REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
Sumário

Sumário: (a que se refere o artigo 663º nº 7 do CPC e elaborado pelo relator):
Não viola os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português a sentença estrangeira que homologa acordo de responsabilidades parentais que prevê obrigação alimentar apenas até aos vinte anos de idade do filho.

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
AA, de nacionalidade portuguesa, residente em Lisboa, veio intentar a presente acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira contra BB, de nacionalidade peruana, residente em . Texas 77379, Estados Unidos da América.., requerendo a revisão e confirmação da sentença proferida em 07/12/2007 pelo Tribunal Superior do Condado de Chatham, Estado da Geórgia, Estados Unidos da América, que decretou o divórcio por mútuo consentimento do requerente e da requerida e homologou o acordo dos mesmos quanto à regulação do poder paternal relativo à filha do casal, CC.
Juntou documentos.
A Requerida juntou procuração a favor do seu il. mandatário em 30.11.2024.
A Requerida veio deduzir oposição, em 09.12.2024, invocando a nulidade da citação nos termos do artigo 198º do Código de Processo Civil, uma vez que foi citada na sua residência nos Estados Unidos da América, na língua portuguesa, sem qualquer tradução, e a citação foi indevidamente realizada, porque a citação postal só é devida na ausência de convenção, sendo que no caso concreto se aplica a “Convenção relativa à Citação no Estrangeiro de Documentos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil ou Comercial (doravante designada "Convenção"), celebrada em Haia em 15 de novembro de 1965, da qual Portugal é Estado contratante, promulgada pelo Decreto-Lei n.º 210/71 de 18 de maio. De acordo com o artigo 3.º da Convenção, “A autoridade ou o oficial de justiça competente segundo as leis do Estado de origem dirigirá à Autoridade central do Estado requerido um pedido de acordo com a fórmula anexa à presente Convenção, sem que haja necessidade da legalização dos documentos ou de qualquer outra formalidade equivalente. O pedido deverá ser acompanhado do acto judicial ou da sua cópia, com os respectivos duplicados.” (…) segundo o estipulado no artigo 5.º, do mencionado Diploma Legal, “A Autoridade central do Estado requerido procederá ou mandará proceder à citação do destinatário ou à notificação do acto: a) Quer segundo a forma prescrita pela legislação do Estado requerido para as citações ou notificações internas dirigidas às pessoas que se encontram no seu território; b) Quer segundo a forma própria pedida pelo requerente, a menos que a mesma seja incompatível com a lei do Estado requerido. Salvo o caso previsto na alínea 1.ª, letra b), o acto poderá sempre ser entregue ao destinatário que voluntariamente o aceitar. Se o acto dever ser objecto de citação ou de notificação conforme o disposto na alínea 1.ª a Autoridade central poderá exigir que o acto seja redigido ou traduzido na língua ou numa das línguas oficiais do seu país. A parte do pedido feito de acordo com a fórmula anexa à presente Convenção, contendo os elementos essenciais do acto, será entregue ao destinatário.”
Mais invocou a não demonstração da genuinidade do documento que titula a sentença dada à revisão, acusando-lhe a falta de três páginas, que juntou.
Mais invocou que a decisão revidenda “conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, pois que as responsabilidades parentais relativas a CC, filha do casal, se limitam até “a criança atingir a idade de dezoito anos, casar, falecer ou de alguma forma ficar emancipada, ou enquanto a criança estiver matriculada e for à escola secundária sem ultrapassar os 20 (vinte) anos de idade”, sendo que “de acordo com a Lei Portuguesa, designadamente, no artigo 1880.º, do Código Civil (CC), “Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.”
O Requerente pronunciou-se pelo bem fundado da sua pretensão.
Cumprido o artigo 982º do Código de Processo Civil, o Ministério Público pronunciou-se pela falta de razão dos argumentos da oposição e o requerente alegou no sentido do deferimento da sua pretensão.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
II. Direito
As questões a decidir são as de saber se ocorre a nulidade da citação, se está demonstrada a autenticidade do documento e se a revisão da sentença conduz a um resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
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III. Matéria de facto
- Requerente e Requerida casaram em .../.../2003, em Columbia, Condado de Richland, Estado da Carolina do Sul, Estados Unidos da América.
- Por sentença proferida em 07/12/2007 pelo Tribunal Superior do Condado de Chatham, Estado da Geórgia, Estados Unidos da América, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento do requerente e da requerida e homologado o acordo dos mesmos quanto à regulação do poder paternal relativo à filha do casal, CC, consignando-se, além do mais, que: “A) O marido pagará à esposa como apoio à criança, o equivalente de 20 dólares dos EUA por semana, a começar em novembro de 2007, daí em diante a cada duas semanas até a criança atingir a idade de dezoito anos, casar, falecer ou de alguma outra forma ficar emancipada, ou enquanto a criança estiver matriculada e for à escola secundaria, sem ultrapassar os 20 (vinte) anos de idade”.
- Nas três páginas que a opoente juntou e acusou como estando em falta na sentença junta pelo requerente lê-se, na primeira, texto manuscrito, “this letter is to release my benefits to my husband Lino (…) in full. Any payments or land benefits must be forward to him (…)”; Na segunda folha lê-se uma carta dirigida ao casal sobre “Availability of Relocation Assistance Benefits”; na terceira folha a continuação da mesma carta.
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IV. Apreciação
Da nulidade da citação:
Dispõe o artigo 191º nº 1 do Código de Processo Civil que é nula a citação quando, na sua realização, não hajam sido observadas as formalidades prescritas na lei. E dispõe o nº 4 do mesmo preceito que a arguição só é atendida se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citando.
A citação destina-se a dar conhecimento a alguém que foi proposta contra si determinada acção e se chama o citando ao processo para se defender – artigo 219º do Código de Processo Civil. Donde, a citação destina-se a permitir que o citando se defenda de modo integral.
Em consequência, existir convenção cujo formalismo houvesse que ser observado e excluísse a citação por via postal, na realidade traduz-se em nada, conquanto, quer por um meio quer por outro, se demonstre que a pretensão deduzida contra a citanda lhe permitiu integralmente perceber essa pretensão e defender-se dela. O mesmo se aplica para a invocação de que os documentos que acompanharam a citação não estavam traduzidos. Nenhuma destas circunstâncias impediu a citanda de compreender que era pedida a revisão e confirmação da sentença do seu divórcio, e de vir ao processo defender-se, como se defendeu, dizendo que a sentença não pode ser revista porque ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, na medida em que a sentença incluiu o acordo de regulação das responsabilidades parentais, que atribuía prestação alimentar à filha do casal só até aos vinte anos, ao contrário da lei portuguesa, que a admite até à conclusão do ensino superior.
Não resulta da oposição que houvesse qualquer outra linha de defesa que a citanda pudesse deduzir se tivesse em seu poder a tradução dos documentos, ou se tivesse sido citada com as formalidades previstas na Convenção de Haia de 15.11.1965.
A nulidade em causa não pode, pois, proceder – artigo 191º nº 4 do Código de Processo Civil.
Da autenticidade do documento:
A suposta falta de folhas no documento que o requerente juntou como sendo a sentença revidenda foi suprida pela própria requerida, ao juntar as três folhas, relativas a dois documentos que nenhuma relação têm com a questão essencial dos autos, que é de saber sobre a ofensa dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português. Até porque, no sistema de revisão de sentenças estrangeiras, o tribunal português não faz qualquer julgamento de mérito mas um simples controlo formal, sendo completamente indiferente se a requerida prescindiu dos eventuais direitos que lhe resultassem de um qualquer projecto de realojamento a favor do requerente. O que nos interessa é apenas saber se é verdade, se é autêntico, o documento que incorpora a decisão do tribunal estrangeiro que decreta o divórcio, pois se reconhece ao requerente, nacional português, o direito e o dever de ter o seu estado civil devidamente actualizado no registo civil português.
Visto que o documento que o requerente juntou contém a parte que interessa ao controlo formal deste tribunal, visto que a requerida não vem dizer que não se divorciou nem que a sentença do divórcio é falsa, então não há como negar estar demonstrada a autenticidade do documento, até porque devidamente apostilado.
Da ofensa dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português:
Socorramo-nos do acórdão proferido nesta Relação e Secção no processo 2247/20.4YRLSB-6 de 6.5.2021 (Rel. Des. Gabriela Fátima Marques):
No dizer do Supremo Tribunal de Justiça, “a excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na al. f) do art. 1096º só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende. Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem (…) decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português - núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, mas operando em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira. O cabimento daquela reserva só, por conseguinte, se verifica quando o resultado da aplicação do direito estrangeiro contrarie ou abale os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior dignidade e transcendência, sendo, por isso, "de molde a chocar a consciência e a provocar uma exclamação" (acórdão de 21.02.2006, www.dgsi.pt, processo 05B4168).
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, in CPC Anotado Vol. II, pág 429, fazem uma resenha jurisprudencial qua assinala as características da ordem pública internacional, como sendo: «(i) a imprecisão; (ii) o cariz nacional das suas exigências (que variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles); (iii) a excepcionalidade (por ser um limite ao reconhecimento de uma decisão arbitral putativamente estribada no princípio da autonomia privada); (iv) a flutuação e a actualidade (intervém em função das concepções dominantes no tempo do julgamento, no país onde a questão se põe); e (v) a relatividade (intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado português).» (cf. Ac do STJ de 26/09/2017 in www.dgsi.pt- proc. nº 1008/14.4YRLSB.L1.S1). Concluindo-se ainda, com base no mesmo aresto, que: «(…) é altamente consensual a ideia de que o mesmo é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que, pela sua relevância, integram a Constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo os que tutelam direitos fundamentais, que não só enformam como também conformam a ordem pública internacional do Estado, o mesmo sucedendo com os princípios fundamentais do Direito da União Europeia e ainda com os princípios fundamentais nos quais se incluem os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária, quanto de fonte nacional.».
Que a obrigação do requerente de prestar alimentos a favor da filha do casal dure até aos vinte anos de idade desta em vez de até aos vinte e cinco, no caso de se encontrar a frequentar ensino superior, de modo algum se pode entender violar a tutela fundamental da Constituição Portuguesa relativamente ao direito ao desenvolvimento da personalidade e ao direito e dever de educação e manutenção dos filhos pelos pais, sendo manifesto que o limite etário também entre nós está condicionado pela noção de falta de auto-suficiência do alimentando conjugada com o efectivo esforço de aprendizagem, ou seja, que a lei portuguesa admite perfeitamente que a obrigação alimentar cesse antes desse limite etário.
Não se concede assim que a revisão da sentença produza na ordem jurídica portuguesa resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
No mais, no presente caso não se suscitam dúvidas sobre a inteligibilidade da decisão e seu alcance. A sentença estrangeira, objecto de apreciação, transitou em julgado. Do processo não consta qualquer elemento donde se possa retirar a existência de uma situação de litispendência ou de caso julgado, com fundamento em causa afecta a um tribunal português, nem que não tenham sido cumpridos os princípios do contraditório e da igualdade das partes. Nada leva a concluir que, a sentença cuja confirmação é pretendida, provenha de Tribunal ou entidade cuja competência tenha sido provocada em fraude à lei. A matéria sobre a qual a sentença versa não é da exclusiva competência dos Tribunais Portugueses – artigo 63 do CPC.
Tendo em conta tudo o referido, conclui-se pela verificação de todos os pressupostos a que a lei manda atender para que a sentença possa ter eficácia em Portugal.
Assim, sendo também certo que o requerente tem legitimidade para tal e manifestou o interesse em que aquela sentença ou documento equivalente produza efeitos em Portugal, deve ser deferida a sua pretensão de revisão.
Custas pela requerida – artigo 535º nº 1, parte final, do Código de Processo Civil.
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V. Decisão
Nos termos supra expostos, acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder a revisão e confirmação da sentença proferida em 07/12/2007 pelo Tribunal Superior do Condado de Chatham, Estado da Geórgia, Estados Unidos da América, através da qual foi decretado o divórcio por mútuo consentimento do requerente AA e da requerida BB e homologado o acordo dos mesmos quanto à regulação do poder paternal relativo à filha do casal, CC.
Custas pela requerida.
Registe e notifique.
Após trânsito, cumpra-se o disposto no artigo 78º do Código Registo Civil.

Lisboa, 24 de Abril de 2025
Eduardo Petersen Silva
Jorge Almeida Esteves
Teresa Pardal
Processado por meios informáticos e revisto pelo relator