O condenado pode recorrer da decisão do Tribunal de Execução de Penas que indefere o pedido de concessão de licença de saída jurisdicional, pois as normas do artigo 196º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, se interpretadas no sentido contrário, são inconstitucionais, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20º da Constituição.
A sentença em que o tribunal decide o pedido de concessão de licença jurisdicional não está sujeita aos requisitos de forma e conteúdo das sentenças penais, previstos no artigo 374º do Código de Processo Penal, mas o artigo 146º nº 1 do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade impõe que seja fundamentada, com especificação dos respetivos motivos de facto e de direito.
A sentença só cumprirá a exigência de fundamentação se enunciar de forma especificada, por referência à situação concreta do recluso, os factos tidos por relevantes para fundamentar a decisão, com indicação, ainda que por mera remissão e por mais sumária que seja, da fonte de aquisição probatória desses factos, e as razões de direito, referidas aos critérios legais aplicáveis e que fundamentam a decisão de conceder ou não a licença.
Uma sentença elaborada num formulário pré-impresso e formatado para o tribunal assinalar opções de escolha múltipla, com afirmações genéricas e conclusivos, aplicáveis a qualquer recluso, sem qualquer referência individualizada ao caso concreto, está ferida de irregularidade, nos termos do artigo 123º nº 1 do Código de Processo Penal, por não especificar as razões de facto e de direito da decisão.
Mesmo não tendo o recluso arguido a irregularidade da sentença no prazo legal, tendo a norma que impõe o dever de fundamentação uma função ordenadora do processo, instrumental do prosseguimento de valores constitucionais, inerentes ao processo justo e equitativo e afetando a decisão direitos individuais fundamentais e o interesse público da ressocialização dos condenados, o vício afeta de forma grave o valor material do ato praticado e como tal é admissível o seu conhecimento oficioso e a reparação do vício.
1.1. Decisão recorrida
“Sentença” proferida em 26set2024, na qual foi se recusou a concessão de licença de saída jurisdicional ao recluso AA.
1.2. Recurso, resposta e parecer
1.2.1. O recluso recorreu da “sentença”, pedindo a sua revogação e substituição por outra que lhe conceda a licença de saída jurisdicional, alegando, em resumo, o seguinte:
Questão da recorribilidade:
- Embora do artigo 196º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade (CEPMPL) pareça resultar que apenas o Ministério Público tem legitimidade para recorrer da decisão que conceda, recuse ou revogue a licença de saída jurisdicional, aquela norma tem de ser conjugada com o estabelecido no artigo 236º nº 1 alínea b) do CEPMPL que faculta ao condenado o direito a recorrer das decisões contra si proferidas.
- Em face da Constituição, não poderá o recluso ser impedido de recorrer de uma decisão contra si proferida, mormente, a recusa de licença de saída jurisdicional, pois o entendimento que apenas o Ministério Público pode recorrer, nas situações em que se oponha à concessão, impede que a decisão proferida pelo seja sindicada.
- Só assegurando o direito ao recurso ao recluso de todas as decisões que lhe sejam desfavoráveis, incluído as situações previstas no artigo 196º do CEPMPL, é que se salvaguarda o direito ao recurso previsto na Constituição.
- Se assim não se entender, invoca-se a inconstitucionalidade dos artigos 196º, 235º e 238º do CEPMPL, quando interpretados no sentido de não ser permitido ao recluso recorrer contra decisão que não lhe concedeu a licença de saída jurisdicional, por violação dos artigos 2º, 9º, 18º, e 32º nº 1 da CRP, do artigo 13º da CEDH e do artigo 8º da DUDH.
Mérito da decisão:
- O recluso encontra-se a cumprir penas sucessivas, no total de 23 anos e 1 mês e está privado da liberdade desde o dia 26jan2011, pelo que atingiu 1/2 da pena em 23mai2022 e atingirá os 2/3 em 28mar2026, os 5/6 em 2fev2030 e o termo em 8dez2033.
- Quando apresentou o pedido de licença de saída jurisdicional já havia cumprido mais de metade da soma das penas em execução, mostrando-se assim verificado o pressuposto estabelecido na alínea a) do nº 2 do artigo 79º do CEPMPL.
- Por outro lado, encontra-se a executar a pena em regime aberto, inexiste qualquer processo pendente e verifica-se a inexistência de evasão, ausência ilegítima ou revogação da liberdade condicional nos 12 meses que antecederem o pedido, mostrando-se assim verificados, também, todos os requisitos do nº 2 do mesmo artigo 79º.
- Ao nível pessoal, o recluso encontra-se perfeitamente inserido na comunidade prisional, trabalha, não detém qualquer incidência disciplinar nos últimos anos, interiorizou o desvalor das condutas que o conduziram à situação de reclusão, apresenta-se crítico relativamente ao seu comportamento passado e demonstra arrependimento.
- O pedido de concessão de licença de saída jurisdicional mereceu o voto favorável do conselho técnico, por unanimidade.
- A rejeição da licença jurisdicional enferma de ilegalidade por violação do preceituado nos artigos 78º e 79º do CEPMPL.
1.2.2. O Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo que o mesmo deve improceder, em suma, pelos seguintes motivos:
- A decisão recorrida não é subsumível a nenhuma das situações previstas no artigo 235º nºs 1 e 2 do CEPMPL, pelo que o recurso interposto não é legalmente admissível.
– O artigo 196º nº 2 do CEPMPL, ao não permitir ao recluso recorrer de tal decisão, não é materialmente inconstitucional, não violando nem o princípio da igualdade nem o princípio do segundo grau de jurisdição, porquanto estamos já no âmbito do processo de execução da pena, onde as garantias de defesa não têm um âmbito tão alargado quanto o do processo penal.
– Caso assim não se entenda, o recurso não merece provimento.
– O recluso cumpre um somatório de penas de 23 anos e 1 mês de prisão pela prática dos seguintes crimes: roubo qualificado agravado pelo resultado morte, posse ilegal de arma, tráfico de estupefacientes agravado (praticado em meio prisional) e coação.
– A decisão judicial denegatória da licença de saída jurisdicional baseou-se no facto do condenado não apresentar adequada interiorização crítica das suas condutas criminosas e suas consequências, “maxime” no tocante ao crime de tráfico de estupefacientes agravado.
– Atentas as circunstâncias dos ilícitos criminais praticados e a deficitária interiorização crítica manifestada pelo recorrente, tem de concluir-se por uma dúvida séria quanto à expectativa de que este se comporte de modo socialmente responsável e normativo durante o gozo da licença, sendo também a sua concessão incompatível com a defesa da ordem jurídica.
– Pelo que não se encontra preenchida a previsão normativa do artigo 78º nº 1 als. a) e b) do CEPMPL.
– A decisão recorrida assenta num prognóstico fundado numa adequada consideração dos factos ilícitos e seu circunstancialismo e numa correta valoração do seu significado à luz das regras da experiência comum, tudo perspetivado no âmbito do princípio da livre apreciação da prova.
1.2.3. Na Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido do conhecimento do recurso e da anulação da decisão recorrida, invocando, sinteticamente, o seguinte:
Recorribilidade da decisão:
- Na esteira do que vem sendo decidido recentemente pelo Tribunal Constitucional, não é «aceitável, à luz do direito constitucional à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição, que uma decisão que interfere diretamente com a (possibilidade de) liberdade do recluso (…) – e embora não tanto como as que se relacionam com a liberdade condicional), dependente de pressupostos objetivos que um tribunal superior pode controlar, conheça apenas um grau de jurisdição por impulso do recluso, menos ainda quando a lei prevê o acesso a um segundo grau de jurisdição pelo Ministério Público, que, embora esteja vinculado a critérios de legalidade, não é o principal afetado pela decisão que nega a concessão da licença.».
- Afastando-se a aplicabilidade do artigo 32º da CRP, o parâmetro constitucionalmente relevante para a conformação do direito ao recurso de decisões judiciais proferidas em matéria de execução de penas deve, assim, ser o artigo 20º da CRP, com o alcance que lhe vem sendo dado pela doutrina e pela jurisprudência, ou seja, o que releva como parâmetro é o entendimento segundo o qual deve garantir-se o direito ao recurso das decisões, incluindo judiciais, que, por si mesmas, sejam aptas a lesar diretamente direitos fundamentais.
- Tal ocorre na decisão que aprecie o pedido de concessão de licença de saída jurisdicional, negando-a, traduzindo-se num distinto modo de execução da pena privativa da liberdade, ao não facultar o gozo da mesma em regime transitório de contacto com o exterior, de aproximação à concessão da liberdade condicional e de reforço dos laços sociais e familiares, não esquecendo, de igual modo, que a decisão que conceda o gozo de licença jurisdicional se reflete na concessão de futuras licenças e na apreciação da liberdade condicional.
- O disposto nos artigos 235º nº 1 e 196º, nº 2 do CEPMPL, na interpretação segundo a qual está vedado ao recluso recorrer da decisão que lhe negou a concessão da licença de saída jurisdicional que havia requerido padece de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 20.º da CRP, devendo o recurso ser admitido.
Mérito do recurso:
A sentença proferida recorrida enferma, de forma manifesta, do vício de irregularidade por falta de fundamentação, pois está elaborada num modelo pré-definido de escolha múltipla em que se assinalam as opções com (X), sem que se consigam perceber as razões de facto e de direito da decisão.
- Deve ordenar-se a baixa dos autos à 1ª instância para sanação dessa irregularidade.
2. Questões a decidir
Por ordem de precedência lógica, importa, em primeiro lugar, a título prévio, decidir a questão da recorribilidade da decisão impugnada, visto que o deferimento da reclamação contra a retenção do recurso não é vinculante. Depois, sendo a decisão recorrível, haverá que tratar da questão da invalidade da decisão por falta de fundamentação, que é de conhecimento oficioso e foi suscitada no parecer do Ministério Público. Por fim, caso a necessidade de a analisar não fique prejudicada, importará ver se procedem as razões do recurso para se revogar a decisão recorrida e se conceder ao recorrente a licença de saída jurisdicional.
3. Fundamentação
3.1. Questão prévia – recorribilidade da decisão
Importa começar por assinalar que esta Relação concluiu recentemente ser recorrível a decisão do TEP que indefere o pedido de concessão de licença de saída jurisdicional, em acórdão proferido no processo nº 1323/16.2TXLSB-T.E1, publicado em www.dgsi.pt (aliás, subscrito pelo relator do presente, ali como adjunto).
Este é, de resto, atualmente o entendimento maioritário do Tribunal Constitucional, como se pode ver, nomeadamente, entre outros, nos acórdãos nºs 652/2023, 598/2024 e 202/2025, publicados, respetivamente, nos seguintes endereços eletrónicos: - https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20230652.html; - https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20240598.html; - https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20250202.html.
A jurisprudência constitucional recente alterou o sentido das decisões anteriormente proferidas nos acórdãos 560/2014 e 752/2014. Considera-se, no essencial, que, mesmo não sendo aplicáveis às questões da execução da pena as garantias de defesa do artigo 32º da CRP, visto não estar aí em causa a dialética entre acusação e defesa pressuposta naquela norma, nem a concordância prática entre as várias finalidades do processo penal, mas apenas a satisfação das finalidades próprias da execução da pena, o parâmetro constitucionalmente relevante para a conformação do direito ao recurso de decisões judiciais proferidas em matéria de execução de penas deve ser o artigo 20º da CRP, com o alcance de abranger o direito ao recurso de decisões judiciais que, por si mesmas e diretamente, afetem direitos fundamentais. Nessa linha de argumentação, não é aceitável que uma decisão que interfere diretamente com a possibilidade de liberdade, dependente de pressupostos objetivos que um tribunal superior pode controlar, conheça apenas um grau de jurisdição por impulso do recluso, menos ainda quando a lei prevê o acesso a um segundo grau de jurisdição pelo Ministério Público, que, embora esteja vinculado a critérios de legalidade, não é o principal afetado pela decisão que nega a concessão da licença. Consequentemente, as normas dos artigos 196º nº 2 e 235º nº 1 do CEPMPL, interpretados no sentido da irrecorribilidade do despacho que indefira o pedido de concessão de licença de saída jurisdicional, são inconstitucionais por violação do artigo 20º nº 1 da CRP. Tendo o Tribunal Constitucional proferido já mais de três decisões no mesmo sentido, é até expectável que venha a ser promovida a fiscalização abstrata sucessiva das normas em causa, nos termos do artigo 82º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional. Não há razão válida de peso para nos afastarmos do sentido maioritário da jurisprudência constitucional. Até porque o artigo 8º nº 3 do CC dispõe que «o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito».
A análise de feita no acórdão do Tribunal Constitucional nº 560/2014 teve sobretudo em conta os princípios constitucionais do direito ao recurso e da igualdade. Entendeu-se que a regra do duplo grau de jurisdição prevista no artigo 30º nº 1 da CRP não era convocável para o caso, visto que a decisão de não conceder a licença de saída jurisdicional não respeita ao processo crime para o qual aquele artigo 32º reserva as garantias aí previstas, mas sim ao processo de execução da pena, em que não há alteração essencial do estatuto jurídico do recluso mas apenas a possibilidade de suspensão pontual da privação efetiva da liberdade pessoal. Entendeu-se, ainda, que o facto de o artigo 196º do CEPMPL apenas atribuir ao Ministério Público o direito de recorrer das decisões que concedam, recusem ou revoguem licenças de saída precárias e não ao recluso afetado por tais decisões, não contraria o princípio da igualdade previsto no artigo 13º da CRP, na medida em que não existe uma diferenciação de tratamento materialmente infundada. O direito de recurso atribuído ao Ministério Público justifica-se porque esse órgão não tem o estatuto de “parte” no processo e porque se insere nas suas competências de fiscalização da legalidade da execução da pena.
Como referido acima, essa jurisprudência está ultrapassada. A licença de saída jurisdicional, não estando embora inserida no processo crime, com o sentido que lhe é dado no artigo 32º da CRP, tem uma tal conexão com o bem jurídico da liberdade pessoal que a ilegalidade material ou formal da sua recusa deve poder ser sindicada, à luz da orientação firmada a partir do acórdão nº 40/2008 do Tribunal Constitucional, segundo o a qual direito de acesso aos tribunais, atribuído pelo artigo 20º nº 1 da CRP, garante o direito ao recurso nos casos, penais ou não penais, em que a decisão judicial, por si mesma ou de forma direta, lese direitos fundamentais.
Por outro lado, se o legislador ordinário conferiu ao Ministério Público a faculdade de recorrer das decisões que concedam, recusem ou revoguem licenças de saída jurisdicionais, isso significa que reconheceu a insuficiência da tutela dos interesses em causa conferida apenas pela intervenção do tribunal de execução de penas em instância única e final. Sendo assim, não se tratando de matéria para cuja tutela o legislador considerou suficiente um só grau de jurisdição, não é materialmente admissível impedir o recluso de recorrer de uma decisão de recusa, quando o mesmo é o titular do principal interesse afetado por ela.
Em conclusão, remetendo-se para os fundamentos da jurisprudência constitucional referida, sem necessidade de maior desenvolvimento, considera-se que as normas do artigo 196º do CEPMPL, se interpretadas no sentido de não ser admissível recurso do recluso contra a decisão que indeferiu o seu pedido de concessão de licença de saída jurisdicional, são inconstitucionais, por violação do direito ao princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20º da CRP.
Como tal, o presente recurso é admissível e passamos a apreciá-lo.
3.2. Factualidade processual relevante
- Em 21jun2024, o recorrente requereu ao TEP a concessão de uma licença de saída jurisdicional, invocando o seguinte: pretender «passar uns dias com a minha família, esposa, filhos e netos» e «demonstrar (…) a pessoa nova que me tornei, mais responsável, e ciente dos erros que cometi no passado»;
- Em 29set2024, foi proferida a decisão, em formulário pé impresso, com espaços de escolha múltipla para assinalar com o sinal “X”, parcialmente manuscrita e com algumas palavras em negrito, com o seguinte teor:
SENTENÇA
I. Relatório:
O/a recluso(a) pediu a concessão de uma licença de saída jurisdicional, o que foi liminarmente admitido.
O Conselho Técnico reuniu e emitiu parecer:
X Favorável, por Unanimidade X, Maioria __ (com voto desfavorável de __) Voto de qualidade do(a) Sr.(ª) Director(a) __ (com votos favoráveis de __).
__ Desfavorável, por Unanimidade __, Maioria __ (com voto desfavorável de __) Voto de qualidade do(a) Sr.(ª) Director(a) __ (com votos favoráveis de __).
O Ministério Público emitiu parecer __ favorável/ X desfavorável.
II. Os factos:
Da análise do pedido efetuado em Conselho Técnico, bem como dos demais elementos que instruem os presentes autos, considerando ainda os requisitos e critérios gerais previstos no artº 78º da Lei nº 115/2009 de 12/10, deverá ter-se em conta o seguinte:
1º Natureza e gravidade do(s) crime(s) praticado(s): ____
2º Duração da pena: ____
3º Eventual perigo para a sociedade do insucesso da aplicação da medida, designadamente ponderando os antecedentes conhecidos da vida do(a) recluso(a) ____
4º Características do ambiente sócio/familiar de integração do(a) recluso(a) __ existente/ ___ inexistente/ ___ frágil/ ___ inadequado;
5º Necessidade de protecção da vítima;
6º ___ Evolução positiva/negativa da execução da pena ou medida privativa da liberdade, nomeadamente concretizada em:
a) __ Prática de factos que conduziram à aplicação de sanção ou sanções disciplinares;
b) ____
c) ____
7º __ Pena/sanção administrativa de expulsão do território nacional, a executar;
8º X_ Desde a última apreciação da situação do recluso que se mantêm os pressupostos que fundamentaram a decisão que então se proferiu;
9º ____
*
Com efeito, os aspectos atrás assinalados PERMITEM / NÃO PERMITEM concluir:
X_ Por uma fundada expectativa de que o(a) recluso(a) se comporte, em liberdade, de modo socialmente responsável, sem cometer crimes;
X_ Pela compatibilidade da saída requerida com a defesa da ordem e paz social;
X_ Por uma fundada expectativa de que o8a) recluso(a) não se subtraia à execução da pena.
III. Decisão
Pelo exposto:
X_ NÃO CONCEDO a requerida licença de saída jurisdicional.
›› X_ O/a recluso(a) não poderá formular novo pedido de concessão de licença de saída jurisdicional antes de decorridos 4 meses a contar da data em que teve conhecimento da presente decisão.
›› _ O/a recluso(a) poderá formular novo pedido de concessão de licença de saída jurisdicional decorridos ___ meses a contar da notificação da presente decisão.
Para o efeito considera-se que ____
*
__ CONCEDO (…)
(…)
[Nota explicativa nossa: os carateres ____ correspondem a campos não preenchidos]
3.3. Invalidade da decisão por falta de fundamentação
Como vimos, a decisão, identificada com o nome “sentença”, é um documento num formulário pré-impresso, em que a identificação do processo, o nome do recluso, a data e a assinatura estão manuscritas e em que há alguns carateres “X” colocados em espaços destinados a assinalar opções de escolha múltipla e muitos outros espaços deixados em branco.
No seu parecer, o Ministério Público defende que a decisão é inválida por falta de fundamentação e remete para a decisão do acórdão proferido no processo nº 1323/16.2TXLSB-T.E1, que já referimos atrás.
Seja como for, tratando-se de matéria do conhecimento oficioso, em face da forma como a decisão recorrida está elaborada, sempre se nos imporia apreciar a questão da sua validade, isto é, no que ao caso respeita, da suficiência da sua fundamentação.
Em primeiro lugar, cumpre assinalar que esta decisão final se deve qualificar como uma sentença. A licença de saída jurisdicional é tramitada numa forma de processo especial (artigo 155º do CEPMPL), regulada em primeira linha pelas respetivas normas (dos artigos 189º a 196º do CEPMPL) e naquilo em que a regulamentação for omissa pelas normas do processo supletivo, que são as do processo de concessão de liberdade condicional (artigos 234º e 173º e seguintes do CEPMPL). E o artigo 97º nº 1 al. a) do CPP qualifica como sentença a decisão que conheça a final do objeto do processo, como é o caso desta.
Simplesmente, tratando-se embora de uma sentença, daí não resulta que esteja sujeita aos requisitos de forma e conteúdo das sentenças penais, previstos no artigo 374º do CPP. Pelo contrário, resulta das normas especiais aplicáveis que se trata de uma sentença simplificada na forma e no conteúdo. O artigo 192º nº 1 do CEPMPL dispõe que é oral e ditada para a ata e do artigo 146º nº 1 do CEPMPL resulta, também, que tem de ser fundamentada, com especificação dos respetivos motivos de facto e de direito.
O dever de fundamentação das decisões judiciais é uma imposição constitucional, mas a forma dessa fundamentação, isto é, a sua estrutura e conteúdo, é regulada pela lei ordinária. A necessidade de fundamentação constitui uma garantia do processo equitativo, inerente ao Estado de direito democrático. Visa assegurar, em primeiro lugar, o cumprimento do dever, pelo tribunal, de prolação de uma decisão orientada pela busca de uma solução justa e fundada na lei, o que implica a análise crítica e ponderação da motivação por parte o juiz que a profere. Visa, ainda, assegurar que a sentença cumpre a sua dupla finalidade de permitir, dentro do processo, a efetividade do exercício dos direitos de defesa, nomeadamente do direito ao recurso, e de garantir, fora do processo, a transparência e legitimidade do poder soberano que o Estado exerce através do tribunal.
É certo que no caso a sentença não foi proferida oralmente e ditada para a ata. Ela consta no documento escrito acima reproduzido. Contudo, não vemos que desse excesso de forma resulte alguma consequência. Se a lei admite a prolação de uma sentença oral, por maioria de razão haverá de não proibir que seja escrita, na medida em que essa forma acrescida, em princípio, se corretamente elaborada, tutela de maneira mais robusta os interesses em jogo. Portanto, o nosso problema não é saber se a sentença podia ter sido escrita. Do que se trata é de saber se, tendo sido escrita, cumpre os requisitos de fundamentação aplicáveis, ou seja, nas palavras da lei, se contém a especificação dos respetivos motivos de facto e de direito.
A lei não define exatamente o que seja isso de especificar os motivos de facto e de direito de uma decisão nem impõe qualquer modelo pré-definido de fundamentação da sentença que decide o pedido de concessão de licença de saída jurisdicional. Porém, tendo em conta que se trata de uma decisão com impacto significativo na situação do recluso – quer no seu interesse subjetivo de usufruir de um período de liberdade quer no interesse público de se atingir o objetivo de ressocialização – e que tem os objetivos e critérios formais e materiais de concessão bem estabelecidos na lei (artigos 76º nº 2, 78º e 79º do CEPMPL), é por demais evidente que a sentença só cumprirá a exigência de fundamentação se enunciar de forma especificada, por referência à situação concreta do recluso, os factos tidos por relevantes para fundamentar a decisão, com indicação, ainda que por mera remissão e por mais sumária que seja, da fonte de aquisição probatória desses factos, e as razões de direito, referidas aos critérios legais aplicáveis e que fundamentam a decisão de conceder ou não a licença.
É manifesto que a sentença em apreço não cumpre, nem por aproximação, as exigências de fundamentação a que está sujeita por lei. Não é por ter sido elaborada num formulário pré-impresso e formatado para o tribunal assinalar os campos que tiver por adequados nas opções de escolha múltipla. O impresso em questão tem espaços de redação livre que permitem ao tribunal justificar os campos assinalados, acrescentar motivos diversos dos lá previstos e desenvolver a motivação que for necessária. Portanto, o problema da sentença em apreço não é tanto o de estar redigida num formulário. O problema é que, da forma como nos é apresentada, não permite assegurar que o tribunal observou os requisitos de ponderação a que está obrigado, não permite assegurar que a decisão teve em conta a circunstâncias pessoais do recluso e a sua situação individual, não permite uma compreensão mínima da motivação, que seja suficiente para garantir a efetividade do direito à impugnação, e não permite, por fim, sequer, o controlo de legalidade pelo tribunal de recurso.
Basta ver que, na parte respeitante ao estabelecimento dos factos, consta nos pontos 1º a 7º do item “II. Os factos” um conjunto pré-impresso de postulados genéricos e conclusivos, aplicáveis a qualquer recluso, sem que haja uma única referência individualizada ao autor do requerimento que se estava a decidir. E no seu ponto 8º assinalou-se o campo pré-redigido onde consta que «desde a última apreciação da situação do recluso que se mantêm os pressupostos que fundamentaram a decisão que então se proferiu». Não se sabe quais daqueles aspetos não assinalados, se é que algum, foi foram considerados, não se sabe que última apreciação foi aquela referida, em que pressupostos se fundamentou e que decisão teve.
Depois, igualmente de forma vaga e conclusiva, no ponto seguinte, que aparenta ser o da motivação de direito, consta que os aspetos atrás assinalados, isto é, a tal inalteração dos pressupostos vigentes em anterior decisão, não permitem concluir que o recluso se comporte em liberdade de modo socialmente responsável sem cometer crimes, que a saída seja compatível com a ordem e paz social e que haja uma fundada expetativa de o recluso não se subtrair à execução da pena. Porque é que há risco de cometimento de novos crimes ou de comportamento irresponsável, porque é que a saída afeta a ordem e paz social, porque é que há risco de fuga, para tudo isto não há uma única justificação dada na sentença.
O recluso não é um número. É uma pessoa. Há de haver na sua personalidade, no seu comportamento prisional, no seu passado criminal, no seu contexto social e familiar de inserção, algum fundamento visível, relativo à sua pessoa e situação e não a frases genéricas escritas num documento, que permita ao tribunal justificar a decisão que tomou, para que se percebam as razões porque o fez e para que a decisão possa ser efetivamente sindicada por via do recurso.
Impõe-se, enfim, concluir que a sentença recorrida é omissa na fundamentação, pois não especifica as razões de facto e de direito em que se fundamentou.
A consequência do vício não é a nulidade, pois, como dissemos atrás, não sendo aplicáveis a esta sentença os requisitos de forma e conteúdo do artigo 374º do CPP, também não o é o regime de nulidade previsto no artigo 379º do CPP.
Não havendo disposição legal expressa que comine a falta ou insuficiência de fundamentação da sentença que aprecia o pedido de concessão de licença de saída jurisdicional como nulidade insanável ou sanável, sujeitas à disciplina dos artigos 119º a 122º do CPP, o vício de que se trata é o da irregularidade prevista no artigo 123º do CPP, aplicável por remissão do artigo 154º do CEPMPL.
Não resulta dos autos que o recluso tivesse arguido a irregularidade da sentença no prazo legal.
Porém, num, caso como este, a solução certa não pode ser a de se considerar a irregularidade sanada, prescindindo-se da possibilidade de controlar a legalidade da decisão por via do recurso, com o seu potencial de afetação de direitos fundamentais do recorrente.
O nº 2 daquele artigo 123º permite que a irregularidade, ainda que não invocada por quem podia fazê-lo, pode ser oficiosamente conhecida, quando a mesma puder afetar o valor do ato praticado, tendo em conta o campo de proteção da norma que deixou de observar-se.
O dever de fundamentação da sentença não visa apenas proteger o interesse do sujeito processual por ela afetado. A norma que impõe o dever de fundamentação tem uma função ordenadora do processo, instrumental do prosseguimento de valores constitucionais, inerentes ao processo justo e equitativo. Uma decisão que afeta direitos individuais fundamentais e que interfere com os interesse público da ressocialização dos condenados, que não permite conhecer os respetivos fundamentos nem assegurar o controlo de legalidade por via de recuso, não pode deixar de afetar de forma grave o valor material do ato praticado e como tal de se incluir nos casos em que é admissível o conhecimento oficioso e reparação do vício. Neste mesmo sentido, podem consultar-se os acórdãos TRP de 21jun2023 (processo 764/12.9TXPRT-U.P1) e TRL de 20fev2024 (processo 1100/12.0TXLSB-N.L1), ambos publicados em www.dgsi.pt.
Em conclusão, há que anular a sentença pela irregularidade de falta de fundamentação e ordenar oficiosamente, nos termos do artigo 123º nº 2 do CPP, a reparação do vício, ficando prejudicada a possibilidade de conhecimento do mérito do recurso.
4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em julgar declarar a sentença inválida e em determinar a reparação da irregularidade consistente na omissão de fundamentação.
Não há lugar ao pagamento de custas.
Évora, 9abr2025
Manuel Soares
Carla Oliveira
Carla Francisco