I. O atual artigo 18.º da LAT não faz referência a normas legais, mas sim a regras de segurança, bem podendo as mesmas resultar da experiência ou dos usos;
II. A deficiente avaliação dos riscos, a deficiente conceção dos equipamentos e a igualmente deficiente verificação do estado dos mesmos constituem uma violação culposa de regras de segurança para efeito da aplicação do artigo 18.º da LAT.
Acordam na Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça
Fapricela-Indústria de Trefilaria, S.A, Ré na presente ação emergente de acidente de trabalho sob a forma de processo especial de que é Autor AA e 2.ª Rá Zurich Insurance PLC - Sucursal Portugal veio interpor recurso de revista excecional, ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.
Na petição o Autor formulou os seguintes pedidos:
“Nestes termos e nos melhores de direito, deve a presente ação ser julgada procedente e provada, condenando-se em consequência as Rés, solidariamente e na proporção da responsabilidade transferida a cada uma delas, a:
A)- Reconhecer uma IPP ao A. de 90%, Baseada nos 60% atribuídos pela junta médica e bonificados com o coeficiente de 1.5% a que alude o nº 5, al. A) das instruções gerais do TNI.
B-) A reembolsar o A. das despesas com transporte para o Tribunal, as quais se encontram já contabilizadas, no montante de €45,00,
C-) A pagar a título de danos patrimoniais uma pensão anual vitalícia, no valor de € 12.524,33 com efeitos a partir de 06 de junho de 2018, sendo 8.779,94 a cargo da Seguradora e 3.744,39 a cargo da R. Fapricela,
D-) A pagar a título de Indemnização pelos períodos de incapacidade temporárias ao A., 7.800,07 euros, sendo que a seguradora já pagou 6.128,54, estando em dívida o valor de 1.671,53€, que deverá ser pago pela R. Fapricela,
E-) A pagar ao A. um subsídio de elevada incapacidade, no montante de 5.394,56€,
F-) A pagar ao A. Subsídio para readaptação da habitação, no montante de 4012.85€
G-) A pagar ao A. Subsídio para adaptação/aquisição de veículo automóvel adaptado, no montante de 10.000,00€,
H-) A suportar todas as ajudas técnicas referidas no ponto IV do doc3, nomeadamente meias elásticas,
I-) A suportar ainda as despesas com os necessários ajustes de prótese medicamente justificados e que venham a ser necessários,
J-) bem como, pagar as prestações em espécie necessárias e adequadas ao restabelecimento do A., designadamente para a vida ativa que ainda é possível, nomeadamente a/as aludidas próteses com vista à prática de desporto/corrida e também idas à praia/piscina.
K-) A pagar ao A. a quantia de 500.000,00€ a título de danos morais.
L-) condenar as RR no pagamento de juros de mora à taxa legal sobre cada uma das prestações devidas, desde o respetivo vencimento e até efetivo e integral pagamento”.
As Rés contestaram.
Foi proferido despacho saneador e despacho a enunciar os factos assentes, o objeto do litígio e os temas da prova. Foi ainda ordenada a organização do apenso para a fixação da incapacidade (Apenso A).
No apenso A foi fixada a incapacidade do Autor.
Foi realizada a audiência de julgamento e em 13.04.2021 foi proferida sentença, que julgou a ação parcialmente procedente1.
O Autor e a Ré Empregadora vieram recorrer da sentença.
Por acórdão de 28.01.2022, proferido no apenso C2, o Tribunal da Relação decidiu, além do mais, “anular a inquirição da Inspetora da ACT BB realizada na sessão da audiência de discussão e julgamento de 18.02.2021, e bem assim a decisão sobre a matéria de facto, a sentença e o recurso interposto desta sentença (alegações e contra alegações), mantendo-se todos os demais atos praticados em todas as sessões daquela audiência”.
Por decisão singular de 31.01.2022, face ao acórdão proferido no apenso C, o Tribunal da Relação julgou extinta a instância recursiva por inutilidade superveniente da lide referente à sentença de 13.04.2021.
Foi reaberta a audiência de julgamento e em 13.05.2024, foi proferida nova sentença, com o seguinte dispositivo:
“Julgo parcialmente procedente a ação e, em consequência:
A) condeno Zurich Insurance PLC - Sucursal Portugal a pagar a AA, sem prejuízo do direito de regresso:
1.º pensão anual e vitalícia de €7.791,85, com início em 5 de junho de 2018, atualizada desde 01.01.2019 para €7.916,52, desde 01.01.2020 para €7.971,94, desde 01.01.2022 para €8.051,66, desde 01.01.2023 para €8.727,99 e desde 01.01.2024 para €9.251,67, a pagar nos termos do disposto no art.º 72.º, nºs 1 e 2 da NLAT;
2.º €5.074,22 a título de subsídio por situação de elevada incapacidade permanente a pagar de uma só vez;
3.º €45,00 a título de despesas de transporte;
4.º subsídio de readaptação da habitação até ao limite de €5.561,40;
5.º prestações em espécie necessárias e adequadas ao seu restabelecimento para vida ativa, designadamente, meia elástica e manutenção regular da prótese, adaptação do veículo por forma a não ter de usar o membro inferior direito e colocação de uma prótese que lhe permita tomar banho em pé, a prática de desporto/corrida e idas à praia/piscina;
6.º juros de mora computados à taxa legal de 4% desde a data de vencimento de cada uma das prestações anteriormente discriminadas até integral pagamento;
B) condeno Fapricela Indústria de Trefilaria, S.A. a pagar a AA:
1.º pensão anual e vitalícia de €3.988,77, com início em 5 de junho de 2018, atualizada desde 01.01.2019 para €4.052,59, desde 01.01.2020 para €4.080,96, desde 01.01.2022 para €4.121,77, desde 01.01.2023 para €4.467,99 e desde 01.01.2024 para €4.736,06, a pagar nos termos do disposto no art.º 72.º, nºs 1 e 2 da NLAT;
2.º €984,36 a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária;
3.º juros de mora computados à taxa legal de 4% desde a data de vencimento de cada uma das prestações anteriormente discriminadas até integral pagamento;
4.º €70.000,00 a título de compensação por danos morais, acrescida de juros de mora computados à taxa legal de 4% desde a data da prolação da presente sentença até integral pagamento”.
O Autor e a Ré Empregadora interpuseram recursos de apelação.
Por acórdão de 8.11.2024, os juízes do Tribunal da Relação decidiram “julgar as apelações improcedentes com integral confirmação da sentença impugnada”3.
A Ré Empregadora veio interpor recurso de revista excecional, arguindo a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia e requerendo, ainda, a realização de reenvio prejudicial.
Foram os seguintes os factos dados como provados nas instâncias:
1.º O autor trabalhou por conta e sob a direção, autoridade e fiscalização da ré Fapricela, S.A. desde 28 de agosto de 2017;
2.º No dia 21 de outubro de 2017, pelas 20 horas, o autor desempenhava funções de operador de máquinas para a ré Fapricela e quando operava uma máquina de elevação de pesos foi atingido por uma bobine de fio de aço com cerca de 4.150 Kg;
3.º A bobine referida em 2.º encontrava-se presa por duas orelhas ao equipamento de elevação e uma destas orelhas desprendeu-se;
4.º No dia 21 de outubro de 2017, pelas 20 horas, o autor encontrava-se a executar uma tarefa que consistia em colocar uma bobina cheia de arame dentro de uma máquina que vai fazer cordão/cabo de aço;
5.º Esta bobine pesava cerca de 4.150 kg;
6.º Para deslocar a bobine, o autor fazia uso de um equipamento de movimentação de cargas, que permitia deslocar a carga suspensa, através de uma ponte rolante;
7.º Esta ponte rolante possuía um equipamento de ancoragem, com um gancho, onde se encontravam presas duas lingas em corrente, através de uma argola;
8.º Na extremidade oposta das lingas, existiam duas argolas que se ajustavam depois aos dois suportes/orelhas existentes na parte exterior das bobines;
9.º Naquele dia, o autor começou por ajustar manualmente as argolas do equipamento de ancoragem aos dois suportes/orelhas da bobine;
10.º Depois de ajustadas as argolas às orelhas da bobine, o autor, fazendo uso de um comando, levantou ligeiramente a ponte rolante para esticar as correntes, colocando-as sob tensão;
11.º De seguida, afastou-se cerca de 1,5/2 metros e içou a bobine a cerca de 1,5 metros de altura;
12.º Depois conduziu a bobine com o comando, no sentido horizontal, até à máquina do cordão;
13.º Quando a bobine se encontrava perto do cilindro (berço) da máquina do cordão, uma das argolas desprendeu-se da orelha da bobine, esta parte da bobine caiu e no movimento de queda arrancou o dispositivo elétrico existente na parte exterior do berço;
14.º Seguidamente, desprendeu-se a outra orelha da bobine e a bobine tombou para o chão;
15.º Em ato contínuo, o autor tentou afastar-se, mas a bobine atingiu-o no pé direito, projetando-o e derrubando-o no chão;
16.º A segunda orelha da bobine que se desprendeu do equipamento media 6 mm, sendo a sua medida normal, em bom estado, de 15 mm;
17.º Esta orelha não apresentava reserva de segurança no enganchamento da argola, o que causou o desprendimento da argola e a subsequente queda da bobine;
18.º Ré empregadora não procedeu à verificação do estado das orelhas das bobines antes do seu manuseamento pelo autor;
19.º O equipamento de içamento e de condução e colocação das bobines na máquina de cabo não possuía indicação sobre a carga máxima admitida;
20.º Não se encontrava certificado com a marcação CE;
21.º As correntes e as argolas deste equipamento eram fabricadas pela ré empregadora;
22.º O equipamento de içamento e de condução e colocação das bobines na máquina de cabo não se encontrava identificado, ou seja, não possuía uma placa com as suas características e com a sua identificação inequívoca;
23.º Não dispunha de um dispositivo de segurança que permitisse assegurar a estabilidade da carga, designadamente, um outro meio de retenção/sustentação das bobines como um cabo com um coeficiente de segurança reforçado;
24.º Apenas a força da gravidade e o tensionamento das suas correntes, permitia que as argolas se mantivessem enganchadas nas orelhas da bobina durante a movimentação mecânica;
25.º Durante a movimentação, qualquer oscilação da carga poderia provocar a sua queda;
26.º A inexistência de um dispositivo de segurança que permitisse assegurar a estabilidade da carga potenciou o balanceamento e o despreendimento da bobine manobrada pelo autor;
27.º Não existia, naquele posto de trabalho, nenhuma ficha com instruções de procedimentos de segurança alertando para os procedimentos de trabalho adequados na execução da operação de movimentação das bobines;
28.º Os riscos associados à operação e movimentação mecânica de cargas estavam identificados na avaliação de riscos de forma muito genérica;
29.º E não existia uma avaliação de riscos específica para a concreta operação executada pelo autor;
30.º O referido equipamento não tinha sido objeto de verificação de segurança por parte dos serviços internos de segurança ou de entidade certificada para o efeito, a fim de serem avaliadas as condições de segurança em que era efetuada a movimentação mecânica de cargas;
31.º O sinistrado foi admitido ao serviço da ré empregadora para desempenhar as funções de operador de máquinas, em concreto, para operar o equipamento de movimentação de bobines de arame para carga das máquinas de cabo;
32.º Funções que sempre desempenhou, desde a data da admissão e até à data do sinistro.
33.º E durante 27 dias de trabalho efetivo;
34.º Em cada turno o trabalhador efetuou em média dois carregamentos da máquina de trefilar;
35.º A formação para operar o equipamento referido em 2.º foi ministrada ao autor por um colega de equipa aquando da sua integração na empresa;
36.º Durante um mês após a sua contratação, o colega CC ensinou o autor a manusear o equipamento de içamento e de condução e colocação das bobinas na máquina de cabo, observando o mesmo em funcionamento;
37.º O autor foi informado que quando operasse o equipamento em causa e iniciasse o içamento da bobine, deveria colocar-se a uma distância de segurança não inferior a 1,5/2 metros e que não deveria colocar-se imediatamente por baixo da bobine;
38.º Em consequência do acidente o autor sofreu as lesões descritas no relatório de exame médico de fls. 60: traumatismo craniano, dorso-lombar e dos membros inferiores, com amputação traumática do pé direito;
39.º Ficou momentaneamente atordoado quando caiu no chão;
40.º Foi assistido no serviço de urgência doCHU... onde foi observado e suturado a ferida que apresentava no couro cabeludo, com cerca de 8 centímetros;
41.º Como apresentava amputação traumática do pé direito, foi submetido imediatamente a limpeza cirúrgica;
42.º Decorridos cerca de oito dias, por apresentar necrose dos tecidos moles do coto, foi novamente intervencionado cirurgicamente, tendo-lhe sido efetuada amputação pelo terço médio da perna;
43.º Permaneceu internado cerca de um mês, tendo-lhe sido alta após avaliação psicológica;
44.º Em consequência do acidente o autor sofreu os seguintes períodos de incapacidade temporária:
- ITA desde 22.10.2017 até 24.05.2018 (215 dias);
- ITP a 5% desde 25.05.2018 a 04.06.2018 (11 dias);
45.º O autor teve alta em 4 de junho de 2018;
46.º Ficou afetado da IPP de 70,8% com IPATH desde 4 de junho de 2018;
47.º Na data do acidente o autor tinha vinte anos;
48.º Era um jovem alegre, saudável e robusto;
49.º Era jogador de futebol amador e fazia, normalmente, três treinos e um jogo por semana;
50.º A prática de futebol proporcionava-lhe felicidade e bem-estar;
51.º Na data do acidente o autor conduzia motociclos;
52.º A condução de motociclo proporcionava-lhe felicidade e bem-estar;
53.º Antes da ocorrência do sinistro, o autor gostava de passear e conviver com a namorada, família e amigos;
54.º E com regularidade fazia diversas atividades com a sua namorada, família e amigos, nomeadamente, idas à praia e ao café;
55.º Em consequência do acidente o autor deixou de jogar futebol, de andar de mota, de ir à praia e à piscina e de ajudar os pais nas lides domésticas e nos trabalhos agrícolas;
56.º Ao nível do seu relacionamento amoroso e nas saídas que envolvam exposição do corpo, o autor passou a retrair-se, sentindo-se constrangido pela diminuição da sua condição física;
57.º Passou a ter constrangimentos a nível sexual, por ter vergonha de estar nu à frente da namorada;
58.º Deixou de usar calções durante o verão porque as pessoas olham;
59.º Tornou-se um jovem triste, desgostoso com a vida, inseguro e desmotivado;
60.º Em consequência das sequelas resultantes do acidente o autor teve necessidade de proceder à adaptação do seu domicílio: construiu um quarto e uma casa de banho no rés-do chão por ter dificuldade em subir escadas;
61.º O automóvel do autor tem de ser adaptado à condução que não exija a utilização do membro inferior direito;
62.º O autor necessita de ajudas técnicas, designadamente, de meia elástica e de manutenção regular da prótese;
63.º A prótese de que o autor dispõe permite-lhe fazer alguma atividade física de manutenção, designadamente, caminhada e bicicleta;
64.º A prótese de que o autor dispõe não pode ser usada na água ou para correr;
65.º A prótese de que o autor dispõe não lhe permite fazer atividade física em meio aquático ou tomar banho de pé em apoio;
66.º Existem no mercado outros tipos de próteses que permitem ao autor o exercício de atividade física mais intensa e utilização no meio aquático, designadamente, a prática de desporto/corrida e idas à praia/piscina;
67.º Em 21 de outubro de 2017 o autor auferia ao serviço da Fapricela retribuição anual de €12.911,68:
- €557,14 x 14 meses a título de salário base;
- €97,90 x 11 meses a título de subsídio de alimentação;
- €139,25 x 14 meses a título de subsídio de turno;
- €110,00 x 12 meses a título de prémios de segurança, produtividade e assiduidade;
- €63,94 x 12 (outros);
68.º Em 21 de outubro de 2017 a Fapricela, S.A. tinha a responsabilidade emergente de acidente de trabalho transferida para a Zurich Insurance através de contrato titulado pela apólice n.º ...25, na modalidade de folha de férias, em função de retribuição anual auferida pelo autor de €12.144,40:
- €557,14 x 14 meses a título de salário base;
- €97,90 x 11 meses a título de subsídio de alimentação;
- €139,25 x 14 meses a título de subsídio de turno;
- €110,00 x 12 meses a título de prémios de segurança, produtividade e assiduidade;
69.º Em transportes para comparência no INML e no tribunal o autor despendeu €45,00;
70.º Ré seguradora pagou ao autor:
- €6.815,71 a título de indemnização por períodos de incapacidade temporária;
- €656,86 a título de pensão;
- €97,50 a título de próteses;
- €475,74 a título de diversos;
- €4,89 a título de transportes;
71.º O autor nasceu em 7 de dezembro de 1996;
72.º Em 8 de março de 2022 ré empregadora comunicou ao autor a decisão de despedimento por extinção do posto de trabalho nos termos que constam do documento junto de fls. 1200 a 1202 cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos;
Nas conclusões do seu recurso de revista, o empregador sustenta que “inexistem normas concretas sobre a segurança e saúde no trabalho que regulem o exercício da tarefa desempenhada pelo sinistrado” (Conclusão n.º 57) e insurge-se contra a aplicação dos números 1 e2 do artigo 68.º e do artigo 62.º da Portaria n.º 53/71, de 3 de fevereiro, e dos artigos 27.º e 29.º da Lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro, com fundamento nos quais o Acórdão recorrido condenou a Ré (Conclusão n.º 59), normas que não seriam aplicáveis ao caso e seriam de aplicação mais restrita (Conclusões números 60 e seguintes).
O empregador defende que a aplicação do artigo 18.º da LAT supõe a identificação de normas legais precisas aplicáveis à situação concreta; sem que tal ocorra não se poderia afirmar a responsabilidade agravada do empregador. Entende que se justificaria a admissibilidade da presente revista excecional por estar em causa “um mínimo de certeza e segurança no que respeita às normas aplicáveis e às expectativas juridicamente criadas” e invoca a necessidade de tutela da liberdade de iniciativa económica constitucionalmente consagradas para concluir pela necessidade de intervenção deste Supremo Tribunal para uma melhor aplicação do direito.
Concomitantemente defende que o Tribunal da Relação no Acórdão recorrido não fundamentou devidamente a sua decisão.
Relativamente à alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, o Recorrente invoca tratar-se de um acidente de trabalho e menciona a relevância social e jurídica atribuída pelo legislador no artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa à matéria dos acidentes de trabalho.
Face a esta argumentação, convém, desde logo, transcrever a fundamentação do Acórdão recorrido para justificar a responsabilidade agravada do empregador:
“Como acima ficou referido aquando da reapreciação da matéria de facto, a 1ª instância apenas considerou ser possível estabelecer o nexo de causalidade e, portanto, responsabilizar empregadora pela reparação agravada, relativamente às normas ou regras de segurança ínsitas nos art.ºs 62.º e 68.º, nºs 1 e 2 da Portaria n.º 53/71 de 03/024 e 27.º e 29.º do DL n.º 50/2005 de 25/025 que considerou terem sido violadas pela empregadora por esta não ter inspecionado periodicamente o estado do aparelho de elevação e, em particular, das orelhas das bobines e ao não instalar no equipamento de elevação um dispositivo de segurança que permitisse assegurar a estabilidade da carga da bobine, designadamente, um cabo com um coeficiente de segurança reforçado.
Da matéria de facto assente resulta, como é salientado na decisão impugnada, que:
- a segunda orelha da bobine que se desprendeu do equipamento media 6 mm, sendo a sua medida normal, em bom estado, de 15 mm;
- esta orelha não apresentava reserva de segurança no enganchamento da argola;
- a Ré empregadora não procedeu à verificação do estado das orelhas das bobines antes do seu manuseamento pelo autor;
- o equipamento de içamento e de condução e colocação das bobines na máquina de cabo não dispunha de um dispositivo de segurança que permitisse assegurar a estabilidade da carga, designadamente, um outro meio de retenção/sustentação das bobines como um cabo com um coeficiente de segurança reforçado;
- apenas a força da gravidade e o tensionamento das suas correntes, permitia que as argolas se mantivessem enganchadas nas orelhas da bobina durante a movimentação mecânica;
- durante a movimentação, uma mais forte oscilação da carga poderia provocar a sua queda;
- inexistência de um dispositivo de segurança que permitisse assegurar a estabilidade da carga (…);
- o equipamento não tinha sido objeto de verificação de segurança por parte dos serviços internos de segurança ou de entidade certificada para o efeito, a fim de serem avaliadas as condições de segurança em que era efetuada a movimentação mecânica de cargas;
Ora, desta matéria afigura-se-nos inquestionável ter a empregadora violado as normas concretas sobre segurança no trabalho citadas”.
Trata-se de uma argumentação que reputamos de inteiramente convincente e muito bem articulada.
Refira-se, desde logo, que a ser correta a tese do Recorrente por mais negligente que fosse o seu comportamento não havendo regras específicas para aquela atividade nunca haveria responsabilidade agravada. Ora, e para além de não estando no domínio da responsabilidade penal e sim no domínio da responsabilidade civil poder o intérprete, mormente o julgador, recorrer à analogia para preenchimento de lacunas, importa sobretudo ter presente que o atual artigo 18.º da LAT não faz referência a normas legais, mas sim a regras de segurança, bem podendo as mesmas resultar da experiência ou dos usos.
A deficiente avaliação dos riscos (factos 18, 28 e 29) e verificação do estado dos equipamentos (facto 30) e até a conceção dos mesmos (factos 20, 22 a 26) demonstram inequivocamente a violação culposa de regras de segurança.
Não se vislumbra, assim, que seja necessária – e muito menos “claramente necessária” – a intervenção este Tribunal para uma melhor aplicação do direito.
E não é certamente por se tratar de um acidente de trabalho que se justifica a admissão da presente revista excecional á luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC. Se assim fosse a revista excecional em matéria de acidentes de trabalho nada teria de excecional. Aliás, a decisão de impor a responsabilidade agravada num caso como o presente não é suscetível de causar qualquer alarme ou comoção social.
A nulidade por omissão de pronúncia invocada pelo Recorrente poderia ser objeto do recurso de revista se este fosse admitido, mas só por si não permite a admissão do presente recurso. Assim, deverão os autos ser enviados ao Tribunal da Relação para que este conheça da alegada nulidade.
O pedido de reenvio prejudicial não pode ser conhecido porque precisamente o recurso não é admitido, sendo que, em todo o caso, a interpretação do artigo 18.º da LAT – e é esse o preceito que está em jogo – é competência dos tribunais nacionais, não se tratando a previsão da responsabilidade agravada de transposição de direito europeu.
Decisão: Não se admite a presente revista excecional
Custas pelo Recorrente
30 de abril de 2025
Júlio Gomes (Relator)
José Eduardo Sapateiro
Mário Belo Morgado
_____________________________________________
Por acórdão de 21.05.2021, o Tribunal da Relação anulou o despacho de 12.10.2020 e os ulteriores termos do processo e determinou que, previamente à decisão relativa aos documentos, o Tribunal da 1.ª Instância cumprisse o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.↩︎
2. Na sequência da baixa do apenso B), por despacho de 16.09.2021, o Tribunal da 1.ª Instância, ao abrigo do dever de gestão processual, decidiu-se pelo aproveitamento dos atos da audiência de discussão e julgamento realizada nos autos, da sentença subsequentemente proferida e das alegações e contra-alegações de recurso.
A Ré Empregadora interpôs recurso deste despacho (apenso C).↩︎
3. Embora não conste do dispositivo do acórdão recorrido, o Tribunal da Relação alterou os pontos 17 e 25 da matéria assente que passaram a ter a seguinte redacção:
17.º Esta orelha não apresentava reserva de segurança no enganchamento da argola, o que potenciou o desprendimento da argola e a subsequente queda da bobine.
25º Durante a movimentação, uma mais forte oscilação da carga poderia provocar a sua queda.↩︎
4. “Todos os elementos da estrutura, mecanismo, fixação e acessórios dos aparelhos de elevação devem ser de boa construção, de materiais apropriados e resistentes, e ser mantidos em bom estado de conservação e funcionamento (artº 62º.)
“Os aparelhos de elevação devem ser inspecionados e submetidos a prova por pessoa competente aquando da sua
instalação, recomeço de funcionamento após paragem prolongada ou avaria” (n.º 1 do artº 68); “Os aparelhos de elevação devem ser examinados diariamente pelo respetivo condutor e inspecionados periodicamente por pessoa habilitada, variando o período que decorre entre as inspeções dos diferentes elementos com os esforços a que estejam submetidos. Os cabos, correntes, ganchos, lingas, tambores, freios e limitadores de curso devem ser examinados completa e cuidadosamente pelo menos uma vez por semana (n.º 2 do artº68º).↩︎
5. “Os equipamentos de trabalho de elevação de cargas que estejam instalados permanentemente devem: a) Manter a solidez e estabilidade durante a sua utilização, tendo em conta as cargas a elevar e as forças exercidas nos pontos de suspensão ou de fixação às estruturas; b) Ser instalados de modo a reduzir o risco de as cargas colidirem com os trabalhadores, balancearem perigosamente, bascularem, caírem ou de se soltarem involuntariamente” (artº 27º).
“Se os riscos previstos na alínea a) do número anterior não puderem ser evitados através de um dispositivo de segurança, deve ser instalado um cabo com um coeficiente de segurança reforçado cujo estado de conservação deve ser verificado todos os dias de trabalho” (art.º 29.º, nº 2).↩︎