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LEVANTAMENTO DO SIGILO BANCÁRIO
SUPERVISÃO BANCÁRIA
PUBLICIDADE DO PROCESSO
ACESSO
Sumário
1- O dever de sigilo bancário e de Supervisão visa, essencialmente, três finalidades: (i) proteger a actividade bancária; (ii) salvaguardar a integridade dos dados pessoais daqueles que se relacionam com o sistema bancário (iii) preservar o interesse público num sistema bancário robusto, idóneo e confiável 2-Recusando-se o Banco de Portugal, a prestar informações pedidas por tribunal, invocando o dever de sigilo de supervisão bancária, deve o tribunal superior decidir a questão em função da ponderação que faça dos interesses em litígio: o interesse tutelado pelo dever de segredo bancário de supervisão versus o interesse na realização da justiça, por forma a fazer prevalecer o interesse preponderante. 3- O apuramento de qual seja o interesse preponderante que deverá prevalecer faz-se mediante uma apreciação dos contornos do litígio concreto, fundada na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses em confronto, face aos quais a informação pretendida terá de ser necessária, tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, e os ónus e as regras de prova e, imprescindível, no sentido de não poder ser obtida de outro modo; e considerando ainda os princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade, limitando-se a restrição do dever de sigilo bancário de supervisão ao mínimo indispensável à realização dos valores pretendidos alcançar. 4- A quebra do dever de segredo de supervisão poderá, rectius, deverá ser atenuada mediante a confidencialização dessas informações e dados: à confidencialidade dos elementos obtidos através da dispensa de dever de sigilo é aplicável o regime do artº 418º nº 2 do CPC; quer dizer, as informações obtidas são estritamente utilizadas na medida do indispensável à realização dos fins que determinaram a sua dispensa, não podendo ser divulgadas nem constituir objecto de ficheiro ou informações nominativas. 5- Assim, a confidencialidade dos elementos obtidos pela quebra do dever de sigilo deverá implicar a restrição da regra da publicidade do processo e acesso aos autos (artºs 163º nº 1, 2ª parte e, 164º do CPC).
Texto Integral
Acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I-RELATÓRIO
1-AA, instaurou acção declarativa, com processo comum, contra, BB, pedindo:
- A condenação do réu a fazer publicar na 1ª página do semanário Expresso, no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida nos presentes autos, e sob o título “BB Retrata-se” o seguinte texto:
“BB declara que são falsas as afirmações por si produzidas, no livro o Governador, de que AA, em telefonema, lhe dissera “Não se trata mal a filha do presidente de um país amigo”, e de que “a carta de 14 de dezembro de 2015, enviada aos Presidentes da Comissão Europeia e do BCE, foi uma das causas da resolução do Banif”.
Alegou, em síntese, que no do “caso BPI/BIC”, relativo à necessidade de solucionar riscos de exposição a instituições financeiras de países terceiros, o Governo fez o que estava ao seu alcance para libertar o BPI de CC e, em 10/04/2016, os accionistas daquele Banco anunciaram terem chegado a acordo com vista a solucionar o problema da ultrapassagem do limite dos grandes riscos; conhecedor da situação e sabendo que esse acordo ainda dependia da concordância das sociedades detidas por CC, o réu, como Governador do Banco de Portugal, a 12/04/2016, convocou aquela empresária para lhe comunicar que em face das informações disponíveis em matéria de branqueamento de capitais, seria recomendável que se alterassem os nomes propostos para o Conselho de Administração do BIC e que CC não fizesse parte da
administração do Banco; a colocação em causa de CC para administração do BIC enfureceu a empresária, tendo o autor, como Primeiro Ministro, sido informado e, temendo-se que aquela empresária viesse a por em causa o acordo delineado, nessa sequência, o autor telefonou ao réu dando-lhe nota do desagrado pela inoportunidade da comunicação a CC, quando estava em curso a ultimação de um processo de negociação que era essencial para o Governo, para o BCE e para o Banco de Portugal, perante a continuada pressão de Bruxelas para que cessasse o excesso de exposição da banca portuguesa a Angola. No livro “O Governador” da autoria de DD sobre a actuação do réu como Governador do Banco de Portugal, acerca deste episódio o réu disse que, naquele telefonema, o autor lhe disse “Não se pode tratar mal a filha do Presidente de um país amigo de Portugal”. Essa imputação é falsa, limitando-se o autor a ter manifestado o seu desagrado pela inoportunidade da intervenção do réu junto de CC.
Por outro lado, no “Caso BANIF”, após o Governo ter injectado 1 100 milhões de euros no Banco, ficando com 60% do capital social, a Comissão Europeia exigiu a apresentação de um Plano de Reestruturação que demonstrasse a viabilidade do Banco; a Comissão Europeia não aprovou nenhuma das oito propostas de Plano de Reestruturação apresentadas pelo Banco e pelo Governo e, determinou ao então Governo (XIX Governo Constitucional) que apresentasse, até final de Março de 2015, um Plano de Reestruturação credível do BANIF ou, seria aplicada a Medida de Resolução do Banco; na falta de apresentação de Plano de Reestruturação, em 17/11/2015, o réu por carta dirigida à Ministra das Finanças alertou para a necessidade urgente de recapitalização pública do BANIF, respondendo a então Ministra das Finanças não concordar com esse medida de recapitalização pública do Banco; em 26/11/2015, quando o Governo chefiado pelo ora autor tomou posse, faltavam três dias para o termo do prazo que o Banco de Portugal tinha dado ao BANIF para recapitalizar o Banco. Das quatro propostas de venda do Banco, a Comissão Europeia apenas aceitou a do Santander. O Banco de Portugal concluiu que a Resolução Bancária era a única alternativa à Liquidação do BANIF e, o processo de venda da actividade deste Banco, no contexto da Resolução Bancária, foi conduzido pelo Banco de Portugal. No livro “O Governador” o ora réu afirmou que a carta de 14/12/2015, do autor para o (então) Presidente do Conselho e para o Presidente do Banco Central Europeu, que considerava o BANIF em pré-resolução, foi concausa da Medida de Resolução daquele Banco, que levou à retirada da proposta do Banco de Portugal junto do Conselho de Governadores, agendada para 16/12/2015, de atribuição de uma linha de cedência de liquidez ao BANIF e, que este Banco deixasse de ter o estatuto de contraparte. Como meio de prova o autor solicitou, além do mais:
“Requer-se a notificação do Banco de Portugal para juntar aos autos a documentação elaborada pelo Banco, incluindo missivas para o BCE ou para a EBA, que permita identificar a avaliação da idoneidade da Engª CC, seja respeitante ao Eurobic, seja enquanto Presidente do Conselho de Administração da Sonangol, esta, designadamente, no contexto do aumento de capital do BCP, seja em resultado de iniciativas/questões/esclarecimentos pedidos pelo BCE ou pela EBA”.
2- Citado, o réu contestou e deduziu reconvenção.
Invocou a sua ilegitimidade na parte relativa a ser-lhe atribuída, pelo autor, a referência a que a carta de 14/12/2015, do autor ao Concelho e ao Banco Central, ter sido a concausa da Resolução Bancária do BANIF, dizendo que não consta do Livro (O Governador) essa imputação.
Impugna, no essencial, os factos alegados na petição inicial. Reitera que no telefonema do autor, este lhe disse “Não se pode tratar mal a filha do Presidente de um País amigo de Portugal”; dá a sua versão do “Caso BPI/BIC”.
Apresenta a sua versão do “Caso BANIF”, diferente da do autor.
Afirma a licitude da sua conduta; a inexistência de culpa, ausência de danos ao autor e falta de nexo de causalidade. Em reconvenção, pede a condenação do autor/reconvindo a:
- “Ser o Autor Reconvindo condenado a fazer publicar na 1.ª página do semanário EXPRESSO e no sítio do OBSERVADOR, no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença a proferir nos presentes autos, e sob o título “AA retrata-se”, o seguinte texto: “AA declara que correspondem à verdade as afirmações reproduzidas no livro O Governador, concretamente no que diz respeito ao teor do telefonema que efetuou para o Dr. BB, no dia 12 de abril de 2016, confirmando que efetivamente lhe disse, em tom exaltado, «Não se pode tratar mal a filha do Presidente de um país amigo de Portugal». Mais declara lamentar quaisquer incómodos e potenciais danos causados ao Dr. BB resultantes do seu indevido desmentido, ficando assim reposta a verdade dos factos”
Alegou, em síntese, que o livro “O Governador” da autoria de DD, incorpora, entre outras coisas, alguns excertos de entrevistas com o reconvinte. Dá por reproduzido o que alegou na contestação sobre os “Caso BPI” e sobre o “Caso BANIF”. Que antes e depois da publicação do livro, o autor/reconvindo veio a público afirmar que o réu/reconvinte proferiu declarações falsas nesse livro e iria accionar os meios adequados para salvaguardar a sua honra. Afirmações, amplamente difundidas em diversos órgãos de comunicação social, violaram o direito à honra e consideração do reconvinte. Como meio de prova, quanto à contestação, requereu, além do mais:
“Mais se requer, para prova da factualidade alegada nos artigos 30.º, 59.º, 75.º, 82.º, 83.º, 84.º, 86.º, 88.º, 114.º, 115.º, 116.º, 117.º, 118.º, 119.º, 124.º e 131.º da contestação que se notifique o Banco de Portugal para informar os presentes autos se autoriza a disponibilização, por parte do Réu, das comunicações eletrónicas a que se refere a factualidade alegada nos artigos supra mencionados, uma vez que se trata de correspondência eletrónica que o Réu expediu e recebeu e a que teve acesso na sua (então) condição de Governador do Banco de Portugal, documentação que se revela imprescindível para a defesa do Réu e para prova da factualidade alegada nos artigos supra identificados” Como meio de prova, da reconvenção requereu, além do mais:
“…requer, para prova da factualidade alegada nos artigos 14.º, 15.º, 16.º e 17.º da reconvenção, que se notifique o Banco de Portugal para informar os presentes autos se autoriza a disponibilização, por parte do Réu, da ata/notas escritas elaboradas pelo Dr. FF reportada à reunião ocorrida no dia 12 de abril de 2016 no Banco de Portugal, que contou com a presença dos então acionistas do EuroBic, a qual se revela imprescindível para prova da factualidade alegada nos artigos supra identificados;”
3- O autor/reconvindo replicou.
Pugna pela improcedência da excepção de ilegitimidade do réu.
Respondeu à matéria da reconvenção mantendo, no essencial, a versão dos factos invocados na petição inicial.
Como meio de prova, requereu:
“…a notificação do Banco de Portugal para juntar aos autos a carta da EBA posterior a 12 de abril de 2016 e resposta à mesma do Banco de Portugal, referidas nos art.ºs 13 e 24 da presente réplica e para prova do teor daqueles artigos.”
4- No despacho saneador, na parte relativa à admissão dos meios de prova, foi determinado, além dos mais, quanto aos meios de provado autor/reconvindo:
“Atenta a conjugação dos artigos 432.º e 429.º ambos do Código de Processo Civil, notifique o Autor para, em 10 dias, informar quais os factos que pretende provar com a prova ora requerida em sede de petição inicial. * Nos termos conjugados dos artigos 432.º e 429.º, ambos do Código de Processo Civil, notifique o Banco de Portugal para, em 10 dias, juntar aos autos carta da EBA posterior a 12 de abril de 2016 e resposta à mesma do Banco de Portugal.”
E, quanto aos meios de prova do réu/reconvinte foi decidido, além do mais:
“…oficie o Banco de Portugal para, em 10 dias, informar os autos sobre se autoriza: a) A disponibilização, por parte do Réu, das seguintes comunicações eletrónicas (através de qualquer meio) expedidas e recebidas pelo Réu nas seguintes datas: - 16.04.2016 - 17.04.2016; - 18.04.2016; No que tange ao referido nos artigos 86.º, 88.º, 114.º e 131.º (por reporte à contestação) e 58.º (por reporte à reconvenção), notifique o Réu para, em 10 dias, concretizar as datas pretendidas. A demais matéria não é suscetível de se revelar útil para a boa decisão da causa. b) A disponibilização, por parte do Réu, da ata/notas escritas elaboradas pelo Dr. FF reportada à reunião ocorrida no dia 12 de abril de 2016 no Banco de Portugal.”
5- O autor veio esclarecer que com a junção dos documentos pelo Banco de Portugal pretende fazer prova do facto negativo alegado no ponto 30º da petição inicial.
6- O réu veio concretizar que:
“…as datas pretendidas por referência aos artigos indicados são as seguintes: - Artigo 86.º da contestação: 9, 10, 13 e 14 de Abril de 2016; - Artigo 88.º da contestação: 17 de Abril de 2016; - Artigo 114.º da contestação: 15 e 16 de Abril de 2016; - Artigo 131.º da contestação: 19, 21, 28 de Janeiro, 29 de Fevereiro, 10, 23, 25 e 28 de Março, 9, 15, 16, 17 e 18 de Abril, 23 de Julho, 5, 14, 16 e 18 de Setembro de 2016; - Artigo 153.º da contestação: 1, 8 de Março, 7, 13, 15, 17, 18 de Abril, 6 de Maio, 3 de Novembro de 2016; - Artigo 58.º da reconvenção: 18 de Abril de 2016.”
Mais solicita que o Banco de Portugal autorize:
“…a disponibilização, por parte do Réu, da ata/notas escritas elaboradas pelo Dr. FF reportada à reunião ocorrida no dia 12 de abril de 2016 no Banco de Portugal”, na sequência de email recebido pelo Réu a 27.01.2020, pelas 14h46, uma vez que o ofício já expedido para o Banco de Portugal a 06.01.2025, com a ref.ª citius 441504220, apenas menciona a autorização para a disponibilização das comunicações elctrónicas expedidas e recebidas pelo Réu a 16.04.2016, 17.04.2016 e 18.04.2016.”
7- Por despacho de 06/02/2025, foi decidido:
“Na sequência de notificação para o efeito, veio o Autor indicar que, com a junção dos documentos requeridos, pretende fazer prova do facto negativo referido em 30.º da petição inicial. Da análise do referido art. 30.º constata-se que o mesmo encerra juízos conclusivos, não se demonstrando, assim, que estes sejam suscetíveis de contribuir para a boa decisão da causa. Em face do exposto, indefere-se a requerida notificação. (…) Ao abrigo do disposto no art. 436.º do Código de Processo Civil oficie o Banco de Portugal para, em 10 dias, informar os autos sobre se autoriza: a) A disponibilização, por parte do Réu, das seguintes comunicações eletrónicas (através de qualquer meio) expedidas e recebidas pelo Réu nas seguintes datas: 19.01.2016; 21.01.2016; 28.01.2016; 29.02.2016; 01.03.2016; 08.03.2016; 10.03.2016; 23.03.2016; 25.03.2016; 28.03.2016; 07.04.2016 09.04.2016; 10.04.2016; 13.04.2016; 14.04.2016; 15.04.2016; 06.05.2016; 23.07.2016; 05.09.2016; 14.09.2016; 16.09.2016; 18.09.2016; 03.11.2016. * Ofício remetido pelo Banco de Portugal: Deferido pelo prazo de 10 dias. Informe que são solicitadas as comunicações dirigidas ou recebidas pelo ora Réu. * Oficie o Banco de Portugal nos termos constantes da alínea b) do despacho saneador, relativamente à Requisição de Informações.”
8- Por ofício de 12/03/2025, o Banco de Portugal veio recusar a prestar autorização para divulgação dos documentos, invocando o dever de sigilo profissional.
9- Por despacho de 27/03/2025, foi decidido:
“Veio o Réu requerer a autorização do Banco de Portugal para junção aos autos de comunicações eletrónicas por si remetidas, enquanto Presidente do Banco de Portugal, para terceiros. Visa, com tais documentos, sustentar factualidade por si alegada, com vista a contrariar os factos alegados pelo Autor em sede de petição inicial. Oficiado para o efeito, pelo Banco de Portugal foi referido, em síntese, estarem tais comunicações sujeitas a sigilo profissional e, por essa via, não poder dar a autorização pretendida. Nos termos do disposto no art. 80.º n.º 1 e 2 Decreto-Lei n.º 298/92, de 31.12, e suas sucessivas alterações: “1 - As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas. 2 - Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.” Ao nível do processo penal o regime consta do art. 135.º do Código de Processo Civil. In casu, o tribunal não tem dúvidas sobre a legitimidade da escusa. Efetivamente, não estamos no âmbito de um processo penal nos termos e para efeitos de tal preceito. Nestas situações a solução passa por deduzir incidente de levantamento de sigilo profissional no tribunal superior àquele onde a recusa foi manifestada (n.º 3 daquele preceito). Em face do exposto, nos termos e para efeitos do disposto no art. 135.º n.º 3 do Código de Processo Penal, o tribunal decide suscitar o incidente de levantamento do segredo profissional invocado pelo Banco de Portugal para os efeitos pretendidos, determinando-se a remessa deste incidente ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa. II – Questão a decidir.
A única questão a decidir é a de saber se se verificam os pressupostos legais que permitem ordenar o levantamento do sigilo bancário invocado pelo Banco de Portugal. III – Fundamentação de Facto
Com interesse para a apreciação da questão enunciada, encontram-se assentes os factos referidos no relatório que antecede.
*** IV- Fundamentação de Direito. 1-Princípio da Cooperação.
Estabelece o artº 417 nº 1 do CPC que: “Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado…facultando o que lhes for requisitado e praticando os atos que forem determinados”.
O artº 7º nº 4 do CPC determina que: “Sempre que alguma das partes alegue, justificadamente, dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo”.
Estes preceitos dão expressão ao Princípio da Cooperação das partes e de terceiros para com o tribunal e ao dever deste em remover dificuldades na obtenção de elementos probatórios que sejam necessários ao cumprimento de ónus e deveres processuais das partes.
Justamente por assim ser, ao abrigo daquele Princípio da Cooperação, as partes e os terceiros a quem o tribunal o solicitar, têm que facultar objectos que constituem meio de prova (artºs 429º, 432º e 436º, do CPC), prestar depoimento e/ou declarações de parte, depoimento testemunhal (artºs 452º, 466º e 526º), esclarecer o relatório pericial (artº 486º), ou submeter-se a inspecção judicial e ao exame pericial (artºs 467º e 490º).
E à luz desse princípio compreende-se que o artº 417º nº 2 determine que: “Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis”, sendo ainda certo que, relativamente às partes, a omissão grave do dever de cooperação pode, inclusivamente, dar lugar à condenação da parte como litigante de má fé (art. 542º, nº 2). 2-Limites ao Princípio da Cooperação.
Não obstante, é conhecido que no processo civil não são raros os casos em que, para a prova de determinados factos, se torna fundamental a obtenção de elementos de acesso restrito, limitado por necessidades de salvaguarda de interesses igualmente relevantes e cuja protecção deve ser assegurada.
Por isso, tendo essa realidade presente, o nº 3 do artº 417º determina que, em certas situações especiais, a “recusa (de colaboração) é (…) legítima se a obediência importar: violação da integridade física ou moral das pessoas (al. a); intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (al. b); ou violação do sigilo profissional ou de funcionário público, ou do segredo do Estado, sem prejuízo do disposto no nº 4” (al. c).
E o nº 4 do preceito prevê que “deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior (em matéria do sigilo profissional ou de funcionário público, ou do segredo do Estado), é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.
Assim, pode dizer-se que o dever de cooperação para a descoberta da verdade tem duas grandes áreas de limite: (i) o respeito pelos direitos fundamentais, imposto pela Constituição, referido nas alíneas a) e b) do nº 3 do artº 417º do CPC; e, (ii) o respeito pelo direito ou dever de sigilo, a que se refere a alínea c) do nº 3 do mesmo preceito.
O primeiro desses limites é absoluto estando vedado ao tribunal ultrapassá-lo. Já o segundo limite, circunscrito pelo direito/dever de sigilo, é relativo, conforme resulta da redacção do nº 4 do art. 417º do CPC e da remissão por ele feita para o CPP (José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª edição. Coimbra Editora, Agosto de 2008, p. 441).
Na verdade, o artº 135º nº 1 do CPP determina que “Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos”.
Porém, “Havendodúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias”; e, “Seapós estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento” (nº 2 do art. 135º do CPP).
Portanto, invocada a escusa do dever de cooperação, com fundamento no dever de salvaguarda do sigilo profissional, existindo dúvidas sobre a legitimidade da sua invocação, o juiz decide, depois de proceder às averiguações necessárias. E, concluindo pela ilegitimidade da escusa ordena a forma de cooperação requerida, cuja inobservância ficará, então, sujeita às cominações estabelecidas no n.º 2 do artº 417º do CPC. 3-O Sigilo Bancário e de Supervisão.
O artº 78º nº 1 do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – RGICSF), com as suas diversas (65) alterações, estabelece que “Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional, não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
E o nº 2 do mesmo preceito determina que “Estão, designadamente, sujeitos a segredo, os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”.
Saliente-se que “O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.” (artº 78º nº 3 do RGICSF)
Por sua vez, no que toca ao Banco de Portugal, o artº 80º do RGICSF, com epigrafe “Dever de segredo do Banco de Portugal”, estabelece: “1 - As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas. 2 - Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal. 3 - Fica ressalvada a divulgação de informações confidenciais relativas a instituições de crédito no âmbito da aplicação de medidas de intervenção corretiva ou de resolução, da nomeação de uma administração provisória ou de processos de liquidação, exceto tratando-se de informações relativas a pessoas que tenham participado na recuperação ou reestruturação financeira da instituição.” O sigilo bancário consiste no dever profissional, a que estão adstritas determinadas pessoas, de não revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida de instituição bancária (instituição de crédito ou sociedade financeira) ou às relações destas com os seus clientes, cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. (Cf. José Maria Pires Elucidário de Direito Bancário, Coimbra Editora, pág. 472). O sigilo garante uma zona essencial da privacidade, criando condições de confiança que devem presidir às relações entre as instituições e os seus clientes e defende as próprias instituições de revelações que possam prejudicar o seu bom nome.
Como se explica no acórdão do TRL de 07/11/2024 (1419, Inês Moura) referindo o acórdão do TRL de 14/09/2021 “…o segredo a que está sujeito o Banco de Portugal é um segredo de supervisão, pouco distinto do segredo bancário. Trata-se aqui de um outro tipo de segredo profissional ou, como se entendeu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-06-2012, relatora Maria João Romba, processo n.º 394/10.0TTTVD-A.L1-4, de uma modalidade do segredo profissional a que se refere o Capítulo III do Título VI do RGICSF, isto é, do segredo de supervisão imposto ao Banco de Portugal, configurado por uns como modalidade de segredo bancário e, por outros, como modalidade autónoma de segredo profissional – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Edição, pág. 228. (…) O bem jurídico protegido pelo dever de segredo de supervisão continua a ser o direito à reserva da intimidade da vida privada sobretudo nas zonas de sobreposição, quanto à informação abrangida, com o segredo bancário, mas também o interesse público na efectividade ou eficácia da supervisão, essencial à salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro, bem jurídico constitucionalmente previsto no artigo 101.º da Constituição da República Portuguesa, sendo o segredo de supervisão necessário ao estabelecimento da confiança. Ao poder do supervisor de exigir a prestação de todas e quaisquer informações necessárias ao exercício da supervisão há-de corresponder o dever de manter sigilo sobre as informações assim obtidas ou recolhidas, com o que se visa assegurar o interesse da comunidade na discrição e reserva de determinados grupos profissionais, como condição do seu desempenho eficaz e salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro.”* (sublinhados nossos).
Enfim, o dever de sigilo bancário e de Supervisão visa, essencialmente, três finalidades: (i) proteger a actividade bancária; (ii) salvaguardar a integridade dos dados pessoais daqueles que se relacionam com o sistema bancário (iii) preservar o interesse público num sistema bancário robusto, idóneo e confiável (Capelo de Sousa, «O Segredo Bancário – em especial face às alterações fiscais da Lei nº 30-G/2000, de 29/12», Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, II Volume, 2002, pág. 176-179. No mesmo sentido, Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 2ª edição, Almedina, 2001, pág. 342-346, e José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, Agosto de 2008, p. 443).
O segredo bancário liga-se, não só “a um interesse geral do sistema bancário, para preservação das condições de captação de poupanças”, como “a um interesse privado dos clientes da instituição de crédito, tendo em vista a protecção da sua vida privada”, isto é, a reserva da vida privada (Paulo Mota Pinto, A Protecção da Vida Privada e a Constituição, BFDUC, ano 2000, vol. LXXVI, p. 174-175).
Portanto, uma das vertentes do bem jurídico tutelado pela protecção do segredo bancário e de Supervisão, como segredo profissional é o da confiança dos clientes na discrição dos seus interlocutores, quanto às informações prestadas relativas à respectiva vida familiar, pessoal e patrimonial, concretizando assim, a protecção do seu direito fundamental à reserva da vida privada, surgindo aquele dever como um instrumento de garantia deste direito. 4- A Dispensa de Sigilo Bancário e de Supervisão.
O artº 79º nº 1 do RGICSF permite que “os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição”.
No nº 2 do artº 79º citado diz-se que “fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados: d) Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal; f) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo”.
Também o artº 80º nº 2 do RGICSF, relativo ao Banco de Portugal, refere, como vimos,” - Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.”
No artº 60º da Lei nº 5/98, de 31/01 (Lei Orgânica do Banco de Portugal) prevê-se que:
“Os membros do conselho de administração, do conselho de auditoria, do conselho consultivo e, bem assim, todos os trabalhadores do Banco estão sujeitos, nos termos legais, ao dever de segredo.” Em síntese: o dever de sigilo bancário e de Supervisão só poderá deixar de ser observado, grosso modo, em duas situações: (i)- por consentimento do próprio sujeito beneficiário; (ii) - ou por determinação judicial.
Fora destas duas legais e taxativas excepções, a protecção de que goza é tal que a revelação de informações cobertas pelo sigilo bancário implica a responsabilidade criminal do infractor (conforme artº 195º do CP).
Portanto, em face daquelas duas excepções, conclui-se que o sigilo bancário e de Supervisão - contrariamente a outros segredos, como o religioso - não tem carácter absoluto.
Justamente por ter carácter relativo, pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Na verdade, a tutela de outros valores constitucionalmente protegidos pode tornar necessário,em certos casos, o acesso aos dados e informações que os bancos possuem relativamente às relações com os clientes (Acórdão nº 278/95, do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Julho 1995. No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 10.12.1997, BMJ nº 472, p. 425, e Ac. do STJ, de 27.01.1998, CJ, Acs. do STJ, Ano VI, 1998, Tomo I, p. 44. Mais recentemente, Ac. da RP, de 17.12.2008, Maria Graça Mira, Processo nº 0827459, e Ac. da RL, de 12.05.2009, Dina Monteiro, Processo nº 341/06.3TBPDL-A.L1-7, ambos in www.dgsi.pt. Cf. Ainda Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Livraria Almedina, 1999, p. 573; José Maria Pires, Elucidário, cit., pág. 475”,
“O mesmo sucede com o disposto no referido artº 80º nº 2 (do RGICSF) em relação ao conhecimento que advenha do exercício de funções de supervisão (o chamado dever de segredo profissional de supervisão), previsto no nº 1 do dito artigo (tais como as actas do Banco de Portugal sobre práticas financeiras de bancos e sociedades financeiras, correspondência entre o Banco de Portugal e auditores externos de instituições de crédito, relatórios sobre auditorias às contas de bancos, informações e pedidos de esclarecimentos dirigidos aos bancos e empresas ou estabelecimentos off-shores, como conclui Sérvulo Correia, 2009: 173 a 176, e sobre a quebra deste segredo de supervisão nos mesmos termos do segredo profissional, 2009: 224 a 235)” (apud Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, 2011, pág. 384 e seg.) - de resto, concretamente no que toca à dispensa de sigilo de supervisão bancária do Banco de Portugal, Cf. acórdãos do TRL, 20/06/2017 (631/16, Filipa Macedo; TRL de 07/11/2024 (1419/22, Inês Moura; TRL, de 21/03/2023 (4492/20, Carla Francisco); STJ, de 22/02/2021 (122/08, Domingos Morais).
Um entendimento contrário deixaria sem protecção, fazendo perigar a respectiva tutela, outros interesses e valores, também eles constitucionalmente consagrados, como é o caso da necessidade de obtenção de provas, enquanto corolário do direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva (art. 20º, nº 1 da CRP).
Se o direito ao sigilo bancário e de Supervisão é, em si próprio, inquestionável, à luz do moderno âmbito do direito de personalidade, não pode considerar-se absoluto de tal forma que fizesse esquecer outros direitos fundamentais, como o direito de acesso à justiça.
Só “por absurdo se poderia admitir que o pensamento legislativo seria no sentido de paralisar a acção dos tribunais na realização de direitos subjectivos, quando é certo que, ao invés, a ordem jurídica existe, justamente, como um conjunto de meios que deve conduzir à efectiva realização dos fins da actividade judicial previstos basicamente no artº 205º da Constituição” (Ac. do STJ, de 14.01.1997, BMJ n º 463, p. 472).
Não obstante não ser um direito absoluto e podendo ceder perante a necessidade de salvaguarda do interesse público da cooperação com a justiça e outros interesses constitucionalmente protegidos, as restrições ao segredo bancário e ao segredo de supervisão bancária, além de apenas poderem derivar de lei formal expressa, a sua aplicação terá de ser objecto de adequado controlo jurisdicional, a apreciar em concreto, já que as excepções contempladas na lei pressupõem sempre um conflito de interesses, a necessitar de ponderação e cautela. 5- Critério de decisão: O Interesse preponderante.
O artº 135º, nº 3 do CPP determina, como vimos, que “O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos”.
Note-se que este preceito é igualmente aplicável à recusa de apresentação de documentos fundada na alegação de segredo profissional ou de funcionário, conforme decorre directamente do artº 182º do CPP que, justamente, remete para o regime de quebra de sigilo previsto no artº 135º nºs 2 e 3 e 136º do CPP.
Assim, o critério de decisão a adoptar será o de fazer prevalecer ointeresse preponderante, isto é, o tribunal superior poderá dispensar o titular do sigilo profissional - no caso, sigilo bancário e de supervisão - se considerar relevante o interesse civil a satisfazer com a sua quebra (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, Agosto de 2008, p. 441 e 443).
Contudo, nesta ponderação não poderá deixar de atender ao disposto no art. 18º nº 2 da CRP, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
Compreende-se, assim, que se afirme que, no conflito de direitos em presença (sigilo bancário e de supervisão versus realização da justiça) deverá prevalecer o mais relevante; mas essa relevância terá de ser aferida à luz do caso concreto, e dos princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade (Ac. da RL, de 19.09.2006, Graça Amaral, Processo nº 5900/2006-7, www.dgsi.pt). Atendendo ao conteúdo e função específica de cada um dos direitos, pretender-se-á obter o máximo de protecção de cada um deles, sem os descaracterizar no seu núcleo essencial (princípio constitucional da concordância prática, face à vocação de integridade e completude que cada direito constitucional tem ínsita); e o sacrifício que tiver que se verificar, será apenas o necessário à realização essencial do outro (princípios constitucionais da proporcionalidade, da adequação e da necessidade).
Afirma-se, por isso, que estando em causa o exercício simultâneo de dois direitos constitucionais, em colisão (reserva profissional e da intimidade dos utilizadores do sistema bancário versus realização da justiça), a solução de tal litígio deverá resultar de um juízo de ponderação, que procure, em face da situação concreta, encontrar e justificar a solução mais conforme ao conjunto dos valores constitucionais, assim se actuando o critério da ponderação de bens (Vieira de Andrade, Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, pg. 220).
Há que verificar se os direitos colidentes têm uma estrutura formal e um fundamento axiológico-normativo assentes quer em interesses juridicamente tutelados de qualidade e grau idênticos quer em interesses concretos juridicamente tutelados de qualidade e grau diverso mas de peso equilibrado, ou, diferentemente, se na colisão de direitos há predominância de interesses juridicamente tutelados de uma das partes.
Assim, na hierarquização legal dos valores pessoais e patrimoniais volta a imperar a importância objectiva de tais valores para a realização dos fins jurídicos da comunidade, particularmente, no que toca ao mais imediato e fundamental do comum da existência humana.
Tal precedência verifica-se, sem dúvida, quanto ao valor da personalidade humana total, integrando todos os valores singulares da personalidade, quanto ao valor da dignidade humana essencial e quanto aos valores vitais.
Fora disto, já a indispensabilidade ou a importância de certos valores patrimoniais básicos poderão sobrepor-se ao relevo de valores de personalidade menos prementes. (Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, p. 534 a 549. No mesmo sentido, Ac. da RL, de 20.02.1992, CJ, 1992, Tomo I, p. 160). Esta prevalência do interesse preponderante, no que ao sigilo bancário e de supervisão diz respeito, pressupõe que a obtenção da informação a ele submetida se decida depois de ponderados jurisdicionalmente os interesses em confronto, isto é, do dever profissional de reserva e da realização da justiça.
O tribunal ao efectuar esse juízo, deverá actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada com vista a salvaguardar o seu direito ao bom nome e à honra; por outro lado, o interesse tutelado pelo dever de sigilo e da relação de confiança e segurança próprias da dignidade do exercício das funções (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, p. 363-364). Porém, não bastam afirmações apriorísticas de que o interesse na realização da boa administração da justiça deverá prevalecer sobre o interesse particular do cliente bancário em não ver divulgada informação sobre a sua relação com determinada instituição bancária; ou que, estando em causa um direito de personalidade (à reserva da vida privada), o mesmo deverá prevalecer sobre o reconhecimento de um direito patrimonial (objecto da acção judicial onde se pretende obter a informação sujeita a sigilo bancário).
No âmbito do processo civil (em que estão em causa interesses privados), a quebra do sigilo bancário e de supervisão surge com características marcadamente excepcionais, em conjunturas muito particulares; deverá ser aferida com base na estrita necessidade, numa lógica de imprescindibilidade da informação pretendida e limitar-se ao mínimo indispensável à concretização dos valores pretendidos alcançar. (Veja-se Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 2ª edição, Almedina, 2001, p. 358-361; Ac. da RG, de 19.12.2008, António Condesso, Processo nº 2730/08-2; Ac. da RP, de 17.09.2008, Maria Leonor Esteves, Processo nº 0815122, Ac. da RP, de 11.05.2009, Maria Adelaide Domingos, Processo nº 436-D/2001.P1, Ac. da RP, de 07.07.2009, M. Pinto dos Santos, Processo nº 15/08.0TBMUR-A.P1, e Ac. da RP, de 08.07.2009, Luís Teixeira, Processo nº 553/08.5JAPRT-A.P1; Ac. da RC, de 28.03.2007, Hélder Roque, Processo nº 190/03.0TBTMR.C1, Ac. da RC, de 10.03.2009, Costa Fernandes, Processo nº 53/09.6YRCBR, e Ac. da RC, de 28.04.2015, Isabel Silva, Processo nº 46/14.1TBMBR-A.C1; Ac. da RL, de 02.06.2009, Rosário Gonçalves, Processo nº 4324/07.8TBCSC-A.L1-1, e Ac. da RL, de 25.03.2014, Cristina Coelho, Processo nº 129/13.5TJLSB-A.L1-7; RL, de 14/09/2021 (2835/20, Micaela Sousa); RL de 07/11/2024 (1419/22, Inês Moura). Concluindo, em sede de processo civil, a dispensa de invocado sigilo bancário e de supervisão reveste natureza excepcional; depende sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa. E só deverá ser concedida se a informação pretendida for necessária, tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, bem como os ónus e as regras de prova, e seja imprescindível, no sentido de não poder ser obtida de outro modo. 6- O caso dos autos.
No caso dos autos estão em causa uma acção e uma reconvenção que têm por objecto a salvaguarda do direito à honra e bom nome quer do autor/reconvindo quer do réu/reconvinte.
Trata-se de bens iminentemente pessoais, com tutela constitucional, concretamente no artº 25º nº 1 da CRP “A integridade moral das pessoas é inviolável” e, no artº 26º nº 1 “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal…ao bom nome e reputação, à imagem…”.
A factualidade que as partes pretendem demonstrar através de documentos que estão abrangidos pelo dever de sigilo de supervisão, no que toca ao autor/reconvindo, foi deferido que o Banco de Portugal juntasse aos autos a carta da EBA (Agência Bancária Europeia) posterior a 12 de Abril e resposta à mesmo do Banco de Portugal.
Pois bem, não obstante estar abrangida pelo dever de sigilo de supervisão, a única forma de provar esse facto é, justamente, a da junção da carta da Agência Bancária Europeia, posterior a 12/04/2014 e a resposta a essa carta por banda do Banco de Portugal.
Não se vislumbra outro modo de demonstrar esses factos.
Isto ainda que o Banco de Portugal pondere a necessidade de obter autorização junto da Agência Bancária Europeia para juntar tais cartas, como pode resultar a interpretação do artº 81º do RGICSF. No que toca ao réu/reconvinte, a prova a produzir consiste nas circunstâncias factuais invocadas nos pontos 86 da contestação – empenho do Banco de Portugal na ultrapassagem dos problemas do BPI e na troca de mensagens entre o então Governador (réu) e o Presidente do Conselho de Administração do BPI -; no ponto 88 da contestação – diligências e contactos para ultrapassar a exposição do BPI a grandes riscos de exposição a Angola -; no ponto 114 da contestação – essencialmente sobre o mesmo cado -; no ponto 131 – ainda sobre o mesmo caso e a ligação à reunião com CC e GG -; artº 153 da contestação -; e artº 58 da reconvenção – ainda sobre a mesma questão.
O réu propõe-se fazer prova dessa factualidade mediante a apresentação de 28 mensagens electrónicas trocadas sobre essa questão, já admitidas e enunciadas nos despachos da 1ª instância, de 18/12/2024 (despacho saneador e admissão de meios de prova) quanto às comunicações electrónicas de 16.04.2016, 17.04.2016 e 18.04.2016; e, ainda, das comunicações electrónicas admitidas e enunciadas no despacho de 06/02/2025: 19.01.2016; 21.01.2016; 28.01.2016; 29.02.2016; 01.03.2016; 08.03.2016; 10.03.2016; 23.03.2016; 25.03.2016; 28.03.2016; 07.04.2016 09.04.2016; 10.04.2016; 13.04.2016; 14.04.2016; 15.04.2016; 06.05.2016; 23.07.2016; 05.09.2016; 14.09.2016; 16.09.2016; 18.09.2016; 03.11.2016.
Pois bem, a única forma que se nos afigura ser possível de produzir prova sobre essa factualidade é, justamente, a junção aos autos de cópias dessas mensagens electrónicas. Poder-se-ia, no limite, admitir que a prova dessa factualidade pudesse fazer-se por meio de prova testemunhal ou mediante declarações de parte; mas, a ser possível “reproduzir” o conteúdo dessas comunicações electrónicas por estes dois meios de prova (o que não se nos apresenta viável), “esbarrar-se-ia”, novamente, no dever de sigilo.
Para além das cópias das especificadas comunicações electrónicas, pretende o réu a dispensa do dever de sigilo mediante a disponibilização da acta/notas escritas elaboradas pelo Dr. FF reportada à reunião ocorrida no dia 12 de abril de 2016 no Banco de Portugal (com CC e GG).
A possibilidade de demonstrar o que ocorreu na mencionada reunião apenas será possível mediante a junção desse documento. Poder-se-ia conjecturar que o conteúdo da reunião poderia ser demonstrado por prova testemunhal e por declarações de parte. Mas, a verdade é que o testemunho por banda de FF e por declarações de parte do réu, levariam ao mesmo problema: “esbarrariam” no dever de sigilo. E não se nos afigura realista a possibilidade obter o testemunho de CC.
Assim, a junção daquela carta da Agência Bancária Europeia, daquelas comunicações electrónicas, e da acta/notas escritas elaboradas por FF, apresenta-se não somente como necessária como também imprescindível à demonstração da factualidade a provar.
Assim, entre o direito à prova enquanto vertente do Princípio do Acesso ao Direito e à Tutela Jurisdicional Efectiva (artº 20º da CRP) e à realização da Justiça, no confronto com dever de segredo de supervisão - que, como se disse, continua a ser um direito à reserva da intimidade da vida privada, sobretudo nas zonas de sobreposição, quanto à informação abrangida, com o dever de segredo bancário, mas também o interesse público na efectividade ou eficácia da supervisão, essencial à salvaguarda da estabilidade do sistema (TRL, de 14/09/2021 (2835, Micaela Sousa) - entendemos que, no caso concreto, prevaleça o direito à prova e à realização da justiça. 7- A confidencialização dos dados e informações. Saliente-se que a quebra do dever de segredo de supervisão poderá, rectius, deverá ser atenuada mediante a confidencialização dessas informações e dados. Na verdade, à confidencialidade dos elementos obtidos através da dispensa de dever de sigilo é aplicável o regime do artº 418º nº 2 do CPC; quer dizer, as informações obtidas são estritamente utilizadas na medida do indispensável à realização dos fins que determinaram a sua dispensa, não podendo ser divulgadas nem constituir objecto de ficheiro ou informações nominativas. Assim, a confidencialidade dos elementos obtidos pela quebra do dever de sigilo deverá implicar a restrição da regra da publicidade do processo e acesso aos autos (artºs 163º nº 1, 2ª parte e, 164º do CPC) (Neste sentido, Lopes do Rego, Comentário ao CPC, 2ª edição, 2004, pág. 458).
Assim, apenas poderão aceder aos documentos, os Ilustres Mandatários das partes e estas; sem prejuízo da necessidade de confrontar alguma testemunha ou declarante com esses documentos.
Essa confidencialidade será assegurada mediante a apresentação dos documentos em suporte de papel, não por via electrónica/Citius. E, apresentados os documentos pelo réu, será a secretaria a notificar o autor do teor desses documentos, igualmente em suporte de papel. A secretaria deverá ser advertida, no despacho que notifique o Banco de Portugalpara apresente os documentos aludidos – carta da EBA e resposta do Banco de Portugal – em suporte de papel e não mediante junção electrónica. Essa notificação ao Banco de Portugal será acompanhada de cópia da decisão deste incidente de quebra de sigilo. Recebidos os documentos, não serão incorporados nos autos, mas ficarão guardados na secretaria, à luz do artº 442 nº 2 do CPC, com as devidas adaptações, em envelope fechado, apenas podendo a eles ter acesso os Ilustres Mandatários das partes e estas e, eventualmente, mostrando-se necessário, poderão ser confrontados com testemunhas ou declarantes. Caso o conteúdo de cada um dos documentos faça referências a circunstâncias ou a pessoas não referidas no processo, poderá a 1ª instância ponderar a necessidade de ocultar essas referências, quando os exiba a testemunhas. No final do processo, após o trânsito em julgado da decisão final, os documentos serão destruídos pelo juiz do processo, lavrando-se auto dessa destruição. 8- A Síntese.
O réu, enquanto ex-Governador do Banco de Portugal, está sujeito ao dever de sigilo nos termos acima vistos do artº 80º do RGICSF e 60º da Lei Orgânica do Banco de Portugal.
O Banco de Portugal está sujeito ao dever de sigilo de supervisão nos termos dos mesmos preceitos legais.
Entendemos dispensar o réu e o Banco de Portugal desses deveres de sigilo. O incidente procede.
*** V- Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar procedente o presente incidente de levantamento de sigilo profissional de supervisão bancária e, em consequência:
a)- Dispensam o Banco de Portugal do sigilo de supervisão bancária e determinam que este Banco de Portugal apresente nos autos, em suporte de papel (não electrónico), em prazo a determinar pela 1ª instância, a carta da EBA posterior a 12 de abril de 2016 e resposta à mesma pelo Banco de Portugal, como já lhe foi indicado;
b)- Dispensam o réu/reconvinte do sigilo profissional e determinam que ele apresente nos autos, no prazo a determinar pela 1ª instância, igualmente em suporte de papel (não por via electrónica):
i)- cópias das comunicações electrónicas de 16.04.2016, 17.04.2016 e 18.04.2016; e, ainda, das comunicações electrónicas de 19.01.2016; 21.01.2016; 28.01.2016; 29.02.2016; 01.03.2016; 08.03.2016; 10.03.2016; 23.03.2016; 25.03.2016; 28.03.2016; 07.04.2016 09.04.2016; 10.04.2016; 13.04.2016; 14.04.2016; 15.04.2016; 06.05.2016; 23.07.2016; 05.09.2016; 14.09.2016; 16.09.2016; 18.09.2016; 03.11.2016;
ii)- cópia da acta/notas escritas elaboradas pelo Dr. FF reportada à reunião ocorrida no dia 12 de abril de 2016 no Banco de Portugal.
c)- Mais determinam a restrição da regra da publicidade do processo e de acesso aos autos na parte relativa àqueles documentos, limitando-a aos Ilustres Mandatários das partes e a estas, ressalvada ainda a eventual necessidade de confrontar alguma das testemunhas com algum desses documentos, competindo à 1ª instância determinar a não junção desses documentos ao processo nos termos acima preconizados, incluindo quanto às cautelas com as notificações entre partes e ao Banco de Portugal.
*** Custas do incidente, por autor e réu, por do incidente ambos terem tirado proveito (artº 527º nº 1, 2ª parte), fixando-se a taxa de justiça em 2 UC para cada um deles (artº 7º nº 4 e tabela Anexa II ao RCP).
Notifique às partes e ao Banco de Portugal.