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ARRENDAMENTO URBANO
RESOLUÇÃO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
CESSÃO DE QUOTAS
NULIDADE DO CONTRATO
Sumário
I - Constitui requisito de celebração de arrendamento urbano, nos termos estabelecidos no artigo 1070º do Código Civil, o local cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível. II - O Decreto-Lei n.º 160/2006, de 8 de agosto, (alterado pelo Decreto-Lei n.º 266-C/2012, de 31 de dezembro) regula os elementos do contrato de arrendamento urbano e os requisitos a que obedece a sua celebração, estabelecendo no n.º 2 alínea e) que no contrato de arrendamento deve constar a existência da licença de utilização, o seu número, a data e a entidade emitente, ou a referência a não ser aquela exigível. III - Apenas podem ser objeto de arrendamento urbano os edifícios ou suas frações cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização, apenas não tendo aplicação quando a construção do edifício seja anterior à entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38382, de 7 de agosto de 1951, caso em que deve ser anexado ao contrato documento autêntico que demonstre a data de construção (n.º 2). IV – Apenas a licença de utilização (genérica) do imóvel para os fins do contrato de arrendamento é da responsabilidade do senhorio/proprietário do imóvel, sendo a licença de utilização do espaço para a (concreta) atividade a nele ser desenvolvida, se outra solução não for convencionada, da responsabilidade do inquilino.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES I. Relatório
AA, residente na Rua ..., ..., ..., ..., BB, residente na Rua ...., ... e EMP01... – RESTAURANTE, SNACK-BAR, LDA, com sede no Largo ..., CC, ..., intentaram a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra DD, residente na Rua ..., ..., ..., EE, residente na Rua ..., ..., ..., FF, residente no Largo ..., ..., ..., GG, residente na Avenida ..., ..., HH e mulher II residente no Largo ..., ..., ..., ..., formulando os seguintes pedidos:
“a) Condenados os 4º e 5º réus a reconhecerem ter sido válida e eficaz a resolução dos contratos de arrendamento celebrados com a 3ª autora;
b) Condenados todos os réus a pagarem
b1 – à 1ª autora a importância de 28.500,00 €;
b2 – ao 2º autor a importância de 1.500,00 €;
b3 – à 3ª autora a importância de 70.00,00 €;
c) Estes montantes devem ser acrescidos de juros, à taxa supletiva legal, desde a citação dos réus”.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador e despacho a fixar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.
Veio a efetivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:
“Pelo exposto, - julgo a acção improcedente por não provada, e absolvo os RR de tudo o peticionado. - julgo a reconvenção parcialmente procedente, condenando a sociedade A. a pagar ao R. GG a quantia de 4800,00€ e ao R. HH a quantia de 3360,00€e a entregar ao R. GG o relógio de parede que foi retirado do locado, e que lhe pertencia, absolvendo os reconvindos de tudo o mais peticionado. Custas da acção pelos AA e da reconvenção pelas partes na proporção do respectivo decaimento. Valor da acção – fixado no despacho saneador. Registe e notifique.”
Inconformados, apelaram da sentença os Autores AA e EMP01... – Restaurante, Snack-Bar, Lda concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“1) O ponto 12 da matéria provada deve ser eliminado;
2) O ponto 19 da matéria provada deve passar a ter o teor seguinte: Os autores trataram de mudar a titularidade dos contratos com a Santa Casa;
3) O ponto 20 deve passar a ter o teor seguinte: Os autores só então tomaram conhecimento da inexistência do alvará sanitário relativo ao estabelecimento, ignorando o quão difícil seria de obter; e tinham a promessa do réu DD de que iria obtê-la e fornecê-la.
4) O ponto 29 da matéria provada deve ser eliminado;
5) O ponto 30 da matéria provada deve passar a ter o teor seguinte: Na reunião referida no ponto 29, que teve lugar na esplanada do “EMP02...” em que estiveram presentes “a 1ª autora e seu marido (este gerente da 3ª autora), do 4º réu, seus advogados e a referida Srª Arquiteta” foi tentada a conciliação, mas sem sucesso.
6) O ponto 34 da matéria provada deve ser eliminado;
7) O ponto 36 da matéria provada deve ser eliminado;
8) O ponto 37 da matéria provada deve passar a ter o teor seguinte: Os AA não fizeram qualquer obra no estabelecimento, sendo certo que pretenderam fazê-las mas tomaram conhecimento da situação ilegal dos prédios locados através do doc referido no ponto 23.
9) O ponto 38 da matéria provada deve ser eliminado;
10)O ponto 36 da matéria provada deve ser eliminado;
1)O ponto 49 da matéria provada deve ser eliminado;
12)O ponto 50 da matéria provada deve ser eliminado;
13)Os autores, ao resolverem os contratos de arrendamento com base no art. 5º - licença de utilização – do referido Dec-Lei 160/2006, procederam nos exatos termos da lei”.
Pugnam os Recorrentes pela revogação da sentença e sua substituição por decisão que julgue a ação integralmente procedente e condene os Réus nos pedidos formulados na petição inicial.
Os Réus contra-alegaram pugnando pela manutenção da sentença recorrida, mantendo-se a sua absolvição.
Pelo Tribunal a quo foi admitido o recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Delimitação do Objeto do Recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo Recorrente, são as seguintes:
1 - Saber se há erro no julgamento da matéria de facto, concretamente quanto aos pontos 12), 19), 20), 29), 30), 34), 35), 36), 37), 46), 49) e 50) dos factos provados;
2 - Saber se há erro na subsunção jurídica dos factos.
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III. Fundamentação
3.1. Os factos Factos considerados provados em Primeira Instância (Transcrição):
1 - A 3ª autora, EMP01... – RESTAURANTE, SNACK-BAR, LDA, antes denominada EMP03..., LDA é uma sociedade por quotas, com o capital social de 5.000,00 € (cinco mil euros) sendo 10 cinco quotas do valor de 1.500 €, 1.250 €, 1.000 €, 950 € e 50 € pertencentes à autora AA uma quota de 250 € pertencente ao autor BB – ver certidão de fls. 13;
2 - Estas quotas foram adquiridas e registadas em 23/10/2018, sendo - a favor da autora AA uma quota de 50 € comprada à 3ª ré FF; uma quota de 1.250 € e outra de 1.000 € compradas ao 1º réu DD; uma quota de 1.500 € e outra de 950 € compradas à 2ª ré EE; - a favor do autor BB uma quota de 250 € comprada ao 1º réu DD – ver certidão d efls. 13;
3 - A aquisição foi precedida do contrato promessa de cessão das quotas, datado de 01/08/2018, junto a fls. 16v e ss..
4 – Em 21/09/2018 foram celebrados os acordos escritos juntos a fls. 18v e ss, ainda pela EMP03..., LDA, e sua gerência à época ( R. DD).
A: - um, celebrado com o 4º R., pelo prazo de 10 anos, não prorrogável e por via do qual o R. GG cedeu o gozo e fruição à referida sociedade “apenas a parte comercial do artigo, ou seja, o rés do chão…” do prédio urbano sito no Largo ..., da união de freguesias ... (...) e ..., ..., inscrito na matriz no artigo ...47, sua propriedade; a renda estipulada foi de 500 € mensais.
B.- outro, celebrado, com o 5º R., por 5 anos renovável por períodos de dois anos, por via do qual O R. HH cedeu aquela sociedade o gozo e fruição “apenas a parte comercial do artigo, ou seja, a cave e o rés do chão …” do prédio sito no Largo ..., da união de freguesias ... (...) e ..., ..., inscrito na matriz no artigo ...49, propriedade dele e da sua esposa, a R. II; a renda estipulada foi de 250 € mensais.
5 - Ficou a constar de ambos os contratos de arrendamento celebrados em 21/09/2018 que o imóvel tem o alvará de utilização nº ...33 de 30/05/1986 – emitido pela Câmara Municipal ... – clausula 1ª ponto 2.
6 - E que “ o imóvel ora arrendado destina-se exclusivamente à atividade de café/snack-bar, restaurante e mediação de jogos da Santa Casa, não podendo a segunda outorgante utiliza-lo para fins diferentes” - clausula 5ª.
7 – Tal alvará mostra-se junto a fls. 21v, datando a sua emissão de 30.3.1976, conforme se constata pela informação do município ... junta a fls. 122 onde se refere “ que tal título de utilização é destinado a estabelecimento comercial
8 – A sociedade EMP03..., LDA, explorava a estabelecimento comercial EMP02..., há cerca de 2 anos, que funcionava nos prédios aludidos em 4., um café, sanack bar, com jogos sociais da santa casa.
9 - No ano de 2018, o autor BB e a então sua namorada JJ - filha da 1ª A e do gerente da sociedade A. - tiveram conhecimento da hipótese de poderem adquirir um café com jogos sociais – o aludido em 8.
10 - Entraram, então, em contacto com o 1º réu, DD, que lhes mostrou o espaço e informou sobre as suas apreciáveis receitas geradas pelo estabelecimento, em especial as decorrentes dos jogos sociais, informando, ainda, que o café também funcionava bem.
11 – Esclarecendo ainda que as rendas então em vigor eram de 500,00 € pela parte arrendada ao 4º réu e 250,00 € ao 5º réu.
12 – E que em tempos ali havia funcionado também um restaurante, chamando assim a atenção para a potencialidade dos espaços para tal efeito, quer no interior quer na esplanada.
13 – Facultou o 1º R a documentação que tinha e lhe foi solicitada alusiva ao referido estabelecimento e à sociedade.
14 – Que foi analisada por contabilista da confiança dos AA (KK).
15 – Que detetou que apenas existia um contrato escrito de arrendamento relativo ao estabelecimento ( o junto a fls. 118, datado de 1.4.2017).
16 – Razão pela qual e como condição para avançarem, exigiram a redução a escrito da parte do estabelecimento que ocupava o prédio pertencente aos 5º RR, ao que o 1º R anuiu (e foi concretizado nos termos indicados em 4. B)
17 – Na sequência do contrato aludido em 3, a gerência de facto da sociedade passou a ser assumida pelo 2º autor e pela filha da 1ª autora.
18 – Isto por um período de cerca de três meses, em que ficou confirmada a rentabilidade anunciada.
19 – Nesse período trataram os AA de mudar a titularidade dos contratos com a Santa Casa, o que após, alguns obstáculos suscitados relacionados com licenças, lograram concretizar.
20 – Sendo que nessa altura – e antes da celebração do contrato definitivo - ficaram a saber da inexistência de alvará sanitário relativo ao estabelecimento.
21 - Avançando os AA de igual modo para a aquisição das quotas, mas já pelo valor de 45.000,00€ (menos 5000,00€ que o aludido no contrato promessa).
22 – No decurso do ano de 2019, contrataram os AA a arquiteta LL com vista à obtenção de tal licença.
23 – Que confirmou junto da câmara ... que em 2005 havia sido indeferido um projeto apresentado pelo então proprietário do EMP02..., mãe do 4º R., com vista à execução de obras de adaptação à legislação em vigor daquele estabelecimento (ver fls. 22), onde se constatou que haviam sido efetuadas ampliações sem o devido licenciamento , verificando-se que ambos os edifícios têm descrições prediais distintas, sendo propriedade de titulares igualmente distintos…
24 – Perante essa constatação os AA contactaram o DD, que se demarcou da situação, referindo que lhes tinha vendido uma sociedade, passando então os AA a contactar os senhorios.
25 – Tendo o R. GG assinado a 26.9.2019, a declaração (que lhe foi apresentada pelos AA) de fls. 23 e 23 v, onde na cláusula 4ª se diz “Como o referido estabelecimento não se encontra totalmente licenciado para exploração de restauração, faltando o seu alvará sanitário, o declarante assume a responsabilidade pela sua obtenção, pagando todos os custos inerentes à sua obtenção, honorários, arquitetura, engenharia e taxas e emolumentos”.
26 – Nessa declaração consta já o valor de 2250,00€ mais IVA, relativo a orçamento para os honorários, arquitetura e engenharia para obter o lavará sanitário, que o R. GG aceitou, adiantando a sociedade. tal quantia, que depois foi descontada no valor de 200,00€ mensais nas rendas a pagar pela sociedade ao referido R..
27 – Em 29.6.2020, a GNR levantou o auto de noticia por contraordenação constante de fls. 128, - por falta de apresentação de mera comunicação prévia - tendo sido a sociedade A. condenada no pagamento de coima no valor de 653,00€ - ver fls. 125.
28 – A Sr arquiteta LL elaborou o relatório que consta de fls. 24 e ss, onde, além do mais consta o seguinte:
“Ao tentar a emissão de licença para os jogos da Santa casa foi verificado por parte da mesma que o espaço arrendado não possuía licença de utilização prevista para a utilização pretendida e que consta no respetivo contrato de arrendamento. O espaço só dispunha de alvará de licença de utilização nº ...33 de 12 de maio de 1975…que deveria ser alterado”. “Os volumes implantados no terreno não cumpriam as áreas definidas em sede de licenciamento”;
“O volume da esplanada coberta, o volume de dois pisos na fachada posterior e outros demais, espalhados pelo terreno, não haviam sido legalizados aquando das suas construções ao longo do tempo”;
29 – Este relatório foi comunicado ao 4º R, em reunião presencial, onde estiveram presentes os seus ilustres mandatários.
30 – Onde apesar dos esforços não lograram entendimento.
31 - Em 19/07/2021, a terceira autora comunicou aos senhorios a resolução dos contratos de arrendamento – ver fls. cartas de fls. 25v e ss, por falta de licença de utilização do locado.
32 – Deixando o locado a 10.8.2021.
32- Em novembro de 2020 os AA pretenderam aumentar o prazo do contrato aludido em 4. B., uma vez que estavam a tentar vender o estabelecimento.
33 – Não tendo o 5º R acedido a tal.
34 - Nunca os AA abordaram os 1º a 3ºs RR para que ficassem com as quotas de volta, em virtude de não terem o alvará sanitário.
35 – Explorando o estabelecimento sem qualquer restrição até quando entenderam.
36 – Nunca lhe tendo sido dada ordem ou sequer ameaça de encerramento pelas autoridades competentes.
37 – Os AA não fizeram qualquer obra no estabelecimento.
38 - O 2º A explorava simultaneamente ao EMP02... outro estabelecimento sito na ....
39 – Que entretanto também encerrou.
40 – Os AA deixaram de servir refeições no EMP02....
41 – O A. BB fazia muitas apostas nos Jogos da Santa casa.
42 – O A. BB oferecia produtos do estabelecimento a amigos com frequência.
43 – A sociedade A. não pagou qualquer renda ao 3º R no ano de 2021, ficando a dever a quantia de 2800,00€ de rendas de 2020 e 2021, vencidas e não totalmente pagas, no que respeita ao 5º R.
44 – Tendo entregue a máquina de jogos à Santa Casa.
45 – Sendo que a mesma estava no EMP02... há mais de 20 anos.
46 – Tendo sido essa máquina o principal motivo pelo qual os AA fizeram o negócio com os 1º a 3º RR.
47 – Os AA tentaram o trespasse do estabelecimento, mas não o lograram.
48 – Os AA quando deixaram o locado levaram com eles um relógio de parede, antigo, que pertencia ao pai do 4º R.
49 – O fecho do estabelecimento coincidiu com o fim da relação amorosa mantida entre a filha da A e o 2º A.
50 – E com o seu regresso ao ensino.
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:
- que não existisse antes contrato escrito referente ao arrendamento da parte do estabelecimento instalado no prédio do R. GG;
- que aquando da celebração da cessão da quotas os AA não soubessem que não tinha o estabelecimento explorado pela sociedade licença/alvará sanitário;
- que o prazo do contrato aludido em 4. A - 10 anos - tenha sido de 10 e não 5 anos, como o aludido em 4. B por carecer de obras.
- que os RR soubessem da situação aludida em 23.
- que para os autores, era absolutamente essencial a legalidade integral dos imóveis objeto dos contratos de arrendamento e da atividade neles exercida (restauração).
- que os réus tinham total conhecimento: da essencialidade dessa legalidade; e simultaneamente da realidade descrita, da qual decorria a total e flagrante ilegalidade dos locados e, consequentemente do estabelecimento que neles funcionava.
- que os AA tenham encerrado o estabelecimento em virtude da falta do alvará sanitário
- que tenha sido aplicada qualquer outra coima ou levantado outra contraordenação a não ser a aludida nos factos provados, enquanto os AA exploraram o estabelecimento, designadamente por não ter a licença para exploração do estabelecimento exposta;
- que tenham os AA retirado do estabelecimento outros pertences – que não o relógio de parede – que pertenciam ao 4º R., cuja substituição ascende a 10 mil euros;
- que tenham os AA tido os prejuízos/danos que alegam, e que perfazem o valor de 100.000,00€ (70 mil euros para a sociedade A., 23.333,33€ para a 1ª A e 6.666,00€ para o 2º A).
- que esteja o 4º R destroçado em virtude do aludido em 48.
- que o R. GG, em março de 2021, se comprometeu a obter a licença em falta em 3 meses;
- que os AA e o R. GG tenham acordado que os contratos seriam resolvidos pelos AA caso não lograsse obter a licença naquele prazo de 3 meses;
- que o estabelecimento tenha tido em 2018 lucro de 24.689,81€, em 2019 21.160,51€ e em 2020 de 11.100,57€;
- que o lucro nos 7 anos subsequentes a 2020 seria de 130.000,00€;
- que tal seria potenciado pelas obras previstas.
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3.2. Da modificabilidade da decisão de facto
Sustentam os Recorrentes que houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 12), 19), 20), 29), 30), 34), 35), 36), 37), 46), 49) e 50) dos factos provados.
Decorre do n.º 1 do artigo 662º do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º n.º 1 do CPC, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Analisemos então os motivos da discordância dos Recorrentes quanto aos diversos pontos impugnados.
O ponto 12) dos factos provados tem a seguinte redação: “12 – E que em tempos ali havia funcionado também um restaurante, chamando assim a atenção para a potencialidade dos espaços para tal efeito, quer no interior quer na esplanada”.
Sustentam os Recorrentes que este ponto deve ser excluído dos factos provados pois na contestação apresentada pelos Réus em parte alguma se referiu que no locado havia, ou tinha havido, funcionado um restaurante, referindo-se sempre ao “estabelecimento EMP02...” e que o Réu GG havia subscrito o contrato de arrendamento de 21/09/2018 (doc. n.º 3 junto com a petição inicial) onde se refere que o locado “destina-se a exclusivamente à atividade de café/snack-bar, restaurante e mediação de jogos da Santa Casa”, não devendo ser credível o seu depoimento quando referiu que funcionou sempre como restaurante.
Vejamos se lhes assiste razão.
Conforme se pode ler da motivação constante da sentença recorrida o Réu DD, um dos cedentes da quotas da sociedade e seu antigo gerente, esclareceu que a sociedade explorava o EMP02..., que funcionava há 50 anos, tendo antes sido explorado por seus familiares, tendo-o explorado cerca de 2 anos, tendo depois transmitido as quotas da sociedade e consequentemente tal estabelecimento, esclarecendo ainda que em tempos tinha lá funcionado um restaurante; no mesmo sentido o Réu GG (dono prédio onde funcionava o estabelecimento), esclareceu que antes do Réu DD (seu primo), o estabelecimento foi explorado pelo seu irmão MM, pai da Ré FF, e antes por ele, funcionando sempre como restaurante, e que só com o Réu DD é que tal não sucedeu, afirmando, tal como alegam os Recorrentes, que “nasceu ali e aquilo era restaurante”.
Da mesma forma resulta do depoimento da testemunha dos Autores KK, seu contabilista, o estabelecimento EMP02..., segundo apurado, em tempos foi um restaurante muito conhecido e antigo na zona. Assim, não vemos qualquer fundamento, perante a prova produzida, para que se exclua o ponto 12) dos factos provados.
Os pontos 19) e 20) dos factos provados têm a seguinte redação: “19 – Nesse período trataram os AA de mudar a titularidade dos contratos com a Santa Casa, o que após, alguns obstáculos suscitados relacionados com licenças, lograram concretizar. 20 – Sendo que nessa altura – e antes da celebração do contrato definitivo - ficaram a saber da inexistência de alvará sanitário relativo ao estabelecimento”.
Sustentam os Recorrentes que este ponto não corresponde à prova produzida, designadamente no que se refere ao depoimento da testemunha KK que, sem dúvida, produziu um “depoimento isento, claro e preciso”, tal como considerado pelo Tribunal a quo e que acompanhou toda negociação das compras das quotas da sociedade; face ao depoimento desta testemunha, entendem que os pontos 19) e 20) devem passar a ter o seguinte teor:
“19 – Os autores trataram de mudar a titularidade dos contratos com a Santa Casa
20 - Os autores só então tomaram conhecimento da inexistência do alvará sanitário relativo ao estabelecimento, ignorando o quão difícil seria de obter; e tinham a promessa do réu DD de que iria obtê-la e fornecê-la”.
Vejamos se lhes assiste razão.
Começamos por referir que, à semelhança da posição assumida pelos Recorrentes relativamente ao depoimento da testemunha KK e da convicção do Tribunal a quo, ouvido o respetivo depoimento, também nós entendemos que se apresenta como “isento, claro e preciso”, revelando ainda conhecimento direto dos factos respeitantes à negociação da aquisição das quotas da sociedade.
Contudo, não entendemos que do mesmo resulte qualquer justificação que legitime a alterar a redação nos termos pretendidos pelos Recorrentes.
Assim, e quanto ao ponto 19), a discordância dos Recorrentes prende-se apenas com a parte respeitante a “o que após alguns obstáculos suscitados relacionados com licenças, lograram concretizar”.
Porém, resulta do depoimento da referida testemunha que efetivamente tais obstáculos existiram por força da exigência pela Santa Casa do Alvará Sanitário, e da inexistência deste, mas também que conseguiram ultrapassar o problema.
E resulta ainda, de forma inequívoca, que foi nessa altura, e ainda antes da celebração do contrato definitivo, que ficaram a saber da inexistência de alvará sanitário relativo ao estabelecimento, conforme consta do ponto 20) dos factos provados; aliás, segundo afirmou a testemunha tal circunstância motivou a redução no preço, tendo sido aceite a aquisição das quotas pelo valor de €45.000,00, em vez dos €50.000,00 acordados no contrato promessa [cfr. ponto 21) dos factos provados, matéria não impugnada pelos Recorrentes].
Quanto ao mais, resulta já dos factos provados que o Réu DD se demarcou da situação, referindo que lhes tinha vendido uma sociedade, passando os Autores a contactar os senhorios e tendo o Réu GG assinado a 26/09/2019, a declaração (que lhe foi apresentada pelos Autores) de fls. 23 e 23v, onde consta na cláusula 4ª que “Como o referido estabelecimento não se encontra totalmente licenciado para exploração de restauração, faltando o seu alvará sanitário, o declarante assume a responsabilidade pela sua obtenção, pagando todos os custos inerentes à sua obtenção, honorários, arquitetura, engenharia e taxas e emolumentos” [cfr. pontos 24) e 25) dos factos provados]. De todo o modo, não podemos deixar ainda de referir que a matéria de facto em causa se reporta ao conhecimento da inexistência de alvará sanitário em momento anterior à aquisição das quotas, não estando em causa nos presentes autos, considerando os pedidos formulados, a validade de tal contrato.
Deve, pois, manter-se a redação dos pontos 19) e 20).
Os pontos 29) e 30) dos factos provados têm a seguinte redação: “29 – Este relatório foi comunicado ao 4º R, em reunião presencial, onde estiveram presentes os seus ilustres mandatários. 30 – Onde apesar dos esforços não lograram entendimento”.
Sustentam os Recorrentes que a comunicação do relatório foi transmitida aos donos do prédio em data anterior à única reunião em que estiveram os advogados e que nessa reunião já tinham conhecimento do seu teor, conforme decorre novamente das declarações prestadas pela testemunha KK, devendo tal matéria ser excluída dos factos provados e alterada a redação do ponto 30) que deve passar a ter o seguinte teor:
“Na reunião referida no ponto 29, que teve lugar na esplanada do “EMP02...” em que estiveram presentes “a 1ª autora e seu marido (este gerente da 3ª autora), do 4º réu, seus advogados e a referida Srª Arquiteta” foi tentada a conciliação, mas sem sucesso”.
Vejamos se lhes assiste razão.
Importa começar por referir que, apesar de pretenderem a exclusão do ponto 29) dos factos provados, os Recorrente, afinal, pretendem uma nova redação do ponto 30) onde é feita referência à reunião referida no ponto 29).
Conforme alegam os Recorrentes está aqui em causa a matéria de facto alegada pelos Autores no artigo 51º da petição inicial com o seguinte teor: “Este relatório foi comunicado aos donos do prédio e agendada uma reunião no local com a presença da 1ª autora e seu marido (este gerente da 3ª autora), do 4º réu, seus advogados e a referida Srª Arquiteta.”
Das declarações prestadas pela testemunha KK decorre terem sido levadas a cabo duas reuniões: a primeira em agosto de 2019, realizada no EMP02..., onde esteve presente o Réu GG, que na mesma terá assumido o custo dos projetos de arquitetura e engenharia necessários, tendo sido após a mesma elaborada e assinada a referida declaração de fls. 23 e 23v, datada de 26 de agosto de 2019; e uma segunda reunião em fevereiro de 2020, pois a Arquiteta demorou mais do que o esperado inicialmente, em que “ela apresenta as conclusões do estudo que tinha feito junto da Câmara.” Assim, das declarações invocadas pelos Recorrentes concluímos que efetivamente as conclusões do estudo efetuado pela Arquiteta, a testemunha LL, foram comunicadas ao Réu GG presencialmente na referida segunda reunião, sendo que a testemunha KK apenas referiu duas reuniões onde esteve presente.
As declarações da testemunha KK foram confirmadas pelas declarações da Arquiteta LL que esclareceu que as conclusões constantes do relatório constante de fls. 24 a 25 (e não propriamente deste, uma vez que este foi elaborado posteriormente à reunião, conforme se depreende da parte final do mesmo onde é feita já referência à própria reunião) foram apresentadas ao Réu numa reunião em 2020; acresce dizer que esta testemunha, quando expressamente questionada, afirmou não se recordar ter estado presente numa outra reunião, na esplanada, com os advogados das partes.
Assim, ainda que inexista fundamento para fazer constar do ponto 30) dos factos provados que na reunião referida no ponto 29), que teve lugar na esplanada do “EMP02...” em que estiveram presentes “a 1ª autora e seu marido (este gerente da 3ª autora), do 4º réu, seus advogados e a referida Srª Arquiteta” foi tentada a conciliação, mas sem sucesso, importa alterar a redação do ponto 29), que passará a ter o seguinte teor: “29 – As conclusões que constam do relatório referido em 28) foram comunicadas ao 4º Réu em reunião presencial em fevereiro de 2020. Mantendo-se, a redação do ponto 30), pois na reunião efetivamente não lograram entendimento, tendo até o Réu GG abandonado a reunião conforme resulta do depoimento, nesta parte coincidente, das referidas testemunhas.
Os pontos 34), 35), 36) e 37) dos factos provados têm a seguinte redação: “34 - Nunca os AA abordaram os 1º a 3ºs RR para que ficassem com as quotas de volta, em virtude de não terem o alvará sanitário. 35 – Explorando o estabelecimento sem qualquer restrição até quando entenderam. 36 – Nunca lhe tendo sido dada ordem ou sequer ameaça de encerramento pelas autoridades competentes. 37 – Os AA não fizeram qualquer obra no estabelecimento”.
Sustentam os Recorrentes que não pediram nem exigiram que os 1º a 3ºs RR “ficassem com as quotas de volta, em virtude de não terem o alvará sanitário”, mas foi uma opção sua, estranhando a inclusão deste assunto; que é certo que os exploraram o estabelecimento até à data referida no ponto 32), mas não é que o fizeram “sem qualquer restrição até quando entenderam” pois a expectativa que tinham era a de dar ao locado uma qualidade de restauração muito superior à existente e para tal, tornavam-se necessárias obras de vulto, que implicavam licenças da Câmara Municipal ...; que é também verdade que, durante o tempo em que exploraram o EMP02... nunca foi “dada ordem” de encerramento pelas autoridades competentes, mas não o é que não tenha havido “ameaça” ou pelo menos, informação de que tal poderia acontecer, pelo que o ponto 36) deve ser eliminado ou, pelo menos, alterado:
“Não foi dada ordem ou ameaça de encerramento, mas legalmente poderia ter sido dada em qualquer ocasião atenta a situação ilegal em que se encontrava e, ao que se crê, ainda se encontra”.
Alegam ainda que é verdade que os Autores não fizeram qualquer obra, mas, já em 2005, a Câmara Municipal ... tinha indeferido essa pretensão atenta a situação de ilegalidade em que se encontrava, pelo que o ponto 37) deve ser alterado para estes termos: “Os AA não fizeram qualquer obra no estabelecimento, sendo certo que pretenderam fazê-las, mas tomaram conhecimento da situação ilegal dos prédios locados através do doc referido no ponto 23”.
Vejamos se lhes assiste razão.
Quanto ao ponto 34) os Recorrentes aceitam a sua factualidade, entendem é que era uma opção sua, sendo certo que inexiste qualquer caráter estranho nesta matéria a qual resulta alegada pelos Réus no artigo 52 da contestação.
Relativamente ao ponto 35) aceitam também que exploraram o estabelecimento até à data referida no ponto 32), sendo certo que, ainda que tivessem a expectativa de dar ao locado uma qualidade de restauração superior à existente, dai não decorre que não o fizeram sem restrição até quando entenderam.
No que respeita ao ponto 36) também aceitam que, durante o tempo em que exploraram o EMP02..., nunca foi “dada ordem” de encerramento pelas autoridades competentes, e nem ameaça de encerramento (veja-se a redação que propõem), pretendendo a alteração da redação para que passe a constar que legalmente poderia ter sido dada em qualquer ocasião atenta a situação ilegal em que se encontrava e, ao que se crê, ainda se encontra.
Ora, inexistindo fundamento para eliminar o ponto 36), a redação proposta pelos Recorrentes tem já natureza conclusiva e de direito, não devendo ser levada à matéria de facto.
Por último, quanto ao ponto 37), aceitam também que os Autores não fizeram qualquer obra e relativamente ao indeferimento pela Câmara Municipal ..., em 2005, do projeto apresentado pela mãe do 4ª Réu, consta já do ponto 23) dos factos provados. Devem, pois, manter-se os pontos 34), 35), 36) e 37) dos factos provados.
O ponto 46) dos factos provados tem a seguinte redação: “46 – Tendo sido essa máquina o principal motivo pelo qual os AA fizeram o negócio com os 1º a 3º RR”
Sustentam os Recorrentes que o ponto 46) deve ser eliminado, invocando em prol da sua pretensão o depoimento da testemunha JJ; ouvido tal depoimento importa referir que em nada colide com a factualidade em causa, mesmo na parte a cuja transcrição os Recorrentes procederam, quando refere que não queria um café, mas um restaurante; na verdade, se atentarmos nas declarações da própria mãe da testemunha, a Autora AA, percebemos, tal como refere o Tribunal a quo, que a máquina de jogos da Santa Casa foi efetivamente importante para a concretização do negócio, constando das suas declarações (gravadas na sessão de 03-11-2023) que a filha lhes disse que aquilo devia, podia, ser uma coisa boa por causa do euromilhões (das 26:55 às 25.18).
Deve, pois, manter-se o ponto 46) dos factos provados.
Os pontos 49) e 50) dos factos provados tem a seguinte redação: “49 – O fecho do estabelecimento coincidiu com o fim da relação amorosa mantida entre a filha da A e o 2º A. 50 – E com o seu regresso ao ensino”.
Sustentam os Recorrentes que também estes pontos devem ser eliminados uma vez que não é verdade que o fecho do estabelecimento tenha coincidido com o fim da relação amorosa da filha da Autora, a testemunha JJ e o 2º Autor e com o regresso dela ao ensino.
Invocam os Recorrentes as declarações prestadas pela testemunha JJ e pelo filho, a testemunha NN (neto da Autora AA).
Ouvidos os depoimentos destas testemunhas a nossa convicção é que efetivamente o fecho do estabelecimento em agosto de 2021 coincidiu com o fim da relação amorosa mantida entre a filha da Autora AA e o 2º Autor e o regresso da mesma ao ensino, tendo a testemunha esclarecido que foi novamente colocada para dar aulas em 2021, o que se mostra consentâneo com as declarações do seu filho que afirmou que a mãe resolveu dar aulas no ano seguinte ao do Covid, que como é do conhecimento geral foi o ano de 2020. E quanto ao fim da relação amorosa o que ressalta do depoimento da testemunha JJ é que o mesmo não ocorreu por causa do café, ainda que, por acaso, tenha coincidido com o fim do café; de todo o modo, dir-se-á desde já, que tal factualidade nenhum relevo assume para a pretensão dos Recorrentes, designadamente quanto à validade da resolução dos contratos de arrendamento. Devem, pois, manter-se os pontos 49) e 50) dos factos provados.
***
3.3. Reapreciação da decisão de mérito da ação
Importa agora decidir se deve ou não manter-se a decisão de mérito que julgou a ação improcedente e absolveu os Réus de tudo o peticionado.
Começamos por delimitar que, tendo o Tribunal a quo decidido ainda julgar a reconvenção parcialmente procedente, condenando a sociedade Autora a pagar ao Réu GG a quantia de €4800,00 e ao Réu HH a quantia de €3360,00, e a entregar ao Réu GG o relógio de parede que foi retirado do locado, e que lhe pertencia, o presente recurso não tem por objeto tal decisão, incidindo apenas sobre a decisão proferida na parte em que absolveu os Réus dos pedidos formulados pelos Autores.
Na verdade, o que os Recorrentes pretendem é que seja proferida agora decisão que julgando integralmente procedente a ação condene os Réus nos pedidos formulados na petição inicial.
Vejamos então.
O Tribunal a quo considerou que centrando os Autores o seu pedido na resolução por eles operada do contrato de arrendamento, nada pedindo quanto ao contrato de cessão de quotas, inexiste sustentação legal para a responsabilização dos cedentes das quotas pelos prejuízos que os Autores alegam ter tido decorrentes da resolução antecipada dos contratos de arrendamento.
Quanto aos 4º e 5ºs Réus, os senhorios dos prédios onde laborava o estabelecimento, considerou o Tribunal a quo que apenas a obtenção da licença ou autorização de utilização (genérica) para o prédio é obrigação do senhorio e esta existia à data de celebração do contrato, e que quanto à licença de utilização (específica), e o consequente alvará, para o estabelecimento funcionar regularmente compete ao inquilino a sua obtenção, no caso aos próprios Autores ou a quem lhes transmitiu as quotas, os anteriores proprietários do estabelecimento, salientando que quando os Autores compram as quotas sabem que essa licença especifica, o alvará sanitário não existia, com isso, obviamente se conformando, e que que qualquer situação relacionada com esta falta teria que ser abordada no âmbito do contrato de cessão de quotas e quanto esse contrato, não foi efetuado qualquer pedido.
Os Recorrentes insurgem-se contra tal entendimento sustentando que os contratos de arrendamento são nulos por violação dos artigos 1070º do Código Civil e 5º n.º 7 do Decreto-Lei n.º 160/2006, tendo sido emitida uma só licença para dois prédios distintos, assistindo aos Autores o direito a resolverem os contratos de arrendamento.
Vejamos se lhes assiste razão.
Os Autores vieram peticionar nos presentes autos a condenação dos 4º e 5º Réus a reconhecerem ter sido válida e eficaz a resolução dos contratos de arrendamento celebrados com a 3ª Autora e a condenação de todos os Réus a pagarem à 1ª Autora a importância de €28.500,00, ao 2º Autor a importância de €1.500,00 e à 3ª Autora a importância de €70.000,00, acrescidos dos juros, à taxa supletiva legal, desde a citação.
Decorre efetivamente da factualidade provada que, em 19/07/2021, a terceira Autora comunicou aos senhorios a resolução dos contratos de arrendamento por falta de licença de utilização do locado [ponto 31) dos factos provados].
Conforme se evidencia na sentença recorrida, e não vem questionado no presente recurso, estamos perante situações distintas quanto aos diversos Réus pois, enquanto no que respeita aos 1ºs a 3º Réus está em causa a celebração com os Autores de um contrato de cessão de quotas de uma sociedade, relativamente aos 4º e 5º Réus está em causa a celebração de dois contratos de arrendamento, os quais foram celebrados/negociados não pelos Autores, mas ainda pela gerência anterior da sociedade cujas quotas foram objeto de cessão.
Conforme resulta provado a Autora EMP01... – RESTAURANTE, SNACK-BAR, LDA, antes denominada EMP03..., LDA é uma sociedade por quotas, com o capital social de €5.000,00, sendo cinco quotas no valor de €1.500,00, €1.250,00, €1.000,00, €950,00 e €50,00 pertencentes à autora AA, e uma quota de €250,00 pertencente ao Autor BB.
As referidas quotas foram adquiridas e registadas em 23/10/2018, sendo, a favor da Autora AA, uma quota de €50,00 comprada à Ré FF, uma quota de €1.250,00 e outra de €1.000,00 compradas ao Réu DD, uma quota de €1.500,00 e outra de €950,00 compradas à Ré EE e a favor do Autor BB uma quota de €250,00 comprada ao Réu DD.
Esta aquisição foi precedida da celebração de um contrato promessa de cessão das quotas, datado de 01/08/2018 e em 21/09/2018 foram celebrados, ainda pela sociedade EMP03..., LDA, e sua gerência à época (o Réu DD) os seguintes acordos escritos:
- Um, celebrado com o Réu GG, pelo prazo de 10 anos, não prorrogável e por via do qual o Réu cedeu o gozo e fruição à referida sociedade de “apenas a parte comercial do artigo, ou seja, o rés do chão…” do prédio urbano sito no Largo ..., da união de freguesias ... (...) e ..., ..., inscrito na matriz no artigo ...47, sua propriedade, sendo a renda estipulada de €500,00 mensais;
- Outro, celebrado, com o Réu HH, por 5 anos renovável por períodos de dois anos, por via do qual o Réu cedeu à sociedade o gozo e fruição de “apenas a parte comercial do artigo, ou seja, a cave e o rés do chão …” do prédio sito no Largo ..., da união de freguesias ... (...) e ..., ..., inscrito na matriz no artigo ...49, propriedade dele e da sua esposa, a Ré II, sendo a renda estipulada de €250,00 mensais.
Resulta de forma inequívoca destes factos provados que os 1ºs a 3º Réus não são parte nos contratos de arrendamento celebrados pelos Autores, a cuja resolução procederam em 19/07/2021, sendo certo que os próprios Autores pretendem apenas a condenação dos 4º e 5º Réus a reconhecerem ter sido válida e eficaz a resolução dos contratos de arrendamento celebrados com a 3ª Autora.
O pedido que formulam relativamente aos 1ºs a 3º Réus é o de condenação a pagarem à 1ª Autora a importância de €28.500,00, ao 2º Autor a importância de €1.500,00 e à 3ª Autora a importância de €70.000,00, acrescidos dos juros, à taxa supletiva legal, desde a citação.
Ora, fundando os Autores a presente ação na resolução dos contratos de arrendamento e nos artigos 1070º, 801º e 802º do Código Civil e artigo 5º do Decreto-Lei n.º 160/2006, de 8 de agosto, por alegado incumprimento pelos senhorios na obtenção de licença, não formulando qualquer pedido respeitante ao contrato de cessão de quotas, entendemos não merecer qualquer censura nesta parte a decisão recorrida quando afirma que “inexiste sustentação legal para a responsabilização dos cedentes das quotas pelos prejuízos que os Autores alegam ter tido decorrentes da resolução antecipada dos contratos de arrendamento”.
Na verdade, os alegados prejuízos invocados pelos Autores decorreriam desde logo (cfr. artigos 71º e seguintes da petição inicial) do período em falta para concluir o prazo dos contratos de arrendamento (cerca de sete anos e de dois anos) e de perda de lucro pela não realização de obras nos locados, as quais alegadamente potenciariam esse lucro.
Não podemos deixar de lembrar que os Autores antes da celebração do contrato definitivo de cessão de quotas já tinham conhecimento da inexistência de alvará sanitário relativo ao estabelecimento [ponto 20) dos factos provados] e ainda assim adquiriram as quotas, beneficiando de uma redução de €5.000,00 (o valor foi de €45.000,00, menos €5000,00 que o indicado no contrato promessa).
De todo o modo, os Autores também não lograram demonstrar, conforme era de seu ónus (cfr. artigo 340º nº 1 do Código Civil) qualquer dano, não resultando da factualidade provada qualquer prejuízo concreto sofrido pelos mesmos, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao absolver os 1º a 3º Réus de todos os pedidos formulados pelos Autores.
Analisemos agora a responsabilidade que os Autores pretendem imputar aos 4º e 5º Réus, determinando se assiste direito aos Autores a resolver os contratos de arrendamento e à indemnização peticionada.
A primeira questão que aqui se impõe é se os contratos de arrendamento são nulos por violação dos artigos 1070º do Código Civil e 5º n.º 7 do Decreto-Lei n.º 160/2006.
Vejamos.
É inquestionável que, conforme alegado pelos Autores e configurado pelo Tribunal a quo, estamos perante contratos de arrendamento celebrados entre os Réus GG e HH com a sociedade EMP03..., LDA, que alterou a sua denominação para EMP01... – RESTAURANTE, SNACK-BAR, LDA, aqui Autora.
Dispõe o referido artigo 1070º do Código Civil (Requisitos de celebração) que o arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível (n.º 1) e que diploma próprio regula o requisito previsto no número anterior e define os elementos que o contrato de arrendamento urbano deve conter (n.º 2).
Esse diploma é o Decreto-Lei n.º 160/2006, de 8 de agosto, (alterado pelo Decreto-Lei n.º 266-C/2012, de 31 de dezembro) que regula os elementos do contrato de arrendamento urbano e os requisitos a que obedece a sua celebração, conforme previsto no n.º 2 do artigo 1070º do Código Civil (cfr. artigo 1º).
O n.º 2 deste preceito estabelece na alínea e) que no contrato de arrendamento deve constar a existência da licença de utilização, o seu número, a data e a entidade emitente, ou a referência a não ser aquela exigível, nos termos do artigo 5º.
E este preceito dispõe que apenas podem ser objeto de arrendamento urbano os edifícios ou suas frações cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização (n.º ...), apenas não tendo aplicação quando a construção do edifício seja anterior à entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38382, de 7 de Agosto de 1951, caso em que deve ser anexado ao contrato documento autêntico que demonstre a data de construção (n.º 2).
A inobservância do disposto nos n.ºs 1 a 4 por causa imputável ao senhorio determina a sujeição do mesmo a uma coima não inferior a um ano de renda, observados os limites legais estabelecidos pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, salvo quando a falta de licença se fique a dever a atraso que não lhe seja imputável (n.º 5) e, nesta situação o arrendatário pode resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais (n.º 7), sendo que o arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito do arrendatário à indemnização (n.º 8).
Da conjugação destes normativos é de concluir que o arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização e que, caso o locado não disponha de licença de utilização, por motivo imputável ao senhorio, o locatário poderá efetivamente resolver o contrato, além de ter direito a uma indemnização pelos danos sofridos.
Porém, importa precisar qual a licença de utilização a que se reportam os referidos preceitos e cuja responsabilidade incumbe ao senhorio, de tal forma que a sua inexistência possibilita ao locatário a resolução do contrato.
Conforme bem se refere na sentença recorrida a jurisprudência vem entendendo que deve distinguir-se “entre a licença de utilização para o exercício de uma atividade genérica (v.g., habitação, comércio, profissão liberal, etc.) e a licença de utilização para o exercício de qualquer espécie daquele género (farmácia, consultório médico, restaurante, etc.), sendo diversos os titulares de direitos que podem requerer o licenciamento. Só a primeira é obrigação do senhorio, por se tratar de licenciamento do edifício para necessidades comuns a certo tipo de utilização e conciliá-lo com os direitos dos restantes condóminos e com a própria estrutura e configuração do edifício e suas acessibilidades. Já as licenças, com o respetivo alvará, para o exercício de certo ramo (que podem implicar a realização de obras internas, instalações de água e eletricidade próprias e definição de áreas de compartimentos) cumprem ao arrendatário que pretende exercer a atividade específica”, sem prejuízo das partes poderem convencionar de outro modo (v. neste sentido, entre outros os acórdãos desta Relação de 15/03/2018, Processo n.º 1453/17.3T8BRG.G1, Relator Eugénia Cunha e de 26/10/2023, Processo n.º 1442/17.8T8BGC.G1, Relatora Maria Amália Santos, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
No mesmo sentido se vem também pronunciando a doutrina, considerando que a licença para o espaço arrendado é a que se reporta aos fins do contrato e estes são definidos na lei como fins habitacionais e não habitacionais, mas em termos genéricos: comércio, indústria, profissão liberal, serviços (v. Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 5ª edição, p. 61; Jorge Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7ª edição, p. 199, Jorge Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, volume I, 5ª Edição, p. 408 a 409 ).
É o que decorre do artigo 1067º do Código Civil, relativamente aos fins do contrato: o arrendamento urbano pode ter fim habitacional ou não habitacional; é neste contexto que o referido artigo 1070º determina, como requisitos de celebração do contrato de arrendamento urbano, que este recaia sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível, e que o referido n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 160/2006 dispõe que apenas podem ser objeto de arrendamento urbano os edifícios ou suas frações cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização.
Quando estes preceitos se referem à licença de utilização para os fins do contrato (habitacional ou não habitacional) reportam-se à licença de utilização do imóvel para um desses fins, e não a um especifico estabelecimento a nele a instalar, nem à respetiva licença de atividade.
Como se afirma no citado acórdão desta Relação de 26/10/2023 “(…) se é lógico e razoável impor ao senhorio (ou ao dono do local arrendado) que o legalize para os fins destinados ao arrendamento – fins habitacionais ou não habitacionais, e entre estes, para comércio, indústria, serviços, ou outros -, já não é lógico nem razoável que seja o senhorio a legalizar o espaço para os fins específicos do negócio a nele instalar. A legalização do estabelecimento em si, ou das condições impostas pela respetiva autarquia para o mesmo poder funcionar, há-de ser da responsabilidade do próprio empresário, como titular do estabelecimento (ficando a sua licença, de resto, a fazer parte do acervo do próprio estabelecimento comercial como um todo, negociável e transacionável, quer em sede de trespasse, quer em sede de simples exploração do estabelecimento)”.
No caso concreto, resulta demonstrado que ficou a constar de ambos os contratos de arrendamento (celebrados em 21/09/2018) que o imóvel tem o alvará de utilização nº ...33 de 30/05/1986, emitido pela Câmara Municipal ... [ponto 5) dos factos provados] e que “o imóvel ora arrendado destina-se exclusivamente à atividade de café/snack-bar, restaurante e mediação de jogos da Santa Casa, não podendo a segunda outorgante utiliza-lo para fins diferentes” [ponto 6) dos factos provados].
Tal alvará mostra-se junto a fls. 21 vº, datando a sua emissão de ../../1976, conforme resulta da informação prestada nos autos pelo município ... (a fls. 122) onde se refere “que tal título de utilização é destinado a estabelecimento comercial”.
Do referido Alvará consta que é para ocupação de Estabelecimento no lugar de ... - ..., ....
Temos, por isso, como certo que o espaço onde funcionava o estabelecimento, e que ocupava os dois prédios objeto dos contratos de arrendamento, possuía o título de utilização, à data denominado Alvará de licença, com o n.º ...76, emitido em ../../1976, destinado a estabelecimento comercial, ou seja, destinado ao fim dos contratos (não habitacional), existindo, dessa forma, licença de utilização para ali ser exercida atividade comercial, de carácter genérico, ainda que não a especifica licencia de utilização para estabelecimento de restauração, snack bar, café e mediação de jogos da santa casa, as únicas atividades para as quais o locado podia ser utilizado (cfr. Cláusula 5ª dos contratos de arrendamento). Mas esta, como já referimos, não se confunde com aquela, e ao senhorio apenas cumpre assegurar a existência licença genérica de utilização do imóvel para o fim do contrato, e não de um especifico estabelecimento, não lhe cumprindo obter a licença ou alvará para esse concreto estabelecimento, a não ser que as partes tivessem convencionado em sentido contrário, o que em nosso entender, não ocorre no caso dos autos.
A licença de utilização especifica para um concreto estabelecimento é da responsabilidade do arrendatário e não do locador, pelo que a responsabilidade não seria dos Réus GG e HH, mas da Autora, ou eventualmente de quem cedeu as quotas, sendo certo que os Autores quando celebraram o contrato definitivo para a sua aquisição tinham já conhecimento da inexistência de Alvará sanitário e, ainda assim, outorgaram o contrato, conformando-se com aquela inexistência e beneficiando até de uma redução no preço inicial, face ao que constava do contrato promessa.
Ora, os Autores nada pretendem relativamente ao contrato de cessão de quotas, cuja validade não questionam, mas apenas quanto aos contratos de arrendamento, a cuja resolução procederam.
Do exposto decorre que, tal como decidido em 1ª Instância, a inexistência de Alvará sanitário, não sendo a sua obtenção obrigação dos Réus/Senhorios, e existindo a licença genérica a que se referem o artigo 1070º do Código Civil e o artigo 5º do Decreto-Lei n.º 160/2006, não conferia direito à resolução dos contratos.
É certo que o Réu GG subscreveu em 26/09/2019 a declaração junta a fls. 23 onde consta na Cláusula 4ª que “Como o referido estabelecimento não se encontra totalmente licenciado para exploração de restauração, faltando o seu alvará sanitário, o declarante assume a responsabilidade pela sua obtenção, pagando todos os custos inerentes à sua obtenção, honorários, arquitetura, engenharia e taxas e emolumentos”, aí constando já o valor de €2.250,00 mais IVA, relativo a orçamento para os honorários, arquitetura e engenharia para obter o lavará sanitário, que o Réu GG aceitou, adiantando a sociedade tal quantia, que depois foi descontada mensalmente nas rendas a pagar pela Autora sociedade no valor de €200,00.
Veja-se, desde logo, quanto aos Réus HH e mulher, que não assumiram qualquer obrigação.
E quanto ao Réu GG? Será de concluir que, tendo reconhecido a inexistência de Alvará sanitário, se obrigou a obtê-lo na referida declaração?
Tal como se refere na sentença recorrida, também nós entendemos que o Réu GG se obrigou foi ao pagamento de todos os custos inerentes à obtenção do Alvará sanitário, ficando as diligências sob a alçada dos Autores, ou melhor da sociedade Autora que acordou adiantar os valores orçamentados, e da profissional que contratada para esse efeito, e aceitando o Réu GG suportar os custos, através da redução da renda em €200,00 mensais até perfazer a referida quantia de €2.250,00, mais iva.
Na verdade, quanto à interpretação da declaração negocial estabelece o artigo 236º do Código Civil que “1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume I, p. 223) a regra estabelecida no n.º 1 é a de que o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante, excetuando-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido, ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante. Consagrou-se uma “doutrina objetivista da interpretação, em que o objetivismo é temperado por uma salutar restrição de inspiração subjetivista” tendo em vista a proteção das legitimas expetativas do declaratário e a não perturbação da segurança do tráfico, conferindo-se à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efetivamente atribuir, sendo que a normalidade que a lei toma como padrão, “exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante”.
O sentido decisivo da declaração negocial é o que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, por alguém medianamente instruído e diligente, capaz de se esclarecer acerca das circunstâncias em que as declarações foram produzidas.
Acresce ainda, relativamente aos negócios jurídicos formais, o limite de a declaração não poder valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. artigo 238º, nº 1, do Código Civil); ou seja, o sentido hipotético da declaração que prevalece no quadro objetivo da respetiva interpretação tem que ter um mínimo de literalidade no texto do documento que a envolve.
No caso dos autos, estamos perante uma declaração negocial inserida em documento escrito subscrito pelo Réu GG e pelo gerente da sociedade Autora, pelo que o critério interpretativo segundo a impressão de um declaratário normal colocado na posição do gerente da sociedade Autora está dessa forma limitado pelo referido mínimo de literalidade constante do texto do documento.
Qual então o sentido da declaração que consta do documento pela qual o Réu GG assume a “responsabilidade pela sua obtenção, pagando todos os custos inerentes à sua obtenção, honorários, arquitetura, engenharia e taxas e emolumentos”?
Conforme já referimos, e concordando com o decidido pelo Tribunal a quo, entendemos que o sentido a atribuir à declaração é de que o Réu GG se obrigou ao pagamento de todos os custos inerentes à obtenção do Alvará sanitário, ficando as diligências sob a alçada da sociedade Autora, que acordou adiantar os valores orçamentados, e aceitando o Réu GG suportar os custos, através da redução da renda em €200,00 mensais até perfazer a referida quantia de €2.250,00, mais iva, o que veio a acontecer [ponto 26) dos factos provados].
Foi este, aliás, o sentido apreendido pelos Autores conforme alegam no artigo 46º da petição inicial onde referem que o Réu GG reconheceu que faltava o Alvará sanitário “subscrevendo a declaração que se anexa no qual se obriga a pagar o custo dos honorários da referida arquiteta com vista a legalizar a situação”.
Acresce dizer que os Autores não lograram demonstrar (v. os factos julgados não provados) que o Réu GG, em março de 2021, se comprometeu a obter a licença em falta em 3 meses e que os Autores e o Réu GG tenham acordado que os contratos seriam resolvidos pelos Autores caso não lograsse obter a licença naquele prazo de 3 meses.
Sustentam ainda os Recorrentes que os contratos de arrendamento são nulos por violação dos referidos artigos 1070º do Código Civil e 5º n.º 7 do Decreto-Lei n.º 160/2006, uma vez que os locados não se encontram licenciados para o fim pretendido de exploração de restauração, inexistindo o Alvará sanitário, tendo ainda sido emitida uma licença para dois prédios distintos.
Quanto à questão da emissão de licença para dois prédios distintos, importa reter que a licença/alvará de licença n.º ...33 foi emitida já em 1976, e foi emitida para ocupação de estabelecimento no lugar de ..., ..., ..., ocupando o estabelecimento em causa o ... dos dois prédios.
Por outro lado, importa referir que, de acordo com a factualidade provada, os Autores tiveram conhecimento da inexistência do alvará antes da assinatura do contrato de cessão de quotas, em 23/10/2018, tendo celebrado o contrato promessa em 1 de agosto de 2018 e os contratos de arrendamento em 21/09/2018, e tendo ainda pretendido aumentar o prazo do contrato de arrendamento celebrado com o Réu HH em novembro de 2020; veja-se que a falta do Alvará não impediu a utilização e exploração do estabelecimento comercial nos moldes em que vinha sendo explorado e tal como o adquiriram, encontrando-se o local apto e a funcionar como café, snack bar, como funcionava há cerca de dois anos, tendo também lá funcionado em tempos um restaurante.
Decorre efetivamente do n.º 8 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 160/2006 que o arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito do arrendatário à indemnização.
Contudo, nada ficou provado nos autos que nos permita afirmar que os espaços dados de arrendamento não tivessem aptidão para o fim pretendido pelo contrato celebrado.
É certo, tal como se afirma na sentença recorrida que “são apontadas ilegalidades nas construções que poderiam impossibilitar a obtenção daquela licença aos locatários, impondo intervenções aos senhorios nos prédios, no entanto, e como já dissemos os AA limitaram-se a encomendar um relatório e nunca encetaram qualquer processo para obter a licença no município, a nosso ver, só após inicio do processo e deparando-se com concretos obstáculos cuja solução incumbisse aos senhorios e se estes instados não os solucionassem, aí sim poderiam, com justa causa, resolver o contrato, pois face às condições do locado cuja existência apenas pudesse ser alvo de intervenção pelos senhorios, que se negavam a faze-las, não logravam obter a concreta licença que careciam, repetindo mais uma vez, os AA nunca iniciaram o processo para obter aquela licença”.
Conforme decorre dos factos provados, não só em novembro de 2020 (mais de dois anos decorridos sobre a celebração dos contratos de arrendamento) os Autores pretenderam aumentar o prazo do contrato celebrado com o Réu HH, uma vez que estavam a tentar vender o estabelecimento, e nunca abordaram os 1º a 3ºs Réus para que ficassem com as quotas de volta, em virtude de não terem o alvará sanitário, como se mantiveram a explorar o estabelecimento sem qualquer restrição até quando entenderam, nunca lhes tendo sido dada ordem ou sequer ameaça de encerramento pelas autoridades competentes, e não tendo feito qualquer obra no estabelecimento.
Assim, em face do exposto, não entendemos que se verifique a invocada nulidade dos contratos de arrendamento e nem que assista direito à resolução dos mesmos.
De todo o modo, e quanto ao pedido indemnizatório formulado pelos Autores, reiteramos aqui que os Autores não lograram demonstrar qualquer dano, não resultando da factualidade provada qualquer prejuízo concreto sofrido pelos Autores.
Em face do exposto, não se mostrando violadas as normas legais invocadas pelos Recorrentes e não merecendo censura a sentença recorrida, improcede, pois, integralmente a apelação.
As custas são da responsabilidade dos Recorrentes em face do seu integral decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Guimarães, 30 de abril de 2025 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária
Raquel Baptista Tavares (Relatora) António Figueiredo de Almeida (1º Adjunto) Alexandra Rolim Mendes (2ª Adjunta)