I. O recurso ordinário da parte de acórdão proferido em recurso que reexamina a indemnização civil fixada em processo penal está estruturado em função do sistema das alçadas e da sucumbência.
II. Sendo-lhe ainda aplicáveis os pressupostos da revista estabelecidos no artigo 671.º n.º 3 do CPC (confirmação sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente).
Reclamação – artigo 405.º do CPP (n.º 71/2025)
I - Relatório:
O arguido AA foi condenado em 1.ª instância, como autor material de um crime de introdução fraudulenta no consumo, p. e p. pelo artigo 96.º, n.º 1, alínea a), do Regime Geral das Infrações Tributárias, com referência aos artigos 101.º, 104.ºA, 104.º-B, 106.º, 108.º a 110.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, condicionada ao pagamento, pelo arguido, no período de suspensão da prestação tributária no valor de € 94.237,00 e acréscimos legais.
Foi declarado o perdimento, a favor do Estado Português, da carrinha de matrícula BB, marca Renault e modelo Maxility, do telemóvel e do tabaco apreendidos e ordenada a inutilização, sob controlo aduaneiro, deste último.
E julgado parcialmente, procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, contra o arguido, condenando-o no pagamento do Imposto Especial de Consumo omitido com referência aos anos 2016, 2017 e 2019, no valor global de € 94.237,00, acrescidos dos juros reclamados.
Não se conformando, o arguido AA recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 20 de fevereiro de 2025, tirado por maioria, concedeu parcial provimento ao recurso e, em consequência, alterou a redação dos pontos 1, 4, 5, 6 e 10, julgando improcedente o recurso nos demais segmentos decisórios.
Inconformado, o arguido AA interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Recurso não foi admitido por despacho de 2 de abril de 2025, com fundamento no artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f) do CPP.
O recorrente apresentou reclamação do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, invocando, como questão prévia, o justo impedimento por não ter apresentado atempadamente a presente reclamação.
Na reclamação propriamente dita, argumenta, em síntese, que interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da parte criminal e da parte cível, referindo que o acórdão da Relação no respeitante à parte criminal, confirmou a decisão da 1.ª instância, tendo, no entanto, obtido, uma declaração de voto de vencido.
Acrescenta, no respeitante à parte da sentença relativa à indemnização civil que o recurso é admissível, atento o seu valor, ainda que, não o seja quanto à matéria penal, atento o disposto no artigo 400.º, n.ºs 2 e 3 do CPP.
Mais refere, que não ocorre uma situação de dupla conforme tout court, pelo que o recurso é admissível.
1. O reclamante invoca como questão prévia na reclamação o justo impedimento por não ter entregado atempadamente a presente reclamação.
Por despacho de 2 de maio de 2025 proferido pelo Tribunal da Relação foi julgado verificado o justo impedimento.
Conhecendo da reclamação
2. O arguido com o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pretende questionar a confirmação da sua condenação: - -----
- na pena 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos pela prática, como autor material de um crime de introdução fraudulenta no consumo e a declaração de perda a favor do Estado Português de determinados bens; e -----
- no pagamento do Imposto Especial de Consumo omitido com referência aos anos 2016, 2017 e 2019, no valor global de € 94.237,00, acrescidos dos juros reclamados.
Ou seja, o recurso visa a sindicância da parte penal e também da parte cível da decisão confirmatória recorrida.
Quanto à Parte Penal: -
3. A recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432.º do CPP, dispondo a alínea b) do n.º 1 que se recorre “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.
Deste preceito destaca-se a alínea f) do n.º 1 que estabelece serem irrecorríveis os “acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.
No caso, o acórdão da Relação, confirmou a decisão da 1.ª instância que aplicou ao arguido a pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, e, como efeito do crime, também na perda a favor do Estado Português de determinados bens.
Havendo dupla conformidade, como resulta diretamente das normas adjetivas citadas, o acórdão da Relação, tirado em recurso, só admite recurso ordinário para o STJ se tiver sido aplicada ao recorrente, pena superior a 8 anos.
Não sendo esse o caso dos autos, resulta não ser recorrível em mais um grau, o acórdão confirmatório, conforme decorre do disposto nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f), ambos do CPP.
4. Ainda que não houvesse dupla conformidade o acórdão da Relação, também não admitiria recurso.
Estabelece esta norma conjugada que não admitem recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “os “acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância.”.
No caso, não se verifica a exceção prevista na parte final do preceito transcrito. O arguido foi condenado em 1ª instância. E, ademais, não foi aplicada pena privativa da liberdade.
Estamos, isso sim, perante um acórdão que aplicou uma pena de substituição de pena de prisão, isto é uma pena não privativa da liberdade. Pena suspensa que, por natureza, definição e pelo modo de execução, (o que é valido para as penas de substituição, quer seja a substituição por multa, suspensão da execução ou por prestação de trabalho a favor da comunidade) não constitui uma pena privativa da liberdade ambulatória.
Quanto à Parte cível
5. Resta para conhecer aqui da admissibilidade do recurso no respeitante à condenação no pagamento daquela indemnização, igualmente confirmada pelo acórdão recorrido, mas com um voto de vencido, onde pode ler-se: “(…) teria declarado a nulidade da sentença recorrida, por utilização na fundamentação da matéria de facto de prova proibida e determinado que fosse prolatada nova sentença.
(…)
Por último, mesmo que se entendesse que o teor das mensagens permite concluir pela comercialização de folha de tabaco, ainda assim estaríamos perante uma situação de imprecisão quanto a quantidade de folha de tabaco e valores monetários envolvidos a qual, ao abrigo de princípio in dúbio pro reo, teria de ser resolvida a favor do arguido.
Deste modo, entendo que esses factos deveriam ser dados como não provados e o arguido absolvido quanto a essa factualidade, bem como quanto ao pagamento do montante de 115.911,51 Euros relativos a IVA e IEC.”
6. O recurso ordinário em matéria cível decidida no processo penal está estruturado em função do sistema das alçadas e da sucumbência.
No caso, atento o valor da indemnização civil e que o recorrente foi condenado a pagar - € 94.237,00 – correspondente ao Imposto Especial de Consumo (parte cível), dúvidas não restam de que preenche os requisitos estabelecidos nas normas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 400.º do CPP.
Assim, verificada, a concorrência desses critérios haverá que verificar se o recurso também vence o obstáculo à admissibilidade adveniente da dupla conforme firmado no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, subsidiariamente aplicável, por força do artigo 4.º do CPP, que impede o recurso de revista no caso de dupla conformidade tirada “sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente”.
No caso, o acórdão da Relação, proferido em recurso, foi tirado com um voto de vencido.
Deste modo, estando cumpridos os pressupostos legalmente exigidos para a revista para o Supremo Tribunal de Justiça, restrita à parte do acórdão relativa à indemnização cível que o arguido/demandado, ora recorrente, foi condenado a pagar à Fazenda Nacional, o recurso deve admitir-se com este limitado âmbito.
III - Dispositivo:
7. Pelo exposto, deferindo a reclamação deduzida pelo arguido AA, revoga-se o despacho reclamado, determinando que seja substituído por outro que: -
- mantendo a decisão de não admissão do recurso quanto à parte penal; e
- admita o recurso para o Supremo Tribunal, mas apenas na parte em que visa o mesmo visa o reexame da condenação do arguido/demandado ao pagamento da indemnização civil fixada na decisão condenatória.
Sem custas, por não serem devidas.
Notifique-se.
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Nuno Gonçalves