DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VÍTIMAS ESPECIALMENTE VULNERÁVEIS
DIREÇÃO DO INQUÉRITO
Sumário

Não subsistem dúvidas de que o objetivo da lei e o interesse das próprias vítimas especialmente vulneráveis vai, tendencialmente, no sentido da prestação, sempre que possível, de declarações para memória futura. Estas constituem efetivamente uma medida de proteção essencial na medida em que, além de serem prestadas em ambiente controlado –com apoio técnico adequado à vulnerabilidade apresentada pela vítima – bem distinto do ambiente formal do julgamento, evitam a repetição desnecessária de depoimentos, reduzindo o trauma psicológico associado ao reviver dos acontecimentos. Minimizam também o contacto com o arguido, preservando dessa forma a dignidade e segurança da vítima. Por outro lado, ao serem recolhidas numa fase inicial, reforçam a genuinidade do depoimento, num momento em que a memória não se mostra ainda afetada pelo tempo, por qualquer tentativa de manipulação ou pelo trauma.
Requerida que seja a audição – e, obviamente, verificados os respetivos pressupostos – entende-se que ao juiz não assiste a faculdade de recusá-la, não lhe cabendo sequer a possibilidade de avaliar da sua oportunidade naquele momento processual. Situação distinta é a que nos ocupa aqui, em que, a lei dispõe que, requerida a tomada de declarações para memória futura, o juiz pode proceder à inquirição. Tal expressão (pode) implica, ao contrário daquilo que ocorre na situação antes mencionada, um juízo de ponderação que vai além da verificação dos pressupostos objetivos, e que abrangerá certamente a oportunidade (vantagens e desvantagens para a vítima/testemunha) da prestação de depoimento no momento em que o mesmo é requerido.
E, tal em nada afeta ou coloca em causa os poderes de direção do inquérito que, manifestamente pertencem ao Ministério Público. Trata-se antes de verificar se com a tomada de declarações, em dado momento, os interesses das vítimas (especialmente vulneráveis) serão devidamente assegurados. O que também é função e dever que cabe ao juiz assegurar.
Assim, se é certo que as vítimas beneficiam do direito de prestar declarações para memória futura, também é certo que lhes assiste igualmente o direito a ser inquiridas apenas quando seja estritamente necessário às finalidades do inquérito e do processo penal e deve ser evitada a sua repetição – art. 17º, da Lei nº130/15.
E, de acordo com o art. 16º, nº2, da Lei 112/2009, as autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo.
Acresce que ouvir os menores em fase demasiado precoce – em concreto sem que existam quaisquer outros elementos nos autos, além da denúncia – poderá, com toda a facilidade inviabilizar a obtenção de toda a prova necessária. Por desconhecimento de certas situações ocorridas, os mesmos poderão não ser ouvidas quanto a elas. E, tal acarretará, a necessidade da sua reinquirição o que é exatamente aquilo que se pretende, a todo o custo, evitar com a tomada de declarações para memória futura.

Texto Integral

Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

1.1 Decisão recorrida

Por despacho de 22 de janeiro de 2025, foi indeferida a tomada de declarações para memória futura aos menores AA e BB, requerida pelo Ministério Público.

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1.2. Recurso/Parecer

O Ministério Público interpôs recurso, invocando, em sede de conclusões (transcrição):

“1. As crianças menores de 18 anos que assistam a episódios de violência entre os progenitores são consideradas como vítimas, ainda que indiretas.

2. As vítimas de crimes considerados como violentos, cuja pena é igual ou superior a cinco anos, são sempre especialmente vulneráveis.

3. Com vista essencialmente à sua proteção, as vítimas especialmente vulneráveis devem ser ouvidas em sede de declarações para memória futura.

4. As testemunhas de crimes de violência doméstica, face à tenra idade, devem ser ouvidas em sede de declarações para memória futura.

5. É o Ministério Público que detém o dominus do inquérito.

6. Face à estrutura acusatória do processo penal, os poderes do juiz sobre a matéria referente às diligências de produção de prova a produzir em sede de inquérito – quer quanto à natureza das mesmas, quer quanto à sua extensão, quer quanto à ordem de produção e à oportunidade temporal de realização ficam fortemente limitados.

7. Não compete ao juiz de instrução impor ao Ministério Público que proceda ou não proceda à realização de diligências investigatórias, sendo o Ministério Público autónomo e livre para, com observância das exigências decorrentes do princípio da legalidade e da obrigatoriedade da prática de certos atos de inquérito, realizar as diligências investigatórias que entender necessárias em vista de proferir despacho de encerramento do inquérito.

8. A ponderação da prematuridade da realização da tomada de declarações para memória futura dos menores no âmbito do inquérito não é permitida ao Juiz de Instrução Criminal, por violação do poder de direção do inquérito que cabe exclusivamente ao Ministério Público.

9. Não se revelando, objetiva e manifestamente, total desnecessidade na recolha antecipada de prova, inexiste justificação legal plausível para o indeferimento da tomada de declarações para memória futura dos menores.

10. Ao decidir como decidiu, violou o tribunal recorrido o disposto nos artigos 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto iii), alínea b), n.º 3 e artigo 1.º, alínea j), artigo 53.º e 271.º, todos do Código de Processo Penal, bem como o disposto no artigo 26.º e 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, na Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro, no artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e, ainda, o disposto no artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa».

O Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal da Relação emitiu parecer no qual, concordando com a posição assumida pelo recorrente, se pronunciou pelo provimento do recurso.

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2. Questões a decidir no recurso

A questão a apreciar é a de saber se se mostram preenchidos os pressupostos legais que permitem a requerida tomada de declarações para memória futura aos menores identificados nos autos.

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3. Fundamentação

1 - O MP apresentou o seguinte requerimento (na parte aqui relevante):

“1. O presente inquérito teve início com a denúncia apresentada pela ofendida, dando conta de factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punível pelo artigo 152.º, nº 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, por banda de CC.

2. Compulsados os autos, verifica-se que os filhos da ofendida e do denunciado, AA e de BB, assistiram aos vários episódios que se encontram sob investigação.

3. Estamos, assim, perante uma evidente exposição dos menores a factos suscetíveis de configurar um crime de violência doméstica, pelo qual importa tomar em linha de conta o disposto no artigo 2.º, alínea a) da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e no artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 57/2021, de 16.08.

Com efeito, de acordo com tais diplomas, considera-se vítima quem sofre um dano, nomeadamente um atentado à integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, causada por ação ou omissão no âmbito do crime de violência doméstica.

E conforme resulta evidente no novo ponto iii) da alínea a) do referido artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, vítima é toda a criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica. A chamada “vitima indireta”, quando menor de idade, é hoje considerada, também ela, vítima das condutas do agressor, pois que a exposição à violência é suscetível de ofender a saúde da criança, provocando-lhe danos emocionais diretos que afetam o seu normal desenvolvimento.

Além do mais, considerando os factos denunciados, verifica-se também que os menores poderão ter sido vítimas do crime em investigação, uma vez que a denunciante dá conta de vários episódios de agressões do denunciado para com os seus filhos.

Por outro lado, os menores em causa são, além disso, testemunhas diretas dos factos sob investigação.

Nesta senda, reputamos que se mostre premente proceder à audição dos menores, pois que os mesmos, além de vítimas, são testemunhas essenciais para a presente investigação e eventual condenação pela factualidade em apreço.

3. De acordo com o artigo 271.º do Código de Processo Penal, e considerando a qualidade de vítima e testemunha dos menores, conjugando com o ilícito sob investigação (violência doméstica), afigura-se indispensável proceder à sua inquirição, no decurso do inquérito, a título de declarações para memória futura.

Perante o exposto, o Ministério Publico requer a tomada de declarações para memoria futura aos menores AA e de BB, por se tratarem de vítimas e testemunhas, nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 2, alínea d) e 24.º, ambos do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04.09, dos artigos 2.º, alínea b) e 33.º, n.º 1 a 5 da Lei n.º 112/2009, de 16.09, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 129/2015, de 03.09, e ainda, o artigo 67.º-A, alíneas a), i) e iii) e b) e n.º 3 e artigo 271.º, ambos do Código de Processo Penal.

Remeta os autos ao Juízo de Instrução Criminal, a quem se promove, ao abrigo das disposições acima mencionadas:

a) Seja designada data para tomada de declarações para memória futura de AA e de BB, a fim de os mesmos se pronunciarem sobre todos os factos objetos dos presentes autos;

b) Seja determinada a presença de técnico especializado de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o acompanhamento das testemunhas, a quem caberá proporcionar o apoio psicológico necessário – artigo 33.º, n.º 3 da Lei n.º 112/2009, de 16.09;

c) Seja dado conhecimento à legal representante dos menores, do despacho judicial que determinar a realização da diligencia;

d) Ao abrigo do disposto no artigo 352.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do n.º 6 do artigo 271.º do Código de Processo Penal e do artigo 21.º, n.º 2, alínea c) da Lei n.º 130/2015, a tomada de declarações do visado decorra sem a presença do denunciado, de forma a evitar a revitimização e que as suas declarações decorram sem perturbações.

2 – É o seguinte, o teor da decisão recorrida:

«Veio a Digna Magistrada do Ministério Público requerer que sejam tomadas declarações para memória futura aos menores AA e BB.

Cumpre apreciar e decidir.

No âmbito dos presentes autos, e de acordo com o enquadramento preliminar efetuado pela mesma Magistrada, encontra-se em investigação a eventual prática pelo denunciado, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º do Código Penal, sendo a denunciante e denunciado os progenitores dos menores AA e BB, nascidos em …/…/2014 e em …/…/2018, respetivamente, que terão supostamente assistido a alguns episódios ocorridos.

Desde logo, e em termos gerais, obviamente se concorda com a necessidade de antecipar a produção de prova e evitar que as crianças revivam episódios traumáticos, tendo de os descrever em sede de inquérito e, posteriormente, em audiência de discussão e julgamento, atendendo ao impacto psicológico que tal acarreta para as mesmas. Aliás, tal raciocínio encontra respaldo em diversas normas legais, tais como o artigo 33.º, da Lei n.º 112/2009, de 16/09, nos artigos 21.º, n.º 2, al. d) e 24.º da Lei n.º 130/2015, de 04/09 e nos artigos 26.º e 28.º da Lei n.º 93/99, de 14/07. Contudo, a intenção das normas legais mencionadas deve conciliar-se com os interesses e objetivos a prosseguir na tomada de declarações para memória futura.

Efetivamente, o artigo 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, bem como o referido artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, preveem que o objetivo das declarações para memória futura é que “o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”. Isto é, aquando da tomada de declarações para memória futura, a prova já existente no processo deverá deter uma consistência suficiente para permitir que à testemunha lhe sejam colocadas todas as questões que eventualmente lhe seriam efetuadas em sede de julgamento. Não agir de tal forma seria subverter toda a lógica de tais normas, obrigando à repetição da audição das testemunhas, consumando a evitável revitimização das mesmas.

Tanto assim é, que o já citado art.º 28.º da Lei n.º 93/99, de 14/07 estabelece que, embora as declarações devam ser tomadas com a maior brevidade possível, deve evitar-se a prestação de novas declarações. Por outras palavras, aquando da realização de tais declarações o processo já deve conter elementos suficientes para que, previsivelmente, seja evitável que a testemunha tenha que vir a ser novamente ouvida face a novos elementos que, entretanto, surjam.

No caso dos autos, neste momento, existe apenas um auto de denúncia (fls. 2 a 4) e um despacho da Magistrada referida, na qual esta, inclusivamente, reconhece o estado embrionário dos autos.

Depois, não existe uma qualquer inquirição da ofendida, que permita elucidar efetivamente os autos dos factos ocorridos e que importem esclarecer, quais desses episódios foram concretamente presenciados pelos menores ou por outras testemunhas, nem é requerida a tomada de declarações para memória futura da própria ofendida em momento prévio ao dos menores.

Depois, não existe uma avaliação de risco efetuada ao caso dos autos, o que não permite apurar a gravidade da situação presente, assim como da sua urgência.

Por fim, verifica-se que, de acordo com informação prestada aos autos pela denunciante, em 17/01/2025, a mesma se reconciliou com o denunciado.

Assim, neste momento e sem mais elementos, consideramos extremamente precoce a tomada de declarações para memória futura dos menores, para além de que, sendo as mesmas realizadas neste momento, e repetidas nos próximos meses, teriam o efeito inverso do pretendido pelas referidas normas legais.

Pelo exposto, com os fundamentos de facto e de direito suprarreferidos, neste momento indefiro as requeridas declarações para memória futura.

Notifique e devolva.”

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3.2 – Das declarações para memória futura

No caso concreto, os menores (de 7 e 10 anos) cuja toma de declarações é pedida, de acordo com o enquadramento que é dado à situação pelo Ministério Público – com o qual o Juiz de Instrução concorda – podem ser testemunhas e, simultaneamente, vítimas de um crime de violência doméstica. Tal enquadramento afigura-se correto face à descrição constante do auto de denúncia.

Com efeito, tal resulta, desde logo do art. 67º-A, nº1, al.a), iii), do Cód. Proc. Penal, que considera vítima “a criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica”. E a sua qualidade de vítimas especialmente vulneráveis decorre da al. b), do mesmo preceito legal.

As declarações para memória futura mostram-se previstas no art. 271º, do Cód. Proc. Penal. Porém, especificamente no que respeita ao crime de violência doméstica importa atentar ao disposto no art. 33º, da Lei nº112/2009, de 16 de setembro (Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção das Suas Vítimas), que estabelece: «o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no art. 271º, do Cód. Proc. Penal. Igual disposição se encontra no art. 24º, nº1, do Estatuto da Vítima (Lei nº130/15, de 4 de setembro). E, o mesmo resulta dos arts. 26º e 28º, da Lei nº93/99, de 14 de julho (Lei de Proteção de Testemunhas), quanto às testemunhas especialmente vulneráveis.

Acresce que, e de acordo com o Estatuto de Proteção da Vítima, as vítimas que, nos termos previstos no seu art. 21º, beneficiem das medidas especiais de proteção gozam do direito de prestar declarações para memória futura (sendo esse direito uma dessas medidas especiais).

Assim, não subsistem dúvidas de que o objetivo da lei e o interesse das próprias vítimas especialmente vulneráveis vai, tendencialmente, no sentido da prestação, sempre que possível, de declarações para memória futura. Estas constituem efetivamente uma medida de proteção essencial na medida em que, além de serem prestadas em ambiente controlado –com apoio técnico adequado à vulnerabilidade apresentada pela vítima – bem distinto do ambiente formal do julgamento, evitam a repetição desnecessária de depoimentos, reduzindo o trauma psicológico associado ao reviver dos acontecimentos. Minimizam também o contacto com o arguido, preservando dessa forma a dignidade e segurança da vítima. Por outro lado, ao serem recolhidas numa fase inicial, reforçam a genuinidade do depoimento, num momento em que a memória não se mostra ainda afetada pelo tempo, por qualquer tentativa de manipulação ou pelo trauma.

Em termos práticos, ninguém discute qual a pretensão da lei, as vantagens ou a relevância da prestação das declarações para memória futura. Designadamente, o despacho recorrido, não as coloca em causa. Pelo contrário, menciona expressamente a sua conveniência, entendendo, porém que a sua tomada, neste momento processual, e face aos elementos constantes dos autos, se mostra precoce.

Adianta-se desde já que se concorda com tal posição.

Desde logo cumpre realçar que o art.271º, nº2, do Cód. Proc. Penal, no que respeita ao crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, impõe sempre a inquirição da vítima durante o inquérito. Nestas situações, requerida que seja a audição – e, obviamente, verificados os respetivos pressupostos – entende-se que ao juiz não assiste a faculdade de recusá-la, não lhe cabendo sequer a possibilidade de avaliar da sua oportunidade naquele momento processual. Situação distinta é a que nos ocupa aqui, em que, a lei dispõe que, requerida a tomada de declarações para memória futura, o juiz pode proceder à inquirição. Tal expressão (pode) implica, ao contrário daquilo que ocorre na situação antes mencionada, um juízo de ponderação que vai além da verificação dos pressupostos objetivos, e que abrangerá certamente a oportunidade (vantagens e desvantagens para a vítima/testemunha) da prestação de depoimento no momento em que o mesmo é requerido.

E, tal em nada afeta ou coloca em causa os poderes de direção do inquérito que, manifestamente pertencem ao Ministério Público. Trata-se antes de verificar se com a tomada de declarações, em dado momento, os interesses das vítimas (especialmente vulneráveis) serão devidamente assegurados. O que também é função e dever que cabe ao juiz assegurar.

Assim, se é certo que as vítimas beneficiam do direito de prestar declarações para memória futura, também é certo que lhes assiste igualmente o direito a ser inquiridas apenas quando seja estritamente necessário às finalidades do inquérito e do processo penal e deve ser evitada a sua repetição – art. 17º, da Lei nº130/15.

E, de acordo com o art. 16º, nº2, da Lei 112/2009, as autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo.

Ora, no caso concreto, a tomada de declarações para memória futura é requerida quando dos autos apenas consta o auto de notícia e no mesmo despacho em que o Ministério Público determina a inquirição da denunciante (mãe dos menores) com indicação expressa de questões relativas aos factos e que lhe devem ser colocadas.

De tal resulta que – e embora o auto de notícia se mostre bastante pormenorizado – os factos ainda não se encontram devidamente balizados, nem sequer totalmente concretizados. E, ouvir dois menores, de 7 e 10 anos de idade, sem tal concretização factual implicaria necessariamente inquiri-los, em abstrato e sobre todos os mais variados aspetos da sua vida, a fim de tentar perceber quais os factos relevantes de que os mesmos têm conhecimento. Não é decididamente isso que a lei pretende: os menores, até pela sua relação próxima com os principais envolvidos no processo, mãe e pai, apenas devem ser inquiridos na medida do estritamente necessário e sobre aquilo que tem relevo para o objeto do processo. A intromissão nas suas vidas, em concreto na sua vida familiar deve limitar-se ao mínimo necessário. Por esse mesmo motivo, as situações concretas a abordar têm que ser delimitado antes da sua audição.

Acresce que ouvir os menores em fase demasiado precoce – em concreto sem que existam quaisquer outros elementos nos autos, além da denúncia – poderá, com toda a facilidade inviabilizar a obtenção de toda a prova necessária. Por desconhecimento de certas situações ocorridas, os mesmos poderão não ser ouvidas quanto a elas. E, tal acarretará, a necessidade da sua reinquirição o que é exatamente aquilo que se pretende, a todo o custo, evitar com a tomada de declarações para memória futura.

Desta forma, tendo em conta o contexto concreto do caso, entende-se que, sem discutir sequer o direito que assiste aos menores de serem ouvidos em declarações para memória futura, o seu interesse não passava, à data da prolação do despacho recorrido, pela sua audição imediata. Esta deve ocorrer no momento em que os autos contenham já os elementos necessários a que se possa determinar, com exatidão, quais as questões concretas que lhes deverão ser colocadas.

Ao juiz cabe verificar se o interesse da vítima especialmente vulnerável, que justifica a sua proteção, se mostra acautelado com a sua inquirição em determinadas circunstâncias. E, no caso, como se deixou dito, tal não ocorria. Salienta-se até que, após o requerimento para audição dos menores, foi junto aos autos informação apresentada pela denunciante em que esta declarava que se havia reconciliado com o denunciado, que não pretendia prosseguir com o processo e que não iria testemunhar. Tal informação foi tomada em conta na decisão recorrida – que a mencionou.

Porém, em data posterior à da prolação do despacho, foi junta aos autos auto de inquirição da denunciante, mãe dos menores – que aparentemente terá alterado a sua anterior posição. E dessas suas declarações resultam já os factos concretos que, de acordo com a sua versão, os menores terão presenciado e de que têm conhecimento. Desta forma é já possível delimitar com a exatidão possível – atenta a fase processual em que nos encontramos – os factos sobre os quais os menores deverão prestar declarações, sendo previsível que as mesmas se mostrem suficientes e adequadas para as demais fases processuais.

Assim, em termos objetivos, os fatores que se traduziam numa desvantagem a que, neste momento, os menores prestassem declarações para memória futura, deixaram de se verificar. E, sem a sua existência, passa a ser interesse dos menores o exercício, o mais depressa possível, do seu direito a prestar declarações para memória futura.

É certo que não desconhecemos que o elemento em que agora nos baseamos – as declarações da denunciante, mãe dos menores – não existia à data da prolação da decisão recorrida. E, como tal, o tribunal não a pôde ter em consideração na sua decisão. E, por isso mesmo, não deveria ser considerado nesta sede. Mas, numa situação tão sensível como a que nos ocupa, no âmbito de um processo de natureza urgente, considera-se que não se pode, por uma mera questão de formalismo processual, ignorar um elemento relevante que teve a potencialidade de transformar de forma decisiva a realidade processual. Digamos que, no caso, a decisão certa tornou-se desadequada por circunstâncias supervenientes.

A lei proíbe a prática de atos inúteis. E, os atos processuais devem ser aproveitados sempre que possível, tendo sobretudo em vista a prossecução célere dos objetivos do processo. Não tem sentido proferir decisões desatualizadas e que se mostram desadequadas por mero “fundamentalismo processual”. A atividade processual deve ter por objetivo a solução célere, adequada e certa, em cada momento, dos litígios em questão.

No caso e em concreto, o que releva é a realização da diligência em causa e que, neste momento, se justifica plenamente.

Assim, considerando tudo o que se deixa dito, o recurso procederá.

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4 - DECISÃO

Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido o qual deverá ser substituído por outro que, nos termos legais tidos por adequados, designe data para tomada de declarações para memória futura aos menores identificados nestes autos.

Sem custas.

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Évora, 9 de abril de 2025

Carla Oliveira (Relatora)

Manuel Soares (1º Adjunto)

Jorge Antunes (2º Adjunto)