NULIDADE DA ACUSAÇÃO PÚBLICA
ARGUIÇÃO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
Sumário


- A nulidade da acusação pública por falta de menção da prova a produzir é uma nulidade dependente de arguição, nos termos do art.º 120º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, e sanável até cinco dias após a notificação da acusação pública, nos termos do nº 3, alínea c) do mesmo preceito legal.
- Há omissão de pronúncia, geradora de nulidade da decisão, quando a decisão recorrida nada diz quanto à atenuação especial da pena decorrente do pagamento voluntário da quantia em dívida a título de IVA, prevista no art.º 22º, nº 2 do RGIT e regulada pelos arts.º 72º e 73º do Cód. Penal, não obstante tenha tido em conta esse pagamento em sede de determinação da medida da pena.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1– Relatório

No processo nº 3/20.9IDBJA do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Local Criminal de …, por sentença datada de 30/06/2021, decidiu-se:

“1) ABSOLVER os arguidos AA e BB, da prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma agravada, p. e p. pelos artigos 105º, nºs 1 e 5 do RGIT;

2) CONDENAR a arguida BB pela prática em Abril e Junho de 2019, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma simples, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, do RGIT, na pena de 510 (quinhentos e dez) dias de multa, à taxa diária de 7 Euros (sete euros), perfazendo o total de 3.570 Euros (três mil quinhentos e setenta euros);

3) CONDENAR o arguido AA pela prática em Abril e Junho de 2019, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma simples, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, do RGIT, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período;

4) Não condicionar a suspensão da pena de prisão decidida aplicar ao arguido AA à condição de pagamento do IVA efectivamente recebido e não entregue ao Estado; (…)”.

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A 14/12/20 o Ministério Público proferiu acusação contra AA, a quem imputou a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos art.sº 6º, nº 1 e 105º, nºs 1 e 5 do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias), e BB, a quem imputou a prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma agravada, p. e p. pelos art.sº 7º, nº 1 e 105º, nºs 1 e 5 do RGIT.

Como prova a produzir indicou o Ministério Público nessa peça processual:

“ PROVA: toda a constante dos autos designadamente:

DOCUMENTAL:

- Todos os documentos juntos aos autos.

- CRC actualizado dos arguidos

TESTEMUNHAL:

1. CC, melhor identificada a fls. 257.”

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A acusação pública foi notificada aos arguidos, por cartas enviadas a 17/12/20, para as moradas pelos mesmos indicadas nos TIR prestados nos autos.

A acusação foi admitida por despacho datado de 21/02/21, o qual foi notificado aos arguidos por cartas enviadas a 3/03/21 para aquelas moradas.

A 9/03/21 os arguidos constituíram mandatário nos autos.

A 24/04/21 os arguidos juntaram aos autos contestação, onde arguiram a nulidade da acusação pública, por a considerarem manifestamente infundada, por completa ausência de indicação dos meios de prova que a sustentam, requerendo a sua rejeição, nos termos do disposto no art.º 311º, nºs 2 e 3, al. c) do Cód. Proc. Penal.

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Em resposta ao requerido pelos arguidos, a 13/05/21, foi proferido o seguinte despacho:

“Dispõe o artigo 283.º do CPP, epigrafado de “Acusação pelo Ministério Público”, que: “1- Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele. 2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. 3 - A acusação contém, sob pena de nulidade: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis; d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco; e) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação; f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer; g) A indicação do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, quando o arguido seja menor, salvo quando não se mostre ainda junto e seja prescindível em função do superior interesse do menor; h) A data e assinatura. (…)”

Nos termos do disposto no artigo 118º do CPP, epigrafado “Princípio da legalidade”, “1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei. 2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.” 3 - As disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova.”

Por outro lado, o artigo 119.º do CPP estabelece que:

“Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição; b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência; c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência; d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade; e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º; f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.”

Por sua vez, o artigo 120.º do CPP, epigrafo de “Nulidades dependentes de arguição”, prescreve que: “1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte. 2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: a) O emprego de uma forma de processo quando a lei determinar a utilização de outra, sem prejuízo do disposto na alínea f) do artigo anterior; b) A ausência, por falta de notificação, do assistente e das partes civis, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência; c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória; d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. 3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas: a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado; b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência; c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito; d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.”

Conforme impressivamente consta do Ac. da RL de 06-04-2016, processo nº 402/12.0TAPDL-A.L1-3, relatora CONCEIÇÃO GONÇALVES, disponível em www.dgi.pt: “O legislador distinguiu as nulidades insanáveis, também designadas por nulidades absolutas, das nulidades dependentes de arguição ou nulidades relativas. E assim, na técnica usada determinou o legislador no artº 120º, nº 1 que qualquer nulidade diversa das referidas no artº 119º, que prevê as nulidades insanáveis (que são as ali expressamente previstas, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais) deve ser arguida. Deste modo, se a lei expressamente não indicar que se trata de nulidade insanável ela é uma nulidade dependente de arguição, contendo este preceito legal, como refere a doutrina, a consagração do princípio da subsidiariedade da nulidade sanável. É o que acontece no caso dos autos relativamente à acusação. A acusação deverá conter, “sob pena de nulidade”, todas as referências indicadas no nº 3 do artº 283º do CPP, com especial relevância a narração dos factos, abrangendo naturalmente os factos que integram todos os elementos objectivos e subjectivo do tipo de crime imputado ao arguido.

Assim, a dedução de acusação pública sem observância dos requisitos legais previstos no nº 3 do artº 283º constitui uma nulidade dependente de arguição (sanável ou relativa) que, como tal, segue o regime dos artigos 120º e 121º do CPP.

Tal significa que o interessado querendo atacar a acusação com a arguição de nulidade deverá fazê-lo no prazo legal para a sua arguição. A regra geral é a do artº 105º, nº 1, do CPP, a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo posterior do processo ou tiverem intervindo em algum acto nele praticado, ou seja, no prazo de 10 dias, salvo previsão legal distinta, como ocorre nos casos previstos no nº 2 do artº 120º referido.

Quanto aos efeitos, a declaração da nulidade sanável tem os efeitos fixados no artº 122º: tornam inválido o acto em que se verificaram, bem como os que dele dependem e possam ser afectados, e decorrente do princípio do favor do processo e do aproveitamento dos actos, a decisão de declaração da nulidade deve determinar, identificando expressamente quais “os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição”.

Ou seja, a decisão que declarar a nulidade tem necessariamente de determinar as consequências no processo.

Como vimos, a não observância dos requisitos legais do nº 3 do artº 283º do CPP constitui indubitavelmente uma nulidade sanável. Significa, segundo o regime das nulidades, que a mesma tem de ser primeiro arguida, e em local e tempo próprio. A arguição da nulidade da acusação por omissão das matérias referenciadas no nº 3 deverá então fazer-se perante o próprio magistrado que deduziu a acusação, cabendo reclamação hierárquica da decisão. Não tendo sido arguida, esta nulidade da acusação, enquanto tal, consolida-se, assim transitando o processo para a fase de julgamento ou de instrução se no processo comum vier a ser requerida.”

Ora, do teor do aludido aresto, cuja posição sufragamos, facilmente se constata que a alegada nulidade da acusação pública se deve consideradar sanada, porquanto não foi arguida no tempo e local certo, razão pela qual, sem necessidade de maiores considerações, se infere a nulidade da acusação pública por falta de indicação da prova.”

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Desta decisão vieram os arguidos interpor recurso, para o que formularam as seguintes conclusões:

“i. O Ministério Público não cumpriu o ónus de indicação das provas que fundamentam a acusação;

ii. A indicação das provas é um elemento essencial da acusação, já que delimita o âmbito da investigação probatória do tribunal;

iii. O princípio do acusatório que eiva o processo penal impõe ao órgão de acusação a indicação de todos os meios de prova que a sustentam, em ordem a possibilitar a defesa adequada do arguido;

iv. Tal exigência legal não se cumpre com a utilização de fórmulas difusas, vagas, imprecisas ou genéricas, que não permitem ao arguido conhecer os meios de prova que sustentam a acusação que contra si é deduzida;

v. Dizer “Prova: toda a constante dos autos” ou nada dizer é exatamente a mesma coisa, sob pena de patente e manifesta fraude à Lei;

vi. A acusação padece de um erro originário – insuficiência – insuscetível de sanação;

vii. Sendo insuscetível de sanação em fase de julgamento, em homenagem ao princípio do Acusatório, o vicio de que enferma a Acusação Pública, tendo escapado ao saneamento do Meritíssimo Juiz a quo (não tendo sequer que ser invocada), consubstancia nulidade insanável que foi em tempo arguida porque o é a todo o tempo;

viii. O entendimento vertido no despacho ora em crise traduz-se numa injustiça processual que mancha qualquer possibilidade de obtenção de uma justiça material, porquanto obtida à custa dos direitos de defesa dos arguidos, ocultando-lhe os elementos probatórios que suportam a Acusação Pública, atribuindo-lhe um carater vago e de tal modo amplo que coloca em crise a defesa daqueles.

ix. O despacho violou de entre outros os normativos previstos no artigo 311º. nº. 2 e 3. al. c) do Código de Processo Penal.

x. Bem com se encontra em manifesta contradição com os acórdãos supracitados, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que decida pela rejeição da Acusação, por se encontrar ferida de nulidade, determinando a sua devolução para Ministério Público.”

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O recurso foi admitido a subir imediatamente, em separado e sem efeito suspensivo, tendo neste Tribunal da Relação sido ordenado o seu entranhamento nos autos principais, com subida a final e conhecimento conjunto com o recurso da sentença entretanto interposto.

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O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnado pelo seu indeferimento e pela manutenção da decisão recorrida, para o que formulou as seguintes conclusões:

“1.ª O presente recurso deve considerar-se totalmente improcedente.

2.ª Estamos perante uma nulidade que dependia de arguição nos termos do disposto nos art.ºs 120º e 121º do Código de Processo Penal, aquando da notificação do despacho de acusação.

3.ª Compulsados os autos os arguidos foram devidamente notificados da acusação pelo que deveriam, se assim o entendessem, terem alegado a nulidade em apreço o que não fizeram.

4.ª Assim sendo, entendemos estar sanada a alegada nulidade nos termos do disposto nos art.ºs 120º e 121º, ambos do C.P.P., devendo manter-se o douto despacho recorrido.”

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Inconformados com a decisão condenatória, vieram também os arguidos interpor recurso, pugnando pela declaração de nulidade da decisão e pela diminuição das penas aplicadas, para o que formularam as seguintes conclusões:

“i. Com base numa amostragem da faturação da arguida conclui-se que esta já tinha recebido IVA suficiente para liquidar o a entregar ao Estado e, logo, praticaram os arguidos o crime de abuso de confiança fiscal;

ii. Para o cometimento do crime de abuso de confiança fiscal, quando se trate de prestações tributárias referentes a IVA, é necessário que fique demonstrado o efetivo recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado até ao momento da entrega da respetiva declaração periódica à Autoridade Tributária;

iii. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2015, de 2 de junho publicado no Diário da República n.º 106/2015, Série I, de 02/06, Páginas 3502 - 3512, tornou definitivamente assente que, só comete o crime de abuso de confiança quem efetivamente, no prazo legalmente fixado para entregar o meio de pagamento ao Estado, tenha recebido dos seus clientes, pelo menos, € 7.500,00 de IVA;

iv. A sociedade arguida estava abrangida pelo regime de periodicidade mensal, sendo a data relevante o dia 10 do 2.º mês seguinte àquele a que respeitam as operações - cfr. al. a), do n.º 1, do artigo 41. °, do CIVA;

v. Não consta da factualidade provada, que o recebimento de quantia a titulo de IVA de, pelo menos, € 7.500,00, tenha ocorrido no prazo fixado para a sua entrega ao Estado, tão pouco seguindo a linha de raciocínio assumida na sentença, não se fez constar que, da amostragem de faturas analisadas, o montante de IVA recebido em valor suficiente para cobrir aquele a entregar ao Estado e excedendo € 7.500,00 tenha sido, efetivamente recebido, até ao momento da entrega da declaração periódica de IVA;

vi. Isto porque, tal factualidade não constava da Acusação Pública e, ainda, porque não foi objeto de prova nesse sentido;

vii. O método preconizado na sentença a quo e adotado pela Autoridade Tributária revela-se violador de uma igualdade entre o contribuinte e o Estado aquando do apuramento do dever/haver e, bem assim, da quantia a entregar;

viii. O apuramento da quantia a entregar é feito em função da totalidade da faturação, deduzida a totalidade do imposto suportado pelo contribuinte e dedutível, porém, seguindo o raciocínio da Meritíssima Juiz a quo, alcançado que se mostre o crédito do Estado, estará preenchido o tipo legal;

ix. Se o recebimento por parte da arguida dos montantes faturados é apenas parcial - como resultou provado na douta sentença – também o recebimento por parte da Autoridade Tributária deve ser parcial e não, como se pretende, total, respeitando uma proporcionalidade entre ambos os credores porque, no fundo, o contribuinte é credor do montante dedutível e o Estado é credor do montante a entregar por aquele;

x. Não constam da factualidade provada as datas do recebimento parcial ou total do IVA com referência ao momento estabelecido para a entrega de cada uma das declarações e do imposto devido;

xi. Ficaram assim por esclarecer, na factualidade provada, factos essenciais integradores dos ilícitos pelos quais os arguidos estavam acusados,

xii. Padece a sentença revidenda de vício decisório de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, previsto da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P.

xiii. O tribunal a quo na valoração que faz do CRC do arguido ignorou a dispersão temporal das anteriores condenações e o período que mediou até à situação sub judice;

xiv. Sendo requisito do tipo que o gerente tenha agido em nome e no interesse da sociedade, o CRC do arguido pessoa singular não pode ser plenamente valorado para efeitos de medida da pena;

xv. Sendo a sociedade a titular das relações contratuais sujeitas a tributação, a responsabilidade do gerente decorre da responsabilidade da sociedade e não o inverso, sendo à luz desta premissa que o CRC do arguido AA deve ser valorado em termos de determinação de pena a aplicar;

xvi. Sendo o bem jurídico protegido por estes tipo legal o erário público a sua integral reparação, por via do pagamento das quantias devidas, coimas e legais acréscimos reclama acrescida repercussão em sede de pena a aplicar e medida da mesma;

xvii. Sendo um tipo eminentemente patrimonial, a reposição do status quo deve merecer superior valoração;

xviii. Foi considerado como provado que, antes da prolação da sentença revidenda, o arguido procedeu ao pagamento integral das quantias devidas, tendo reposto a verdade sobre a situação tributária.

xix. O artigo 22.º, nº 2 do RGIT consubstancia um poder dever do tribunal, em tal situação, de atenuar especialmente a pena a aplicar ao arguido.

xx. A sentença a quo enferma de nulidade por omissão de pronuncia quanto à imperativa atenuação especial da pena decorrente do pagamento, tendo violado o disposto nº 2 do artigo 22.º do RGIT, no artigo 72.º do Código Penal e o disposto no artigo 397.º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal

xxi. Como resulta provado, o arguido está social, familiarmente e profissionalmente inserido, confessou os factos e demonstrou assimilar a ilicitude e repudiar a conduta que adotou.

xxii. A especial atenuação de pena determinada pela citada norma do RGIT, operando ao nível da culpa, permite que as reclamadas necessidades de prevenção geral e especial se mostrem inteiramente satisfeitas ainda com a aplicação de pena de multa.

xxiii. Ao optar por uma pena de prisão em detrimento de pena de multa, violou a douta sentença o vertido nos artigos 40.º, 71.º e 72.º do Código Penal e artigo 22.º, nº 2 do RGIT.

xxiv. Ainda que se entendesse ser de optar por pena de prisão, sempre o quantum da mesma se mostra violador daquelas disposições legais, desfasado do reclamado pelo caso vertente e desconsiderando a imposta atenuação especial de pena, igualmente em tal cenário violando a sentença em crise o disposto nos artigos 40.º, 71.º e 72.º do Código Penal e artigo 22.º, nº 2 do RGIT.

xxv. A aplicar pena de prisão ao arguido a mesma deve ser fixada pelo mínimo, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova;

xxvi. Deve, assim, ser a douta sentença declarada nula por omissão de pronuncia.

xxvii. Devendo ser revogada na parte ora em crise, aplicando-se ao arguido pena de multa por satisfazer as finalidades que com a mesma se pretendem ou, assim se não entendendo, e optando-se por pena de prisão, ser a mesma fixada pelo mínimo suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova.”

Na sua motivação de recurso, os recorrentes vêm reiterar o interesse no recurso interlocutório por si interposto do despacho que indeferiu o seu requerimento de arguição da nulidade da acusação pública proferida nos autos.

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O recurso da sentença foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso dos arguidos, formulando as seguintes conclusões:

“1.º Atentos os pontos 4, 5 e 6 dos factos dados como provados, a decisão judicial proferida respeitou a jurisprudência fixada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2015, de 2 de Junho, que determinou que só comete o crime de abuso de confiança quem, efectivamente, no prazo legalmente fixado para entregar o meio de pagamento ao Estado, tenha recebido dos seus clientes, pelo menos, € 7.500,00 de IVA., não tendo violado qualquer igualdade entre o contribuinte e o Estado aquando do apuramento do dever/haver e, bem assim, da quantia a entregar.

2.º Da documentação junta aos autos resulta que, relativamente ao mês de Abril de 2019, o valor total das facturas emitidas pela arguida ascende a € 349.170,91 e que, com respeito a essa facturação, o imposto de IVA a favor do Estado ascende a € 32.241,48 – valor que corresponde àquele que a sociedade arguida tem a haver ao Estado, sendo que, feito o encontro de contas, apura-se um crédito de IVA, a favor do Estado, no montante de € 11.458,77 no mês de Abril de 2019.

3.º Já quanto ao mês de Junho de 2019, e porque o valor total das facturas emitidas pela arguida ascende a € 305.950,19 ou € 305.842,38, e porque, com respeito a essa facturação, o imposto de IVA a favor do Estado ascende a € 26.039,25 e pelo facto de, nesse mês, a arguida ter a haver ao Estado o valor de € 18.319,13, feito o encontro de contas, apura-se um crédito de IVA, a favor do Estado, no montante de € 7.720,12, no que concerne a tal mês.

4.º Do cotejo da documentação junta aos autos, corroborada pela senhora inspectora tributária CC, resulta que o crédito de IVA a favor do Estado nas facturas de Abril de 2019 é de € 11.458,77 e nas de Junho de 2019 de € 7.720,12 (ou seja, o valor que a arguida tinha que entregar ao Estado) – já o IVA que foi liquidado, incluído ou cobrado na globalidade das facturas emitidas em Abril de 2019 foi de € 32.241,48 e em Junho de 2019 foi de € 26.039,25 (montantes esses que foram efectivamente pagos pelos clientes ou adquirentes dos bens ou serviços, superiores aos anteriormente referidos).

5.º Assim sendo, concluiu o Tribunal, e bem, que a arguida já tinha recebido, em cada um dos meses em causa, um montante de IVA superior àquele cuja entrega lhe era devida.

6.º No ponto 10 da matéria dada como provada o Tribunal deu por assente que “parte das facturas emitidas pela sociedade arguida em Abril e Junho de 2019 não foram pagas pelos adquirentes dos bens e serviços correspondentes”, contudo, fê-lo pelo facto de a senhora inspectora tributária, em sede de audiência de discussão e de julgamento, ter assumido não ter analisado se toda a facturação emitida nesses meses se encontrava cobrada, uma vez que a triagem de apenas uma parte da mesma lhe chegou para concluir que a arguida tinha recebido IVA em montante superior àquele que teria que entregar aos cofres do Estado.

7.º Pelo exposto, os Recorrentes incorreram numa confusão entre os conceitos de valores correspondentes ao crédito de IVA a favor do Estado e o IVA total que foi liquidado ao consideraram que, se a sentença provou que a arguida recebeu apenas parcialmente os montantes facturados, então o recebimento, por parte da Administração Tributária, também deveria ter sido parcial.

8.º Se é verdade que na decisão judicial se não encontram discriminadas, na factualidade provada, as datas do recebimento do IVA por parte da sociedade arguida, conclui-se que A jurisprudência exige a demonstração do recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado (tal como discriminado no ponto 5 da matéria provada pela douta decisão judicial), mas já não exige a concretização dos períodos temporais em que tal recebimento ocorreu – vide , designadamente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de Dezembro de 2020, relatado por Mouraz Lopes, nas palavras do qual “no caso do IVA, e estando em apreciação a eventual a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, o Tribunal deve levar a cabo a indagação plausível de fazer para determinar quais as quantias efectivamente recebidas [itálico nosso]”.

9.º Consequentemente, e ao contrário do invocado pelos Recorrentes, não ficaram por estabelecer, na factualidade dada como provada, factos essenciais integradores dos ilícitos pelos quais os arguidos vinham acusados, não padecendo a sentença ora recorrida de qualquer vício decisório de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 410.º do Cód. Proc. Penal.

10.º O Tribunal considerou que os arguidos já haviam entregue ao Estado os montantes de IVA referidos no ponto 4 dos factos provados na escolha da medida da pena, ao estabelecer que “atenua a censurabilidade dos factos a circunstância de os arguidos já terem procedido ao pagamento das prestações de IVA recebido e cuja entrega era devida ao Estado”.

11.º Assim sendo, não enferma a decisão judicial em análise de nulidade por omissão de pronúncia, não tendo procedido a qualquer violação do artigo supra citado.

12.º Tanto as necessidades de prevenção geral como especial se afiguram, in casu, majoradas – estas últimas, maxime , atentos os elevados antecedentes criminais averbados ao certificado de registo criminal do arguido.

13.º Ora, ao invés do invocado pelos Recorrentes, os antecedentes criminais do arguido não apontam para uma mera ocasionalidade na prática de crimes mas sim já para uma tendência criminosa, pelo que o Tribunal levou, e bem, em consideração os mesmos enquanto circunstâncias que majoram as necessidades de prevenção especial positiva verificadas no caso, e que impõem a aplicação, ao arguido, de uma pena privativa da liberdade com vista a satisfazer as finalidades da punição.

14.º Ainda que, por um lado, o arguido se encontre social, familiar e profissionalmente inserido, tendo confessado os factos, por outro lado, o facto de o arguido ter já sido condenado, anteriormente, por penas de prisão, ainda que suspensas na sua execução ou substituídas por penas de multa ou de trabalho a favor da comunidade, revela que já não satisfará integralmente as finalidades da punição a aplicação ao arguido de uma pena não privativa da liberdade.

15.º O Tribunal andou bem na sanção aplicada, não tendo incorrido em qualquer violação do disposto nos artigos 40.º, 71.º e 72.º do Cód. Penal.”

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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância relativamente a ambos os recursos.

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo os recorrentes vindo acrescentar ao já por si alegado.

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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

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2 – Objecto do Recurso

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt).

À luz destes considerandos, são as seguintes as questões que cumpre conhecer:

- Nulidade da acusação pública;

- Vício previsto no art.º 410º, nº 2, alínea a) do Cód. Proc. Penal;

- Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;

- Espécie e medida da pena.

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3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

“ A) FACTOS PROVADOS:

. Com relevância para a decisão da causa, julgam-se provados os seguintes factos da acusação pública:

1) A arguida BB, é uma sociedade anónima cujo objecto consiste na actividade de «comércio por grosso de produtos alimentares não especificados e comércio a retalho de pão, produtos de pastelaria e de confeitaria» e encontra-se tributada em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) no regime normal de periodicidade mensal, na área da repartição de finanças de Évora, área na qual desenvolve a sua actividade.

2) O arguido AA era, à data dos factos que adiante se narrarão, único responsável efectivo pela sua gerência.

3) Por força do regime fiscal referido supra, a sociedade arguida, na qualidade de sujeito passivo, é obrigada e proceder ao apuramento e respectiva entrega da declaração do IVA devido, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam as operações e à subsequente entrega à Fazenda Pública até ao dia 10 do mês subsequente àquela declaração.

4) A arguida, nos períodos relativos ao meses de Abril e Junho de 2019, prestou diversos serviços a clientes seus, tendo emitido facturas comprovativas dos mesmos, de onde fez constar o IVA respectivo, destas operações tendo resultado um crédito de IVA a entregar ao Estado no montante de 11.458,77 Euros (onze mil quatrocentos e cinquenta e oito euros e setenta e sete cêntimos cêntimos), relativo ao mês de Abril de 2019, e de 7.720,12 Euros (sete mil setecentos e vinte euros e doze cêntimos), relativo ao mês de Junho de 2019.

5) Tais valores respeitantes a IVA foram pagos na íntegra pelos adquirentes dos serviços da sociedade arguida, e como tal foram recebidos por esta, não tendo a arguida procedido à sua entrega ao Estado.

6) Decorreram já mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal para a entrega das prestações mencionadas, sendo que, após o decurso do prazo de 30 dias após a notificação a que alude o artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, os arguidos não procederam à regularização daqueles montantes.

7) O arguido AA, na qualidade de gerente da sociedade arguida, agindo em representação e no interesse desta, bem como no seu próprio interesse, quis afectar as quantias já referidas, provenientes da liquidação de IVA ao património daquela, bem como ao seu, bem sabendo das obrigações que sobre os mesmos impendia de entregar aquele valor à Administração Fiscal.

8) O arguido AA sabia que tais quantias não lhe pertenciam e, não obstante, quis fazê-las suas, integrando-as no seu património e da sociedade que geria, delapidando patrimonialmente o Estado na quantia global de 19.178, 89 Euros (dezanove mil cento e setenta e oito euros e oitenta e nove cêntimos).

9) Os arguidos agiram em tudo de forma livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

. Com relevância para a decisão da causa, julga-se provado o seguinte facto da contestação:

10) Parte das facturas emitidas pela sociedade arguida em Abril e Junho de 2019 não foram pagas pelos adquirentes dos bens e serviços correspondentes.

. Da discussão em audiência de julgamento, resultou também provado que:

11) Os arguidos já entregaram ao Estado os montantes de IVA referidos na alínea 4) supra.

. Quanto às condições pessoais, sociais e económicas do arguido AA provou-se que:

12) O arguido vive sozinho, em casa própria.

13) Tem 2 filhos maiores de idade e financeiramente independentes.

14) Dedica-se profissionalmente à gestão de empresas do sector da panificação desde há cerca de 30 anos, auferindo actualmente com esta actividade um rendimento líquido de 1.500 Euros mensais.

15) As suas despesas mensais são as normalmente necessárias ao sustento do cidadão comum.

16) Frequentou a escola até ao 8º ano.

. Quanto às condições sociais e económicas da sociedade arguida provou-se que:

17) A sociedade arguida permanece em actividade económica.

18) Emprega cerca de 95 trabalhadores.

19) Tem um volume de negócios de cerca de 2.500.000 Euros por ano.

20) Os factos em discussão foram perpetrados em contexto de dificuldades de tesouraria, advenientes do estrangulamento provocado por atrasos no pagamento dos clientes da arguida, entre os quais entidades públicas.

21) A sociedade arguida apresentou um Plano de Recuperação Económica (ou PER) em Março de 2020, que se encontra em execução.

. Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos resulta assente que:

22) A sociedade arguida tem averbadas no seu registo criminal as seguintes condenações:

a) No processo nº 72/09.2…, do …º Juízo do Tribunal Judicial de …, por sentença proferida em 09-02-2012 e transitada em julgado em 29-02-2012, a arguida foi condenada pela prática em 01-12-2008, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 250 dias de multa à taxa diária de 6 Euros, perfazendo o total de 1.500 Euros, a qual foi extinta em 24-06-2012, por pagamento.

b) No processo nº 28/11.5… do …º Juízo do Tribunal Judicial de …, por sentença proferida em 23-01-2013 e transitada em julgado em 22-02-2013, a arguida foi condenada pela prática, em 14-10-2011, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 25 Euros, perfazendo o total de 5.000 Euros, a qual foi extinta em 07-09-2016 por pagamento.

c) No processo nº 1171/18.5…, do Juízo Local Criminal de …, por sentença proferida em 23-10-2019 e transitada em julgado em 22-11-2019, a arguida foi condenada pela prática em Setembro/2019, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 400 dias de multa, à taxa diária de 10 Euros, perfazendo o total de 4.000 Euros.

d) No processo nº 136/19.4… do Juízo Local Criminal de …, por sentença proferida em 03-06-2020 e transitada em julgado em 03-07-2020, a arguida foi condenada pela prática em Maio/2015 de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 460 dias de multa, à taxa diária de 10 Euros, perfazendo o total de 4.600 Euros.

23) O arguido AA tem averbadas no seu registo criminal as seguintes condenações:

a) No processo 752/09.2… do …º Juízo do Tribunal Judicial de …, por sentença proferida em 25-03-2011 e transitada em julgado em 03-05-2011, o arguido foi condenado pela prática em 01-08-2008, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, com dispensa de pena.

b) No processo nº 47/10.9…, do …º Juízo do Tribunal Judicial de …, por sentença proferida em 20-06-2011 e transitada em julgado em 11-07-2011, o arguido foi condenada pela prática em 20-01-2010, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 4 Euros, perfazendo o total de 600 Euros, a qual foi extinta em 26-04-2013 por pagamento.

c) No processo nº 72/09.2…, do …º Juízo do Tribunal Judicial de …, por sentença proferida em 09-02-2012 e transitada em julgado em 29-02-2012, a arguida foi condenada pela prática em 01-12-2008, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e com sujeição a regras de conduta; a qual foi extinta em 29-08-2014.

d) No processo nº 247/12.7…, do Juízo Local Crimina de … – Juiz …, por sentença proferida em 13-02-2015 e transitada em julgado em 07-04-2015, o arguido foi condenado pela prática em 10-06-2011, de um crime de abuso de confiança fiscal, com dispensa de pena, declarada extinta em 17-05-2021.

e) No processo nº 1171/18.5…, do Juízo Local Criminal de …, por sentença proferida em 23-10-2019 e transitada em julgado em 22-11-2019, o arguido foi condenada pela prática em Setembro/2019, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 230 dias, à taxa diária de 5 Euros, perfazendo o total de 1.150 Euros.

f) No processo nº 72/09.2…, do Juízo Local Criminal de …, por sentença proferida em 17-05-2012 e transitada em julgado em 29-02-2012, a arguida foi condenada pela prática em 01-12-2008, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 2 anos e 6 meses, suspensa e com sujeição a regras de conduta, a qual foi declarada extinta em 29-8-2014.

g) No processo nº 666/11.6…, do …º Juízo Criminal do …, por sentença proferida em 16-02-2012 e transitada em julgado em 01-03-2012, o arguido foi condenado pela prática em Maio/2007, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 9 Euros, perfazendo o total de 1.800 Euros, a qual foi extinta em 15-02-2016 por pagamento.

h) No processo nº 170/09.2…, do …º Juízo Criminal do …, por sentença proferida em 27-07-2012 e transitada em julgado em 01-10-2012, o arguido foi condenado pela prática em Julho/2019, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, na pena de 1 ano de prisão, substituída por 365 dias de multa, à taxa diária de 7 Euros, perfazendo o total de 2.555 Euros, a qual foi extinta em 19-01-2016 por pagamento.

i) No processo nº 28/11.5… do …º Juízo do Tribunal Judicial de …, por sentença proferida em 23-01-2013 e transitada em julgado em 22-02-2013, a arguida foi condenada pela prática, em 14-10-2011, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 10 Euros, perfazendo o total de 2.500 Euros, a qual foi extinta em 07-09-2016 por pagamento.

j) No processo nº 1863/10.7…, do …º Juízo Criminal do …, por sentença proferida em 11-03-2013 e transitada em julgado em 09-04-2013, o arguido foi condenado pela prática em Dezembro/2012, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 2 anos, substituída por 480 horas de trabalho, a qual foi declarada extinta em 03-07-2014 por cumprimento.

k) No processo nº 164/11.8… do Juízo Local Crimina de … – Juiz …, por sentença proferida em 18-06-2014 e transitada em julgado em 03-09-2014, o arguido foi condenado pela prática em 01-12-2008, de um crime de abuso de confiança fiscal, com isenção de pena.

l) No processo nº 136/19.4… do Juízo Local Criminal de …, por sentença proferida em 03-06-2020 e transitada em julgado em 03-07-2020, a arguida foi condenada pela prática em Maio/2015 de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 230 dias de multa, à taxa diária de 5 Euros, perfazendo o total de 1.150 Euros.”

*

3.2.- Mérito do recurso

A) Recurso interlocutório

Os arguidos interpuseram recurso do despacho proferido a 13/05/21, que indeferiu o requerimento em que solicitavam que fosse declarada a nulidade e rejeitada a acusação pública, por falta de menção da prova a produzir, em conformidade com o disposto no art.º 311º, nºs 2 e 3, al. c) do Cód. Proc. Penal.

Prevê-se no art.º 283º, nº 3, alíneas e), f) e g) do Cód. Proc. Penal, que a acusação pública contém, sob pena de nulidade:

“(…) e) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;

f) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;

g) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer; (…)”. Em matéria de nulidades, dispõe o art.º 118º do mesmo diploma que: “1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei. 2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular. 3 - As disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova.”

De entre as nulidades, temos as insanáveis, previstas no art.º 119º do Cód. Proc. Penal, nas quais não se inclui a nulidade invocada pelos recorrentes, e as dependentes de arguição, previstas no art.º 120º do mesmo diploma e sanáveis nos termos do art.º 121º.

A nulidade invocada pelos recorrentes é, assim, uma nulidade dependente de arguição, nos termos do art.º 120º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, e sanável até cinco dias após a notificação da acusação pública, nos termos do nº 3, alínea c) do mesmo preceito legal. ( cf. neste sentido, entre outros, acórdão deste TRE, datado de 10/12/09, proferido no processo nº 17/07.4GBORQ.E1, em que foi relator António João Latas, e Fernando Gama Lobo, in “Código de Processo Penal Anotado”, 4ª edição, 2022, Almedina, pág. 224 e 612).

Ora, compulsados os autos, verificamos que os arguidos foram notificados da acusação pública, por cartas expedidas a 17/12/20, enviadas para as moradas pelos mesmos indicadas nos TIR prestados nos autos, pelo que se impõe considerar as notificações regularmente efectuadas, em conformidade com o disposto nos arts.º 113º e 196º, nº 3, alínea c) do Cód. Proc. Penal.

Assim sendo, não tendo os arguidos vindo aos autos suscitar a nulidade da acusação no prazo de cinco dias após terem sido notificados da acusação pública, a eventual nulidade de que a mesma padecesse tem que se considerar como sanada, estando já sanada quando os arguidos a suscitaram, na sua contestação, entrada em juízo a 24/04/21.

Em face do exposto, impõe-se julgar improcedente o recurso interlocutório interposto nos presentes autos, sem necessidade de ulteriores considerandos.

B) Vício previsto no art.º 410º, nº 2, alínea a) do Cód. Proc. Penal

Como fundamento do recurso da sentença proferida nos autos, invocam os recorrentes o vício formal de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Para tanto, alegam que a consumação de um crime de abuso de confiança fiscal não é indiferente saber se ocorreu, ou não, efetiva cobrança do imposto aos clientes, porquanto para haver responsabilidade criminal é necessário que fique demonstrado o efetivo recebimento do montante relativo ao IVA pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado, sendo que esta factualidade não está dada como provada na sentença recorrida, nem foi feita prova nesse sentido.

Mais alegam que, na decisão da matéria de facto, o tribunal recorrido não indica qual o montante de IVA referente às faturas emitidas em cada período de imposto em questão, que efetivamente tinha sido recebido pela arguida em data que lhe permitisse cumprir a obrigação legal de entrega à administração fiscal, o que integra o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão da causa.

Vejamos se lhes assiste razão.

Dispõe o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) O erro notório na apreciação da prova.

Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.

Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16. ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6.ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).

Há insuficiência da matéria de facto para a decisão quando os factos dados como assentes são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, ou seja, são insuficientes para a aplicação do direito ao caso concreto.

No entanto, tal insuficiência só ocorre quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, porque não se apurou o que é evidente e que se podia ter apurado ou porque o Tribunal não investigou a totalidade da matéria de facto com relevo para a decisão da causa, podendo fazê-lo.

Esta insuficiência da matéria de facto tem de existir internamente, no âmbito da decisão e resultar do texto da mesma.

Neste sentido decidiu o STJ no Ac. de 5/12/2007, proferido no processo nº 07P3406, em que foi relator Raúl Borges, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Ou, como se diz no acórdão deste STJ de 25-03-1998, BMJ 475.º/502, quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado; ou ainda, na formulação do acórdão do mesmo Tribunal de 20-12-2006, no Proc. 3379/06 - 3.ª, o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura.”

No caso em apreço o crime cuja prática é imputada aos recorrentes é o de abuso de confiança fiscal, previsto no art.º 105º do RGIT, pela seguinte forma:

“1 — Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 — Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3 — É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4 — Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.

5 — Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.

6 — (revogado)

7 — Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”

Em face desta disposição legal, para a verificação deste tipo legal de crime é necessário que:

- O agente esteja obrigado a entregar ao credor tributário (administração fiscal) determinada prestação tributária de valor superior a €7500;

- Essa prestação tributária tenha sido deduzida nos termos da lei tributária;

- O agente não proceda à entrega de tal prestação;

- O faça com dolo.

Prevê-se ainda no nº 4, alíneas a) e b) da mesma norma que a não entrega à administração tributária, total ou parcial, de prestação tributária legalmente devida só é punível se tiverem decorridos mais de 90 dias sobre o termo legal da entrega da prestação, e se a prestação comunicada à autoridade tributária através da correspondente declaração, não for paga (acrescida de juros e coima aplicáveis) no prazo de 30 após notificação para o efeito, o que configura uma condição objectiva de punibilidade.

Decorre deste preceito legal que o crime de abuso de confiança fiscal constitui um crime omissivo puro, o qual se considera praticado na data em que termine o prazo para o cumprimento do respectivo dever de entrega, ou seja, consuma-se no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, prevista no nº 7 da norma.

Ora, analisada a decisão recorrida, verifica-se que a factualidade aí descrita permite concluir, sem margem para dúvida, pelo preenchimento pelos arguidos dos elementos objectivos do crime pelo qual foram condenados, porquanto nos nºs 4 e 5 dos factos provados se refere que:

- a sociedade arguida, nos períodos relativos ao meses de Abril e Junho de 2019, prestou diversos serviços a clientes seus, pelos quais emitiu facturas comprovativas dos mesmos, de onde fez constar o IVA respectivo, destas operações tendo resultado um crédito de IVA a entregar ao Estado no montante de 11.458,77 Euros (onze mil quatrocentos e cinquenta e oito euros e setenta e sete cêntimos cêntimos), relativo ao mês de Abril de 2019, e de 7.720,12 Euros (sete mil setecentos e vinte euros e doze cêntimos), relativo ao mês de Junho de 2019;

- tais valores respeitantes a IVA foram pagos na íntegra pelos adquirentes dos serviços da sociedade arguida, e como tal foram recebidos por esta, não tendo a arguida procedido à sua entrega ao Estado.

A condição objectiva de punibilidade supra referida também resulta da factualidade descrita sob o nº 6 e o preenchimento dos elementos subjectivos resulta do apurado sob os nºs 7, 8 e 9 da decisão recorrida.

Na verdade, a sentença em apreço descreve de forma lógica e ordenada os factos apurados, fundamenta os factos de forma coerente, justificando as razões que levaram a tal, e tira as ilações jurídicas dessa factualidade, no tocante à condenação dos arguidos nas respectivas penas.

Face aos factos apurados, a consequência jurídica foi a condenação dos arguidos nos termos constantes da decisão recorrida, pelo que se impõe concluir que não se verifica a invocada insuficiência da matéria de facto apurada para a decisão.

Os recorrentes vêm invocar a verificação deste vício, mas o que decorre da sua argumentação é que não se conformam que se tenha dado como provada a dívida de IVA em apreço, pretendendo ser absolvidos do crime de abuso de confiança fiscal pelo qual foram condenados.

Sucede, porém, que os recorrentes não impugnaram a matéria de facto provada em conformidade com o exigido pelo art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do Cód. Proc. Penal.

Não o tendo feito, não pode este Tribunal de recurso apreciar a factualidade apurada, nem, consequentemente, proceder a qualquer alteração da mesma.

Assim sendo, impõe-se julgar o recurso improcedente quanto a este fundamento.

C) Omissão de pronúncia

Invocam também os recorrentes a nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia, porquanto o Tribunal a quo deu como provado que os arguidos procederam ao pagamento integral da quantia em dívida a título de IVA (vide ponto 11) dos factos provados), o que ocorreu antes da prolação da sentença, mas não se pronunciou quanto ao disposto no nº 2 do art.º 22º do RGIT, onde se determina que: “A pena será especialmente atenuada se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo nela fixado.”.

No que concerne à escolha e medida das penas a aplicar aos arguidos, consta da sentença recorrida que:

“(…) Resulta do artigo 105º, nº 1, da Lei nº 15/2001 de 05/06, conjugado com os artigos 41º e 47º do Cód. Penal, que o crime de abuso de confiança fiscal é punido com pena de prisão de 1 (um) mês até 3 (três) anos ou multa de 10 (dez) dias até 360 (trezentos e sessenta) dias.

Quando praticado por uma pessoa colectiva, os limites mínimo e máximo da pena de multa anteriormente referida são elevados para o dobro, nos termos do artigo 12º, nº 3 do RGIT, ou seja, de 20 (vinte) a 720 (setecentos e vinte) dias, respectivamente.

Sendo o crime em causa punível com pena de prisão ou com pena de multa, no caso do arguido José Parreira, importa escolher a espécie da pena.

A pena deverá satisfazer as finalidades da punição, que no nosso ordenamento jurídico consistem na protecção de bens jurídicos e na reintegração do agente, sendo que a pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa, cfr. artigo 40º, nºs 1 e 2, do Cód. Penal.

Neste momento, há que atender apenas a critérios de prevenção (geral e especial).

As necessidades de prevenção geral são elevadas, estando em causa crimes de natureza fiscal, relativamente aos quais importa imprimir na sociedade a consciencialização da imperatividade do pagamento dos impostos como forma de assegurar satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas, sendo o sistema fiscal pilar fundamental ao bom e regular funcionamento do Estado de Direito Democrático português e das suas instituições.

As necessidades de prevenção especial são muito elevadas atendendo aos antecedentes criminais dos arguidos, que revelam já uma habitualidade na prática de crimes do mesmo tipo ou da mesma natureza, a qual ainda que admitamos possa estar associada aos riscos e dificuldades da vida empresarial tem que ser reprimida porque contrária à lei. Acresce dizer que o arguido AA já foi punido antes com penas de prisão, ainda que suspensas na sua execução ou substituídas por penas de multa ou de trabalho a favor da comunidade, e, não obstante, continuou a incorrer em novos delitos.

Neste contexto, uma pena de multa não mais se mostra bastante para satisfazer as finalidades da punição, optando-se assim pela aplicação de uma pena de prisão ao arguido AA.

Quanto à sociedade arguida, a pena terá de ser necessariamente de multa.

*

A determinação da pena concreta far-se-á dentro dos limites mínimo e máximo definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial, e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, também denominadas circunstâncias gerais comuns ou gerais, devendo o Tribunal abster-se de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido (corolário do “ne bis in idem”), cfr. artigos 71º, nºs 1 e 2 do Cód. Penal e 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.

Acrescenta o artigo 13º do RGIT que “na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime”.

Nesta conformidade, o Tribunal considerou, desde logo:

- A ilicitude dos factos mostra-se mediana, considerando o valor do benefício obtido pelos arguidos e consequente prejuízo patrimonial causado ao Estado, em curto espaço de tempo;

- Atenua a censurabilidade dos factos, a circunstância de os arguidos já terem procedido ao pagamento das prestações de IVA recebido e cuja entrega era devida ao Estado;

- A prática dos factos em contexto de dificuldades de tesouraria da empresa arguida e no âmbito da sua actividade comercial, que ainda perdura e sustenta dezenas de postos de trabalho;

- A dimensão empresarial da sociedade arguida;

- A inserção social, familiar e profissional do arguido AA.

O Tribunal considerou, ainda, as necessidades de prevenção geral e especial, já acima referidas.

Ponderando todos estes aspectos, considera-se justa, proporcional e adequada a pena de prisão de 2 (dois) anos, quanto ao arguido AA, e a pena de multa de 510 (quinhentos e dez) dias, relativamente à sociedade arguida. (…)”

Analisada esta parte da decisão recorrida, constata-se que nada foi dito sobre a atenuação especial da pena, decorrente do pagamento voluntário da quantia em dívida a título de IVA, prevista no art.º 22º, nº 2 do RGIT e regulada pelos arts.º 72º e 73º do Cód. Penal.

O Tribunal a quo teve em conta o pagamento voluntário pelos arguidos das quantias devidas a título de IVA, mas apenas em sede de determinação da medida da pena, não retirando de tal pagamento todas as consequências jurídicas que a lei lhe impunha.

Segundo o art.º 379º, nº 1, alínea c) do Cód. Proc. Penal, é nula a sentença penal quando o Tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, sendo esta nulidade de conhecimento oficioso, atento o disposto no nº 2 do mesmo preceito.

No caso dos autos, verifica-se, efectivamente, uma omissão de pronúncia por parte do Tribunal recorrido quanto a uma questão que a lei lhe impunha que conhecesse, omissão esta que se impõe declarar. Em abono desta posição, veja-se, entre muitos outros, os seguintes Acórdãos, disponíveis in www.dgsi.pt: - Ac. do STJ de 10/12/09, proferido no processo nº 22/07.0GACUB. E1.S1, em que foi relator Santos Cabral: “A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões que o juiz deve apreciar são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art. 660.º, n.º 2, do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer, independentemente da alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual. A “pronúncia”, cuja “omissão” determina a consequência prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença – deve, pois, incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou as razões alegadas. (…) - Ac. do STJ de 5/05/21, proferido no processo nº 64/19.3T9EVR.S1.E1.S1, em que foi relator Nuno Gonçalves: I - A sentença ou acórdão devem ser esgotantes e autossuficientes, no sentido de conhecer da totalidade das pretensões e de conter todos os elementos indispensáveis à compreensão do juízo decisório. II - Omissão de pronúncia significa ausência de conhecimento ou de decisão do tribunal sobre matérias que a lei impõe que o juiz resolva. III - Ocorre quando o tribunal deixa de apreciar e julgar questões de facto e/ou de direito que lhe foram submetidas pelos sujeitos processuais ou que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos e não argumentos mais ou menos hipotéticos, opinativos ou doutrinários.(…)”

Em face de tudo o exposto, impõe-se ordenar o suprimento da nulidade verificada, com a consequente anulação da decisão recorrida e a determinação de prolação de nova sentença da qual conste a apreciação jurídica da aplicação aos arguidos da atenuação especial da pena, decorrente do pagamento voluntário da quantia em dívida a título de IVA, prevista no art.º 22º, nº 2 do RGIT.

Esta nulidade da decisão prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas no presente recurso.

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4. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar:

a) totalmente improcedente o recurso interposto do despacho datado de 13/05/21;

b) parcialmente procedente o recurso interposto da sentença recorrida, cuja nulidade declaram, ordenando a sua substituição por outra sentença que se pronuncie sobre a aplicação aos arguidos da atenuação especial da pena decorrente do pagamento voluntário da quantia em dívida a título de IVA, prevista no art.º 22º, nº 2 do RGIT.

Sem custas ( arts.º 513º e 522º do Cód. Proc. Penal ).

Évora, 9 de Abril de 2025

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco

(Relatora)

Laura Goulart Maurício

Jorge Antunes

(Adjuntos)