos, bem como do douto Despacho Saneador, a questão sobre dívidas, créditos e compensações é absolutamente pacífica, não tendo sido levantada qualquer objeção entre as partes, além de ser de resolução manifestamente simples;
X – Não se justificando a exclusão de qualquer valor invocado pela requerente, inclusive as que respeitem a período anterior à instauração do divórcio, pois, do mesmo modo, também não se justifica a propositura de qualquer outra ação, seja para prestação de contas, seja nos meios comuns, podendo, e devendo ser resolvidas todas as questões no âmbito da presente ação, o que se requer;
XI – Não tendo sido proferida qualquer decisão acerca do exposto, e sob pena de preclusão, não resta outra alternativa à Autora senão o presente recurso, pois, com efeito, perante tudo o quanto se expôs no requerimento supratranscrito – o qual, por razões de economia, se considera aqui integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos –, não se justifica a exclusão de qualquer valor invocado pela requerente, inclusive as que respeitem a período anterior à instauração do divórcio;
 XII – Termos em que deverá proceder o presente recurso nos termos expostos, revogando-se a douta Decisão em crise, sob pena de violação, designadamente, do artigo 524º, do artigo 1676º, do artigo 1689º, nº 3, do artigo 1697º, nºs 1 e 2, e do artigo 1730º, todos do Código Civil; bem como do artigo 1093º, n.º 1, do CPC. .”

.II- Questões a apreciar

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Da mesma forma, não está o tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, desde que prejudicadas pela solução dada ao litígio.
Face ao alegado nas conclusões das alegações, são os seguintes os temas que cumpre examinar:
- se deve determinar a inclusão na relação de bens, como passivo, dos créditos da Requerente sobre o cabeça-de-casal, originados pelo pagamento de obrigações da responsabilidades de ambos com bens próprios da Requerente, depois da separação do extinto casal.

.III- Fundamentação de Facto

A matéria de facto a atender é toda ela de natureza processual e encontram-se já descritos no relatório supra os que são relevantes para a decisão.

IV- Fundamentação de Direito

V. Fundamentação de Direito
1- Se o crédito originado pelo pagamento de obrigações da responsabilidade de ambos os cônjuges por um só deve ser considerado no âmbito dos inventários subsequentes ao divórcio
O inventário subsequente ao divórcio destina-se a pôr termo à comunhão de bens resultante do casamento, a relacionar os bens que integram o património conjugal e a servir de base à respetiva liquidação, devendo reportar-se à data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (cf. artigos 1404.º, n.º 1, e 1326.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e artigos 1688.º e 1789.º Código Civil).
No entanto, como se sumariou no Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 06-05-2008 no processo 202-E/1999.C1 “0 processo de inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros, o que pressupõe sempre a relacionação de todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos. IV – É na partilha que os cônjuges recebem os bens próprios e a sua meação no património comum, é na partilha que cada um deles confere o que deve ao património comum (artº 1689º, nº 1), e é no momento da partilha que o crédito de um deles sobre o outro, ou do património comum sobre um deles, e ainda o dos credores do património comum, se tornam exigíveis (artºs 1697º e 1695º, nº 1)”.
Nessa partilha, em que se dividem os patrimónios de cada cônjuge e os bens comuns (em regra de acordo com o regime de bens que vigorou durante o casamento, com as exceções previstas nos artigos 1719.º e 1790.º do Código Civil), tem-se como objetivo essencial obter um equilíbrio entre os diversos patrimónios, de modo a que não haja enriquecimento de um deles à custa do outro. Assim, o processo especial de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento destina-se não só a dividir os bens do casal, mas a liquidar as responsabilidades mútuas e as dívidas do casal.
É pacífico que nos termos do artigo 1691.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil se ambos os cônjuges, no decurso do casamento, contraem um empréstimo, a obrigação de reembolso de tal empréstimo responsabiliza ambos os cônjuges. Se um dos cônjuges suporta essa dívida tem direito a ver reposto no seu património o que pagou em excesso em benefício do património comum; é uma típica dívida de compensação.
Nas dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, desde que não vigore entre estes o regime da separação de bens, respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges. (artigo 1695º nº 1 do Código Civil).
Quando um dos cônjuges responde por dívidas de responsabilidade comum para além do que lhe competia surge um crédito de compensação a favor do cônjuge que pagou mais que a sua parte, sobre o outro cônjuge, crédito que só é exigível, porém, no momento da partilha dos bens do casal, nos termos do artigo 1697º, nº 1, do Código Civil.
A decisão recorrida não teve em conta esta norma, esquecendo-se que nesta se determina que “Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.”
Como se vê do seu teor, a mesma aplica-se aos casos em que um cônjuge pague com bens seus, durante o casamento, dívidas comuns, podendo vir a compensar-se, mas só no momento das partilhas (a não ser no regime da separação de bens).
Da mesma forma, se após a cessação das relações patrimoniais que decorrem do casamento, um dos cônjuges pagar dívidas pelas quais respondiam em primeira linha os bens comuns, o mesmo tem direito a ser reembolsado de metade do montante global de tais pagamentos, o que é feito preferencialmente pela meação do cônjuge devedor no património comum (artigos 1730.º, 524.º e 1697.º e 1689º nº 3 do Código Civil). Nestes casos, em que se impõe uma compensação stricto sensu, mesmo que o pagamento ocorra depois da data em que a terminaram as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, desde que a dívida parcial ou totalmente satisfeita tenha sido contraída no decurso da comunhão e a ambos responsabilize, tal pagamento deve ser atendido no inventário, sem necessidade de recorrer a ação autónoma. (neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/03/2017 no processo 5208/14.9T8ALM-B.L1 e Cristina M. Araújo Dias, Do regime da responsabilidade (pessoal e patrimonial) por dívidas dos cônjuges (problemas, críticas e sugestões), 585, in https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/8132/1/Tese_Doutoramento_Cristina_Dias.pdf.). Com efeito, esta necessidade de compensação tem origem em crédito comum anterior a essa dissolução, não pode ser exigida anteriormente à mesma e deve ser paga preferencialmente pela meação do cônjuge devedor no património comum.
Apenas no caso de insuficiência de bens comuns deve o cônjuge credor recorrer aos bens próprios do devedor - conforme decorre das disposições conjugadas do Código Civil supra mencionadas.
Pretende-se que o cônjuge que pagou mais do que devia, satisfazendo os débito comuns para além da parte que lhe competia, possa ser compensado, recebendo do outro cônjuge o excesso (para evitar que um beneficie à custa do outro).
Na fase da liquidação da comunhão cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum tudo o que lhe deve. O cônjuge devedor deverá compensar nesse momento o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa do património comum. Uma vez apurada a existência de compensação a efetuar à comunhão, procede-se ao seu pagamento através da imputação do seu valor atualizado na meação do cônjuge devedor, que assim receberá menos nos bens comuns, ou, na falta destes, mediante bens próprios do cônjuge devedor de forma a completar a massa comum.
Deve admitir-se um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro. Caso contrário verificar-se-ia um enriquecimento injusto da comunhão à custa do património de um dos cônjuges ou de um dos cônjuges à custa do património comum.” cf Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 08-11-2001 no processo 4931/10.1TBLRA.C1.
Dúvidas não há, pois, que estes créditos destinados à compensação do excesso pago pela cabeça-de-casal a favor da comunhão têm que ser atendidos no inventário.

2- Se os créditos originados pelo pagamento por um só cônjuge de obrigações da responsabilidade de ambos, devem ser relacionados (ou só atendidos posteriormente)
É discutível se estes créditos devem ou não ser relacionados ou se apenas devem ser atendidos no despacho que dá a forma à partilha.
No sentido de que estes créditos não devem ser objeto de relacionamento, apesar de serem considerados no momento da partilha para serem pagos, argumentando que estes créditos não respeitam ao património comum do casal, pugna Augusto Lopes Cardoso Partilhas Judiciais 3.ª edição Vol III pags 391 e 392 e no mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 06/02/2007, citado pela recorrente “-Tendo-se apurado no processo de inventário para partilha do património do ex-casal constituído pelas partes que a ora agravada liquidou, ela própria, com os seus meios, parte da dívida comum relacionada, no valor de 2.050.812$00, é de reconhecê-la como credora do cabeça-de-casal, ora agravante, por metade desse valor (a outra metade era da responsabilidade dela). II - Tal crédito, porém, não onera bens comuns do dissolvido casal, mas a meação do cônjuge devedor no património comum; não existindo bens comuns, onerará então os bens próprios do cônjuge devedor. III - Assim, em conformidade com o disposto no n.º 3 do art. 1689.º do CC, o referido crédito não tem de ser relacionado, embora deva ser considerado no momento da partilha”.
O entendimento contrário tem mais recentemente sido seguido pela jurisprudência cf- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-12-2013 no processo 1385/10.6TBBCL-C.G1, citando, por seu turno, também jurisprudência do mesmo Tribunal de 17/01/2013, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-04-2010 no processo 113-D/2001.L1-1, Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-02-2005 no processo 4018/04 e de 08-11-2001, no processo 4931/10.1TBLRA.C1, entendendo que em sede de inventário para partilha do património comum de um ex-casal, devem ser relacionados os créditos de “compensação de um dos cônjuges sobre o outro”.
Realça-se ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12-10-2023, no processo 3044/18.2T8BCL-B.G1 (em que foi relatora a ora 1ª adjunta e 2ª adjunta a ora relatora), que explana: " Essa relacionação permite estabilizar o objeto da partilha, alcançar o mencionado objetivo e garantir uma partilha completa.
Em resumo, no caso de por dívida de um só cônjuge terem respondido bens comuns, o valor dos bens comuns usados para o efeito é objeto de um direito de crédito do património comum sobre o cônjuge devedor, a ser efetivado no momento da partilha; como em regra o que se partilha no inventário deve ser objeto de relacionação, tal crédito deve ser relacionado. Não é curial deixar de relacionar um crédito que vai ser considerado na partilha, uma vez que a satisfação de tal crédito naquela fase pressupõe que anteriormente foi objeto de discussão e definição; para ser satisfeito na partilha, é necessário que previamente se verifique se existe e qual o seu montante. Isso pressupõe a relacionação e a sua subsequente discussão com vista à definição do direito, daí a nossa adesão à tese de que deverá ser relacionado."
Considerando a atual disciplina do inventário, em que importa logo na conferência de interessados, sendo possível, tentar obter o acordo das partes sobre as matérias relativa ao acervo patrimonial a partilhar e débitos que se possam repercutir na determinação das dívidas a atender na partilha e bem assim que, havendo desacordo, tem interesse que a discussão de todas as questões que possam ser sujeitas a prova sejam discutidas numa única fase, entende-se que é de aceitar que se deve concentrar a apreciação do acervo a dividir e as dívidas e compensações a efetuar em fase anterior ao despacho determinativo da partilha, até ao final da conferência de interessados, seguindo-se, também para estas, o regime próprio da relação de créditos e de bens.
Assim, devem ser relacionados o seguinte passivo que onera o cabeça-de-casal e que deve ser pago preferencialmente pela sua meação:
-- a dívida do Cabeça-de-Casal à requerente relativamente a metade das quantias que a requerente entregou junto da credora, Banco 1..., desde finais de Maio de 2016, por causa dos créditos relativos ao imóvel, e que se fixava em 19-5-2023 em € 16679,70 (correspondente a metade de € 33 359,39), devendo os respetivos valores ser devidamente atualizados à data da concretização da partilha.
-- a dívida do Cabeça-de-Casal à requerente relativamente a metade do IMI referente ao imóvel em partilha e suportado pela Requerente desde o ano de 2015 até ao ano de 2022 (sempre pagos no ano subsequente, i.e., desde 2016 até 2023), e que se fixava em 19-5-2023 em € 1 221,33 (correspondente a metade de € 2 442,66), devendo os respetivos valores ser devidamente atualizados à data da concretização da partilha.

.V -Decisão

Por todo o exposto, julga-se totalmente procedente o recurso e em consequência altera-se a decisão recorrida, aditando-se que na nova relação de bens que o cabeça-de-casal está obrigado a apresentar, além do determinado pela 1ª instância, se deve incluir o seguinte passivo que onera o cabeça-de-casal e que deve ser pago preferencialmente pela sua meação:
-- a dívida do Cabeça-de-Casal à requerente relativamente a metade das quantias que a requerente entregou junto da credora, Banco 1..., desde finais de maio de 2016, por causa dos créditos relativos ao imóvel, e que se fixava em 19-5-2023 em € 16679,70 (correspondente a metade de € 33 359,39), devendo os respetivos valores ser devidamente atualizados à data da concretização da partilha.
-- a dívida do Cabeça-de-Casal à requerente relativamente a metade do IMI referente ao imóvel em partilha e suportado pela Requerente desde o ano de 2015 até ao ano de 2022 (sempre pagos no ano subsequente, i.e., desde 2016 até 2023), e que se fixava em 19-5-2023 em € 1 221,33 (correspondente a metade de € 2 442,66), devendo os respetivos valores ser devidamente atualizados à data da concretização da partilha.
 Custas do recurso pelo Recorrido (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil).

Guimarães, 24-04-2025

Sandra Melo
Anizabel Sousa Pereira
Fernanda Proença Fernandes