SENTENÇA ARBITRAL
RECURSO
ANULAÇÃO
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
CONSUMO
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
REPARAÇÃO DE DEFEITOS
PRAZO DE GARANTIA
Sumário

-Ao recurso da sentença arbitral (como o destes autos) não pode cumular-se o pedido da sua anulação, como o fez a recorrente;
- A relação jurídica em causa nestes autos é uma relação jurídica de consumo, razão pela qual o reclamante/recorrido, para além da proteção jurídica conferida pela Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.° 24/96, de 31 de Julho, na sua actual redação), encontra-se tutelado pelo regime jurídico previsto no Decreto-Lei n° 84/2021, de 18 de Outubro;
- Ocorrendo venda de bens de consumo defeituosos, ao comprador basta alegar e provar a anomalia ou o mau funcionamento da coisa, durante o prazo da garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa dessa anomalia ou do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega; ao vendedor, para se ilibar da responsabilidade, incumbe alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega a coisa vendida e imputável ao comprador, a terceiro ou devida a caso fortuito;
- Verificados os pressupostos legais para poder a recorrente/vendedora ser responsabilizada pela falta de conformidade do bem com o contrato, confere ao recorrido/comprador os direitos tutelados pelo art.15.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro;
-À luz da hierarquização de direitos conferidos ao comprador, se tomarmos em conta o preceituado no nº 4 do art. 18º do Decreto-Lei n.º 84/2021 no qual se prescreve que - “Em caso de reparação, o bem reparado beneficia de um prazo de garantia adicional de seis meses por cada reparação até ao limite de quatro reparações, devendo o profissional, aquando da entrega do bem reparado, transmitir ao consumidor essa informação”(sublinhados nossos)-não é nossa posição, interpretar o mencionado preceito no sentido de equiparar a expressão reparações a tentativas de reparações ineficientes;
- No caso dos autos foram feitas, entre 05/08/2022 e 31/03/2023, três tentativas de eliminar o defeito, pelo que é inteiramente aplicável a al. b) n.° 4 do art. 15.° do Decreto-Lei n.º 84/2021 que permite ao consumidor optar pela resolução do contrato, nomeadamente, quando a falta de conformidade tenha reaparecido apesar da tentativa do profissional de repor os bens.

Texto Integral

Acordam em conferência os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. O relatório
AA deduziu reclamação no Centro de Arbitragem do Sector Automóvel contra, .BB, Lda
Alegando e peticionando:
A Reclamada tem por objecto social o Comércio e manutenção automóvel, comércio a retalho de peças e acessórios para veículos automóveis, importação e exportação de veículos, atividades de consultoria para negócios, gestão e financeira e atividades de aluguer de veículos ligeiros aprovados para o efeito, sem condutor, com ou sem serviços de manutenção.
Em 26 de Abril de 2022, o Reclamante adquiriu à Reclamada, após ter visualizado anúncio profissional da Reclamada no Sand Virtual, o veículo automóvel ligeiro da marca Volskwagen, modelo Golf, com a matrícula AO-..-IV, no qual, à data, não foi assinalada qualquer desconformidade, pelo valor de €27.127,44 (vinte e sete mil cento e vinte e sete euros e quarenta e quatro cêntimos) - cfr. Declaração de declaração de venda emitida pela Reclamante, inspecção Técnica que foi entregue ao Reclamante, e anúncio de venda identificando o anúncio profissional que se juntam como documentos 1 a 3.
Desde a data da aquisição do veículo, que o mesmo tem vindo a apresentar sucessivas desconformidades, que levaram ao accionamento da garantia, logo na segunda semana após a aquisição.
De tais factos foi sempre dado conhecimento à Reclamada.
Posteriormente, o veículo continuou a apresentar desconformidades, e que levaram de novo ao accionamento da garantia, em Junho de 2022, Setembro de 2022, e Janeiro de 2023 - cfr. Documentos que se juntam como Doc. 3 a 6.
Todas as desconformidades estavam relacionadas com o consumo de óleo, e respectivos filtros, o funcionamento do filtro de partículas, radiador, bomba de água, juntas, cabeça de motor entre outros, devidamente sinalizados e alvo de ordem de reparação por parte da sociedade de garantia - cfr. mesmos Does. 3 a 6.
As reparações do veículo duraram mais do que os 30 dias recomendados, chegando o veículo a estar imobilizado por mais de 60 dias de cada vez, o que levou a que o Reclamante estivesse privado do uso do mesmo, e impedido de se deslocar em veículo próprio, durante um período muito superior àquele em que o veículo esteve apto para a sua utilização.Não obstante as quatro (4) reparações de que o veículo foi alvo, no espaço de menos de um ano, continuou o mesmo a apresentar sucessivas desconformidades ao nível do consumo de óleo e funcionamento do motor, que levaram a que, na semana de 22 de Maio de 2023 tivesse que ser novamente imobilizado.
Desde a compra do veículo, o que se verificou, foi que o bem vendido pela Reclamada não era adequado nem ao fim que se destinava, nem apresentava as qualidades normais de um veículo automóvel, na medida em que não era expectável que um veículo automóvel, no espaço de apenas um ano, estivesse avariado mais tempo do que a circular, e como tal impedisse o seu normal uso, não se adequando assim ao seu fim, que é o transporte de passageiros.
Pelo que resulta evidente das circunstâncias, que a falta de conformidade do veículo, 3 reaparecidas sucessivas vezes, apesar das tentativas de reparação, e que, sucessivamente vinham a ocorrer novas faltas de conformidade. Em consequência,
Em 26 de Maio de 2023 o Reclamante, invocou, junto da Reclamada o direito à resolução do contrato de compra e venda, nos termos e para os efeitos dos art.° 15.° e 20.° do Decreto-Lei n.° 84/2021, de 18 de outubro, e requereu que a mesma, de acordo com o legalmente estabelecido, e no prazo máximo de catorze (14) dias:
procedesse à remoção do veículo, a suas expensas;
reembolsasse o Reclamante do preço pago pelo veículo de €27.127,44, acrescido do valor de 0,50% referente à comissão de reembolso antecipado devida à Cofidis, nos termos do contrato de crédito intermediado pela Reclamada que ora se junta como Doc. n.° 7, tendo em conta que a mesma é responsável pelos custos em consequência do reembolso perfazendo assim o valor de 27 263,07€ (vinte e sete mil cento e vinte e sete euros e quarenta e quatro cêntimos — tudo conforme Doc. n.° 8 que ora se junta.
Mais interpelou o Reclamante à Reclamada que efectuasse o respectivo reembolso através do mesmo meio de pagamento que foi pelo Reclamado utilizado - cfr. mesmo Doc. n.° 8.
Volvidos os catorze (14) dias legalmente previstos, a Reclamada, não tomou nenhuma das condutas acima mencionadas, antes se furtando à sua responsabilidade, permanecendo 0 Reclamante, privado do uso do seu veículo, desde então
O veículo em causa era usado, diariamente, pelo Reclamante, para a sua deslocação de casa-trabalho-casa, e ainda na sua vida pessoal, pelo que, deverá ainda o mesmo ser 4 indemnizado pela privação de uso do mesmo, num valor nunca inferir a €5,00/dia, desde 0 dia 22 de Maio de 2023, o que se computa, na presente data, em €785,00.
Pelo que o Reclamante requer a intervenção do Centro de Arbitragem, com o objectivo de dirimir o litígio entre Reclamante e Reclamada, de acordo com o supra exposto, na sequência da resolução do contrato, com a devolução do preço pela Reclamada, acrescida do mais peticionado.
A que acrescem,
Os juros vencidos à taxa supletiva legal, desde a citação e os juros vincendos até integral pagamento.
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A ora recorrente/reclamada deduziu oposição, pugnando pelo não atendimento da pretensão da recorrida/reclamante.
***
O Centro de Arbitragem do Sector Automóvel (adiante designado por CASA) proferiu sentença arbitral, com o seguinte conteúdo decisório:
Em face do exposto e na parcial procedência da reclamação:
a) declara-se a licitude da resolução do contrato celebrado entre Reclamante e Reclamada e operada pelo primeiro em 26/5/2023:
b) condena-se a Reclamada a devolver ao Reclamante o valor de €27.263,07;
c) condena-se o Reclamante a devolver à Reclamada o veículo com a matrícula AO. devendo a respetiva remoção ser suportada pela Reclamada
d)Ao montante da condenação da Reclamada acrescem juros de mora, desde a citação da reclamada (23/11/20231 até efetivo e integral pagamento, que totalizam, na presente data €639,38.
***
Inconformada com a decisão, .BB, Lda interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1ª O presente recurso vem interposto da decisão arbitrai n° 1789/CASA/2023 Que declarou a ilicitude do contrato e condenou o recorrente a devolver ao recorrido o montante de €27.263,07, valor pago pela aquisição da viatura AO-..-IV.
2a A decisão é recorrível nos termos dos artigos 33°, n° 1, al. b); 39°, n° 4; 46° da Lei n° 84/2021, de 18 de outubro.
Da divergência entre os factos provados e a fundamentação

É dado como provado nos pontos 11, 12, 13, 14 e 15 que o veículo foi sujeito a três intervenções.
4a
Porem a decisão arbitrai na sua fundamentação sustentou que “ora, os problemas de consumo anómalo de óleo, que motivaram a primeira das 4 vezes em que a garantia foi acionada persistem na presente data”
5a
Foi dado como provado no ponto 16 que “ em nenhuma das vezes que foi contactada, a SNG se recusou a analisar e reparar o AO.”
6a
Sendo certo que foi dado como provado no ponto 20 que “em junho de 2023, o reclamante foi contactado pela SNG para um novo encaminhamento do AO para a oficina, não tendo respondido a essa solicitação.”

Em momento algum foi dito ao reclamante que o defeito não era passível de resolução pelo que, com o devido respeito mal andou a decisão arbitrai ao decidir como decidiu da forma mais gravosa e penalizadora para o recorrente não tendo em conta que o veiculo já fez mais de 20.000 mil quilómetros, que o reclamante rebaixou o veiculo alterando a suspensão do mesmo e as características do mesmo.
8a
A anomalia em questão não afeta em nada a funcionalidade do bem e é passível de reparação.
9a
A reparação representa um remédio natural e de primeira ratio, sendo que apenas deverá haver lugar á resolução contratual se não for possível reparar a anomalia.
10a
Por outro lado, o princípio do aproveitamento dos negócios jurídicos deve impor a prevalência de soluções que conduzem á integral execução do negócio sobre resoluções que impliquem a sua ineficácia total ou parcial.
11a
No caso dos autos entendemos que primeiro está o vendedor adstrito a eliminar o defeito e só não sendo possível se poderá falar na resolução contratual. No caso de compra e venda de coisa defeituosa o direito á reparação previsto no artigo 914° do Código civil e também no artigo 18° do DL 84/2021 de 18 de outubro que estabelece o regime legal aplicável á defesa dos consumidores, não constituem pura alternativa ou opção oferecida ao comprador, antes se encontrando subordinados a uma sequencia lógica, sendo que primeiro o vendedor está adstrito a eliminar o defeito.
12a
Reza o n° 3 do artigo 15 do citado Decreto Lei que “O prazo para a reparação ou substituição não deve exceder os 30 dias, salvo nas situações em que a natureza e complexidade dos bens, a gravidade da falta de conformidade e o esforço necessário para a conclusão da reparação ou substituição justifiquem um prazo superior.”
13a
Continua o n° 4 do mesmo diploma que “em caso de reparação, o bem reparado beneficia de um prazo de garantia adicional de seis meses por cada reparação até ao limite de quatro reparações.,..”
14a
Pelo que, salvo o devido respeito se infere que em casos de natureza complexa, como o caso dos autos, o numero de quatro reparações é um número razoável pelo que mal andou a decisão arbitrai ao decidir como decidiu da forma mais gravosa sem cuidar de observar o escalonamento que se retira da norma no que concerne aos direitos do consumidor e sem observar que o recorrido não permitiu a quarta reparação.
Do Pedido de anulação (artigo 46°, alínea v)
15a
A decisão recorrida enferma de omissão de pronuncia devendo ser anulada com este fundamento a fim de ser apreciada e decidida a questão jurídica suscitada pelo reclamado da recusa de submissão do seu veiculo á reparação pela SNG pela quarta vez na expectativa de encontrar e expurgar a anomalia, nos termos do disposto nos números 1 a 4 do artigo 18° do DL n° 84/2021 de 18 de outubro.
16a
Violou a decisão recorrida o disposto na alínea v) do artigo 46° da Lei n° 63/2011 de 14 de dezembro.
17a
Salvo o devido respeito o tribunal deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar. 18a
O tribunal deu como provado no ponto 20 que “em junho de 2023, o reclamante foi contactado pela SNG para um novo encaminhamento do AO para a oficina, não tendo respondido a essa solicitação”
18a
O recorrente juntou um e-mail enviado pela SNG a informar que agendou uma marcação para diagnostico e reparação da viatura do reclamante e que o mesmo nem respondeu nem apareceu. Prova que se quer renovada.
19ª
O reclamante desinteressou-se completamente pelo assunto, agindo em claro abuso de direito para com essa conduta vir peticionar, como peticionou, a resolução do contrato, pedindo a restituição de todo o dinheiro pago pelo veículo mesmo sabendo que já fez com o mesmo mais de 20.000 mil quilómetros e que já lhe alterou as características nomeadamente, rebaixando o carro, alterando a suspensão por outra que não é a homologada para aquela marca o que faz com que o carro desvalorize economicamente e não passe na inspeção de forma legal.
20a
Nesse sentido o tribunal deveria ter-se pronunciado por esta questão de relevo para o desfecho do presente litígio pois ficou por saber se o veículo após a quarta reparação ficaria expurgado da anomalia ou se pelo contrário a mesma persistiria.
21a
O certo é que a anomalia em questão nunca impediu o uso do veículo pelo reclamante, que fez com o mesmo bastante quilómetros e apenas deixou de andar porque assim o decidiu e não porque avariou.
22ª
Mal andou o tribunal arbitrai quando deixou de se pronunciar por uma questão da qual se deveria pronunciar pelo que deve a sentença ser anulada e repetir-se o julgamento noutro tribunal arbitrai ou com outro arbitro, a fim de se produzir prova sobre esta questão e se necessária para que se faça a almejada justiça.
Da impugnação da matéria de facto
23a
Considera o recorrente que não foram devidamente valorados, apreciados e considerados, factos e meios de prova extremamente relevantes que, no entender da recorrente teriam necessariamente conduzido o tribunal a concluir por decisão diferente, ou seja, pela reparação ao invés da resolução.
24a
O documento junto em sede de julgamento, que não foi impugnado, e que aqui se dá por inteiramente reproduzido onde a SNG em e-mail enviado para a recorrida em 12-10-1023 onde se prova que o recorrido se recusou a comparecei- á quarta reparação
25ª
Por outro lado, o documento junto aos autos pelo reclamante datado de 5-8-2022, que é uma fatura referente a uma reparação efetuada pela reparadora CC e paga pela SNG, refere no campo da descrição, nomeadamente “muito consumo de óleo e não pinga para o chão”
26a
Concatenando estes dois documentos com o depoimento das duas testemunhas que foram perentórias em afirmar que nunca a SNG se recusou a prestar qualquer assistência e atendendo ao facto de o veiculo consumir muito óleo e não pingar para o chão o que torna mais complexo o diagnostico para encontrar a efetiva origem do problema pelo que não é irrazoável submeter-se o veiculo a quatro reparações e isso mesmo resulta do disposto no numero 4 do artigo 18° do DL 84/2021 de 18 de outubro.
Pelo que aqui impugnamos a matéria de facto que se fosse bem apreciada levaria sem sombra de dúvidas a decisão diferente. Prova que se quer renovada.
Da impugnação da decisão recorrida quanto á matéria de direito
27a
No que respeita á matéria de direito entende o recorrente que a decisão recorrida fez uma interpretação errada das normas aplicáveis designadamente do regime jurídico da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas e do código civil.
28a
Nunca houve inércia por parte da recorrente em relação á reparação e o prazo de trinta dias é aceitável no caso em análise atenta a complexidade de encontrar a anomalia em questão.
29a
Não se compreende como pode ter-se considerado preludiada a possibilidade da reparação e tenha o tribunal decidido pela resolução ao arrepio das disposições legais que são em ordem a um escalonamento e ao aproveitamento do negócio jurídico, pelo que o recurso á ideia de proporcionalidade seria suficiente para obstaculizar ou impedir a pretensão do recorrido de exigir da recorrente a resolução do contrato.
30a
Caso seja mantida a decisão de resolução contratual e entrega do valor total pago pelo recorrido ao recorrente o recorrido irá enriquecer ilicitamente e sem causa justificativa á custa da recorrente, tendo nesse caso esta a receber daquele o valor correspondente a esse enriquecimento (V. artigo 473° do Código Civil), pois:
31a
Ao receber o valor integral pago no momento da aquisição do veiculo, que já circulou mais de 20.000 mil quilómetros e foi alterado mecanicamente nomeadamente rebaixado e substituídas as suspensões por suspensões por outras que alteram as características do carro diminuindo- lhe o seu valor económico, o recorrido irá enriquecer á custa do recorrente na proporção da desvalorização que causou ao veiculo quer com os quilómetros que percorreu, quer com as alterações que lhe efetuou pelo que o carro tem de ser submetido a uma perícia e a uma inspeção para aferir da desvalorização que efetivamente o recorrido causou.
32a
O enriquecimento do recorrido carece de causa justificativa já que falta um facto que justifique a resolução contratual, nomeadamente a recusa pelo recorrido de não sujeição do veículo á quarta reparação, noa termos do n° 4 do artigo 18 do DL 84/2021 de 18 de outubro.
33a
A decisão recorrida violou além do mais, o disposto nos artigos 18°, n° 1 a 4, 19°, 20°, n° 3 do DL n° 84/2021 de 18 de Outubro, e nos artigos 334°, 234°, 473°, 562°, 566°, 762°, 769°, 905°, 908°, 91 Io, 913°, 914° e 915° do Código Civil.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente Recurso de Apelação, e, em consequência, deverá
a. Anular a decisão proferida pelo Tribunal a quo;
Ou, se assim não se entender,
Revogar a decisão proferida pelo Tribunal, substituindo-a por outra que considere improcedente o pedido do autor, condenando-o a permitir a reparação da anomalia pelo recorrido
***
AA veio apresentar a sua OPOSIÇÃO ao Pedido de Anulação nos seguintes termos:
A – Questão Prévia – da falta de comprovação do pagamento da taxa de justiça
1.º A Recorrida - BB, Lda. – apresentou o presente pedido de anulação da sentença arbitral cumulando o mesmo, e inserindo-o, num recurso de matéria de facto e de direito.
2.º Para tal, procedeu, apenas, ao pagamento de um preparo, no valor de € 125,00 (cento e vinte e cinco euros), que reverte para o orçamento do Centro de Arbitragem, e previsto no art.º 40.º do Regulamento do Centro de Arbitragem do Setor Automóvel.
3.º Ora, nos termos do art.º 46.º da LAV “1. O pedido de anulação da sentença arbitral, que deve ser acompanhado de uma cópia certificada da mesma e, se estiver redigida em língua estrangeira, de uma tradução para português, é apresentado no tribunal estadual competente, observando-se as seguintes regras, sem prejuízo do disposto nos demais números do presente artigo: (…) e) Segue-se a tramitação do recurso de apelação, com as necessárias adaptações; f) A acção de anulação entra, para efeitos de distribuição, na 5.ª espécie.”
4.º Nos termos do art.º 145.º do CPC: “1 - Quando a prática de um ato processual exija o pagamento de taxa de justiça, nos termos fixados pelo Regulamento das Custas Processuais, deve ser comprovado o seu prévio pagamento ou a concessão do benefício do apoio judiciário, salvo se, neste último caso, essa concessão já se encontrar comprovada nos autos. (…) 3 - Sem prejuízo das disposições relativas à petição inicial, a falta de comprovação do pagamento referido no n.º 1 ou da concessão do benefício do apoio judiciário não implica a recusa da peça processual, devendo a parte proceder à sua comprovação nos 10 dias subsequentes à prática do ato processual, sob pena de aplicação das cominações previstas nos artigos 570.º e 642.º.”
5.º Ora, nem a LAV, nem o Regulamento das Custas isentam a Requerente do pedido de anulação da sentença arbitral do pagamento prévio da taxa de justiça.
6.º E, a Requerente, não procedeu a qualquer outro pagamento, além do pagamento do preparo devido ao Centro de Arbitragem pela interposição de recurso.
7.º Ora, com a petição inicial tem de ser demonstrado o pagamento da taxa de justiça devida, sob pena de recusa, pela secretaria, do articulado com o qual se pretendia desencadear o acesso à justiça (cfr. nº7, do art. 552º, e al. f), do art. 558º e, v. a ressalva da 1ª parte, do nº3, do art. 145º, todos do CPC), não podendo, ainda, a mesma, a escapar a tal controle, ser objeto de distribuição.
8.º Não tento a Requerente procedido a qualquer pagamento de taxa de justiça devido pelo pedido de anulação da sentença Arbitral, deverão ser aplicadas as sanções acima descritas, ou, caso assim não se entenda, as mencionadas nos art.º 570.º e 642 do CPC.
B - Do Pedido de Anulação da Sentença Arbitral nos termos da al. v, do n.º 3 do art.º 46.º da LAV
9.º Vem a Requerente pedir a anulação da sentença proferida pelo CASA, com a repetição do julgamento noutro tribunal arbitral ou com outro árbitro, a fim de se produzir a prova sobre a questão colocada. 4
10.º A questão que a Requerente coloca é se o Tribunal Arbitral deixou de conhecer sobre a questão jurídica suscitada pela mesma, apenas e tão só em sede de julgamento, da alegada recusa de submissão pelo aqui Recorrido à reparação pela SNG por uma quarta vez na expectativa de encontrar e expurgar a anomalia no veículo.
11.º Baseando-se em que: - o tribunal deu como provado que em Junho de 2023, o reclamante foi contactado pela SNG para um novo encaminhamento do AO para a oficina, não tendo correspondido a esta solicitação. - que o recorrente juntou um e-mail enviado pela SNG a informar que agendou uma marcação para diagnóstico e reparação da viatura do reclamante e que o mesmo nem respondeu nem apareceu; - que o reclamante desinteressou-se completamente pelo assunto, agindo em claro abuso de direito para vir peticionar, como peticionou, a resolução do contrato; - que o Reclamante sabe que já fez mais de “(…) 20.000 mil quilómetros com o veículo e lhe alterou as características, nomeadamente, rebaixando o carro, alterando a suspensão, ou outra que não é homologada para aquela marca o que faz com que o carro desvalorize economicamente e não passe na inspecção(…)”; - que o tribunal deveria ter-se pronunciado sobre essa questão de relevo para o desfecho do litígio, tendo ficado por saber se, após a quarta reparação, ficaria expurgado da anomalia, ou se a mesma persistiria.
12.º A conduta processual da Recorrente, é, desde o primeiro momento, junto do Tribunal Arbitral, lamentavelmente, errática e de despudorada má-fé, trazendo, e inovando, em novos factos, sempre que o curso do processo não lhe corre de feição, devendo ser sancionada processualmente por tal.
Senão vejamos:
13.º Citada da reclamação apresentada junto do CASA, veio a Recorrente apresentar contestação na qual se limitou a: - alegar que era parte ilegítima nos autos; - que a suposta parte legítima nos autos teria a confirmação da garantia de que nunca deixaram de assumir qualquer anomalia que lhe fosse reportada – cfr. contestação a fls. 29 e ss do processo arbitral.
14.º Ora, caída a tese da ilegitimidade da Recorrente, novos factos vieram a ser alegados em sede de julgamento, nomeadamente com a junção de um e-mail, a que a Recorrente continua a apelar, e que consta de fls 88 do processo arbitral.
15.º E por fim, neste processo de anulação, mais uma vez, novos factos surgem pela pena da Requerente/Recorrente, que nunca, até agora, foram alegadas ou sujeitos a prova, como os alegados quilómetros que o carro percorreu na posse do Recorrido, a questão da suspensão, ou mesmo que o veículo desvalorizou economicamente, ou que não passará na inspecção legal.
16.º Sendo caso para dizer, que a cada novo passo, uma nova história!
17.º Sendo certo que, como consta da douta sentença, “(…) Para ilidir a referida presunção legal de desconformidade, incumbe à reclamada demonstrar que as desconformidades teriam sido causados, por exemplo, pelo uso indevido do AO por parte da reclamante: ora, manifestamente a reclamada não fez qualquer prova a esse respeito.” – sublinhados nossos.
18.º Ora, diz a Requerente/Recorrente no seu pedido de anulação da sentença arbitral que, e cite-se: “O recorrente juntou um e-mail enviado pela SNG a informar que agendou uma marcação para diagnóstico e reparação da viatura do reclamante e que o mesmo nem respondeu nem apareceu.”
19.º Ora, diz o referido documento, ao contrário do alegado pela Recorrente (veja-se, afinal, quem age de má-fé, e em abuso de direito), que:
20.º Ou seja, em local algum é referido que, como a Requerente/Recorrente alega, “(…) juntou um e-mail enviado pela SNG a informar que agendou uma marcação para diagnóstico e reparação da viatura do reclamante e que o mesmo nem respondeu nem apareceu.”
21.º Mais, verifica-se que, a SNG invoca que tal tentativa de contacto, que o Recorrido/Requerido não atendeu e não retornou a chamada, ocorreu em Junho de 2023, sendo forçoso concluir-se que este recusou o que quer que seja!
22.º Ora, dos factos provados, consta o seguinte: “ Em 26/5/2023, o reclamante rescindiu unilateralmente o contrato de compra e venda celebrado com a reclamada, exigindo, nomeadamente, a devolução do montante pago.”
23.º Carta esta recepcionada pela Recorrente/Reclamada, e pela SNG.
24.º Ou seja, quando, alegadamente, a SNG contactou o Recorrido, já este tinha usado da sua faculdade legal de resolução do contrato, sendo indiferente se a SNG sempre assumiu, ou não, as garantias, e se se propunha a assumir de novo, visto que não foi essa a opção do consumidor, mas antes a resolução do contrato.
25.º Ignorando os factos novos alegados, que, atento o princípio da estabilidade da instância, e as bases do processo de anulação de sentença arbitral, não podem, nem devem, ser apreciados na presente sede.
26.º Será de ponderar se, na presente sede, existe fundamento para anular a sentença arbitral por o Tribunal ter deixado de se pronunciar sobre questões que devia apreciar.
27.º Como nos diz a Veneranda Relação de Lisboa, em Acórdão de 20.01.2022, disponível em www.dgsi.pt: “Porque ao tribunal está vedado a apreciação do mérito da sentença, a sua anulação por falta de fundamentação fáctica ou jurídica apenas emerge se esta, de todo, inexistir ou se não for perceptível o iter lógico jurídico que nela se seguiu para dirimir o litígio.”
28.º Já o Tribunal Central Administrativo Sul, em Acórdão de 11.01.2023, disponível em www.dgsi.pt, e sobre a matéria da anulação da decisão arbitral, e a distinção entre questões que o Tribunal deveria apreciar e outro tipo de argumentos diz-nos “A doutrina e a jurisprudência distinguem por um lado, “questões” e, por outro, “razões” ou “argumentos” para concluir que só a falta de apreciação das primeiras integra a nulidade decorrente de omissão de pronúncia, mas já não a mera falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.” – sublinhados nossos.
29.º Sobre a mesma matéria, Helena Cabrita, na sua obra “A Sentença Cível”, Almedina, 2019, p. 235 e ss. diz-nos que: “(…) as questões que o tribunal deve apreciar e decidir são apenas aquelas que contendem directamente com a substanciação da causa de pedir, do pedido ou das excepções, não se confundindo com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pela parte (e, portanto, quanto a estas últimas, o tribunal não só não tem o dever de se pronunciar, como nenhuma consequência daí advirá se o não fizer, nomeadamente não configurando tal uma situação de omissão de pronúncia)” – Helena Cabrita, A sentença Cível, Almedina, 2019, p. 235. Vejamos o caso dos autos:
30.º Expurgando a matéria nova alegada, e a matéria que a Requerente/Recorrente alega, e que não consta da prova que foi junta a fls. 88 do processo arbitral, diz-nos a mesma que o Tribunal Arbitral deixou de se pronunciar pela questão de a SNG ter contactado o Requerido/Recorrido, em Junho de 2023, para um novo encaminhamento para a oficina, e que tal facto é uma questão relevo para o desfecho do presente litígio, pois ficou por saber se o mesmo, após a quarta reparação ficaria expurgado da anomalia ou se, pelo contrário, a mesma persistiria.
31.º Ora, a verdade, é que tal argumento, usado pela Requerente/Recorrente durante o julgamento, e no ora pedido de anulação, é irrelevante para o desfecho do processo e para a decisão tomada pelo tribunal Arbitral, visto que nenhuma consequência daí adviria.
32.º Como, e bem, consta da fundamentação da sentença do Tribunal Arbitral: “(…) No caso concreto, o reclamante peticiona a resolução do contrato, com a inerente devolução do preço pago e, bem assim, do valor da comissão de reembolso antecipado do financiamento obtido para a aquisição do AO, assim como uma indemnização pela privação de uso do veículo (desde a data da resolução do contrato), a respetiva remoção e, por fim, o montante das custas do presente processo.”
33.º E, prosseguindo: “A este respeito, da lei consta uma hierarquização entre os direitos do consumidor (art.º 15.º), porquanto, num primeiro momento, o consumidor pode optar pela reparação ou substituição do bem (salvo se o meio escolhido for impossível ou implicar custos desproporcionados), só depois tendo direito de optar pela redução do preço ou resolução do contrato (salvo casos excecionais). À luz da referida hierarquização, pareceria que ao reclamante não assiste o direito de resolução do contrato celebrado com a reclamada. Contudo, o n.º 4 do meso art.º 15.º permite ao consumidor optar pela resolução do contrato, nomeadamente, quando: “b) A falta de conformidade tenha reaparecido apesar da tentativa do profissional de repor os bens em conformidade; c) Ocorra uma nova falta de conformidade; ou 10 d) A gravidade da falta de conformidade justifique a imediata redução do preço ou a resolução do contrato de compra e venda.” Ora, os problemas de consumo anómalo de óleo, que motivaram a primeira das 4 vezes em que a garantia foi acionada, persistem na presente data, facto este que inegavelmente se enquadra na transcrita alínea b), destarte legitimando a resolução por parte do reclamante.” -sublinhados nossos.
34.º Prosseguindo ainda: “Com efeito, não obstante as diversas tentativas da reclamada (e da entidade com a qual esta havia celebrado um contrato de garantia) e decorrido mais de um ano após a aquisição do bem (considerando a data da resolução), desconformidade de que padece o veículo adquirido à reclamada mantém-se, pelo que afigura perfeitamente natural que o reclamante tenha perdido totalmente a confiança na capacidade da reclamada para solucionar as aludidas anomalias. Procede, por isso, o pedido de resolução do contrato de aquisição do AO.” – sublinhados nossos.
35.º Ora, enquadrando os factos que a Recorrente alega, na submissão à causa de pedir e aos pedidos feitos, o Tribunal Arbitral teria que decidir se a resolução do contrato pelo Reclamante era, ou não, procedente, ou se este teria que optar pela reparação do bem e só depois tendo direito de optar pela redução do preço ou resolução do contrato.
36.º O que o mesmo fez!
37.º De facto, o Tribunal Arbitral decidiu que, o Reclamante, ao resolver, em 26 de Maio de 2024, o contrato, o fez ao coberto da lei.
38.º Pelo que, e usando de novo as palavras do Tribunal Central Administrativo Sul, a “questão” colocada perante o Tribunal Arbitral, foi analisada, enquadrada, fundamentada e decidida.
39.º E, se a resolução do contrato feita pelo Reclamante em 26 de Maio de 2023 procede, é inócuo para a decisão de mérito da causa, se a SNG, em Junho de 2023, contactou ou não o mesmo (o que não se concede).
40.º E é, também, inócuo, e nem sequer uma questão de relevo, face à causa de pedir, se o veículo, com uma nova reparação ficaria expurgado da anomalia ou se a mesma persistiria, pois o Reclamante, aqui Requerido/Recorrido, já havia resolvido o contrato, ao coberto das normas legais supra citadas.
41.º Face a todo o exposto, e tendo em conta que apenas existe uma efectiva omissão de pronúncia, quando essa questão que devia ser conhecida prejudique, indelevelmente, a solução da questão colocada ao tribunal, resulta inequívoco que, in casu, pelos motivos expostos não se verifica a arguida omissão.
42.º De resto, o que sobressai da leitura do pedido de anulação é que a Recorrente/Requerente, sob a invocação omissão de pronúncia do mesmo, aponta um erro de julgamento ao decidido, quando, na verdade, assenta o mesmo num desacordo com o sentido jurídico adoptado na decisão arbitral.
43.º E tal, nos termos preconizados pela LAV extravasa os poderes de cognição do tribunal estadual na apreciação do pedido de anulação, pois é-lhe vedado conhecer do mérito da questão ou questões por pelo Tribunal Arbitral decididas.
44.º Pelo que, deverá improceder, assim, o pedido de anulação da sentença arbitral. Termos em que, nos melhores de Direito, e com o mui douto suprimento de V.Exa. se deverá concluir pela: a) Recusa do petição de pedido de anulação da sentença, por falta de comprovação do pagamento da taxa de justiça; b) Improcedência do pedido de anulação da sentença arbitral, com todas as legais consequências.
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O recurso foi admitido ao abrigo do disposto no art.º 40.º, n.º 2, do Regulamento do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel.
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II. Objecto e delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo. Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável).
Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, as questões a resolver são as seguintes:
- admissibilidade do pedido de anulação da sentença arbitral nos termos da al. v, do n.º 3 do art.º 46.º da LAV;
- impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- adequação da aplicação ao caso concreto do regime emergente do Decreto-Lei n.° 84/202.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
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II. Os factos
Na decisão arbitral deram-se como assentes os seguintes factos:
1.O reclamante adquiriu à reclamada um automóvel da marca Wolkswagen, modelo Golf, com a matrícula AO-..- IV.
2.O referido AO foi adquirido em 26/4/2022, como usado.
3.O reclamante pagou à reclamada, pela aquisição do AO, a quantia de €27.127,40.
4.Para aquisição do AO, o reclamante contraiu crédito junto da Cofidis, S.A.
5.Nos termos desse contrato celebrado com a Cofidis, o reembolso antecipado encontrava-se sujeito a uma comissão de 0,5% (sobre o montante mutuado).
6.A reclamada contraiu um contrato de garantia com a sociedade SNG - Garantia e Assistência Automóvel, S.A.
7.Nos termos deste contrato de garantia, incumbia à SNG, em caso de deteção de desconformidades em veículos vendidos pela reclamada, indicar a oficina reparadora e custear as respetivas reparações.
8.Cerca de duas semanas após a aquisição do AO, o reclamante acionou a garantia pela primeira vez, reportando o acionar da luz de falta de óleo.
9.Em 5/8/2022, o AO foi encaminhado para a oficina "DD", indicada pela SNG.
10.Nesta data, foram reportados pelo reclamante problemas de "muito consumo de óíeo" e "perda líquido anticongelante".
11.Em 25/11/2022, o AO foi novamente encaminhado para a mesma oficina (uma vez mais por indicação da SNG), novamente com, entre outros, problemas de fugas de óleo.
12.Em 31/3/2023, o AO foi novamente encaminhado para a mesma oficina (uma vez mais por Indicação da SNG), novamente com, entre outros, problemas de consumo anómalo de óleo.
13.Durante todo o período que mediou entre a primeira e a terceira intervenção por parte da oficina reparadora, o reclamante teve que, por diversas vezes, adicionar óleo ao AO, por vezes a cada 1.000 kms percorridos.
14.Todas estas 3 reparações foram suportadas pela SNG.
15.Cada uma das 3 vezes que o AO foi encaminhado para a oficina, aí permaneceu por mais de 30 dias até à conclusão do diagnóstico e reparação.
16.Em nenhuma das vezes que foi contactada, a SNG se recusou a analisar e reparar o AO.
17.Aquando do segundo encaminhamento para a oficina reparadora, o reclamante deslocou-se às instalações da reclamada, tendo preenchido o respetivo livro de reclamações.
18.Mesmo após as 3 reparações a que foi sujeito, os problemas de consumo de óleo do AO persistiam.
19.Em 26/5/2023, o reclamante rescindiu unilateralmente o contrato de compra e venda celebrado com a reclamada, exigindo, nomeadamente, a devolução do montante pago.
20.Em junho de 2023, o reclamante foi contactado pela SNG para um novo encaminhamento do AO para a oficina, não tendo correspondido a esta solicitação.
21.A reclamada é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de veículos automóveis.
22.O reclamante é uma pessoa Individual, que adquiriu o AO para seu uso pessoal.
23.O reclamante suportou a quantia de €470, relativa às custas do presente processo.
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IV. O mérito do recurso
Da impugnação da decisão sobre matéria de facto
Dispõe o art. 662º n.º 1 do Código de Processo Civil que A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Nos termos do art. 640º n.º 1 do mesmo Código, quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O n.º 2 do mesmo preceito concretiza que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso.
Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Em contrapartida, cabe ao recorrido o ónus de apontar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, e caso assim o entenda, transcrever os excertos que considere importantes, tudo isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
No que respeita à observância dos requisitos constantes do citado artigo 640º, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» (Ac. STJ de 01/10/2015 (Ana Luísa Geraldes); Ac. STJ de 14/01/2016 (Mário Belo Morgado); Ac. STJ, de 19/2/2015 (Tomé Gomes); Ac. STJ de 22/09/2015 (Pinto de Almeida); Ac. STJ, de 29/09/2015 (Lopes do Rego) e Acórdão de 31/5/2016 (Garcia Calejo), todos disponíveis na citada base de dados.
Sintetizando, os requisitos a observar pelo recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, são os seguintes:
- a concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;
- a especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;
- e a decisão alternativa que é pretendida.
Relativamente ao ónus imposto pelo art. 640.º, n.º 1, alínea b) do CPC, ele foi observado pela recorrente pois especificou, no corpo das alegações, ainda que parcimoniosamente, os concretos meios probatórios que, na sua óptica, impunham decisão diversa: - documento junto na audiência final (e-mail enviado para a recorrida em 12-10-20239) e o documento junto aos autos pelo reclamante datado de 5-8-2022 (factura referente a uma reparação efetuada pela reparadora CC e paga pela SNG).
No entanto, a recorrente não especificou, nas alegações ou nas conclusões do recurso, em obediência ao disposto no n.º 1 do art. 639.º e nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 640 do CPC “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”, nem a “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Sendo processualmente inaceitável, para preencher o estatuído no n.º 1 do art. 639.º e nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 640 do CPC que, tanto no corpo das alegações como nas conclusões de recurso, se façam referências vagas e notoriamente genéricas:
Concatenando estes dois documentos com o depoimento das duas testemunhas que foram perentórias em afirmar que nunca a SNG se recusou a prestar qualquer assistência e atendendo ao facto de o veiculo consumir muito óleo e não pingar para o chão o que toma mais complexo o diagnostico para encontrar a efetiva origem do problema pelo que não é irrazoável submeter-se o veiculo a quatro reparações e isso mesmo resulta do disposto no numero 4 do artigo 18° do DL 84/2021 de 18 de outubro.
Pelo que aqui impugnamos a matéria de facto que se fosse bem apreciada levaria sem sombra de dúvidas a decisão diferente. Prova que se quer renovada (sic).
Não cumprindo as alegações e conclusões da recorrente estes ónus, não é esta omissão passível de despacho de aperfeiçoamento. Conforme refere Abrantes Geraldes, “A comparação que necessariamente tem que ser feita com o disposto no art.º 639º e, além disso, a observação dos antecedentes legislativos levam-me a concluir que não existe, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento. Resultado que é comprovado pelo teor do art.º 652º, nº1, al. a), na medida em que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do art.º 639.” (Cf. Abrantes Geraldes Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª ed., pág. 157).
Pretendeu-se com este regime legal, ao possibilitar a ampliação dos poderes da Relação relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a imposição de regras muito precisas, sem a observância das quais o recurso deve ser liminarmente rejeitado.
Assim, e à guisa de conclusão, é nosso entendimento que o recurso de apelação interposto deve ser rejeitado, no que concerne à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
III. O Direito
Estabilizado o quadro factual do litígio, cumpre agora analisar juridicamente a pretensão da recorrente, à luz do mesmo.
Peticiona a recorrente a anulação da decisão arbitral por omissão de pronúncia.
Dispõe o art. 46.º nº 3 al. v) da Lei n.º 63/2011, de 14/12:
«3 - A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se:
(…)
v) O tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar;»
Pela nossa parte, entendemos que, em regra, na arbitragem voluntária estabeleceu-se a regra da irrecorribilidade das decisões arbitrais que ponham termo ao litígio e, como meio de impugnação, o pedido de anulação, nomeadamente nos termos do art. 46.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV).
Ao recurso da sentença arbitral (como o destes autos) não pode cumular-se o pedido da sua anulação, como o fez a recorrente.
Com este entendimento, escreve-se no Ac. do STJ de 09-05-2019:
Para o julgamento da ação de anulação, cujo prazo de propositura é de 60 dias, é competente o Tribunal da Relação – art. 59.º, n.º 1, alínea g), da LAV.
Estes dois meios de impugnação da sentença arbitral podem ser cumulativos ou são alternativos?
A lei, porém, não apresenta uma resposta clara e expressa para esta questão. No entanto, propende-se para a última posição.
Na verdade, o modo algo restritivo como se estabeleceu a irrecorribilidade da decisão arbitral e a forma da sua impugnação, mediante a ação de anulação, inculca uma ideia de alternativa dos meios de impugnação. Perante a doutrina subjacente à LAV e a falta de admissão expressa na lei, é a resposta mais coerente que pode ser dada.
Não obstante difiram na substância e na forma, tais meios de impugnação da decisão arbitral assumem uma natureza alternativa. Efetivamente, inserindo-se a questão no âmbito dos meios alternativos de resolução de conflitos, faria pouco ou nenhum sentido a permissão da impugnação judicial da decisão arbitral, com a cumulação dos meios referidos. Na prática, estes meios de impugnação poderiam sobrepor-se, potenciando uma situação de maior morosidade na resolução do litígio e insegurança jurídica, com eventuais contradições ou divergências de julgados, para além da sobrecarga, injustificada, que constituiria para a atividade dos tribunais.
O princípio da economia processual e os objetivos orientadores da regulação da arbitragem, designadamente da arbitragem obrigatória, caracterizada como procedimento célere, ficariam seriamente comprometidos, caso se facultasse a cumulação de meios de impugnação da decisão arbitral (Ac. proferido no proc. 280/17.2 YRLSB.S1, versão integral em www.dgsi.pt).
Em face do exposto, rejeita-se o recurso interposto, na parte em que se peticiona a anulação arbitral e, face ao ora decidido, mostra-se despiciendo dirimir a questão suscitada pelo recorrido, no sentido do não pagamento da taxa de justiça devida pelo pedido de anulação da sentença arbitral.
Da alegada divergência entre os factos provados e a fundamentação/errada aplicação do direito aos factos dados como assentes/Adequação da aplicação ao caso concreto do regime emergente do Decreto-Lei n.° 84/202.
Neste domínio, alega a recorrente que:
É dado como provado nos pontos 11, 12, 13, 14 e 15 que o veículo foi sujeito a três intervenções.
Porem a decisão arbitrai na sua fundamentação sustentou que “ora, os problemas de consumo anómalo de óleo, que motivaram a primeira das 4 vezes em que a garantia foi acionada persistem na presente data”
Foi dado como provado no ponto 16 que “ em nenhuma das vezes que foi contactada, a SNG se recusou a analisar e reparar o AO.”
Sendo certo que foi dado como provado no ponto 20 que “em junho de 2023, o reclamante foi contactado pela SNG para um novo encaminhamento do AO para a oficina, não tendo respondido a essa solicitação”
Em momento algum foi dito ao reclamante que o defeito não era passível de resolução pelo que, com o devido respeito mal andou a decisão arbitrai ao decidir como decidiu da forma mais gravosa e penalizadora para o recorrente não tendo em conta que o veiculo já fez mais de 20.000 mil quilómetros, que o reclamante rebaixou o veiculo alterando a suspensão do mesmo e as características do mesmo.
A anomalia em questão não afeta em nada a funcionalidade do bem e é passível de reparação.
A reparação representa um remédio natural e de primeira ratio, sendo que apenas deverá haver lugar á resolução contratual se não for possível reparar a anomalia.
Por outro lado, o princípio do aproveitamento dos negócios jurídicos deve impor a prevalência de soluções que conduzem á integral execução do negócio sobre resoluções que impliquem a sua ineficácia total ou parcial.
No caso dos autos entendemos que primeiro está o vendedor adstrito a eliminar o defeito e só não sendo possível se poderá falar na resolução contratual. No caso de compra e venda de coisa defeituosa o direito á reparação previsto no artigo 914° do Código civil e também no artigo 18° do DL 84/2021 de 18 de outubro que estabelece o regime legal aplicável á defesa dos consumidores, não constituem pura alternativa ou opção oferecida ao comprador, antes se encontrando subordinados a uma sequencia lógica, sendo que primeiro o vendedor está adstrito a eliminar o defeito.
Reza o n° 3 do artigo 15 do citado Decreto Lei que “O prazo para a reparação ou substituição não deve exceder os 30 dias, salvo nas situações em que a natureza e complexidade dos bens, a gravidade da falta de conformidade e o esforço necessário para a conclusão da reparação ou substituição justifiquem um prazo superior.”
Continua o n° 4 do mesmo diploma que “em caso de reparação, o bem reparado beneficia de um prazo de garantia adicional de seis meses por cada reparação até ao limite de quatro reparações.,..”
Pelo que, salvo o devido respeito se infere que em casos de natureza complexa, como o caso dos autos, o numero de quatro reparações é um número razoável pelo que mal andou a decisão arbitrai ao decidir como decidiu da forma mais gravosa sem cuidar de observar o escalonamento que se retira da norma no que concerne aos direitos do consumidor e sem observar que o recorrido não permitiu a quarta reparação.
E, ainda, que:
No que respeita á matéria de direito entende o recorrente que a decisão recorrida fez uma interpretação errada das normas aplicáveis designadamente do regime jurídico da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas e do código civil.
Nunca houve inércia por parte da recorrente em relação á reparação e o prazo de trinta dias é aceitável no caso em análise atenta a complexidade de encontrar a anomalia em questão.
Não se compreende como pode ter-se considerado preludiada a possibilidade da reparação e tenha o tribunal decidido pela resolução ao arrepio das disposições legais que são em ordem a um escalonamento e ao aproveitamento do negócio jurídico, pelo que o recurso á ideia de proporcionalidade seria suficiente para obstaculizar ou impedir a pretensão do recorrido de exigir da recorrente a resolução do contrato.
Caso seja mantida a decisão de resolução contratual e entrega do valor total pago pelo recorrido ao recorrente o recorrido irá enriquecer ilicitamente e sem causa justificativa á custa da recorrente, tendo nesse caso esta a receber daquele o valor correspondente a esse enriquecimento (V. artigo 473° do Código Civil), pois:
Ao receber o valor integral pago no momento da aquisição do veiculo, que já circulou mais de 20.000 mil quilómetros e foi alterado mecanicamente nomeadamente rebaixado e substituídas as suspensões por suspensões por outras que alteram as características do carro diminuindo- lhe o seu valor económico, o recorrido irá enriquecer á custa do recorrente na proporção da desvalorização que causou ao veiculo quer com os quilómetros que percorreu, quer com as alterações que lhe efetuou pelo que o carro tem de ser submetido a uma perícia e a uma inspeção para aferir da desvalorização que efetivamente o recorrido causou.
O enriquecimento do recorrido carece de causa justificativa já que falta um facto que justifique a resolução contratual, nomeadamente a recusa pelo recorrido de não sujeição do veículo á quarta reparação, noa termos do n° 4 do artigo 18 do DL 84/2021 de 18 de outubro.
Iniciando o enquadramento jurídico da factualidade dada como assente, importa concluir que a recorrente se dedica, com intuito lucrativo, à compra e venda, importação e exportação de veículos, enquanto o recorrido, na sua qualidade de pessoa singular e pretendendo fazer um uso pessoal do bem, é legalmente considerado como consumidor.
Assim sendo, a relação jurídica em causa nestes autos é uma relação jurídica de consumo, razão pela qual o reclamante/recorrido, para além da proteção jurídica conferida pela Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.° 24/96, de 31 de Julho, na sua actual redação), encontra-se tutelado pelo regime jurídico previsto no Decreto-Lei n° 84/2021, de 18 de Outubro.
Efectivamente, este último diploma abrange os contratos celebrados entre profissionais e consumidores, (art.° 3.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.° 84/2021, de 18 de outubro.
Esclareça-se, a este propósito, que os ditames do regime constante do mencionado diploma (revogando o Decreto-Lei n.° 67/2003) "em matéria de contratos de compra e venda de bens móveis e de bens imóveis aplicam-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor" (cfr art. 53.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 84/2021), o que sucedeu em 1/1/2022 (cfr. art. 55,° do mesmo Decreto-Lei): ora, tendo a celebração do contrato de compra e venda em apreço nos presentes autos ocorrido em Abril de 2022, dúvidas não restam sobre a aplicabilidade do Decreto-Lei n.° 84/2021.
Pode ler-se no preambulo deste diploma:
O presente decreto-lei estabelece, desde logo, o princípio da conformidade dos bens com um conjunto de requisitos subjetivos e objetivos. O profissional encontra-se, assim, obrigado a entregar ao consumidor bens que cumpram todos os requisitos referidos, sob pena de os bens não serem considerados conformes.
Prevê-se a responsabilidade do profissional pela falta de conformidade do bem que se manifeste num prazo de três anos e que se considera existente à data da entrega do bem se manifestada durante os primeiros dois. São, ainda, estipulados prazos de responsabilidade distintos, consoante estejamos perante bens com elementos digitais incorporados relativamente aos quais se preveja o fornecimento contínuo de conteúdos ou serviços digitais.
Ao contrário do previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, na sua redação atual, que não estabelecia qualquer hierarquia de direitos em caso de não conformidade dos bens - reconhecendo ao consumidor um direito de escolha entre a reparação do bem, a substituição do bem, a redução do preço ou a resolução do contrato - o presente decreto-lei incorpora a solução da Diretiva que aqui se transpõe, a qual prevê os mesmos direitos, embora submetendo-os a diferentes patamares de precedência. Trata-se, pois, de matéria sujeita ao princípio da harmonização máxima, que impede o legislador nacional de divergir da norma europeia.
Neste enquadramento, em caso de não conformidade do bem, o consumidor tem o direito à «reposição da conformidade», através da reparação ou da substituição do bem, à redução do preço e à resolução do contrato, estabelecendo-se as condições e requisitos aplicáveis para cada um destes meios”.
Segundo o art. 1.º do aludido diploma, “1 - O presente decreto-lei:a) Reforça os direitos dos consumidores na compra e venda de bens de consumo, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2019/771, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens, que altera o Regulamento (UE) 2017/2394 e a Diretiva 2009/22/CE e que revoga a Diretiva 1999/44/CE [...]”, sendo aplicável, designadamente, “Aos contratos de compra e venda celebrados entre consumidores e profissionais, incluindo os contratos celebrados para o fornecimento de bens a fabricar ou a produzir”.
Determina o art. 5.º do mencionado Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro que “O profissional deve entregar ao consumidor bens que cumpram os requisitos constantes dos artigos 6.º a 9.º, sem prejuízo do disposto no artigo 10.º”.
Os requisitos subjectivos de conformidade são os descritos no artigo 6.º, que estabelece:
“São conformes com o contrato de compra e venda os bens que:
a) Correspondem à descrição, ao tipo, à quantidade e à qualidade e detêm a funcionalidade, a compatibilidade, a interoperabilidade e as demais características previstas no contrato de compra e venda;
b) São adequados a qualquer finalidade específica a que o consumidor os destine, de acordo com o previamente acordado entre as partes;
c) São entregues juntamente com todos os acessórios e instruções, inclusivamente de instalação, tal como estipulado no contrato de compra e venda; e
d) São fornecidos com todas as atualizações, tal como estipulado no contrato de compra e venda”.
O n.º 1 do art. 7.º enumera, por sua vez, os requisitos objectivos de conformidade:
1 - Para além dos requisitos previstos no artigo anterior, os bens devem:
a) Ser adequados ao uso a que os bens da mesma natureza se destinam;
b) Corresponder à descrição e possuir as qualidades da amostra ou modelo que o profissional tenha apresentado ao consumidor antes da celebração do contrato, sempre que aplicável;
c) Ser entregues juntamente com os acessórios, incluindo a embalagem, instruções de instalação ou outras instruções que o consumidor possa razoavelmente esperar receber, sempre que aplicável; e
d) Corresponder à quantidade e possuir as qualidades e outras características, inclusive no que respeita à durabilidade, funcionalidade, compatibilidade e segurança, habituais e expectáveis nos bens do mesmo tipo considerando, designadamente, a sua natureza e qualquer declaração pública feita pelo profissional, ou em nome deste, ou por outras pessoas em fases anteriores da cadeia de negócio, incluindo o produtor, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem”.
No caso em análise, é patente que o veículo AO padece de uma desconformidade, traduzida no consumo excessivo e anómalo de óleo.
Dispõe o art. 12.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro:
1 - O profissional é responsável por qualquer falta de conformidade que se manifeste no prazo de três anos a contar da entrega do bem.
2 - Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 a 3 do artigo 8.º, no caso de bens com elementos digitais, o profissional é responsável por qualquer falta de conformidade que ocorra ou se manifeste:
a) No prazo de três anos a contar da data em que os bens com elementos digitais foram entregues, quando o contrato estipule um único ato de fornecimento do conteúdo ou serviço digital ou quando o contrato estipule o fornecimento contínuo do conteúdo ou serviço digital durante um período até três anos; ou
b) Durante o período do contrato, quando este estipule o fornecimento contínuo do conteúdo ou serviço digital durante um período superior a três anos.
3 - Nos contratos de compra e venda de bens móveis usados e por acordo entre as partes, o prazo de três anos previsto no n.º 1 pode ser reduzido a 18 meses, salvo se o bem for anunciado como um bem recondicionado, sendo obrigatória a menção dessa qualidade na respetiva fatura, caso em que é aplicável o prazo previsto nos números anteriores [...]”.
Estabelece, por seu turno, o artigo 13.º do mesmo diploma:
“1 - A falta de conformidade que se manifeste num prazo de dois anos a contar da data de entrega do bem presume-se existente à data da entrega do bem, salvo quando tal for incompatível com a natureza dos bens ou com as características da falta de conformidade.
[...]
3 - Nos casos em que as partes tenham reduzido por acordo o prazo de garantia de bens móveis usados nos termos do n.º 3 do artigo anterior, o prazo previsto no n.º 1 é de um ano.
4 - Decorrido o prazo previsto no n.º 1, cabe ao consumidor a prova de que a falta de conformidade existia à data da entrega do bem”.
O bem vendido deve, assim, estar conforme com o contrato de compra e venda, não estando em conformidade no caso de não respeitar alguma das condições-índice descritas nos arts. 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro.
Sobre a responsabilidade do profissional, em caso de falta de conformidade do bem vendido e ónus da prova, escreve-se de forma sugestiva no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 08-02-2024:
Em caso de desconformidade, o profissional é responsável nos termos dos artigos 12.º e 13.º do mencionado diploma, respondendo o vendedor perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue, presumindo-se que já nessa data existam as faltas de conformidade que se venham a revelar no prazo de dois anos a contar dessa entrega, para as coisas móveis, salvo quando for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.
Ocorrendo venda de bens de consumo defeituosos, ao comprador basta alegar e provar a anomalia ou o mau funcionamento da coisa, durante o prazo da garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa dessa anomalia ou do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega. Ao vendedor, para se ilibar da responsabilidade, incumbe alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega a coisa vendida e imputável ao comprador, a terceiro ou devida a caso fortuito” (Ac. proferido no proc.5392/22.8T8MTS.P1).
No caso vertente, o recorrido cumpriu o ónus probatório que sobre si recaía: considerando que ficou demonstrado o consumo excessivo de óleo, conforme se refere na decisão arbitral não é passível de afastar a existência de uma desconformidade a circunstância de se poder aceitar ser "normal” ou "razoável" que um veículo tenha que adicionar óleo, a cada 1.000 quilómetros!
Em contrapartida, a recorrente/vendedora não logrou comprovar, para afastar a sua responsabilidade, que a avaria em causa é posterior à entrega da viatura que vendeu, e que a mesma é imputável ao comprador/recorrido, a terceiro ou se deveu a caso fortuito.
Tanto basta para que se considerem reunidos os pressupostos legais exigidos para poder a recorrente/vendedora ser responsabilizada pela falta de conformidade do bem com o contrato, conferindo, em virtude dessa desconformidade, ao recorrido/comprador os direitos tutelados pelo art.15.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro.
Segundo o n.º 1 daquele dispositivo, “Em caso de falta de conformidade do bem, e nas condições estabelecidas no presente artigo, o consumidor tem direito:
a) À reposição da conformidade, através da reparação ou da substituição do bem;
b) À redução proporcional do preço;
ou c) À resolução do contrato”.
À luz da referida hierarquização, ao recorrido assiste o direito de resolução do contrato celebrado com a recorrente, concretamente se tomarmos em conta o preceituado no nº 4 do art. 18º do Decreto-Lei n.º 84/2021 no qual se prescreve que “Em caso de reparação, o bem reparado beneficia de um prazo de garantia adicional de seis meses por cada reparação até ao limite de quatro reparações, devendo o profissional, aquando da entrega do bem reparado, transmitir ao consumidor essa informação” (sublinhados nossos).
Porém, contrariamente ao pretendido pela recorrente, não é nossa posição, interpretar o mencionado preceito no sentido de equiparar a expressão reparações a tentativas de reparações ineficientes - no caso dos autos foram feitas, entre 05/08/2022 e 31/03/2023, três tentativas de eliminar o defeito, sem sucesso!- pelo que é inteiramente aplicável a al. b) n.° 4 do art. 15.° do Decreto-Lei n.º 84/2021 que permite ao consumidor optar pela resolução do contrato, nomeadamente, quando:
(…)
"b) A falta de conformidade tenha reaparecido apesar da tentativa do profissional de repor os bens;
(…)
Ora, o persistente (e não resolvido) problema de consumo anómalo de óleo no veículo id. nos autos enquadra-se na transcrita alínea b), destarte legitimando a resolução do contrato de compra e venda de consumo por parte do comprador/recorrido, com todas as consequências dessa resolução (devolução do veículo à vendedora e devolução do preço- acrescido do valor da comissão de reembolso antecipado do financiamento obtido para a aquisição do AO) tal como se concluiu na decisão posta em crise.
No domínio do direito aplicável, e contrariamente ao sustentado pela recorrente, inexistem razões para contrariar as conclusões da decisão recorrida, acrescendo que a factualidade dada como assente não permite sustentar que a solução encontrada consubstancia uma situação de enriquecimento sem causa, importando determinar a improcedência da presente apelação.

V. Decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em julgar improcedente a presente apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 24-04-2025,
João Manuel P. Cordeiro Brasão
Maria Teresa F. Mascarenhas Garcia
Anabela Calafate