I. O artigo 18.º da LAT não se refere hoje apenas a normas legais, quando se refere à violação de regras de segurança.
II. O comportamento negligente de um empregador que não sujeita a inspeções periódicas uma caldeira por quem tenha competência específica para as fazer, deixando que a mesma apresente sinais notórios de degradação, é subsumível no artigo 18.º n.º 1 da LAT.
Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3 do Código de Processo Civil junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,
A Catedral – Carpintaria e Marcenaria, Lda., Ré, na presente ação especial emergente de acidente de trabalho em que é Autora AA, na qualidade de beneficiária/viúva de BB, em que é igualmente Ré Lusitânia - Companhia de Seguros veio interpor recurso de revista excecional do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.01.2025, invocando as alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.
A Autora na sua petição inicial apresentou o seguinte pedido de condenação das Rés:
“Nestes termos e nos demais em direito deve a ação ser julgada procedente por provada e a 1ª Ré condenada no pagamento à Beneficiária das quantias de
- € 15.597,20 de pensão anual e atualizável, devida desde o dia 15/03/2022 acrescida de juros legais contados desde a data de vencimento e até integral pagamento (artigos 47º n.º 1 al. g), 56º n.º 1 e 2, 57º n.º 1, al. a), 18 n.º 4 al. a) e n.º 5 da Lei 98/2009 de 04/09;
- A quantia de € 1.808,97 de despesas de funeral nos termos do artigo 66º da Lei 98/2009 de 04/09, acrescida de juros legais desde a data de vencimento até integral pagamento;
- €5.850,24 por subsídio de morte, nos termos do artigo 65 n.º 2 al. b) da Lei 98/2009 de 04/09, acrescida de juros legais contados a partir da data de vencimento até integral pagamento”.
Realizado o julgamento foi proferida sentença com o seguinte segmento decisório:
“Pelo exposto julgo a ação totalmente procedente, e em consequência:
1- Reconheço que o acidente ocorrido no dia 14/03/2022 aconteceu por falta de observação pela Ré A Catedral- Carpintaria e Marcenaria, Lda das regras sobre segurança e saúde no trabalho,
2 – Condeno a Ré Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A, sem prejuízo do posterior exercício de direito de regresso contra a Ré A Catedral- Carpintaria e Marcenaria, Lda, a pagar à beneficiária AA:
a) € 4.679,16 a título de pensão anual e atualizável devida desde o dia seguinte ao da morte, ou seja, 15/03/2022, nela incluída o subsídio de férias e de Natal, no valor de ¼ da pensão anual, com base em 30% da retribuição do sinistrado até perfazer a idade da reforma por velhice e € 6.238,88, com base em 40% da mesma retribuição, a partir daquela idade, ou no caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a sua capacidade de trabalho, cfr. artº 47°, nº 1, ai. g); 56° nº 1 e nº 2; 57° nº 1, ai. a); 59º nº 1 a) da Lei 98/2009, de 04/09, acrescida de juros legais contados a partir da data do vencimento e até integral pagamento.
b) € 5.850,24 por subsídio de morte, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano desde 15/03/2022 até integral pagamento.
c) € 1.808,97 a título de despesas de funeral, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano desde 11/12/2023 até integral pagamento
d) € 6,00 a título de despesas de transportes com as deslocações obrigatórias a este tribunal, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano desde 11/12/2023 até integral pagamento.
3- Condeno a Ré A Catedral- Carpintaria e Marcenaria, Lda a pagar à beneficiária AA:
a)- € 10.918,04 (€15.597,20€ - €4.679,16€) a titulo de pensão anual e atualizável devida desde o dia seguinte ao da morte, ou seja, 15/03/2022, nela incluída o subsídio de férias e de Natal, no valor de ¼ da pensão anual, com base em 30% da retribuição do sinistrado até perfazer a idade da reforma por velhice e € 9.358,32 (€ 15.597,20 - € 6.238,88), com base em 40% da mesma retribuição, a partir daquela idade, ou no caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a sua capacidade de trabalho, cfr. artº 47°, nº 1, ai. g); 56° nº 1 e nº 2; 57° nº 1, ai. a); 59º nº 1 a) da Lei 98/2009, de 04/09, acrescida de juros legais contados a partir da data do vencimento e até integral pagamento.”.
Inconformado, o empregador interpôs recurso de apelação.
Por Acórdão de 15.01.2025, o recurso foi considerado totalmente improcedente.
Novamente inconformado o empregador veio interpor recurso de revista excecional, invocando ainda padecer o Acórdão recorrido de nulidade por omissão de pronúncia.
No seu recurso, o Recorrente começa por sustentar que “o Douto acórdão ora recorrido está em contradição com o Acórdão uniformizador de jurisprudência nº 6/2024 o qual determina que “Para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18.º, n.º 1, da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação””. (Conclusão n.º 5)
No corpo das alegações, o Recorrente afirma, ainda, o seguinte: “Torna-se, assim, necessário perguntar, como fez o Douto Acórdão recorrido se, apesar de abstratamente a falta de verificações periódicas aumentar a probabilidade de ocorrência de um acidente, no acidente dos autos essa falta de verificações periódicas aumentou de facto essa probabilidade” (cfr., também Conclusão n.º 16).
A respeito das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC afirma, ainda, o seguinte:
“ [o presente litígio] preenche os requisitos das supra referidas alíneas a) e b), pois, por um lado estamos perante uma questão com relevância jurídica, uma vez que a questão suscitada apresenta um caráter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, ou seja, controversa ou, porventura, inédita, reclamando para a sua solução uma reflexão mais alargada e por outro lado, estão em causa interesses de particular relevância social, pois estamos perante interesses importantes da comunidade e valores que se sobrepõem ao mero interesse das partes, isto é, com impacto para o tecido social e para a comunidade, em geral” (Conclusão n.º 7).
Acrescenta que “[a] matéria laboral e mais precisamente a matéria referente aos acidentes de trabalho tem grande relevância na comunidade extravasando os próprios interesses das partes” (Conclusão n.º 8).
Antes de nos pronunciarmos sobre estes argumentos importa, para uma melhor compreensão do que está em causa nesta revista excecional referir a matéria de facto dada como provada nas instâncias:
1) - No dia 14 de março de 2022, cerca das 11.45 horas, na localidade de ..., ocorreu um acidente, no qual perdeu a vida BB, cônjuge da beneficiária AA.
2) - Quando aquele se encontrava nas instalações da sua entidade empregadora, a Catedral – Carpintaria e Marcenaria, Lda., uma caldeira de água quente explodiu, tendo a explosão e respetivos escombros atingido o referido BB, de que resultou a sua morte.
3) - A entidade empregadora tinha transferido para a 2ª Ré a sua responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho pela apólice n.º 8363711 e em função da seguinte retribuição; € 705/MX14 meses (salário base); €6.83/diaX22diasX11 meses (subsídio de alimentação) e € 4.074,34X1 (hora extra), a que corresponde a retribuição anual de €15.597,20.
4) - O trabalhador sinistrado tinha a categoria profissional de .../..., tendo sido, contudo, ele quem realizou a verificação periódica de manutenção da caldeira segundo a última verificação datada de 2017.
5) - A caldeira causadora do acidente era de 1996.
6) - BB estava sob as ordens, direção e fiscalização da 1ª Ré no momento do acidente, o que já acontecia desde 03/12/2018, data de readmissão, e encontrava-se reformado desde 23/09/2018, com a categoria profissional de .../....
7) - À data do acidente BB auferia as seguintes quantias: €400x14M/salário base) +€6,83diax22 dias X11M (subsídio de alimentação) + €4.074,34x1 (horas extra), a que corresponde a retribuição anual de €11.327,20.
8) – No âmbito da averiguação do acidente, foi solicitado à 1ª Ré diversos elementos, nomeadamente: a) Identificação do modelo e características técnicas da caldeira tais como qual a potência; b) Manual de instruções da caldeira e certificação; c) Registo das manutenções efetuadas à caldeira; d) Registo das inspeções efetuadas à caldeira; e) Avaliação de risco / análise de risco da caldeira; f) Fatura da caldeira;
9) – A caldeira foi adquirida à empresa S..., Lda. em conjunto com a estufa de pintura, tinha o modelo “Estrela”, pressão até 3 bar e tinha capacidade de 300 litros.
10) – A Ré empregadora não sabe qual a potência da caldeira.
11) – A Ré empregadora não possui Manual de instruções da caldeira, nem a certificação CE.
12) – A Ré empregadora não efetuou inspeções à caldeira, nem procedeu à avaliação de risco / análise de risco.
13) – A caldeira apresentava desgaste, corrosão e ferrugem.
14) - O trabalhador operava a caldeira, segundo as ordens da entidade empregadora, tendo o mesmo um “Curso básico de segurança no trabalho” ministrado em 16/02/2011.
15) - O último trabalhador que colocou lenha/resíduos de madeira na caldeira foi BB, o sinistrado.
16) - O trabalhador sinistrado nasceu em....5.1952 e trabalhava a tempo parcial das 8h às 12.00 horas.
17) A Autora teve despesas com o funeral do marido no valor de € 1.808,97.
18) – Era o trabalhador sinistrado que assegurava a regular limpeza das cinzas da caldeira.
19) - A 1ª Ré, entidade empregadora, A Catedral – Carpintaria Marcenaria, Lda., é uma pessoa coletiva cujo objeto social é a fabricação e montagem de obras de carpintaria e caixilharia para construção, revestimento de pavimentos e de paredes, fabrico de móveis, incluindo mobiliário para escritório, mobiliário de cozinha e mobiliário para outros fins, com exploração de estabelecimento de marcenaria e carpintaria, serração, aplainamento e impregnação de madeira, e fabricação de embalagens de madeira. Comércio a retalho de móveis, de artigos de iluminação e de outros artigos para lar e ainda comércio a retalho para colchões, ferragens e de vidro.
20) - A função da caldeira em causa era aquecer a estufa de pintura e não secar a madeira.
21) - A caldeira em causa, aquece a água que está na tubagem, para que a temperatura do ar se mantenha entre os 22/23 graus, pelo que a temperatura da caldeira ronda os 40/60 graus.
22) - O combustível utilizado na caldeira em causa era lenha seca, sem qualquer cola, resinosos ou outros semelhantes.
23) - A caldeira só era utilizada em dias de inverno.
24) – A Ré tinha instruções de segurança da caldeira.
25) - No momento da explosão a caldeira não se encontrava a ser “manuseada” pelo trabalhador sinistrado.
26) – A caldeira em causa encontrava-se no interior de uma “casa” que foi construída pelo trabalhador sinistrado.
27) – A explosão causou ainda danos graves no edifício (destruição de parte da parede, telhado e portão) levando à suspensão dos trabalhos, num veículo que ali se encontrava, tendo alguns dos componentes da caldeira sido projetados para a via pública a cerca de 300 metros do local onde se encontrava.
28) - Ao Sinistrado não foi ministrada formação específica de apoio à categoria de fogueiro.
Cumpre apreciar.
No caso vertente temos um acidente de trabalho mortal que ocorreu por força da explosão de uma caldeira. O sinistrado não estava no momento a manuseá-la (facto 25), mas foi atingido pela explosão da mesma. O Acórdão recorrido pronunciou-se sobre a questão de saber se o acidente teria sido provocado pela violação das regras de segurança.
Da matéria de facto provada, que transcrevemos, resulta que “a caldeira apresentava desgaste, corrosão e ferrugem” (facto 13), que a caldeira não tinha certificação CE (facto 11) e que o empregador, agora Recorrente, não efetuou inspeções à caldeira, nem procedeu à avaliação de risco/análise de risco (facto 12). Acresce que quem operava (facto 14) e limpava regularmente a caldeira (facto 18) e quem procedeu à última verificação periódica de manutenção da mesma em 2017 (facto 4) era o próprio sinistrado, muito embora este tivesse a categoria de .../... (facto 2) e não tivesse qualquer “formação específica de apoio à categoria de fogueiro” (facto 28).
O Acórdão recorrido decidiu que foi violada a obrigação de verificação periódica do estado da caldeira: “violada a regra emergente do DL 50/2005 – obrigação de verificações periódicas”. E considerou que tal violação era a causa adequada do resultado ocorrido, tanto mais que o empregador não alegou nem provou qualquer circunstância excecional que pudesse explicar tal resultado.
O Acórdão Uniformizador n.º 6/2024 pretendeu excluir que para a demonstração do que vulgarmente se designa por nexo causal fosse necessário demonstrar que a violação das regras de segurança fosse conditio sine qua non do acidente de trabalho. Como no seu texto se pode ler, “na sua versão negativa [a causalidade adequada] - ao incluir no nexo de causalidade mesmo resultados que não possuam constância fáctica com os factos [...], desde que não sejam tidos por extraordinários - afasta a construção de seu leito originário, qual seja o terreno da investigação empírica, factual”. Admite-se, contudo, que o lesante invoque (e prove) que acidente se ficou a dever em concreto a um outro fator que não a sua conduta, “fator esse imprevisível e excecional”.
Decorre do Acórdão uniformizados que não é necessário provar, no caso dos autos, que a falta de verificação periódica da caldeira foi conditio sine qua non da explosão da mesma. Fazer a interpretação que o Recorrente faz acabaria por conduzir a um resultado similar ao que se pretendeu afastar.
Com efeito o que ocorreu concretamente foi a explosão de uma caldeira que apresentava sinais de “desgaste, corrosão e ferrugem” e que tinha sido objeto de verificação em 2017 por quem não tinha qualquer competência específica para o efeito – assim, há que concluir, mesmo à luz do Acórdão uniformizador, que a conduta negligente do empregador foi causal para a ocorrência deste acidente de trabalho. As regras da experiência permitem concluir que uma caldeira que seja objeto de inspeções periódicas por quem tem competência para as fazer apresenta um menor risco de explosão. E o empregador não invocou qualquer circunstância excecional que no caso concreto permitisse explicar o acidente, quebrando o nexo de imputação do mesmo à sua conduta culposa.
Acrescente-se, ainda, que o artigo 18.º da LAT não se refere a normas legais, mas a regras de segurança o que sugere que as mesmas podem ser regras impostas, não apenas pela lei, mas também pela experiência e pelos usos.
Não há, por conseguinte, qualquer contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão uniformizador de Jurisprudência.
Não se vislumbra, assim, que seja necessária – e muito menos “claramente necessária” – a intervenção este Tribunal para uma melhor aplicação do direito.
E não é certamente por se tratar de um acidente de trabalho que se justifica a admissão da presente revista excecional á luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC. Se assim fosse a revista excecional em matéria de acidentes de trabalho nada teria de excecional. Aliás, a decisão de impor a responsabilidade agravada num caso como o presente não é suscetível de causar qualquer alarme ou comoção social.
A nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia invocada pelo Recorrente (números 9 e 10 das Conclusões) poderia ser objeto do recurso de revista se este fosse admitido, mas só por si não permite a admissão do presente recurso. Assim, deverão os autos ser enviados ao Tribunal da Relação para que este conheça da alegada nulidade.
Decisão: Não se admite a presente revista excecional, devendo os autos ser remetidos para o Tribunal da Relação para que conheça da alegada nulidade por omissão de pronúncia.
Custas do recurso pelo Recorrente.
Lisboa, 30 de abril de 2025
Júlio Gomes (Relator)
José Eduardo Sapateiro
Mário Belo Morgado