DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
OMISSÃO DO CONTRADITÓRIO PRÉVIO
NULIDADE PROCESSUAL
ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
Sumário


I- Em regra, proferida a sentença (ou despacho), esgota-se o poder jurisdicional do juiz, pelo que apenas poderá ser modificada por via de recurso, quando este seja admissível, ou mediante incidente de reforma ou arguição de nulidade ( art. 613º e 615º,nº4 e 616º do CPC).
II- Se um ato da sequência processual anterior à sentença (ou despacho) estiver ferido de anulabilidade ( por exemplo, como no caso sub judicio, omissão de notificação às partes de despacho ocorrido que possa influir no exame e decisão da causa e omissão de notificação da falta de impulso processual, com referência ao disposto no art.º 281.º do CPC ou ao decurso do prazo da deserção) e esta vier a ser tempestivamente arguida, a sentença (ou despacho) será anulada em conformidade com o disposto no art. 195º, nº2 do CPC.
III- Neste caso, não é necessário o recurso da decisão final, com a finalidade de impedir o trânsito em julgado: este não se dá enquanto não for proferida decisão sobre a nulidade.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

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I – Relatório

- Os presentes autos de inventário, por óbito de AA foram intentados por BB, em 23/08/2021.

- Em 05/02/2022 ocorreu a notificação ao Requerente do Despacho Liminar proferido em 03-02-2022, nos termos do qual, além de se designar o cabeça de casal, ainda se determinou “ em face do exposto e ao abrigo do disposto no artigo 1100º, n.º2, al. a) do CPC, determino a citação dos interessados, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1104º, n.º1 do CPC.”

- Em 07/02/2022 ocorreu a citação do Cabeça-de-Casal;

- Em 11-02-2022, o cabeça de casal dá notícia de que requereu apoio judiciário.

- Após comprovação da concessão de apoio judiciário, foi proferido despacho em 20-05-2022 nos seguintes termos: “ Atento a nomeação de advogado, notifique-se o Senhor Cabeça de Casal para dar integral cumprimento do despacho que antecede, tendo sido cumprido o mesmo através de notificação ( de 21-05-2022), apenas da Ilustre Mandatária do Cabeça de Casal;

- Em 20-03-2023 é proferido despacho a julgar extinta a instância por deserção e com os seguintes fundamentos: “Na sequência da notificação com a referência ...07 de 21-5-2022, sem que nada tenha sido requerido desde então, nos termos do artigo 281.º, n.º 1 do C.P.C., julga-se deserta a instância, por o processo se encontrar, por negligência das partes dos presentes autos, há mais de seis meses, a aguardar impulso processual da mesma”.

- Em 20/03/2023 é apresentado Requerimento pelo Requerente, onde pugna pela revogação do Despacho que antecede, nos seguintes termos:
“BB, requerente nos autos de inventário supra, notificado que foi do douto despacho ref. ...22, vem muito respeitosamente junto de V. Exª, expor e requerer o seguinte:
1 – Consultado o processo na respetiva plataforma citius, resulta:
2 – Em 23/08/21, o subscritor do presente em representação e devidamente mandatado pelo requerente, apresentou via citius requerimento para dar início ao presente inventário.
3 – Em 05/02/22, foi o subescritor do presente notificado da admissibilidade do inventário e da designação do interessado CC para exercer o cargo de cabeça de casal.
4 – Em 07/02/22 foi citado o cabeça de casal.
5 – E 21/05/22, foi citada a mandatária do cabeça de casal, Drª DD do despacho que determinou se procedesse à citação dos interessados para os termos do inventário.
6 – Sucede assim, que o subescritor do presente só foi notificado uma única vez, sendo que desse despacho (de 05/02/22) nada resulta em termos de o requerente ter que proceder de alguma forma ou dar algum impulso.
7 – Por outro lado, o despacho a que a Meritíssima Juíza se refere como tendo sido o último, ref. ...07, foi unicamente notificado à Ilustre colega Drª DD e não a nós e o mesmo determina que se proceda à citação dos interessados.
8 – Logo e salvo melhor entendimento, esse impulso não está na disposição das partes, despacho que o requerente e o seu mandatário, subescritor do presente, desconhecia por completo por não ter sido notificado e por isso mesmo, ainda que o pretendesse, não o podia, além do mais por desconhecimento, fazer.
9 – Assim, cremos que, por não estarmos perante um caso de negligência, pelo menos da nossa parte e porque antes entendemos tratar-se de um mero lapso, respeitosamente se requer que o processo seja reapreciado e se dê sem efeito o douto despacho ref ...38, substituindo-o por outro que determine o prosseguimento dos autos.”.

- Em 23-03-2023 foi proferido o seguinte despacho: “ Requerimento com a referência ...90 - Visto.
Atento o teor do requerimento aludido em último lugar relativamente ao qual foi dado cumprimento ao disposto no artigo 221º do C.P.C., encontrando-se em curso o prazo para a autora se pronunciar e, para os devidos efeitos, aguardem os autos o decurso do referido prazo.D.N.”

- Em 19/06/2023: Requerimento apresentado pelo Requerente, para a destituição do cargo de cabeça de casal.

- Em 12-07-2023 foi proferido o seguinte despacho: “ Requerimento com a referência ...50 - Visto.
Atento o teor do supra aludido requerimento e, para os devidos efeitos, designadamente se pronunciar, notifique o interessado/cabeça de casal. D.N.”

- Em 13/07/2023: notificação para o Cabeça de Casal se pronunciar sobre o requerimento (destituição do cargo de cabeça-de-casal), conforme despacho de 12-07-2023.

- Em 05-03-2024 é proferido o seguinte despacho: “ Para a audiência prévia a que alude o artigo 1109º do CP.C., designa-se o dia 10 de Abril de 2024, ás 15.30 horas.D.N.”

- Em 11/03/2024: notificação de data para realização de Audiência Previa, em conformidade com despacho que antecede.

- Em 10/04/2024: realização de Audiência Prévia, em que estiveram presentes as partes e respetivos Mandatários. Naquela diligencia, conforme consta da Ata, Ilustre Patrona do Cabeça de Casal requereu o prazo de dez dias para juntar aos autos o compromisso de honra e a relação de bens. Deferido o requerido, a diligencia terminou.

- Em 29/05/2024 foi proferido o seguinte despacho: “Decorrido o prazo requerido pelo cabeça de casal para juntar aos autos o compromisso de honra e a relação de bens, sem que nada tenha sido dito e ou requerido e, para os devidos efeitos, notifique o cabeça de casal”, tendo ocorrido, em 31-05-2024, a notificação do cabeça-de-casal.

- Em 01/07/2024 foi proferido Despacho: “Renova-se o despacho proferido com a referência ...91, notificando-se pessoalmente por carta com AR o cabeça de casal”.

- Em 04/10/2024 foi proferido o seguinte Despacho (ora recorrido):
Analisados os autos, verifica-se que a 18/03/2023 [ref ...38] foi proferida a seguinte decisão:
“Na sequência da notificação com a referência ...07 de 21-5-2022, sem que nada tenha sido requerido desde então, nos termos do artigo 281º, nº 1 do C.P.C., julga-se deserta a instância, por o processo se encontrar, por negligência das partes dos presentes autos, há mais de seis meses, a aguardar impulso processual da mesma.”.
Foi apresentado requerimento pelo requerente destes autos, no qual peticionou “que o processo seja reapreciado e se dê sem efeito o douto despacho ref ...38, substituindo-o por outro que determine o prosseguimento dos autos.”.
Sem que nenhuma decisão sobre tal requerimento tivesse sido tomada, foi designada audiência prévia, donde foi deferida a concessão de prazo de 10 (dez) dias para o Cabeça de Casal juntar aos autos o compromisso de honra e a relação de bens.
Desde então apenas existiu movimentação processual por banda do Tribunal.
Cumpre apreciar.
A prolação de decisão que julgou deserta a instância é uma decisão que põe termo ao processo e, por via da mesma, esgota o poder jurisdicional do Tribunal – artigos 277.º, alínea c), e 613.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Tal decisão apenas pode ser atacada por via de recurso (quando admissível) ou, eventualmente, através da arguição de nulidades ou pedido de reforma da sentença - artigos 615.º e 616.º do Código de Processo Civil.
Nada disto acontecendo, verifica-se o trânsito em julgado da decisão proferida e, por via disso, estabiliza-se a mesma, sendo que a partir de tal momento qualquer decisão que ponha em causa aquela decisão é juridicamente inexistente.
Quer-se com isto dizer que não tendo sido interposto recurso da decisão que julgou deserta a instância (ou arguida qualquer outra invalidade ou vícios), mas somente um pedido de “reapreciação”, com o fim de “dar sem efeito”, verifica-se que, independentemente da bondade de tudo mais, aquela decisão transitou em julgado.
Tal significa, ainda, que toda a actividade processual do Tribunal posterior, que contrarie tal decisão, é sem qualquer efeito jurídico, por inexistente de tal prisma.
Nestes termos, por extinta a instância, nada mais há a determinar se não que se proceda à conta (ou seja a mesma dispensada, se for o caso) e, a final, se arquivem os autos.
Notifique-se.
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Inconformado com esta decisão que declarou extinta a instância veio o requerente interpor recurso, finalizando com as seguintes conclusões:
[…]
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido, após os vistos.
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II - Delimitação do objeto do recurso

A questão decidenda a apreciar é delimitada pelas conclusões do recurso.
Assim, a questão a decidir consiste em aferir se o despacho supra descrito deve ser revogada e substituída por outro despacho, nos termos pedidos pelo recorrente.
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III – Fundamentação

O contexto processual relevante é o que consta do relatório supra.

IV. APRECIAÇÃO/SUBSUNÇÃO JURÍDICA

O despacho recorrido apoiou-se no art. 613º do CPC nos termos do qual “ proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, pelo que entendeu que “ não tendo sido interposto recurso da decisão que julgou deserta a instância (ou arguida qualquer outra invalidade ou vícios) mas somente um pedido de “reapreciação”, com o fim de “dar sem efeito”, verifica-se que, independentemente da bondade de tudo mais, aquela decisão transitou em julgado.
Tal significa, ainda, que toda a actividade processual do Tribunal posterior, que contrarie tal decisão, é sem qualquer efeito jurídico, por inexistente de tal prisma”, ordenando, em consequência o arquivamento dos autos.
Todavia, entendemos que não se tomou em consideração o alcance do preceito.
Vejamos.
Com efeito, em regra, proferida a sentença (ou despacho), esgota-se o poder jurisdicional do juiz, pelo que apenas poderá ser modificada por via de recurso, quando este seja admissível, ou mediante incidente de reforma ou arguição de nulidade ( art. 615º,nº4 e 616º).
Sem embargo, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in CPC Anotado, Vol II, 4ª ed. p.729, mencionam várias situações excecionais, entre as quais as sentenças prematuras e explicam que não se trata de qualquer vício específico da sentença, mas da prática de um ato processual que não devia ter lugar no momento em que foi praticado, ocorrendo uma anulabilidade nos termos do art. 195º, nº1.
Assim também, referem os mesmos autores, “se um ato da sequência processual anterior à sentença estiver ferido de anulabilidade ( por exemplo iniciam-se as alegações orais quando faltava produzir um meio de prova) e esta vier a ser tempestivamente arguida, a sentença será anulada em conformidade com o disposto no art. 195º, nº2. Neste caso, não é necessário o recurso da decisão final, com a finalidade de impedir o trânsito em julgado: este não se dá enquanto não for proferida decisão sobre a nulidade”( ob cit p. 730).
Em suma: o juiz da causa não pode rever a sua decisão quanto ao fundo da causa, pois em relação à questão sobre que incidiu a sentença ou despacho, o poder jurisdicional extinguiu-se.
No entanto, quanto ao demais, quando à matéria excluída do fundo da causa e sobre a qual recaiu a decisão, continua o juiz a exercer o seu poder jurisdicional, podendo e devendo resolver as questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu.
O prof. A. Reis ( in CPC Anotado, V, p. 126 e 127) dá vários exemplos, entre os quais, ao juiz cumpre apreciar e conhecer das nulidades arguidas pelas partes ( processuais), bem como das nulidades da sentença quando a causa não admita recurso ordinário.
Ora, no caso vertente, no mesmo dia em que foi proferida a decisão a julgar extinta a instância por deserção, entrou um requerimento do requerente de inventário a alegar que apenas foi notificado “uma única vez, sendo que desse despacho (de 05/02/22) nada resulta em termos de o requerente ter que proceder de alguma forma ou dar algum impulso.”, nunca tendo mais sido notificado nomeadamente da falta de impulso do cabeça de casal.
Apesar de o requerente concluir pela substituição do despacho proferido, na verdade aquela alegação mais não é do que verdadeira alegação de nulidade processual ocorrida, por omissão de formalidade, seja porque nunca foi notificado de nenhum despacho além do primeiro, seja porque nunca foi notificado para qualquer impulso, seja porque não foi ouvido para efeitos da decisão da deserção, conforme é alegado agora em recurso ( cfr. conclusão XV).
Assim sendo, salvo o devido respeito, discorda-se da decisão recorrida, quando ali se lê que apenas poderia ser apreciada aquela decisão da deserção por via de recurso.
Com efeito, com aquele requerimento entrado em 20-03-2023, pretendia o requerente de inventário, verdadeiramente, que se conhecesse de nulidade cometida antes de proferido o despacho de extinção da instância por deserção, apesar de qualificar incorretamente que pretendia a reapreciação da decisão.
Como já explica há muito Lebre de Freitas (CPC anotado, vol. 1.º, nº. 8 da anotação ao art. 195 da 4.ª edição, p. 405:
“Ocorrida a nulidade de acto processual que, nos termos do n.º2 [do art. 195] deva acarretar a nulidade da sentença, não são invocáveis o esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 613-1) nem o trânsito em julgado da sentença (art. 628), que não se dão enquanto a arguição estiver pendente, para entender que o juiz deixa de poder conhecer da nulidade oportunamente arguida ou que esta se sana pelo facto de contra a decisão final não ser interposto recurso, não podendo a sentença subsistir […]”.
Assim sendo, a nulidade processual podia ser arguida perante o juiz a quo, como o foi.
Por outro lado, a procedência da nulidade tem como efeito a anulação dos termos subsequentes do processo, incluindo a sentença (ou despacho de extinção da instância), não sendo necessário para tal que se interponha recurso.
Por tudo isto, pode o despacho que julgou a extinção da instância por deserção ser anulado apesar de não ter sido dele interposto recurso. Tudo depende de ser considerada ou não como nulidade a omissão cometida e de ela influir, ou não, na decisão da causa.
Aqui chegados pergunta-se se deverá ser conhecida a arguição da nulidade invocada pelo tribunal a quo, ou por este tribunal ad quem nos termos do art. 665º do CPC ou se deverá considerar-se, conforme entendimento do apelante, que existe decisão implícita sobre a mesma, quando o tribunal a quo ordenou diligências posteriores àquele despacho que julgou deserta a instância e que, na sua ótica, revela uma revogação tácita daquele despacho ( conclusão XVIII).
Salvo o devido respeito, não cremos que a apreciação da nulidade processual seja passível de julgamento implícito.
“ Na verdade, como resulta do significado etimológico da palavra, decisão implícita é aquela que está subentendida noutra, é aquela que, apesar de não ser claramente expressa, está tacitamente contida noutra decisão (expressa). E sendo assim, para que se possa falar de decisão implícita é necessário que a solução da questão sobre que recaiu a decisão expressa pressuponha a resolução prévia de uma outra questão, ou seja, é necessário que a resolução de determinada questão esteja dependente da resolução dada a outra que constitui um seu antecedente lógico.” ( in AC STJ de 12-09-2007, proc. 07S923, in dgsi).
Ora, após a prolação daquele despacho que julgou extinta a instância por deserção e junção daquele requerimento na mesma data, apenas foram proferidos meros despachos ( de expediente) a ordenar diligências pelo tribunal ( aguardar a audição da parte contrária e marcação de audiência prévia), pelo que não podemos deixar de concluir que M.mo Juiz não chegou a apreciar, implicitamente a pretensão formulada pelo requerente.
Concluindo, diremos que o âmbito dos despachos em causa a ordenar as diligências e que inculcam o prosseguimento da instância não abrangem, de todo, a questão colocada pelo requerente no requerimento, por ele apresentado em juízo em 20-03-2023.
Assim sendo, torna-se necessário conhecer da arguição da nulidade e que se passará a fazer por este tribunal ad quem, nos termos do art. 665º do CPC, uma vez que se entende que os autos contêm todos os elementos necessários para a decisão.
Com efeito, doutra forma o processo teria de baixar para que o tribunal da primeira instância se pronunciasse para voltar de novo a esta Relação, no caso de ser interposto recurso, para conhecimento da mesma questão.
Vejamos então a questão suscitada.
Os presentes autos de inventário foram intentados em 23-08-2021 e em 05/02/2022 ocorreu a notificação ao Requerente do Despacho Liminar  e, em 07/02/2022 procedeu-se à citação do Cabeça-de-Casal, o qual pediu apoio judiciário e após concessão, em 21/05/2022, cumprindo-se o despacho de 20-05-2022, apenas se procedeu à notificação da Ilustre Mandatária do Cabeça de Casal  para cumprimento do despacho anterior ( e que ordena cumprimento do art.1104.º CPC).
Em 20/03/2023 procedeu-se à notificação de ambos os interessados do Despacho que julgou deserta a instância e, na mesma data- em 20/03/2023- foi junto aos autos Requerimento apresentado pelo Requerente, onde pugna pela revogação do Despacho que antecede, alegando que até àquela data apenas tinha sido notificado do despacho liminar ( em 05-02-2022) e nunca foi notificado sequer para qualquer impulso processual.
Ora, desde logo, nos termos do art. 220º, nº2 do CPC, as partes devem ser notificadas de todos os despachos que lhe possam causar prejuízo. Se não o forem, a omissão constituirá nulidade. Basta que a irregularidade cometida possa influir no exame ou decisão da causa.
No caso vertente, não deixou de causar prejuízo ao requerente o facto de não ter sido notificado sequer da concessão de apoio e do despacho proferido em 20-05-2022, o qual apenas foi notificado à patrona do cabeça de casal. A partir dessa data o requerente de inventário poderia e deveria estar atento à competência do cabeça de casal para exercer tal cargo e caso nada fizesse poderia pedir a sua destituição. Assim sendo, não oferece dúvidas de que aquele despacho dever-lhe-ia ter sido notificado. A omissão dessa notificação do requerente pode perfeitamente ter influído no exame e decisão da causa. Para isso, basta o que ocorreu: durante meses o cabeça de casal nada fez, de tal forma que o tribunal declarou a deserção da instância.
A lei não exige que, para haver nulidade, que a irregularidade tenha efetivamente influído no exame e decisão da causa, apenas exige que “possa influir”, deixando ao julgador a apreciação dessa possibilidade.
Mas no caso vertente, ainda ocorre mais: até à decisão de deserção da instância, as partes não tinham sequer conhecimento, que os autos aguardavam, por decisão judicial, o decurso do prazo de deserção da instância.
Este despacho nunca foi proferido.
E pergunta-se: poder-se-ia censurar a falta de impulso dos autos por parte do Requerente? E do cabeça de casal?
Salvo o devido respeito, não cremos que assim seja.
Ou seja, jamais poderia ser declarada a deserção, porquanto nenhuma inércia pode ser assacada às partes ( neste caso, interessados) que não estão advertidas para o decurso do prazo do artigo 281.º do Código de Processo Civil.
Esse entendimento mostra-se, aliás, alinhado com a consagração do dever de gestão processual e o princípio da cooperação consagrados nos artigos 6.º e 7.º do CPC.
Com efeito, há situações em que da tramitação do processo já resulta objetivamente evidenciado que se está a aguardar que a parte venha praticar um ato de que depende o normal andamento do processo, como sucede, por exemplo, na sequência de uma decisão de suspensão da instância em virtude do óbito de uma das partes (cf. artigos 269.º, n.º 1, al. a), e 276.º, n.º 1, al. a), ambos do Código de Processo Civil).
Porém, nem sempre isso acontece, até porque, perante prazos perentórios (por vezes alargados por dilação ou prorrogáveis), o mais frequente é que o andamento do processo não esteja dependente do impulso processual da parte.
Assim, em regra, será necessário que exista um despacho do qual resulte, de forma cabal, que o processo está precisamente a aguardar por esse impulso processual, o que servirá para alertar/advertir as partes disso mesmo, justificando-se, até para obviar a eventuais dúvidas sobre as consequências da falta desse impulso, incluir uma referência ao disposto no art.º 281.º do CPC ou ao decurso do prazo da deserção (em casos mais duvidosos, porventura até explicitando a data por referência à qual se conta o prazo de 6 meses). Decorrido esse prazo, constatando o juiz não terem sido praticados os atos tidos por indispensáveis para impulso do processo, já não será necessário dar, de novo, às partes a possibilidade de se pronunciarem a respeito da deserção.
Neste sentido, acompanhamos e remetemos, por economia, para as considerações feitas por Paulo Ramos de Faria ( in “O julgamento da deserção da instância declarativa (breve roteiro jurisprudencial)”, disponível para consulta na Julgar online), em que conclui (pág. 23) que “Princípio da cooperação e dever de gestão processual – O juiz tem o dever de comunicar às partes que o processo aguarda o seu impulso, esclarecendo-as sobre os efeitos da sua conduta.
Contraditório prévio à decisão – Se as partes já tiverem sido alertadas para a consequência da omissão do impulso pelo prazo de deserção, a lei não exige a sua audição após o decurso de tal prazo”.
O Prof. Lebre de Freitas num artigo publicado on line e intitulado “ da nulidade da declaração de deserção da instância sem Precedência de advertência à Parte” refere o seguinte: “ ocorrendo os seis primeiros requisitos, mas não sendo feita a advertência judicial à parte, se o juiz proferir o despacho a declarar deserta a instância, verifica-se a omissão de um ato que devia ser praticado antes dessa declaração, pelo que este é nulo nos termos do art. 195.º-1, CPC: o ato processual da notificação à parte constitui pressuposto do despacho de deserção. Não é que os outros requisitos não sejam também pressupostos do ato jurisdicional de declaração da deserção da instância; mas só esse constitui a prática dum ato processual e é por isso o único cuja falta integra o conceito de nulidade processual do art. 195.º-1, CPC, que tem como referência a sequência processual e como elemento definidor (fora a omissão de formalidades), não só a prática dum ato totalmente proibido ou a omissão dum ato necessário do processo, mas também o desrespeito pelo momento processual em que o ato pode ou deve ser praticado: a lei, na interpretação acabada de fazer, só admite que o despacho de deserção seja proferido depois da advertência à parte. a prolação do despacho de deserção sem que se verifiquem os seis restantes pressupostos fere-o, sem dúvida, de nulidade à luz do conceito geral do direito civil (art. 294.º, CC), mas processualmente tal constitui um erro de julgamento, só sindicável em recurso.”.
Na jurisprudência é este o sentido também seguido ( cfr, por exemplo, acórdão de 19-09-2017, proferido na Revista n.º 1572/07.4TBCTX.E1.S1, in dgis).
Transpondo estas considerações para o caso em apreço, é forçoso concluir que deveria o Tribunal recorrido determinar a audição das partes “para se pronunciarem/esclarecerem/justificarem a falta de impulso dos autos” e ter também, de seguida, após ouvir as partes, tomado posição (expressa) sobre a questão de saber se estavam (ou não) verificados os pressupostos da deserção.
Sendo certo que, na decisão a tomar, não poderia deixar de ter em consideração não foi proferido tal despacho a determinar o início do prazo previsto no art.º 281.º do CPC e não tendo havido lugar a essa notificação, jamais poderia ser declarada a deserção, porquanto nenhuma inércia pode ser assacada à parte que não está advertida para o decurso do prazo do artigo 281.º do Código de Processo Civil.
Por tudo o exposto, é inequívoco que foi cometida nulidade- seja porque não foi notificado o requerente do despacho de 20-05-2022 e cuja omissão poderia influir na decisão da causa, seja porque não houve qualquer notificação da falta de impulso e com referência ao art. 281º do CPC- a qual acarreta a anulação de todos os termos subsequentes, inclusive do despacho que julgou extinta a instância por deserção e o ora recorrido.
Uma vez que no estado em que se encontram os autos, o cabeça de casal após várias notificações não juntou relação de bens e já existe um requerimento a pedir a destituição do cabeça de casal, e sobre o qual já se cumpriu o contraditório, por uma questão de economia processual, deverão os autos prosseguir para que seja apreciado tal requerimento.

V- Decisão:

Por tudo o exposto, acordam as Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação e, revogando o despacho recorrido, em anular todos os termos subsequentes do processo e despacho que julgou extinta a instância por deserção, devendo os autos prosseguir e retomando a marcha, por uma questão de economia processual, para que seja apreciado o requerimento de destituição do cabeça de casal.

Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, tendo o Apelante obtido vencimento no recurso interposto, e não tendo o Apelado cabeça de casal acompanhado o despacho recorrido ou apresentado contra-alegações, não são devidas custas nem na ação nem na apelação.
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Guimarães, 24 de abril de 2025

Assinado eletronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira ( relatora)
Margarida Pinto Gomes e
Elisabete Coelho de Moura Alves