Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
INTERESSE EM AGIR
Sumário
I – O interesse processual ou interesse em agir é uma excepção dilatória inominada consagrada no artigo 577º do Código de Processo Civil, que se insere na expressão “entre outras”. II – O interesse em agir traduz a relação de necessidade da tutela judicial e de adequação entre o caminho escolhido e a lesão, ou seja, na necessidade, adequação ou utilidade da demanda, considerado o sistema jurídico aplicável às pretensões, tal como a acção é configurada pelo Autor, e visa impedir a prossecução de acções inúteis. III – Nas acções de simples apreciação negativa o interesse em agir tem de traduzir uma incerteza objectiva e relevante quanto à inexistência do direito ou de um facto. IV – Nas acções de simples apreciação negativa em que é peticionado que se declare que a Ré não é proprietária de um imóvel, quando esta à data de entrada da petição em juízo não era proprietária porquanto já tinha vendido o imóvel a terceiro, verifica-se falta de interesse em agir. V – Se dentro de uma panóplia de acções possíveis a intentar, a Autora opta por uma acção que não é a correcta, atento o princípio da auto-responsabilização das partes, verifica-se a ausência do pressuposto de “interesse em agir”. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
Freguesia de São Vicente Ferreira, pessoa colectiva de direito público, com sede na Rua do Outeiro, nº 17, 9545-535 São Vicente Ferreira, neste acto devidamente representada pela Presidente XX, propôs acção declarativa sob a forma de processo comum contra AA, viúva, residente na ...Ponta Delgada, peticionando que o Tribunal declare que a Ré não é legítima proprietária do prédio urbano, sito na ..., inscrito sob o artigo...º, da freguesia de São Vicente Ferreira, concelho de Ponta Delgada e descrito na Conservatória de Registo Predial de Ponta Delgada sob o número ... da dita freguesia e concelho e sob os artigos ...da dita freguesia e concelho.
Para tanto alegou o Autor, em resumo, que possivelmente no ano de 1991, adquiriu, por contrato verbal de compra e venda celebrado com BB, a moradia sita na ..., actualmente inscrita sob o artigo ...º, da freguesia de São Vicente Ferreira, concelho de Ponta Delgada e descrita na Conservatória de Registo Predial de Ponta Delgada sob o número ... da dita freguesia e concelho, para efeitos de resolução de problemas de habitação do agregado familiar de CC, com quem a Ré foi casada, que àquela data se encontrava em situação de desequilíbrio sócio-económico. Nunca registou a aquisição do referido imóvel a seu favor, mas, até à presente data, continua a efectuar os pagamentos do IMI referentes ao imóvel em causa, por intermédio de DD, neto e cabeça-de-casal da herança de BB.
Apesar de nunca ter efectuado registo de aquisição do imóvel em causa a seu favor, a verdade é que Ré sabia que o imóvel pertencia à Autora, pois a 23 de Junho de 2005 aquela apresentou uma proposta de compra do imóvel à Autora, pelo preço de €15.000,00.
Sucede que a 14 de Outubro de 2021, a Ré efectuou escritura pública de justificação notarial, no Cartório do Dr. Jorge Carvalho, em Ponta Delgada, por meio da qual declarou ser legítima proprietária do imóvel sito à Rua ..., constituído por uma casa moradia, com a superfície coberta de 123,50 m2 e com a área descoberta de 1.476,50 m2, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo P...., da freguesia de São Vicente Ferreira e omissa na Conservatória do Registo Predial.
Por último, alega que na mencionada escritura de justificação notarial, a Ré declara e as testemunhas confirmam que adquiriu o imóvel por contrato verbal de compra e venda celebrado com BB em mil novecentos e setenta e oito, prestando todos falsas declarações na escritura de justificação notarial de 14 de Outubro de 2021.
*
Regularmente citada, a Ré impugnou parcialmente os factos alegados.
Invoca a Ré que o imóvel já não lhe pertence, pois procedeu à sua venda em 16 de Fevereiro de 2024, a EE e mulher FF.
O imóvel era sua propriedade desde 1978, tendo nele vivido toda a sua vida e nele criado os seus filhos, só conseguindo legalizar a situação quando dispôs de recursos financeiros para o efeito.
Concluiu pugnando pela improcedência da acção e consequente absolvição do pedido.
*
Foi determinada a notificação das partes sobre a intenção do Tribunal conhecer da excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir, considerando que a presente acção foi gizada pela Autora no pressuposto da Ré ser proprietária do prédio urbano objecto dos presentes autos, o que não sucedia à data de entrada da acção em Tribunal porquanto a Ré vendeu o prédio a terceiro em 16 de Fevereiro de 2024.
No exercício do contraditório, a Autora alegou que a presente acção é uma acção de simples apreciação negativa proposta contra a Ré, com fundamento no facto da Autora ser a legítima proprietária do imóvel em causa nos autos e a Ré, mediante escritura de justificação notarial, ter declarado ter adquirido tal imóvel, mediante contrato de compra e venda verbal, a BB, em 1978, tornando-se proprietária daquele imóvel, através de usucapião.
Reconhece que a Ré vendeu o imóvel em causa a 16 de Fevereiro de 2024, a terceiros – EE e mulher, FF, mas resulta do pedido que a Autora pretende que seja declarado que a Ré não é proprietária do imóvel em causa, isto é, que não se poderia tornar proprietária do imóvel através de usucapião.
*
Foi proferido saneador sentença que julgou verificada a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir, e consequentemente determinou, nos termos do artigo 577º proémio, 578º e 278º, nº 1, al. e) do Código de Processo Civil, a absolvição da Ré da instância.
*
Inconformado, veio o Autor interpor recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões: “1. O presente recurso vai interposto da douta decisão recorrida que julgou verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir. 2. A circunstância de a R já não ser proprietária do imóvel em causa nos autos, na data da propositura da acção, não determina a falta de interesse em agir da A, ao contrário do que julgou a douta decisão recorrida. 3. A acção é própria, sendo a acção de simples apreciação negativa a forma adequada para obter a declaração de inexistência do direito justificado pela R na escritura pública de justificação notarial outorgada em 14 Outubro de 2021. 4. Há uma evidente incerteza, objectivamente relevante, quanto à inexistência do direito de propriedade de que a R se arrogou. 5. A declaração de que a R não é legitima proprietária do imóvel, porque violou o direito de propriedade da A ao celebrar a escritura de justificação notarial de usucapião, nela prestando falsas declarações – o que carece de tutela judicial - resulta, imperativamente, na nulidade do contrato de compra e venda do imóvel em causa, celebrado entre a R, EE e mulher, FF, nos termos do artigo 892º do Código Civil. 6. A R, embora já não fosse a proprietária do imóvel à data da propositura da presente acção, tinha violado o direito de propriedade da A. 7. Ainda que a A, tendo adquirido o imóvel verbalmente, não tenha registo da aquisição a seu favor. 8. O interesse em agir da A justifica-se porque há um direito de propriedade controvertido sobre o imóvel e o recurso à presente acção é a única forma de tutela do direito da A. 9. Pelo que o presente recurso deve ser julgado procedente e douta decisão recorrida ser substituída por outra que reconheça o interesse em agir da A e que ordene o prosseguimento dos autos até final. JUSTIÇA!”
*
A Ré/Recorrida veio contra-alegar, tendo apresentado as seguintes conclusões: “- A sentença a quo não merece qualquer reparo e deverá ser mantida, nos seus precisos termos. - Com efeito, a douta sentença recorrida não violou quaisquer normas e fez correta aplicação da lei aos factos, e como tal não deverá ser substituída. - Com efeito, pretende a recorrente que seja declarada que a recorrida não é legítima proprietária do prédio em causa nos autos. - A recorrida logrou demonstrar, através da certidão predial, que efetivamente já não é proprietária do referido prédio, por ter procedido à venda do mesmo a terceiros, em momento anterior à propositura da presente ação. - O pedido formulado e eventual sentença condenatória não poderão alterar a realidade jurídica atual. - Sendo a presente ação inútil para o fim pretendido, não tendo a recorrida interesse em agir. - Nem a presente ação constitui o único meio processual da recorrida ver acautelados os seus direitos, pois inclusive já intentou nova ação com processo comum, a correr termos no Juízo Central Civel e Criminal de Ponta Delgada J2, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores com o nº 1480/24.4T8PDL, demandando a ora recorrida e os terceiros que lhe adquiriram o imóvel. - Razão pelas quais deverá a sentença recorrida ser mantida na íntegra. Termos em que o presente recurso deverá ser julgado improcedente, por não provado, e, em consequência, manter-se, na íntegra, a decisão recorrida. JUSTIÇA”
*
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
* II. O objecto e a delimitação do recurso
Colhidos os vistos, sabendo que o recurso é objectivamente delimitado pelo teor do requerimento de interposição (artigo 635º, nº 2 do Código de Processo Civil) pelas conclusões (artigos 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, todos do Código de Processo Civil) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas e, ainda pelas questões que o Tribunal de Recurso possa ou deva conhecer ex officio e cuja apreciação se mostre precludida.
A tanto acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir expostas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Efectuada esta breve exposição e ponderadas as conclusões apresentadas, as questões a dirimir são:
- Apurar se se têm por verificados os requisitos necessários inexistência do pressuposto processual “interesse em agir”.
*
III. Os factos
Factos ou actos processuais referidos e datados no relatório que antecede.
*
IV. O Direito
Veio a Recorrente alegar que ao contrário da decisão de 1ª Instância, o facto da Ré não ser proprietária do imóvel à data de entrada da petição inicial em juízo não determina a falta de interesse em agir da Recorrente porquanto, tratando-se de uma acção de simples apreciação negativa, este é o meio adequado para que a Recorrente obtenha a declaração de inexistência do direito justificado pela Ré na escritura pública de justificação notarial outorgada pela Recorrida em 14 de Outubro de 2011.
Defende ainda a Recorrente que a declaração que a Recorrida não é legitima proprietária do imóvel, porque violou o direito de propriedade daquela ao celebrar a escritura de justificação notarial de usucapião, nela prestando falsas declarações, o que carece de tutela judicial, resulta, imperativamente, na nulidade do contrato de compra e venda do imóvel em causa, celebrado entre a Ré, EE e mulher, FF.
O Tribunal de 1ª Instância entendeu que a pretensão da Autora, com a propositura da presente acção, é já uma realidade jurídica e julgou verificada a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir, determinando, nos termos dos artigos 577º proémio, 578º e 278º, n.º 1, al. e) do Código de Processo Civil, a absolvição da Ré da instância.
Vejamos se assiste razão à Recorrente.
Dúvidas não existem que a Autora intentou a presente acção peticionando que que o Tribunal declare que a Ré não é legítima proprietária do prédio urbano, sito na ..., inscrito sob o artigo ...º, da freguesia de São Vicente Ferreira, concelho de Ponta Delgada e descrito na Conservatória de Registo Predial de Ponta Delgada sob o número ... da dita freguesia e concelho e sob os artigos ...da dita freguesia e concelho.
João de Castro Mendes, in Direito Processual Civil, vol. II, Edição AAFDL, pág. 232, defende que existe interesse em agir quando “o requerente mostrar interesse, já não no objeto do processo, mas no próprio processo em si. O requerente tem de invocar um direito, ou interesse juridicamente protegido, mas teria de invocar, ainda, achar-se o seu direito em situação tal, que necessita do processo para a sua tutela. O requerente deveria mostrar interesse no objeto do processo e interesse no próprio processo”.
Para Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil; Coimbra Editora, 1993, pág. 79 e 80, o interesse processual, ou interesse em agir), “[c]onsiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece”.
Defende Miguel Teixeira de Sousa, in O Interesse Processual na Acção Declarativa, Lisboa, 1989, pág. 6, que o interesse processual é “o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de um direito subjectivo através de um determinado meio processual”.
Quando existe interesse no próprio processo, no recurso à via judicial, na inevitabilidade do pedido de tutela jurisdicional apresentado em juízo, via de regra existe interesse em agir, ou seja, o Autor só tem interesse em agir quando não dispõe de quaisquer outros meios (extrajudiciais) de realizar aquela pretensão.
A necessidade de existência de interesse em agir visa evitar a propositura de acções desprovidas de qualquer efeito, ou seja, de acções sem qualquer efeito útil.
Este pressuposto processual não tem consagração expressa, mas quer doutrinária quer jurisprudencialmente entende-se que se trata de uma excepção dilatória inominada prevista no artigo 577º do Código de Processo Civil quando se lê “entre outras”.
Este pressuposto afere-se através da posição e da tutela que o Autor pretende fazer valer na petição inicial e a sua observância como necessária à propositura de qualquer acção cível
Tal como Antunes Varela, Sampaio e Nora e Miguel Bezerra defendem, in Manual de Processo Civil, 2ª Ed., Revista e Actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pág. 179 e seguintes, “o interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”; isto é a “necessidade justificada, razoável, fundada de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção”.
A Recorrente invoca que propôs uma acção de simples apreciação negativa.
Dispõe o artigo 10º do Código de Processo Civil que: “1 - As acções são declarativas ou executivas. 2 - As acções declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas. 3 - As acções referidas no número anterior têm por fim: a) As de simples apreciação, obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto; b) As de condenação, exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito; c) As constitutivas, autorizar uma mudança na ordem jurídica existente. (…)”.
Tal como se defende no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01 de Junho de 2023, in www.dgsi.pt, e que aqui se segue: “(…) Conforme dá nota Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado; Vol. I, Almedina, 2018, pág. 121) “a falta de utilidade da acção apenas merece por parte do sistema processual uma consequência processual autónoma quando não seja consumida (à semelhança, aliás, da ilegitimidade material) por outros mecanismos processuais”, tendo uma relevância normativa casuística O pano de fundo da falta de interesse processual é o autor usar o direito de acção sem que o réu tenha dado causa, logo, sem necessidade de acesso aos tribunais. A função do interesse processual é a de evitar, antecipadamente, ou de cominar, a posteriori, que os tribunais sejam usados sem necessidade: “se o exercício sem causa do direito de acção não é lícito pode ser desestimulado” (assim, Rui Pinto; Código de Processo Civil Anotado; Vol. I, Almedina, 2018, p. 129). De facto, o interesse processual traduz a necessidade de usar o processo, exprimindo “a necessidade ou a situação objectiva de carência de tutela judiciária por parte do autor, face à pretensão que deduz, ou do réu, à luz do pedido reconvencional que tenha oportunamente formulado. Esta situação de carência tem, de facto, de ser real, justificada e razoável. (…) Essa situação de carência de tutela exprime-se na concreta utilidade da concessão dessa mesma tutela judiciária para a parte que formula a pretensão” (assim, J. P. Remédio Marques; Acção Declarativa à Luz do Código Revisto; 2.ª ed., Coimbra Editora, 2009, p. 393). Mas, não basta uma qualquer necessidade. O interesse em agir determina a existência de uma necessidade justificada, razoável e fundada de lançar mão de um processo ou de fazer prosseguir uma ação. “A incerteza deve ser objectiva e grave. Não basta a dúvida subjectiva do demandante ou o seu interesse puramente académico em ver definido o caso pelos tribunais. Importa que a incerteza resulte de um facto exterior; que seja capaz de trazer um sério prejuízo ao demandante, impedindo-o de tirar do seu direito a plenitude das vantagens que ele comportaria (…). O facto exterior pode ser a negação dum direito do demandante (…) ou a afirmação de um direito (…) contra ele, mesmo que negação ou afirmação apenas verbal (diffamatio ou jactatio). Pode traduzir-se ainda, por ex., em actos do adversário tendentes a fazer valer a sua pretensão (…); na negação de uma autoridade pública (ou até dum tribunal) a reconhecer para qualquer efeito a posição jurídica do demandante; na existência dum documento falso ou de um contrato simulado ou inválido por outro motivo. Por outro lado, a incerteza – costuma acentuar-se – não deve estar em condições de o Autor poder dirimi-la solicitando uma providência judiciária de efeito mais enérgico” (assim, Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Ed., Coimbra, Reimp., 1993, pp. 81-82). A incerteza será objectiva quando “brota de factos exteriores, de circunstâncias externas, e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor. As circunstâncias exteriores geradoras da incerteza podem ser da mais variada natureza, desde a afirmação ou negação dum facto, o acto material de contestação de um direito, a existência dum documento falso até a um acto jurídico (…)” (assim, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora; Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 186-187). A objetividade da incerteza deverá resultar de comportamentos inequívocos e contemporâneos do demandado incompatíveis com a subsistência prática da posição jurídica em causa, que se alega estar perigada. “Não será suficiente, para o efeito, a mera dúvida ou incerteza subjetiva do autor, que assim lança mão da tutela declarativa com vista a um “descargo de consciência”, ou um singelo auspício de que outrem contesta o seu direito, quer na sua existência, quer no seu conteúdo, sem qualquer aparente respaldo na realidade; como se lê num aresto, “não basta a mera previsibilidade de uma actuação material desfavorável aos interesses dos Autores ou a mera previsibilidade de um acto lesivo (…)” (cfr., Daniel Bessa de Melo; “O interesse em agir no processo cível. Em especial, nas ações de simples apreciação”, in Julgar on line, dezembro de 2021, p. 36). Deverá, assim, o autor alegar uma certa materialidade praticada por terceiros inconciliável com o direito cuja titularidade ele arroga, no qual se baseará o seu interesse no suprimento do estado de incerteza, não bastando alegar qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito, “havendo o estado de incerteza de ancorar-se em factos do mundo exterior aptos a suscitar a qualquer sujeito medianamente razoável uma relutância acerca da titularidade ou conteúdo de determinada relação jurídica” (assim, Daniel Bessa de Melo; “O interesse em agir no processo cível. Em especial, nas ações de simples apreciação”, in Julgar on line, dezembro de 2021, p. 38). Por seu turno, a gravidade da dúvida ou incerteza “mediar-se-á pelo prejuízo (material ou moral) que a situação de incerteza possa criar ao autor” (cfr., Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora; Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 186). Ou seja: O referido estado de incerteza deverá ser prejudicial para os interesses do autor, no sentido de comprometer o valor da relação jurídica, a sua negociabilidade ou a sua livre fruição, no sentido de que, a indefinição de uma situação jurídica, cuja clarificação pode ter repercussões prejudiciais para uma parte, permite a esta a propositura da ação (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07-11-2019, Pº 935/18.4T8PTG-1.E1, rel. PAULO AMARAL). Tal prejuízo deverá ser atual e não meramente potencial, embora não seja necessário que, ao tempo da propositura da ação, o prejuízo já se tenha concretizado em toda a sua extensão.
Conforme salienta J. P. Remédio Marques (Acção Declarativa à Luz do Código Revisto; 2.ª ed., Coimbra Editora, 2009, p 394), “[e]ste pressuposto processual assume especial relevo nas acções de simples apreciação. É que, nestas acções, a situação de incerteza quando à afirmação ou à negação do direito ou do facto por parte do réu tem que ser uma situação de incerteza objectiva – que brote de factos exteriores, de circunstâncias externas e não apenas da mente do autor – e, sobretudo, de incerteza grave, que não se traduza num mero capricho. E será grave essa incerteza se for considerável o prejuízo material ou extrapatrimonial causado pela manutenção dessa incerteza”. As acções de simples apreciação são aquelas que se destinam a definir uma situação tornada incerta. Nestas acções, “o autor visa apenas obter a simples declaração (munida da força especial que compete às acções judiciais) da existência ou inexistência dum direito (próprio ou de outrem, respectivamente) ou dum facto jurídico. No 1º caso, dizem-se de simples apreciação (ou mera declaração) positiva; no 2º caso, de simples apreciação negativa (…)” (assim, Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Ed., Coimbra, Reimp., 1993, p. 6; em igual sentido; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora; Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 186). O interesse em agir nas ações de simples apreciação tem lugar quando se verifica um estado de incerteza sobre a existência ou inexistência do direito a apreciar (cfr., Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil; Coimbra Editora, 1993, p. 81). “Nas acções de simples apreciação positiva, esse interesse provém da situação de incerteza em que se encontra o direito, resultante normalmente da sua negação pelo réu. Assim, a acção de simples apreciação positiva só é admissível quando o autor visa afastar a situação de incerteza criada pela conduta do réu (cfr., v.g., RL – 12/3/1992, CJ 92/2, 128). Por exemplo: o autor tem interesse para intentar uma acção de simples apreciação para obter a declaração da sua propriedade sobre um imóvel que é reivindicado (extrajudicialmente) pelo réu” (assim, Miguel Teixeira de Sousa; As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa; Lex, Lisboa, 1995, p. 114).
Conforme refere Daniel Bessa de Melo (“O interesse em agir no processo cível. Em especial, nas ações de simples apreciação”, in Julgar on line, dezembro de 2021, pp. 34-35), “nas ações de simples apreciação o interesse processual prende-se com um estado de objetiva incerteza acerca da existência de dada relação jurídica e do exato conteúdo dos direitos e das obrigações que dela emergem, que acarrete um prejuízo concreto e atual para o demandante, de forma a que a remoção do referido estado de incerteza constitua um resultado útil, juridicamente relevante e impossível de ser atingido sem a intervenção do juiz. (…). Objetividade e prejudicialidade do estado de incerteza e imprescindibilidade da intervenção jurisdicional para a sanar são, assim, os requisitos que insuflam o interesse processual nas ações de mera apreciação. Não havendo qualquer estado de incerteza, ou não sendo este objetivo nem apto a acarretar um prejuízo para o autor, o juiz deverá abster-se de conhecer do mérito da ação, proferindo antes decisão de absolvição do réu da instância”. O pedido de declaração da existência de um direito deve, assim, “decorrer da sequência da alegação de uma determinada situação de conflitualidade entre as partes ou da alegação de um estado de incerteza objectivamente determinado, passível de comprometer o valor da relação jurídica e que se não traduza num mero capricho, ou em um puro interesse subjectivo, para obter uma decisão jurídica” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-10-1999, proc. n.º 99S137, rel. ALMEIDA DEVEZA). (…)”.
Assim, o interesse em agir, pressuposto processual autónomo, cuja falta constitui excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, que conduz à absolvição da instância (artigo 278º, nº 1, artigo 576º, nº 2, artigo 577º e artigo 578º, todos do Código de Processo Civil), traduz a relação de necessidade da tutela judicial e de adequação entre o caminho escolhido e a lesão, ou seja, na necessidade, adequação ou utilidade da demanda, considerado o sistema jurídico aplicável às pretensões, tal como a acção é configurada pelo Autor, e visa impedir a prossecução de acções inúteis.
Revertendo ao caso que aqui nos ocupa, cabia à Autora alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e formular o pedido que pretendem dirigir ao Tribunal.
Conforme se alcança do pedido deduzido e ao qual o Tribunal está vinculado, a Autora não tem interesse em agir.
Em primeiro lugar à data de entrada da petição inicial em juízo a Ré já não era proprietária do imóvel, porquanto, em data anterior, já o havia vendido a terceiro.
Não existe qualquer situação de dúvida que justifique quer a propositura da acção, quer o seu prosseguimento.
Provavelmente a pretensão da Autora passará por uma acção de impugnação de justificação notarial, mas seguramente não será este o pedido a formular.
Continuando a citar o mencionado Acórdão da Relação de Lisboa de 01 de Junho de 2023, “(…) Análogas considerações se deverão tecer quanto à concreta providência requerida pelo autor relativamente ao manancial de soluções conferidas pela lei processual – de facto, num processo marcado pelo paradigma do dispositivo (ao qual se associa, correlativamente, o princípio da autorresponsabilidade das partes na condução do processo), o ordenamento jurídico não pode suprir alegadas falhas na estratégia processual dos pleitantes; embora o autor pudesse logo deduzir uma ação condenatória contra o seu devedor contratual, mas optou antes por uma ação de mera apreciação da validade e eficácia do contrato, não se deslumbra como se possa dizer que, neste último caso, o credor carece de interesse em agir para intentar a ação de simples apreciação (…). “o trilho a seguir deve corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como ele a configura”. Não precisa de ser o único caminho disponível, nem sequer o mais económico deles, bastando ser idóneo a colmatar a lesão asseverada pelo autor. Daí que, embora haja uma carência de intervenção jurisdicional, se a providência requerida não for abstratamente apta à satisfação ou reintegração do direito do autor tal como ele a configura, falece o pressuposto do interesse processual, já que a sentença que julgue procedente a ação não revestiria qualquer utilidade para o demandante. Nos demais casos, ainda que a estratégia seguida pelo demandante aparente não ser a mais sagaz, podendo este ter formulado a sua pretensão noutros termos ou recorrido a outros expedientes processuais, o juiz deverá respeitar a escolha do autor e, assim, pronunciar-se (se as circunstâncias assim o autorizarem) pelo seu interesse processual.(…)”
Neste sentido vide também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04 de Maio de 2022, inwww.dgsi.pt, onde se defende que “(…) O interesse em agir consiste em “o requerente mostrar interesse, já não no objeto do processo, mas no próprio processo em si. O requerente tem de invocar um direito, ou interesse juridicamente protegido, mas teria de invocar, ainda, achar-se o seu direito em situação tal, que necessita do processo para a sua tutela. O requerente deveria mostrar interesse no objeto do processo e interesse no próprio processo”.
Concluindo, acompanhamos a decisão da 1ª instância quando refere que “(…) Para o exercício de um direito, o legislador consagra o livre acesso à Justiça nos termos do art.º 20.º da CRP. Não é, todavia, um direito desregulado, antes pelo contrário: a todo o direito corresponde a acção adequada a faze-lo reconhecer em Juízo, como expressamente determina o n.º 2 do art.º 2.º do CPC. Um dos principais desígnios do legislador é o da proibição de praticar actos inúteis, razão pela qual não pode um interveniente usar de meios que se revelam desnecessários para atingir um escopo já obtido. Visando impedir a prossecução de acções inúteis, o interesse em agir obsta ao conhecimento de mérito e impõe a absolvição do demandado da instância, constituindo excepção dilatória inominada. Na verdade, uma eventual sentença condenatória, em nada alteraria a realidade jurídica actual: a Ré já não é proprietária do prédio, sendo que já não o era à data da propositura da presente acção.(…).
Tendo-se verificada a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir, impõe-se a absolvição da Ré da instância (artigos 577º, 578º e 278º, nº 1, al. e), todos do Código de Processo Civil), e consequentemente confirma-se a decisão da 1ª Instância, improcedendo a apelação.
*
V. Decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em julgar improcedente a apelação e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Lisboa, 10 de Abril de 2025
Cláudia Barata
Jorge Almeida Esteves
Luís Lopes Ribeiro