REVISTA EXCECIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICAL
INTERESSES DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL
Sumário


I. A relevância jurídica prevista no art. 672.º, nº 1, a), do CPC, pressupõe uma questão que apresente manifesta complexidade ou novidade, evidenciada nomeadamente em debates na doutrina e na jurisprudência, e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa assumir uma dimensão paradigmática para casos futuros.
II. Os interesses de particular relevância social respeitam a aspetos fulcrais da vivência comunitária, suscetíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação.

Texto Integral


Processo n.º º315/20.1T8VNF.G1.S2 (revista excecional)

MBM/JG/JES


Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.



1.1. Ré /recorrente: IRMANDADE DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE RIBA D´AVE.

1.2. Autores recorridos1: AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II.


X X X


2. A presente ação com processo comum foi julgada parcialmente procedente na 1ª Instância, decidindo-se condenar a R. a: i) integrar os autores na categoria profissional de assistente administrativo, desde 29.05.2010; ii) pagar-lhes as correspondentes diferenças salariais respeitantes à retribuição base, subsídio de turno e abono para falhas; iii) reconhecer que o período de transmissão de tarefas entre turnos se conta como tempo de trabalho; iv) reconhecer que os autores têm direito a um período de interrupção de trabalho de, pelo menos, 30 minutos na jornada diária de trabalho, devendo tal período constar no mapa de horário de trabalho de cada um; v) reconhecer que a “bolsa de horas” aplicada aos autores é ilegal; vi) pagar uma sanção pecuniária compulsória de 100 € por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de fazer constar no mapa de horário de trabalho de cada um dos autores o período de interrupção de trabalho de, pelo menos, 30 minutos e da obrigação de não lhes aplicar a bolsa de horas.

Mais foi decidido julgar improcedente a exceção de prescrição invocada pela R., condenando-a a pagar aos autores juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento.

3. Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) confirmou o assim decidido.

4. A R. veio interpor recurso de revista excecional, com fundamento no art. 672º, nº 1, a) e b), do CPC2, tendo os recorridos contra-alegado.

5. Está em causa determinar se o recurso de revista excecional deve ser admitido no tocante às seguintes questões:

• Nulidade do ACT de 2010.

• Subsídio de turno.

• Abono para falhas.

• Categoria profissional dos autores (“assistente administrativo”).

• Cálculo das diferenças salariais.

• Período de pausas.

• Bolsa de horas.

• (Não) prescrição dos juros moratórios.

• Sanção pecuniária compulsória.

E decidindo.


II.


6. Começando pelos invocados interesses de particular relevância social – e independentemente do número de trabalhadores da R. e da quantidade de Santas Casas de Misericórdia que há em Portugal –, é patente que não estão em causa “aspetos fulcrais para a vida em sociedade” (Ac. do STJ de 13.04.2021, P. 1677/20.6T8PTM-A.E1.S2), assuntos suscetíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação (Acs. do STJ de 14.10.2010, P. 3959/09.9TBOER.L1.S1, e de 02.02.2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1), ou que “exista um interesse comunitário significativo que transcenda a dimensão inter partes (Ac. do STJ de 29.09.2021, P. n.º 686/18.0T8PTG-A.E1.S2), sendo certo que nesta matéria “não basta o mero interesse subjetivo do recorrente” (Ac. do STJ de 11.05.2021, P. 3690/19.7T8VNG.P1.S2).

7. Também não se encontram preenchidos os requisitos da revista excecional contemplados na alínea a) do n.º 1 do art. 672º, pois apenas reclamam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, como tal se devendo entender, designadamente, as seguintes:

“Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.º 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.ª Secção).

– Quando “existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade” (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.º 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S2).

– “Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito.” (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.º 474/08.1TYVNG-C.P1.S2).

“Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais.” (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.º 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2).

– Questão “controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (Ac. do STJ de 13-10-2009, P. 413/08.0TYVNG.P1.S1).

“Questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.” (Ac. do STJ de 02-02-2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1).

Concretizando razões, relativamente às diferentes questões suscitadas:

8. Em primeiro lugar, a recorrente suscita a questão da nulidade do ACT de 2010, nos seguintes termos: “O caso sub judice contende (…) com o facto de uma Portaria de Extensão poder (ou não) estender os efeitos de um Acordo Coletivo de Trabalho que padece de nulidade. Suscita-se, em concreto, saber se a Portaria (…) poderia, ou não, estender os efeitos do Acordo Coletivo de Trabalho Celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia de Abrantes e Outras e a FNE – Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e Outros, na sua versão publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 3 de 22 de janeiro de 2010, o qual é nulo”.

A R. invocara nos autos, bem como na apelação, a nulidade do Acordo Coletivo de Trabalho Celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia de Abrantes e Outras e a FNE – Federação Nacional dos Sindicatos da Educação e Outros, publicado no BTE n.º 47, de 22.12.2001 (doravante, ACT de 2001), por violação do art. 23.º, b), da LRCT, então em vigor, segundo o qual “o texto final das convenções coletivas (…) deverá referir obrigatoriamente (…) a área e o âmbito de aplicação (…)”.

A 1ª instância decidiu que este ACT não era aplicável às relações contratuais existentes entre as partes (sendo-lhes, porém, aplicáveis, por efeito da Portaria de Extensão n.º 278/2010, de 24.05.2010, as alterações àquele ACT publicadas no BTE n.º 3, de 22.01.2010 – doravante, ACT de 2010), assim considerando prejudicada a questão levantada pela Ré a propósito da nulidade do ACT de 2001.

A Relação sufragou este entendimento, adiantando, todavia que “o ACT 2010 (…) contém regra própria sobre área a âmbito de aplicação”.

Neste contexto processual e substantivo, de forma alguma nos encontramos perante matéria que envolva qualquer complexidade ou novidade, não suscitando a menor dúvida o acerto da decisão do TRG.

9. No que concerne ao subsídio de turno e abono para falhas, alega a recorrente que “a existência de um direito de crédito dos Recorridos ao pagamento dos mesmos encontra-se umbilicalmente dependente da circunstância de ser aplicada ou não às suas relações laborais algum instrumento de regulamentação coletiva de trabalho [IRCT].

Deste modo, já assente, em face do ajuizado no ponto anterior, que as relações laborais em causa se encontram abrangidas por IRCT, impõe-se concluir que inexiste qualquer dimensão juridicamente relevante que neste âmbito se imponha abordar.

10. Quanto à categoria profissional reconhecida aos autores, questiona a recorrente se “cumpre o núcleo essencial um trabalhador que apenas exerce uma minoria das funções previstas para uma determinada categoria profissional”, sustentando que “a lei, a jurisprudência e a doutrina não respondem a esta questão, sendo, portanto, essencial a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para sanar esta lacuna”.

A jurisprudência do STJ encontra-se estabilizada no sentido de que a categoria profissional se afere em função do núcleo essencial das funções efetivamente exercidas pelo trabalhador ao longo da execução do contrato de trabalho (v.g. Acs. desta Secção Social de 17.03.2022, Proc. n.º 2837/19.8T8MTS.P1.S2, de 12.04.2024, Proc. n.º 823/20.4T8PRT.P1.S1, de 11.09.2024, Proc. n.º 1492/20.7T8VNG.P1.S1, e de 12.03.2025, Proc. n.º 13884/23.5T8LSB.L1.S1).

O TRG decidiu esta problemática em linha com esta jurisprudência, referindo, nomeadamente, a este propósito, em termos que não comportam a mais leve dúvida: “a categoria é aferida pelas funções efetivamente exercidas pelas AA (118º CT); o trabalhador não tem de exercer todas as tarefas descritas na categoria, mas apenas o seu núcleo essencial; em caso de dúvida, deve ser integrado naquela que mais se aproxima”.

Como na decisão recorrida se sinaliza, o que está fundamentalmente em causa é uma discordância da ré no tocante à matéria de facto provada, que em sede de apelação a recorrente impugnou sem sucesso.

Neste âmbito, não há, pois, qualquer questão jurídica que, pela sua relevância, se imponha clarificar.

11. As instâncias condenaram a R a pagar as diferenças salariais correspondentes à disparidade existente entre o vencimento base pago aos AA. e o vencimento base a que teriam direito segundo o IRCT aplicável. A recorrente pretende que as quantias pagas a título de prémio de qualidade sejam contabilizadas no vencimento base que era pago, o que reduziria as diferenças salariais em causa.

Ao contrário do invocado, não tem qualquer relevância no caso concreto o conceito teórico de retribuição base, designadamente na sua comparação com o conceito mais amplo de retribuição, uma vez que a decisão recorrida se limitou a confrontar os valores referentes ao vencimento base pago aos trabalhadores com aqueles que, quanto ao mesmo item, lhes deveriam ser pagos, em face do IRCT.

12. A R. foi condenada a reconhecer que os autores têm direito a um período de interrupção de trabalho de, pelo menos, 30 minutos na jornada diária de trabalho, devendo tal período constar no mapa de horário de trabalho de cada um.

As instâncias limitaram-se a aplicar o que expressamente decorre dos arts. 213º e 215.º, n.º 1, alínea e), do Código do Trabalho, não se suscitando, assim, qualquer necessidade de “densificar o conceito de interrupção do trabalho”.

13. Quanto à bolsa de horas, a R. não obteve ganho de causa na Relação na medida em que não logrou obter a correspondente alteração da matéria de facto, referindo-se na decisão recorrida: “Sustenta-se a absolvição do pedido porque a bolsa de horas foi acordada. A impugnação pressupunha a alteração da matéria de facto, pelo que, na sua improcedência, igual destino tem o recurso de Direito, por não se suscitarem outras questões autónomas, remetendo-se para sentença”.

Nesta matéria, nenhuma questão jurídica, e muito menos de relevo, há, pois, a equacionar.

14. Relativamente aos juros de mora arbitrados, sustenta a R. que apenas são devidos os referentes aos últimos 5 anos, encontrando-se os demais prescritos, nos termos do art. 310.º, alínea d), do Código Civil.

Ao invés, a jurisprudência do STJ encontra-se consolidada no sentido de que, sendo o prazo de prescrição dos créditos laborais de um ano contado a partir da data da cessação do contrato de trabalho (artigos 38º da LCT, 381º, nº 1, do CT de 2003, e 337º, nº 1, do CT de 2009), este regime é também aplicável aos juros de mora decorrentes do seu incumprimento (v.g. Acs. desta Secção Social de 21.02.2006, Proc. nº 05S3141, de 16.6.2016, Proc. nº 438/14.6TTPRT.P1.S1, de 09.02.2017, Proc. nº 886/13.9TTLSB.L1.S1).

Esta questão não assume, pois, qualquer relevo jurídico que imponha a apreciação do Supremo Tribunal de Justiça.

15. Por fim, quanto à aplicada sanção pecuniária compulsória.

Diz a recorrente, no essencial, que “importa que seja sedimentado na jurisprudência que critérios devem ser utilizados para determinação do seu valor, principalmente em situações como a dos presentes autos em que não se aferiu das condições económicas da Recorrente, bem como do suposto prejuízo sofrido pelos Recorridos”.

A R. nada adianta no tocante aos critérios que pretende ver densificados, sendo certo que a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória não exige que estejam em causa prejuízos de ordem patrimonial nem o exato apuramento da condição económica do devedor, sendo certo que a decisão recorrida, para além de ter lançado mão de um critério de proporcionalidade, ponderou, em termos que se afiguram adequados, a “dimensão da ré, previsível volume de receitas (pontos provados 3, 4, 9 a 12) e facilidade na implementação das medidas em que foi condenada”.

Vale dizer que também aqui, por falta do necessário relevo, não se exige a intervenção do Supremo.


III.


16. Nestes termos, acorda-se em não admitir o recurso de revista excecional em apreço.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 30.04.2025

Mário Belo Morgado, relator

Julio Manuel Vieira Gomes

José Eduardo Sapateiro

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1. O recurso de revista não foi admitido quantos aos autores JJ, KK, LL e MM↩︎

2. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎