Quer a admissibilidade do registo de voz e de imagem, quer a admissibilidade das escutas telefónicas, por serem meios de obtenção de prova, não dependem da existência de fortes, ou sequer suficientes, indícios da prática de um crime do catálogo, bastando que haja suspeitas da prática do crime e de quem é ou são os seus agentes.
Enquanto meio de descoberta da verdade, a interceção e gravação de conversações telefónicas tem por fim fundamental a “recolha de informações”, com o objetivo de um melhor, e mais rápido, apuramento de factos, em ordem a facilitar posteriores diligências de recolha de prova. Consequentemente, estamos em face de um meio particularmente vocacionado para o combate à criminalidade organizada ou de mais difícil investigação. Não se trata tanto de uma forma de obter/produzir prova, mas de se chegar à recolha de prova (à obtenção de meios de prova).
“(…) DA (IN)ADMISSIBILIDADE DAS INTERCEPÇÕES TELEFÓNICAS AOS SUSPEITOS/DO REGISTO DE VOZ E IMAGEM
O Ministério Público, no requerimento que antecede, veio requerer a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas efetuadas de e para o n.º de telemóvel …, utilizado pelo suspeito AA, de e para os números de telemóvel … e … utilizados pelo suspeito BB e dos IMEI(s) que a eles estejam associados, bem como dos registos de trace-back, facturação detalhada, respectiva localização celular e ainda o serviço de roaming e identificação de eventuais reencaminhamentos activos e respectiva origem e destino.
Para fundamentar tal pretensão alega, em síntese, que está em investigação a prática, além do mais, de 1 (um) crime de tráfico de produtos estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, de 22.01 e a indispensabilidade de tal elemento de prova para o prosseguimento da investigação, na medida em que poderá conduzir ao conhecimento da actividade criminosa desenvolvida pelos suspeitos e apuramento da dimensão dessa actividade.
Vejamos.
Como corolário do direito à reserva da intimidade da vida privada consagra a Constituição da República Portuguesa o princípio da inviolabilidade do domicílio, da correspondência e de outros meios de comunicação privada, proibindo, assim, toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, sem prejuízo dos casos previstos na lei ordinária, concretamente, no que concerne ao processo penal, de harmonia com o disposto nos artigos 26.º, 34.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa.
Em clara sintonia com as sobreditas normas, a denominada quebra do sigilo das comunicações assenta, inevitavelmente, no dever de cooperação com a justiça.
Assim, analisados os interesses conflituantes, mormente o da realização da justiça e o da inviolabilidade das comunicações, impõe-se uma ponderação casuística na concretização destes interesses, alicerçada nos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, concluindo que a divulgação dos dados e registos satisfaz um interesse superior ao da sua ocultação.
Por sua vez, prescreve o artigo 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal que a obtenção de dados sobre a localização celular e de registos da realização de comunicações ou conversações telefónicas só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto aos crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e no tocante às pessoas indicadas no n.º 4 deste mesmo artigo 187.º daquele diploma legal.
Esta norma constitui um aspecto inovador da revisão de 2007 do Código Penal, que faz estender o regime das escutas telefónicas, a cinco novas dimensões:
i) do telefone a outros meios técnicos;
ii) da voz humana à imagem;
iii) da comunicação à distância para comunicações entre presentes;
iv) da ingerência (no conteúdo das) nas conversações ou comunicações para a obtenção do registo de realização das mesmas;
v) e daquela ingerência “transambiental” para a localização geográfica do aparelho técnico da comunicação.”
No que concerne à obtenção de registos da realização de conversações ou comunicações, e acompanhando de perto o parecer do Conselho Consultivo da PGR 21/2002 , distinguimos três espécies de dados ou elementos: dados de base (dados relativos à conexão à rede), dados de tráfego (dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede) e dados de conteúdo (dados relativos ao conteúdo da comunicação ou mensagens), reconhecendo a competência exclusiva para a obtenção destas duas últimas categorias de dados ao juiz de instrução, desde que se insiram no âmbito do catálogo de crimes previstos no artigo 187.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Ora, este último preceito normativo consagra que “a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público”, sendo ainda referidos no mesmo inciso o elenco taxativo do tipo de criminalidade que admite este meio prova, os denominados “crimes de catálogo”.
No caso em apreço, temos que a pretensão do Ministério Público abrange os dados de base, tráfego e conteúdo, na medida em que constituem elementos inerentes à própria comunicação, pois permitem identificar o utilizador, a localização e a duração da comunicação, bem como constituem o conteúdo das comunicações que são efectuadas.
A este tipo de dados é aplicável, como vimos, o regime das escutas telefónicas, como dispõem os artigos 187.º, n.º 1, e 189.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Os citados normativos estabelecem um regime de autorização e controlo judicial, e sistema de catálogo, em que a escuta telefónica é utilizada exclusiva e relativamente a ilícitos criminais que pelas suas características tornam tal meio de recolha de prova particularmente apto à investigação ou que, pela gravidade dos interesses em jogo (expressa numa moldura penal abstracta qualificada), podem justificar a adopção de uma medida consensualmente vista como portadora de um elevado potencial de danosidade social.
A busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico, mas o Estado, como titular do jus puniendi, está interessado em que apenas os culpados de actos criminosos sejam punidos - satius esse nocetem absolvi innocentem damnari.
No entanto, há limites decorrentes do respeito pela integridade moral e física das pessoas, limites impostos pela inviolabilidade da vida privada, do domicílio, da correspondência e das telecomunicações, que só nas condições previstas na lei podem ser transpostos.
Como lapidarmente refere COSTA ANDRADE “o teor particularmente drástico da ameaça representada pela escuta telefónica explica que a lei tenha procurado rodear a sua utilização das maiores cautelas. Daí que a sua admissibilidade esteja dependente do conjunto de exigentes pressupostos materiais e formais previstos nos arts. 187º e segs. da lei processual portuguesa.”
Acresce ainda que a própria lei ordinária estabelece requisitos formais e substantivos e que têm a ver com a existência de fortes indícios ou, pelo menos, de indícios suficientes da prática de um crime do catálogo, e se a intercepção telefónica e captação de imagens requerida está submetida a uma cláusula de imprescindibilidade ou indispensabilidade.
Neste horizonte compreensivo, e relembrando que o despacho a proferir será sindicado com base nos elementos que existem quando é proferido e não com quaisquer outros que entretanto sejam adquiridos, a lei ordinária condiciona a autorização das intercepções telefónicas a tópicos que poderíamos sintetizar assim:
i. suspeita qualificada de crime do catálogo;
ii. subsidiariedade.
No caso dos autos, segundo o entendimento ventilado pelo Ministério Público, encontra-se indiciada a prática, pelos suspeitos AA, CC e BB, de 1 (um) crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01.
Será assim?
Vejamos.
O presente inquérito foi despoletado através do auto de notícia de fls. 8-10, onde, muito sumariamente, a Polícia Judiciária dá conta da existência de uma “embarcação suspeita”, mais concretamente o veleiro “…”.
Isto (a suspeita) porque a embarcação foi adquirida recentemente pelo suspeito AA e registado na …, país onde a maioria das embarcações associadas ao tráfico de produtos estupefacientes são registadas.
É ainda mencionado que o suspeito AA está referenciado pelas autoridades espanholas como se dedicando ao tráfico de estupefacientes por via marítima, com recurso a veleiros.
Assim, e perante a conjugação destes elementos [tamanho e idade considerável do veleiro, registo na … e o facto de o proprietário estar referenciado pelas autoridades espanholas por narcotráfico por via marítima] “não restam dúvidas” aos investigadores que a embarcação “…” irá ser usada para o transporte de elevada quantidade de cocaína entre a América do Sul e a Europa, com Portugal como potencial porta de entrada.
Com o devido respeito pelo Ministério Público e sem colocar em causa a credibilidade da actividade desenvolvida pelos investigadores, aquilo que, por ora, foi carreado para o processo só por si não significa absolutamente nada. Serve, isso sim, e sempre com as devidas cautelas, para as autoridades policiais ficarem “alerta” para uma possível ocorrência de tráfico de produtos estupefacientes de cariz internacional e, dessa forma, encetar diligências de molde a confirmar ou infirmar tal “informação”.
Quais são os dados constantes no processo, objectivos e mensuráveis, que densifiquem ou concretizem uma fundada suspeita ou um indício suficiente de que os suspeitos se dedicam ao tráfico de produtos estupefacientes? O facto de o suspeito AA ter adquirido recentemente uma embarcação antiga e ter procedido ao registo da mesma na …? Ou por ter colocado a mesma em seco no estaleiro naval para efectuar reparações? Ou porque existem “informações policiais” que os suspeitos estão relacionados com o tráfico de produtos estupefacientes?
As informações policiais constantes de fls. 77-84, salvo melhor interpretação, nem referem o nome do suspeito AA como estando referenciado pelo “narcotráfico”, muito menos que assuma “antecedentes criminais”, como se inculca a fls. 126.
Repare-se que as diligências efectuadas desde Novembro de 2024 até Janeiro de 2025, vertidas nos respectivos autos de diligência, não aduzem qualquer elemento indicador de uma actividade tráfico de estupefacientes.
Como é sabido, a suspeita qualificada exige, para a sua verificação, algo mais do que presunções, suposições ou considerações hipotéticas desligadas de factos concretos e palpáveis, por muito que estas presunções, suposições ou considerações tenham na sua base a experiência do dia a dia dos investigadores, designadamente, a sua intervenção ou conhecimento de investigações anteriores.
A suspeita tem que estar assente em factos e ser racionalmente sustentada, pelo menos de jure constituto.
E os únicos factos concretos e objectivos são que o suspeito AA adquiriu uma embarcação [veleiro …,) tem pavilhão … [país onde registou o veleiro] e colocou-a no estaleiro naval de … para efectuar manutenção/reparações.
Para efeitos de preenchimento de uma suspeita qualificada (ou mesmo a mera suspeita) não poderá servir o argumento de que os suspeitos já estiveram referenciados no passado pela prática de crimes contra a saúde pública. Ou que, inclusive, já sofreram condenações por esse mesmo tipo de ilícito. Ou que têm familiares “ligados” ao “ramo do tráfico por via marítima”.
É de notar, também, que relativamente ao suspeito BB [aquele que, segundo a investigação, já terá sido detido por transportar vários quilos de cocaína], nem a investigação tem a certeza da sua presença no estaleiro naval de …. A suspeita surge, apenas, pelos contratos de aluguer de uma viatura [em seu nome] que foi vista junto do cais onde está a embarcação “…”. O suspeito, porém, nunca terá sido visto.
O que tem de ser demonstrado, de forma objectiva, é que actualmente os suspeitos continuam nos “meandros do crime”.
Todavia, e com todo o respeito que é devido, não é isso que se extrai do devir da investigação já realizada.
Além dos aspectos já mencionados que mais apurou a investigação?
Também sabemos que o suspeito AA terá entabulado contactos/conhecimento com os demais suspeitos, CC e BB. Só isto. Daqui afirmar que aqueles pertencem a uma organização criminosa dedicada ao tráfico de estupefaciente é, por agora, mera convicção, sem supedâneo indiciário de suporte.
Aliás, a expressão mais usada pelos investigadores nos diversos relatórios é mesmo essa: “é forte convicção”.
Que este método é semelhante ao usado por narcotraficantes por via marítima? Até poderá ser, mas os demais elementos constantes dos autos não firmam qualquer suspeita (muito menos qualificada). São, na melhor das hipóteses, ambivalentes e nenhuma relevância há atribuir à teia de relações estabelecidas entre os suspeitos, pois que se tratam de meras convicções, ainda que legítimas, mas destituídas de valor, por banda dos investigadores.
De forma enxuta: nada foi visto que pudesse, de forma concreta, apontar para uma possível actividade de tráfico de produtos estupefacientes de cariz internacional.
Note-se, ainda, que a convicção não assume a qualidade de “indício” ou de meio de prova. A convicção é um exercício de natureza interna que se forma a partir da observância, da análise e da concatenação dos meios de prova ou dos indícios, permitindo ao juiz convencer-se de uma determinada realidade.
In casu, e de olhos postos naquilo que foi o devir da investigação até à data não se verifica consubstanciada a existência de uma actividade de tráfico de produtos estupefacientes por banda dos suspeitos.
O que não significa que não possa estar em marcha. Mas a intuição é uma coisa, a prova (indiciária) dos factos é outra.
De salientar um último pormenor: é axiomático que o crime de tráfico de produtos estupefacientes é de difícil investigação, quer pelas particularidades que lhe são reconhecidas, quer pela forma cada vez mais “oculta” e sofisticada em que é executado.
Porém, isso não legitima, sem mais, o recurso a um meio de obtenção de prova de ultima ratio quando estamos perante uma situação que, por ora, está envolta em alguma porosidade ou nebulosidade.
Nesta medida encontra-se fora de cogitação o deferimento de um meio intrusivo de prova como é o caso das intercepções telefónicas para “ver no que dá”, numa espécie de pura aleatoriedade.
O estabelecimento de um sistema de catálogo tem ínsita a necessidade de que, antes de se poder ordenar a realização de um escuta telefónica, existam nos autos elementos que tornem verosímil a prática de um concreto crime incluído nesse elenco, não bastando a mera invocação da suspeita da sua prática por qualquer órgão de polícia criminal. Se assim não fosse estar-se-ia a permitir esvaziar completamente a garantia que a consagração de um tal sistema pretende instituir.
Tais elementos, embora não precisem de ter a consistência necessária para a dedução de acusação ou para a imposição das medidas de coacção mais graves, devem permitir configurar uma séria e concreta hipótese criminosa cuja verosimilhança só pode assentar em meios de prova identificáveis e utilizáveis no processo.
Assim, e por tudo o que fica expendido, indefere-se o recurso a intercepções telefónicas aos suspeitos, tal como requerido pelo Ministério Público.
E quanto aos registos de voz e imagem?
Na fase em que nos encontramos, a do inquérito, a aquisição da prova incumbe ao seu dominus, o Ministério Público, mas a realização de determinadas diligências probatórias, ou são realizadas pelo juiz de instrução, ou têm que ser, previamente, ordenadas ou autorizadas por este.
Assim acontece com o registo de voz e imagem sem consentimento do visado que, nos termos dos artigos 269.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal e 6.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2002, de 11.01, depende de autorização do juiz.
Está bom de ver que, com essa diligência, agride-se a esfera de realização da personalidade individual, pois implica uma intromissão na vida privada que pode contender com o direito à privacidade constitucionalmente garantido e protegido.
A captação de imagem às ocultas - que supera, por natureza, qualquer possibilidade de expressão da vontade do visado - como é a que resulta da utilização do meio de obtenção de prova requerido, acarreta, inexoravelmente e à margem de qualquer dúvida, um ataque ao direito fundamental previsto no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa.
Logo daqui brota um sinal de cuidado a fazer-se sentir no que concerne à utilização da imagem captada no âmbito de um processo penal em curso.
Não obstante, a luta contra a criminalidade organiza-se tipicamente através da limitação de direitos fundamentais.
Aliás, a protecção dos direitos e garantias só é pensável e exequível à custa da sua própria e inevitável limitação e restrição.
A busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico, mas o Estado, como titular que é do ius puniendi, também está interessado em que só os culpados de actos criminosos sejam punidos (satius esse nocetem absolvi innocentem damnari).
E é precisamente enquanto concretização infraconstitucional das restrições aos direitos fundamentais, maxime o direito à imagem, que surge a Lei n.º 5/2002, de 11.01.
Este diploma legal, sob a epígrafe “criminalidade organizada e económico-financeira”, dispõe, logo no seu artigo 1.º, n.º 1, alínea a), que “a presente lei estabelece um regime especial de recolha de prova (...) relativa aos crimes de:
a) Tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 21º a 23º e 28º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro”.
Essa mesma Lei estabelece, no seu artigo 6.º: “é admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado” (nº 1); “a produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos” (nº 2); “são aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no artigo 188º do Código de Processo Penal” (nº 3).
Como limpidamente salienta o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.04.2014, “o registo de voz e de imagem não deve ser determinado como primeiro meio de obtenção de prova, logo na abertura do inquérito, nem pode ser autorizado com base em meras denúncias anónimas ou a partir de fracos indícios da prática de um dos crimes do catálogo legal”, acrescentando de seguida que “no início do inquérito, a natureza precoce do processo deve aconselhar a máxima prudência, não se devendo, por princípio, optar pela utilização de um meio de prova como o agora em análise, o qual possui um grande impacto intrusivo, e o qual pode, posteriormente, revelar-se manifestamente desnecessário e/ou desproporcional.
Neste conspecto, e pese embora a Lei, numa leitura singela, apenas convoque a necessidade deste meio de prova para a investigação, o juiz de instrução não pode eximir-se da verificação de indícios fundados da prática de um desses crimes do catálogo legal, sob pena de serem pretextados crimes do catálogo só para, por esse meio, poder investigar-se crimes para os quais não poderia recorrer-se ao registo de voz e imagem.
Ou seja: não são exigidos fortes indícios da prática de um crime do catálogo, mas é mister a observância de suspeitas fundadas (fundamentadas em dados objectivos e em elementos probatórios minimamente consistentes) da prática do crime de catálogo para poder ser autorizada a recolha de som e imagem.
Feitas estas considerações analisemos o caso decidendo.
Ainda que estejamos perante meios de obtenção de prova bastante distintos, valem aqui, mutatis mutandis, as considerações tecidas quanto à (in)admissibilidade das intercepções telefónicas.
Por conseguinte, a mobilização deste meio de obtenção de prova carece, ainda assim, da demonstração (indiciária) da prática de um crime de catálogo, maxime o crime de tráfico de produtos estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01.
Como vimos supra, cuja argumentação aqui deixamos reproduzida, sob pena de cairmos numa indesejável iteração, os autos ainda estão muito carentes de indícios que possam apontar, de forma “aceitável”, para a prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes.
Lançar mão de um meio de obtenção de prova com o nível de restrição como o sugerido seria antecipar em demasia aquilo que, neste momento, ainda se encontra envolto nalguma penumbra: a possível prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, de cariz internacional.
Assim, e sem prejuízo de ulterior reponderação [fruto de ulteriores desenvolvimentos investigatórios], indefere-se o requerido registo de voz e imagem dos suspeitos.
Notifique.
Devolva os autos ao Ministério Público.”
*
2. Não se conformando com o teor desta decisão, dela recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, junto do tribunal recorrido.
Da motivação de recurso extraiu as seguintes conclusões:
“1. O Mm. Juiz de Instrução Criminal, por despacho proferido em 02/03/2025, indeferiu a utilização do registo de voz e de imagem aos três suspeitos identificados e de escutas telefónicas aos três números de telefone já atribuídos a dois dos suspeitos, justificando a sua decisão, dizendo, em suma, que “os dados constantes do processo” não densificam ou concretizam “uma fundada suspeita ou um indício suficiente de que os suspeitos se dedicam ao tráfico de estupefacientes”, baseando-se o pedido do Ministério Público em “presunções, suposições ou considerações hipotéticas desligadas de factos concretos e palpáveis.”
2. Com o devido respeito, quer a admissibilidade do registo de voz e de imagem quer a admissibilidade das escutas telefónicas, por serem meios de obtenção de prova, não dependem da existência de fortes, ou sequer suficientes, indícios da prática de um crime do catálogo, bastando que haja suspeitas da prática do crime e de quem é ou são os seus agentes.
3. A (1) inexistência de negócios lícitos, que justifiquem a detenção pelo suspeito AA de três embarcações, sendo duas delas do tipo veleiro, e a inexistência de rendimentos para as sustentar, conforme informação veiculada pela Europol/Espanha, (2) as características da referida embarcação, semelhante às que são frequentemente utilizadas para o transporte de drogas por via marítima (veleiros ou lanchas rápidas dependendo da mercadoria a transportar e das milhas a navegar), (3) o registo da embarcação na …, país onde é permitido o registo on-line de embarcações, por qualquer cidadão, independentemente da sua nacionalidade e residência, não as sujeitando a qualquer tipo de controlo ou vistoria prévios por parte das suas autoridades marítimas, pese embora nenhum dos suspeitos resida naquele país, (4) a escolha de uma empresa para a reparação da embarcação sediada em …, cujo único sócio é de nacionalidade …, e não uma do Estaleiro Naval da Marina de …, onde a embarcação se encontra aparcada, apesar de nenhum dos suspeitos residir em Portugal, (5) o relacionamento dos três suspeitos, que residem em países diferentes (…, … e …), com atividades e pessoas ligadas ao tráfico de drogas e (6) o registo de condenações anteriores por crime idêntico por parte de dois dos três suspeitos, são verdadeiros indícios suscetíveis de criar convicção razoável, nesta fase da investigação, de que estes se dedicam ao tráfico de estupefacientes de cariz internacional.
4. Esta investigação necessita, entre outras, de compreender (1) a organização da associação criminosa, (2) a sua dinâmica, (3) em que lugar os três suspeitos já identificados se inserem naquela, (4) que outros indivíduos estão envolvidos, (5) onde é que a embarcação será carregada de produto estupefaciente, (6) onde é que o produto estupefaciente será descarregado e (7) quais as datas previsíveis para as viagens (ida e regresso).
5. Só se conseguirá obter estas informações com recurso ao registo de voz e imagem e à interceção e gravação das conversações se comunicações telefónicas, sendo, por isso, estas diligências insubstituíveis, imprescindíveis, indispensáveis, idóneas, proporcionais, adequadas e necessárias na perseguição do crime investigado e na recolha de prova.
6. O recurso a outro tipo de meios de obtenção de prova, como por exemplo, buscas, ou provas, como por exemplo, abordagem dos suspeitos, inquirição de testemunhas e apreensões, como o Mm. Juiz de Instrução Criminal parece sugerir no despacho recorrido, nesta fase da investigação ditariam o seu fracasso, desfecho que se impedirá a todo o custo.
7. Assim sendo, o Mm. Juiz de Instrução Criminal, ao decidir como decidiu, indeferindo a utilização do registo de voz e de imagem e de escutas telefónicas requeridos pelo Ministério Público, violou as normas ínsitas nos artigos 1.º, n.º 1, alíneas a) e j) e 6.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 5/2002, de 11/01 e 187.º, n.ºs 1, alínea b), 4, al. a) e 6, 262.º, n.º 1, 263.º, n.º 1 e 269.º, n.º 1, alíneas e) e f), todos do Código de Processo Penal.
Nesta conformidade, deverá o Venerando Tribunal da Relação revogar o despacho recorrido, ordenando a prolação de outro que autorize o registo de voz e de imagem e as escutas telefónicas requeridos.”
*
3. Neste Tribunal da Relação, o Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto, concordo com a motivação de recurso apresentada pela Exma. Colega, junto da primeira instância, que deu por reproduzida, emitiu parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso e se determinar a substituição do douto despacho recorrido, por outro, que autorize o registo de voz e imagem e escutas telefónicas, nos termos referidos na dita motivação.
*
4. Cumpridos os vistos, foi realizada a competente conferência.
*
5. O objeto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz-se à questão de saber se, nos autos, estão, ou não, verificados os pressupostos legais para o deferimento da utilização do registo de voz e de imagem e de escutas telefónicas, nos termos requeridos pelo Digno Magistrado do Ministério Público.
*
6. Vejamos, agora, a questão que, aqui, cumpre apreciar:
O despacho recorrido que indeferiu a utilização do registo de voz e de imagem aos três suspeitos identificados e as escutas telefónicas aos três números de telefone, já atribuídos, a dois dos suspeitos, justificando a sua decisão, em suma, por “os dados constantes do processo” não densificarem ou concretizarem “uma fundada suspeita ou um indício suficiente de que os suspeitos se dedicam ao tráfico de estupefacientes”, baseando-se o pedido efectuado em “presunções, suposições ou considerações hipotéticas desligadas de factos concretos e palpáveis.”
Nos persentes autos de inquérito, investiga-se, para além do mais, a prática de factos passíveis de integrar um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º n.° 1 do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, com pena de prisão de 4 a 12 anos, considerado criminalidade altamente organizada, nos termos e para os efeitos da al. m) do art. 1º do CPP.
O Digno Magistrado do Ministério Público fundamentou o seu pedido de autorização de registo de voz e de imagem e de interceção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas, que considerou indispensáveis para o prosseguimento da investigação, na medida em que poderão conduzir ao conhecimento da actividade criminosa, desenvolvida pelos suspeitos, e ao apuramento da dimensão dessa actividade, tendo por base nos seguintes indícios:
- o suspeito AA (doravante identificado apenas como AA) é natural de …, nacional de …, nasceu em …, é filho de …, portador do DNI … e reside em …;
- este suspeito, em …, é sócio e gerente das empresas … e …;
- nenhuma destas três empresas teve atividade declarada nos últimos oito anos encontrando-se em situação de “encerramento provisório”, tendo sido classificadas como “contribuintes de risco” pela Inspección Fiscal;
- o suspeito AA não declara atividade laboral nem empresarial, em …, país onde reside, há oito anos;
- o suspeito AA adquiriu a embarcação tipo veleiro de 16,50 metros de comprimento, fabricada em 1979, com o nome “…” e registou-a, em 11/12/2023, na …, tendo-lhe sido atribuída a matrícula …;
- a escolha deste país (…) para fazer o registo e consequentemente a atribuição da bandeira não foi ocasional, uma vez que permite o registo on-line de embarcações, por qualquer cidadão, independentemente da sua nacionalidade e residência, não as sujeitando a qualquer tipo de controlo ou vistoria prévios por parte das suas autoridades marítimas;
- no dia 12/05/2024, este veleiro foi fiscalizado por patrulheiros nas águas de …, encontrando-se, nessa altura, a bordo DD, nascido em …1965, e BB, nascido em …1966;
- BB é natural de …, …, …, nasceu em …1966, é portador do passaporte … n.º … e reside em …;
- em 07/06/2024, a embarcação deu entrada no Porto …, tendo como único tripulante o suspeito AA;
- em 30/07/2024, a embarcação deu entrada no Porto de …, em …, foi denunciada às autoridades por não ter toda a documentação exigida para navegar;
- a referida embarcação deu entrada na Marina de …, em 05/11/2024, com vista à sua reparação nos Estaleiros do …, tendo como tripulantes a bordo os suspeitos AA e CC;
- o suspeito CC é natural de …, nacional de …, nasceu em …1966 e é titular do cartão de identidade n.º …;
- no dia 13/11/2024, cerca das 12h.10m., o supra referido veleiro saiu da Marina de … e dirigiu-se aos Estaleiros do …, atracando no cais …;
- neste dia (13/11/2024), estavam a bordo AA e CC;
- a embarcação está a ser reparada por EE, de nacionalidade …, único sócio da empresa ….;
- em 20/04/2023, FF transmitiu a sua quota na empresa … a EE, passando este a figurar como único sócio e a sua esposa, GG, como gerente;
- a 12/07/2023, a denominação da sociedade foi alterada para …;
- a … tem sede em Núcleo de …, Armazém/oficina …, …, …, e tem como objeto a reparação e manutenção de embarcações; comércio a retalho de artigos de desporto, campismo e lazer em estabelecimentos especializados; comércio por grosso de máquinas e equipamentos industriais, embarcações e aeronaves; comércio por grosso de brinquedos, jogos e artigos de desporto;
- a escolha desta empresa para proceder às reparações também não foi ao acaso, uma vez que existe suspeita de que recebe pagamentos em dinheiro pelos trabalhos realizados e não emite os correspondentes recibos;
- é do conhecimento do OPC que a embarcação já foi reparada no casco e na proa, encontrando-se a aguardar a reparação numa parte do motor, muito provavelmente por falta de peças;
- no dia 14/11/2024, mesmo junto à embarcação que permanecia ancorada no cais … do Porto de Pesca de … encontrava-se estacionado o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca …, modelo …, prateado, com a matrícula …, propriedade de …;
- a empresa … dedica-se ao aluguer de carros em Portugal, Espanha, Itália e Grécia;
- o referido veículo automóvel foi alugado pelo suspeito BB para o período de 12/11/2024 a 19/11/2024, tendo pago o valor de 163,97€ e 200,00€ de caução; - no dia 21/11/2024, mesmo junto à embarcação que se encontrava ancorada no cais … do Porto de Pesca de … encontrava-se estacionado o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca …, modelo …, preto, com a matrícula …, propriedade de ….;
- este veículo automóvel foi alugado também pelo suspeito BB, no período de 19/11/2024 a 26/11/2024, tendo pago o preço de 145,02€ e 200,00€ de caução; - no dia 26/11/2024, o mesmo suspeito celebrou novo contrato de aluguer com a empresa …, para o período 26/11/2024 a 30/11/2024, tendo pago a quantia de 109,20€, acrescida de 200,00€ referente a caução, pelo veículo automóvel de marca …, modelo …, com a matrícula …;
- no dia 29/11/2024, a embarcação encontrava-se ancorada no cais … do Porto de Pesca de …e tinha no seu interior um indivíduo do sexo masculino, cuja identidade ainda não foi possível apurar;
- no dia 10/12/2024, cerca das 11h.30m., o suspeito AA colocou a embarcação em movimento, testando a sua navegabilidade;
- depois da execução das manobras, atracou a embarcação no cais de visita da Marina de …, tendo solicitado um lugar de atracação previamente que não lhe foi concedido;
- a referida embarcação permanece atracada no cais dos Estaleiros a aguardar a conclusão das reparações;
- para além deste veleiro, o suspeito AA é ainda proprietário das embarcações … e …, a primeira de 5,76 metros de comprimento e fabricada no ano de 1970, e a segunda de 10,98 metros de comprimento e fabricada em 1991;
- o suspeito BB já foi identificado numa investigação que correu termos em Espanha, em 2021, por factos idênticos aos investigados neste inquérito, estando em causa a embarcação “…”, com bandeira do …, com 17,07 metros de comprimento, também de sua propriedade;
- para além disto, este suspeito, (1) em 24/08/2012, foi detido no Brasil, pela prática do crime de tráfico internacional de droga, juntamente com … (italiano), … (português), … e … (brasileiros); … e … foram detidos a bordo do veleiro …de bandeira …, transportando aproximadamente 270 Kg de cocaína; (2) é tio de …, também investigado num crime de tráfico de droga; e (3) foi identificado na análise da Organização Italiana para o Crime;
- o suspeito CC tem condenações anteriores pela prática do crime de tráfico de droga, tendo terminado a última pena de prisão em 13/10/2015;
- apenas foi disponibilizado o CRC do suspeito AA, porque relativamente aos suspeitos CC e BB a investigação ainda não dispõe de todos os elementos identificativos exigidos, nomeadamente o nome dos progenitores;
- o n.º … (contacto facultado pelo Centro …) é ou foi utilizado pelo suspeito AA; - o n.º … (indicados pelo suspeito BB aquando da realização do contrato de aluguer de automóvel) é ou já foi utilizado pelo suspeito BB; e
- o n.º … (contacto indicado pela …) é ou já foi utilizado pelo suspeito BB.
Observados os autos, verificamos que os indícios de que já se dispõem, nos autos, derivam, essencialmente, de informações prestadas pela Europol de vários países europeus, concretamente Espanha, Alemanha, Itália e Polónia, pela empresa de aluguer de veículos automóveis, e das vigilâncias – sem recurso ao registo de voz e de imagem – já realizadas pelo órgão de polícia criminal, as quais, analisadas, conjuntamente, com as regras da experiência comum e judiciária, são suficientes para criar, nesta fase preliminar processual, a convicção, no decisor, que os três suspeitos, já identificados, se dedicam ao tráfico de estupefacientes internacional.
Estatui o art.° 187º n.° 1 do Código de Processo Penal que:
"1 - A interceção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução, mediante requerimento do Ministério Público, quanto a crimes (. …)
b) Relativos a tráfico de estupefacientes(…).”
Mais dispõe o n. ° 4 da invocada disposição legal que:
“4 - A interceção e a gravação previstas nos números anteriores só podem ser autorizadas, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, contra: a) suspeito ou arguido (…)”
Estando em causa, nos autos, para além do mais, a investigação de um crime de tráfico de estupefacientes, reporta-se o mesmo ao "catálogo" legal, inscrito no artigo 187. ° nº 1 al. b) do CPP.
O requisito vertido no n.° 4 do citado artigo 187º do CPP, no que tange às pessoas relativamente às quais podem ser autorizadas interceções telefónicas, também se mostra estar preenchido, no casos, os já identificados suspeitos.
Resta, então, aferir se, mediante critérios de proporcionalidade e subsidiariedade, esta diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade material ou para a prova.
Já vimos que a nossa lei apenas exige expressamente que haja razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, não se exigindo que as informações pretendidas possam ser obtidas por outros meios.
Para Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, II, 2002, pág 221 e 222, só não será “legítimo o recurso às escutas telefónicas se os resultados probatórios almejados puderem "sem dificuldades particularmente acrescidas, ser alcançados por meios mais benignos de afronta aos direitos fundamentais".
Nos termos do que se estabelece nos nºs 1 e 4 do artigo 34° da Constituição da República Portuguesa (que doravante designaremos como CRP), o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis, sendo proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei, em matéria de processo criminal.
Observa-se, assim, que as previstas restrições são, assim, autorizadas, apenas, em processo criminal, e estão sob reserva de lei, nos termos previstos no artigo 18.° nºs 2 e 3 da CRP), só podendo ser decididas por um Juiz - artigo 32.° n. ° 4 da CRP.
Convém, desde já, precisar que, contrariamente ao que se perfilhou no despacho recorrido, e foi salientado em sede de recurso, quer a admissibilidade do registo de voz e de imagem, quer a admissibilidade das escutas telefónicas, por serem meios de obtenção de prova, não dependem da existência de fortes, ou sequer suficientes, indícios da prática de um crime do catálogo, bastando que haja suspeitas da prática do crime e de quem é ou são os seus agentes.
Como se pode ler no “Código de Processo Penal Comentado”, de António Henriques Gaspar e outros, p. 785: “Enquanto meio de descoberta da verdade, a intercepção e gravação de conversações telefónicas tem por fim fundamental a “recolha de informações”, com o objectivo de um melhor, e mais rápido, apuramento de factos, em ordem a facilitar posteriores diligências de recolha de prova. Consequentemente, estamos em face de um meio particularmente vocacionado para o combate à criminalidade organizada ou de mais difícil investigação. Não se trata tanto de uma forma de obter/produzir prova, mas de se chegar à recolha de prova (à obtenção de meios de prova).[sublinhados nossos].
No caso em apreço, o Digno Magistrado do Ministério Público invocou os seguintes indícios, que, no seu entendimento, e, adiante-se, no deste Tribunal, são suscetíveis de criar convicção razoável, nesta fase da investigação, de que os suspeitos se dedicam ao tráfico de estupefacientes, de cariz internacional, configurando, por isso, as requeridas “escutas”, nos termos do artigo 187.º n.°1 do CPP, meios de obtenção de prova que, de outra forma, seriam extremamente ou impossíveis obter:
- (1) a inexistência de negócios lícitos, que justifiquem a detenção pelo suspeito AA de três embarcações, sendo duas delas do tipo veleiro, e a inexistência de rendimentos para as sustentar, conforme informação veiculada pela Europol/…;
- (2) as características da referida embarcação, semelhante às que são frequentemente utilizadas para o transporte de drogas por via marítima (veleiros ou lanchas rápidas dependendo da mercadoria a transportar e das milhas a navegar);
- (3) o registo da embarcação na …, país onde é permitido o registo on-line de embarcações, por qualquer cidadão, independentemente da sua nacionalidade e residência, não as sujeitando a qualquer tipo de controlo ou vistoria prévios, por parte das suas autoridades marítimas, pese embora nenhum dos suspeitos resida naquele país;
- (4) a escolha de uma empresa para a reparação da embarcação sediada em …, cujo único sócio é de nacionalidade …, e não uma do Estaleiro Naval …, onde a embarcação se encontra aparcada, apesar de nenhum dos suspeitos residir em Portugal;
- (5) o relacionamento dos três suspeitos, que residem em países diferentes (…, … e …), com atividades e pessoas ligadas ao tráfico de drogas; e
- (6) o registo de condenações anteriores, por crime idêntico, por parte de dois dos três suspeitos.
Resta, pois, concluir que, no caso, o recurso às requeridas “escutas” constituí, não só o mais idóneo, mas, também, o meio mais eficaz, com vista a se obter prova essencial para a investigação, nomeadamente identificar todos os agentes envolvidos na organização criminosa, em que patamar se encontram os suspeitos já identificados no processo nesta organização, quais os dias da viagem, qual o percurso marítimo e quais os países/locais de origem e de destino do produto de natureza estupefaciente a traficar.
Relativamente ao meio de obtenção de prova de registo de voz e de imagem, previsto no art. 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11/01 [que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira], o Mm. Juiz de Instrução indeferi-o, invocando que não se verificam “indícios fundados” ou “suspeitas fundadas” e “os autos ainda estão carentes de indícios que possam apontar, de forma aceitável, para a prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes.”.
Determina o n.º 1 do art. 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11/01, que:
“É admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1.º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado.”
Refere-se, a este propósito, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/11/2011, disponível em www.dgsi.pt. :
“(…) A admissibilidade do registo de voz e imagem não depende da existência de fortes, ou sequer suficientes, indícios da prática de um crime do catálogo, bastando que haja suspeitas da prática do crime e de quem é ou são os seus agentes, tal como para as escutas telefónicas, pois que, tratando-se de um meio de obtenção de prova, visa justamente a recolha de indícios probatórios;
Para que possa ser autorizada, a diligência não tem que ser imprescindível ou indispensável (diferentemente do que acontece para as escutas telefónicas, em que a lei exige que este meio de obtenção de prova seja “indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter”), sendo a lei menos exigente ao impor como requisito a sua “necessidade para a investigação (…)”.
Já vimos, que se tivermos em consideração todas as provas e informações carreadas para o presente inquérito, acima mencionadas, e se as cotejarmos com as regras da experiência comum e judiciária, nesta matéria, há reais suspeitas de actos de execução do crime de tráfico de estupefacientes, que é um crime que consta do catálogo, assim como de quem são os seus agentes.
Ponderando-se os valores e princípios aflorados supra e o teor da promoção do Digno Magistrado do Ministério Público, afigura-se-nos, pois, que o recurso ao registo de voz e imagem e à intercepção e gravação das conversações e comunicações telefónicas, é, no presente momento, o único meio de se obter informações relevantes para a obtenção de prova, nomeadamente com vista a compreender a organização da associação criminosa; a sua dinâmica; em que lugar os três suspeitos, já identificados, se inserem naquela; que outros indivíduos estão envolvidos; onde é que a embarcação será carregada de produto estupefaciente; onde é que o produto estupefaciente será descarregado, e quais as datas previsíveis para as viagens (ida e regresso).
Como bem refere o recorrente, nesta fase preliminar da investigação, o recurso a outro tipo de meios de obtenção de prova, como, por exemplo, a abordagem dos suspeitos, a inquirição de testemunhas ou proceder a apreensões, ditariam o seu fracasso, pois, a demonstração aos suspeitos da existência de uma investigação, conduziria os mesmos ao abandono, imediato, do delineado plano.
Resta, assim, concluir pela procedência do recurso, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro, que proceda ao deferimento da utilização do registo de voz e de imagem e de interceção e gravação das conversações e comunicações telefónicas, nos termos requeridos pelo Digno Magistrado do Ministério Público.
*
7. Decisão:
Em conformidade, com o exposto, acordam os Juízes Desembargadores, neste Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pela Digno Magistrado do Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que que proceda ao deferimento da utilização do registo de voz e de imagem e de interceção e gravação das conversações e comunicações telefónicas, nos termos requeridos pelo Digno Magistrado do Ministério Público.
Sem custas.
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(Texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto)
Évora, 9 de Abril de 2025
Os Juízes Desembargadores
Anabela Simões Cardoso
Laura Maurício
Carla Oliveira