Decidindo-se o recurso de impugnação judicial da decisão da entidade administrativa por “simples despacho”, em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção”
Constatando-se na decisão recorrida a total omissão quanto aos factos provados, os não provados, a indicação e exame crítico das provas que formaram a convicção nesse sentido, o respetivo enquadramento jurídico e a graduação da sanção, cumpre declarar nula tal decisão, devendo o tribunal a quo suprir esta nulidade e reformular essa decisão, cumprindo assim o dever legal de fundamentação.
1. Nos autos que, com o nº 814/24.6T8ABF, correm seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de … – Juiz …, tendo sido interposta impugnação judicial pela arguida “AA” da decisão da Directora da Direcção Regional de Mobilidade e Transportes do … que lhe aplicou, aos 12/06/2024, coima no montante de 800,00 euros, pela prática de uma contraordenação prevista e sancionada pelo artigo 31º, nº 1, do Decreto-Lei nº 257/2007, de 16/07, republicado pelo Decreto-Lei nº 136/2009, de 05/06, foi a mesma julgada improcedente por despacho de 28/12/2024.
2. A arguida não se conformou com essa decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1. Não obstante ter sido junto aos autos a alegada notificação dirigida à Arguida, a verdade é que a mesma nunca a recebeu;
2. Apesar de ter sido junto aos autos as fls 8 a 11 e 14 a 17, respeitantes aos extratos de características dos veículos (fls 8 a 10), a autorização especial de trânsito (fls 11), print página eletrónica da arguida (fls. 14) e print parcial da tabela de preços da arguida (fls. 15 a 17), verdade é que as mesmas nunca foram remetidas à Arguida, frustrando-se a sua cabal defesa;
3. Tanto assim é que a não inclusão destes documentos, retira-se, desde logo, da própria (e suposta) comunicação de notificação para exercício de direito de defesa, quando diz: “Em anexo: cópia do AC n.º …, aditamento, talão de pesagem, guia de transporte n.º … e certificado de verificação metrológica.”;
4. A não inclusão dos sobreditos documentos é, inclusivamente, confessada pela própria entidade quando relata no ponto 3. que não notificou a Arguida dos documentos que integravam o processo, justificando essa mesma entidade que, apesar da entidade os ter na sua posse, e deles se servir para realizar um juízo de imputação do ilícito à Arguida, a Arguida deveria tê-los em sua posse;
5. Tal argumento não pode proceder, porquanto os documentos que instruem o processo poderão não corresponder aos reais, conter gralhas ou lapsos, ou simplesmente não serem aplicáveis aos factos em concreto, razão de merecerem a apreciação da Arguida em sede de contraditório;
6. Esta omissão foi invocada concretamente nas conclusões de recurso h), k) e l), com a referida cominação de nulidade, com fundamento no artigo 50.º do RGCO;
7. A par do disposto no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa E que terá justificado a previsão do artigo 50.º do RGCO, abunda a jurisprudência que determina que a violação do disposto no artigo 50.º RGCO acarreta a nulidade;
8. Mesmo que tivesse sido notificada para exercício do direito de defesa, esta só se aperceberia que não teria sido notificada de todos os elementos constantes dos autos quando recebesse a posterior decisão, onde se seria confrontada com elementos que nunca foram remetidos, pelo que a invocação da nulidade foi realizada em tempo;
9. Neste sentido, atente-se ao Assento n.º 1/2003 (publicado no Diário da República n.º 21/2003, Série I-A de 2003-01-25), hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência (nos termos do artigo 17.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 329.º-A/95, de 12 de Dezembro), quando afirma: “Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contraordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa”. (Sublinhado nosso.);
10 Posto isto, é forçoso concluir que se a notificação para o exercício do direito de defesa em sede administrativa não fornecer todos os elementos necessários para que o arguido fique a conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável, arguível pelo arguido/notificado no ato da impugnação, que a Arguida fez;
11. Pelo que, deverá considerar-se verificada a nulidade arguida nos presentes autos de recurso de impugnação judicial e, em consequência, declarar-se nula a notificação para efeitos do disposto no artigo 50.º do RGCO e todos os atos subsequentes, por dela dependerem (artigos 120.º, n.ºs 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do RGCO);
12. Ademais, um dos fundamentos recursivos da Arguida, ora Recorrente, era precisamente a ausência de responsabilidade da Arguida sobre o alegado excesso de peso;
13. A Arguida, aqui Recorrente, não foi notificada dos documentos, em concreto, da guia de transporte, para que, com ela, pudesse fundamentar com maior cuidado e precisão “se a aqui Arguida é a única responsável pela infração, se é responsável em comparticipação ou se não é, de todo.” [conclusão f)];
14. Uma vez exposto esse fundamento recursivo na própria Sentença, segundo a qual “De acordo com o quadro de facto e de direito do caso pode haver mais responsáveis pela infração, o que não foi apurado no processo”, caberia ao Douto Tribunal apreciar a efetiva responsabilidade da Arguida com base na prova constante dos autos e na norma invocada, o artigo 34.º, n.º 4 do DL 257/2007, o que não fez!;
15. Eximiu-se, portanto, de se pronunciar quanto à efetiva responsabilidade da Arguida à luz do artigo 31.º do DL 257/2007, o que constitui nulidade da sentença nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal;
16. Foi ainda invocado em sede de recurso, que não foi provada a adequada pesagem do veículo, nomeadamente porque a Arguida desconhece, atenta a violação do direito de defesa, se o operador teria formação para manusear o equipamento para o efeito;
17. Acontece que, não se verifica qualquer prova junta aos autos de que o operador do equipamento de pesagem tivesse qualquer formação ou capacidade técnica para tal, especialmente, perante a pesagem de dois semirreboques no mesmo conjunto, como o caso dos autos;
18. Atenta a ausência de prova da capacidade do operador, deveria o Douto Tribunal aferir da sua regularidade para efeitos de apreciação de nulidade de prova, o que não sucedeu;
19. Não apreciando, uma vez mais, a questão levantada pela Arguida, aqui Recorrente, temos senão por concluir pela nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal;
20. Com efeito, é por demais evidente que o Douto Tribunal ad quem não poderá deixar de apreciar este erro notório na apreciação da prova (da formação do agente operador), no caso, da ausência de prova pela autoridade administrativa, nos termos e para efeitos do artigo 410.º, n.º 2 do CPP, afetando, consequente, o resultado da pesagem e efetiva prova do excesso de peso, com a necessária alteração da decisão;
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser considerado procedente com as consequências dali decorrentes.
Só assim se fazendo a tão Costumada Justiça!
3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
4. À motivação de recurso respondeu a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
5. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
6. Cumprido o estabelecido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não foi apresentada resposta.
7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Âmbito do Recurso
Como é sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Ed. Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Ed. Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
Nulidade da notificação para efeitos do estabelecido no artigo 50º, do RGCO e de todos os actos subsequentes.
Nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia.
Verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
2. A Decisão Recorrida
2.1 É o seguinte o teor da decisão revidenda, na parte que releva (transcrição):
Decisão por despacho
(art. 64º nos 1 e 2 do RGCO)
I. RELATÓRIO
AA, interpôs, nos termos de fls. 27 e seguintes, recurso de impugnação judicial da decisão do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) que a condenou em coima de € 800 pela prática negligente da contra-ordenação prevista no art. 31º nº 1 do Decreto-Lei nº 257/2007.
A Recorrente não ofereceu provas.
Apresentado o recurso, a autoridade administrativa enviou os autos ao Ministério Público, que os tornou presentes ao juiz.
O recurso foi recebido.
Os sujeitos processuais foram notificados para se oporem a decisão por mero despacho, não tendo sido manifestada qualquer oposição.
O Tribunal é competente, o processo é o próprio e não há irregularidades de patrocínio. Não são conhecidas nulidades ou quaisquer obstáculos processuais que impeçam que se conheça o objecto do recurso de impugnação judicial.
II. FUNDAMENTOS
De acordo com o art. 64º do Decreto-Lei nº 433/82 de 27 de Outubro (Regime Geral das Contra-Ordenações, RGCO) o juiz pode decidir a impugnação judicial mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho, devendo fazê-lo nesta segunda hipótese quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.
Como é sabido e constitui entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso1.
No caso dos autos a Recorrente foi condenada pela prática negligente da contra-ordenação prevista no art. 31º nº 1 do Decreto-Lei nº 136/2009 de 5 de Junho. Em síntese, a Recorrente foi condenada em coima por, com negligência sua, ter expedido carga excessiva num transporte rodoviário de mercadorias feito num veículo pesado que em 23/02/2023 circulou (com 7.800 kg de peso excessivo) por uma estrada de ….
A Recorrente apresentou no requerimento de recurso (arts. 55º e 59º do Decreto-Lei nº 433/82 de 27 de Outubro, Regime Geral das Contra-Ordenações, RGCO) conclusões que se reconduzem aos seguintes fundamentos:
O procedimento contraordenacional prescreveu;
A Recorrente não foi notificada para apresentar defesa prévia, nem foi notificada de elementos documentais constantes do processo;
De acordo com o quadro de facto e de direito do caso pode haver mais responsáveis pela infracção, o que não foi apurado no processo;
A Recorrente desconhece se o agente operador da balança estava apto a realizar a pesagem, ou se o talão de pesagem está devidamente preenchido ou assinado;
Um documento do processo, do qual a Recorrente não tem conhecimento, deve ser modelar caso contenha descrição de factos;
Argui, por fim, a Recorrente que o Tribunal deve apurar se o transporte em causa teve lugar ou não.
Este, pois, o objecto do recurso, sem prejuízo do mais de que se possa conhecer nos termos do art. 64º do RGCO.
Vejamos, pois, se os fundamentos do recurso têm mérito.
A Recorrente alegou não ter sido notificada para apresentar defesa prévia (art. 50º do RGCO).
Porém, do processado resulta que efectivamente o foi, a 16/08/2023, conforme decorre de fls. 15 e 16.
Improcede, por isso, este fundamento invocado no recurso.
A contraordenação pela qual a arguida foi condenada em sede administrativa é punida com coima entre € 500 a € 1.500.
De acordo com o art. 27º al. b) do RGCO, quando a coima aplicável à infracção seja inferior a € 2.493,99 o procedimento por contraordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contraordenação, tenha decorrido 1 ano.
Lê-se no art. 28º do RGCO o seguinte:
1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:
a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.
(...)
3 - A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
Estatui por seu lado o art. 27º-A do RGCO que a prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se (para além dos casos especialmente previstos na lei) durante o tempo em que o procedimento (a) não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal; (b) estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público para prossecução de crime até à sua devolução à autoridade administrativa (nos termos do artigo 40º daquele diploma); e (c) estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso.
Os factos em causa datam de 23/02/2023.
No processado respiga-se terem ocorrido interrupções do prazo de prescrição. Com efeito, a 16/08/2023 a Recorrente foi notificada (fls. 16) para exercício do direito de defesa prévia, e a 12/06/2024 foi proferida a decisão recorrida (fls. 27 e seguintes).
Do mesmo modo, nos autos detecta-se um facto suspensivo da prescrição do procedimento: a notificação, realizada a 15/08/2024, do despacho que analisou preliminarmente o recurso judicial.
Do que se conclui que o procedimento não prescreveu: nem decorreu nunca, ininterrupto, o prazo de um ano nem, até à suspensão operada pela análise preliminar do recurso judicial, passou o prazo continuado máximo de um ano e seis meses do art. 28º nº 3 do RGCO.
A Recorrente alegou ainda não ter sido notificada de documentos do processo (guias de remessa, auto, certificado de formação do agente operador da balança, certificados do equipamento, etc.; prints da base de dados, autorização especial), o que entende constituir invalidade processual.
Não invocou, todavia, qualquer norma onde apoia a convicção que é obrigatória a sua notificação de documentos, nem se vislumbra qualquer norma processual que imponha tal notificação.
Improcede, por isso, este fundamento recursivo.
Alegou também a Recorrente que o recorte, fáctico e jurídico, da causa permite equacionar a existência de comparticipantes na infracção.
A questão é, porém, inconsequente para o desfecho da causa.
Como é sabido, a responsabilidade contraordenacional é individual (arts. 29º do Código Penal e 32º do RGCO), ou seja, em caso de condenação de vários agentes em coimas, cada um deles é responsável pelo cumprimento integral da concreta coima a que foi condenado.
Assim sendo, a circunstância de poder haver outros comparticipantes na infracção em causa nada altera quanto ao problema do caso sub iudice —— havendo outros comparticipantes2 deve correr contra os mesmos procedimento contraordenacional (conexo ou autónomo) sem que, todavia, tal circunstância interceda, por qualquer forma, na responsabilidade contraordenacional da Recorrente que se discute nos presentes autos.
Motivo pelo qual não tem mérito este fundamento do recurso.
A Recorrente adianta ainda como fundamento recursivo o seu desconhecimento sobre o sobre se o operador da balança que mediu o peso do veículo transportador de carga estava apto a realizar essa pesagem, se o talão de pesagem está devidamente preenchido, ou se está assinado.
Ora, a circunstância de a Recorrente não ter conhecimento de tais questões em nada contende com os regulares trâmites do processo, nem esse desconhecimento causa qualquer invalidade processual, não se vislumbrando norma de onde resulte que a inércia da invalidade processual, de onde resulte que a inércia da Recorrente em tomar conhecimento dos elementos do processo a deva beneficiar por alguma beneficiar por alguma forma.
Sempre acrescentaremos, quanto à questão, que nenhuma invalidade detectamos no processado.
A Recorrente alega ainda que um documento do processo, o aditamento de fls. 7 ao auto de notícia deve, caso contenha descrição de factos (a Recorrente invoca não ter conhecimento do documento, nem possibilidade de o conhecer), ter forma modelar e ser impresso pela Imprensa Nacional--Casa da Moeda. Apoia o seu entendimento em despacho normativo cuja fonte (por evidente lapso de escrita) não especificou mas, com toda a certeza, será o despacho do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária nº 11594/2019. A consequência para a invalidade apontada é, segundo entende, a nulidade do auto e a consequente nulidade de todo o processo.
Antes do mais assinale--se que a Recorrente só não conhecerá o teor do documento em questão porque não quis dele tomar conhecimento. Com efeito, a todo o tempo podia ter consultado os autos do processo, e tal inércia não só não acarreta qualquer invalidade como, evidentemente, não a deve beneficiar.
Quanto ao argumento recursivo propriamente dito, cabe dizer que, por motivos concorrentes, o mesmo não tem mérito.
Em primeiro lugar, mesmo que se verificasse qualquer invalidade quanto à forma do documento em causa, a consequência não seria a nulidade do acto (arts. 118º do Código de Processo Penal, CPP, e 41º nº 1 do RGCO), e menos ainda de todo o processo (arts. 122º nos 1 a 3 do CPP e 41º nº 1 do RGCO). E, mesmo que o acto padecesse de invalidade, a respectiva arguição seria intempestiva (arts. 123º do CPP e 41º nº 1 do RGCO).
De considerar, ainda, que o despacho invocado não tem valor de lei, trata--se de mero despacho de jaez regulamentar, pelo que respectiva inobservância não acarreta qualquer vício do processo contraordenacional3..
Mas, ainda como precedente lógico a tais considerações, o próprio despacho invocado não tem aplicação a casos como o dos autos: tal como se respiga no despacho o mesmo visa tão tão--somente regular forma de autos de contraordenações rodoviárias, previstas no Código da Estrada. Ora, in casu não se trata de qualquer contra--ordenação desse jaez pelo que, ab initio, o referido despacho não tem aplicação ao caso sub iudice.
Por fim, defende a Recorrente que o Tribunal deve apurar o transporte de carga em causa nos autos ocorreu ou não.
Quanto à questão cabe dizer que os elementos de prova constantes do processo sustentam à saciedade a decisão probatória administrativa.
Com efeito, os documentos de fls. 6 a 14 (com especial destaque, no que toca à à ligação da Recorrente aos factos, e sua responsabilidade, para a guia de transporte de fls. 9) amparam in totum a decisão do IMT sobre os factos relevantes para a decisão condenatória.
Assim sendo, não merece, também nesta parte, qualquer reparo a decisão o administrativa.
III.
III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, e nos termos das normas legais citadas, o Tribunal indefere o recurso e decide MANTER a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente (artigo 93º nº 3 e 94º nº 3 do RGCO), fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, atenta a gravidade do ilícito (art.º 8º nº 7 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
Apreciemos.
No que tange aos recursos de decisões relativas a processos por contraordenações e conforme resulta do estabelecido nos artigos 66º e 75º, nº 1, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, a 2ª instância funciona como tribunal de revista e como última instância, estando o poder de cognição deste tribunal limitado à matéria de direito, intervindo o Tribunal da Relação como tribunal de revista ampliada, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410º, do CPP, por força do consignado nos artigos 41º, nº 1 e 74º, nº 4, do RGCO, posto que as normas reguladoras do processo criminal constituem direito subsidiário do contraordenacional.
Começa a recorrente por sustentar que é nula a notificação que lhe foi feita para efeitos do consagrado no artigo 50º, do RGCO, porquanto o não foi dos documentos juntos aos autos concernentes aos extractos de características dos veículos, autorização especial de trânsito, print página electrónica da arguida e print parcial da tabela de preços da arguida. Ou seja, estes documentos não lhe foram remetidos, o que frustrou, no seu entender, o cabal direito de defesa.
Porém, antes de apreciar esta questão e as demais suscitadas pela recorrente nas conclusões da motivação de recurso, importa que nos debrucemos sobre problemática da decisão revidenda que, da simples leitura, logo ressalta.
O tribunal recorrido decidiu o recurso de impugnação judicial da decisão da entidade administrativa por “simples despacho”, ao abrigo do estabelecido no artigo 64º, nºs 1 e 2, do RGCO, mantendo a decisão que aplicou à recorrente/arguida coima no montante de 800,00 euros pela prática de uma contraordenação prevista e sancionada pelo artigo 31º, nº 1, do Decreto-Lei nº 257/2007, de 16/07, republicado pelo Decreto-Lei nº 136/2009, de 05/06.
Pois bem.
Consagra-se referido artigo 64º (para além do vertido nos mencionados nºs 1 e 2, de onde resulta a admissibilidade da decisão por “simples despacho”), que “o despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou alterar a condenação” – nº 3; sendo que “em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção” – nº 4.
Ou seja, como assinalam Simas Santos/Lopes de Sousa, em Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 2ª edição, Vislis Editores, pág. 378, “assim, mesmo nos casos de confirmação da decisão recorrida é necessário fundamentar a decisão quanto aos factos provados, ao seu enquadramento jurídico e à graduação das sanções, efectuando uma explícita revisão da decisão condenatória, não bastando uma simples manifestação de concordância com esta”.
Elucida-nos o Ac. da Relação de Évora de 19/03/2013, Proc. nº 229/12.9T2ODM.E1, disponível em www.dgsi.pt, que “a decisão em causa – que a lei apelida de “despacho” –, constitui, ao cabo e ao resto, ato decisório que conhece, a final, do objeto do processo. E integrando a previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º do Código de Processo Penal, constitui verdadeira sentença.”
Percorrendo a decisão revidenda, constatamos a total omissão quanto aos factos provados, os não provados, a indicação e exame crítico das provas que formaram a convicção nesse sentido, o respectivo enquadramento jurídico e a graduação da sanção.
Assim, porque o previsto no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP é aplicável ao caso em apreço por força do consignado no artigo 41º, nº 1, do RGCO (“sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”), verificada está a nulidade naquele preceito enunciada – cfr. referido Ac. da Relação de Évora de 19/03/2013 e Ac. da Relação de Lisboa de 20/01/2022, Proc. nº 2077/21.6T9CSC.L1-9, este também consultável no referido sítio.
Termos em que, cumpre declarar nula a decisão recorrida, devendo o tribunal a quo suprir esta nulidade e reformular essa decisão, cumprindo assim o dever legal de fundamentação.
Fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pela recorrente nas conclusões da motivação do recurso que interpôs.
III – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar nula a decisão recorrida, por falta de fundamentação, nos termos dos artigos 64º, nºs 3 e 4, do RGCO e 379º, nº 1, alínea a), do CPP, ex vi artigo 41º, nº 1, do RGCO, revogando-a e determinam a sua substituição por outra que supra a assinalada nulidade.
Sem tributação.
Évora, 9 de Abril de 2025
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)
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(Artur Vargues)
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(J. F. Moreira das Neves)
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(Carla Francisco)
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1 Citamos o acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 15-01-2014, processo 533/12.6TAPBL.C1, publicado em www.dgsi.pt.
2 Da decisão administrativa resulta, porém, que a configuração fáctica e jurídica ali feita (carga de unidades com peso unitário pré-definido; art. 31º nº 4 do DL nº 257/2007) exclui a existência de comparticipação do transportador.
3 A consequência de uma tal invalidade no processo contraordenacional seria, no máximo, a perda de efeitos que a lei por vezes dá a certos autos — art. 169º do CPP, ou art. 170º nº 3 do Código da Estrada, por exemplo.