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ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE IN ITINERE
Sumário
É de caracterizar como acidente de trabalho in itinere aquele que ocorreu quando a autora descia do 1.º andar de sua casa, pelas escadas exteriores (localizadas junto ao logradouro, este separado da via pública por vedação), e escorregou, sendo que então a autora se dirigia, como era habitual, para o seu local de trabalho.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães
Apelante: EMP01... S.A.
Apelada: AA
I – RELATÓRIO
Tendo sido participado um acidente de trabalho em que figura como sinistrada AA, nos autos melhor identificada, e entidade responsável EMP01... S.A., também com os sinais dos autos, decorreu a fase conciliatória do processo, em que as partes não chegaram acordo, porquanto a ré seguradora não aceitou qualquer responsabilidade pela reparação do acidente participado uma vez que, no seu entendimento, o mesmo não se enquadra no conceito de trajeto da al. a) do n.º 1 e n.º 2 do art. 9.º da LAT, nem aceitou o nexo causal entre as lesões e o evento ocorrido nem o resultado da perícia médica.
A sinistrada veio requerer a abertura da fase contenciosa do processo contra a seguradora, apresentando petição inicial e pedindo a condenação da ré no pagamento de:
a) € 2.428,30 a título de indemnização por períodos de incapacidade temporária;
b) € 146,50 de pensão com início após a data da alta;
c) €18,00 a título de despesas com transportes obrigatórios;
d) juros de mora vencidos e vincendos à taxa de legal de 4% desde a data de vencimento de cada uma das referidas prestações até integral pagamento.
Muito em síntese, alega a autora que o sinistro ocorreu nas escadas exteriores da sua residência, quando as descia, dirigindo-se para o trabalho no trajeto habitual.
A ré contestou, admitindo a existência do contrato de seguro e a retribuição alegada pela sinistrada.
No mais, manteve a posição assumida na fase conciliatória do processo, impugnando a dinâmica do acidente em apreciação nos autos, e bem assim alegou que o acidente em discussão nos autos, a ter ocorrido, foi no interior do logradouro da residência da sinistrada antes do acesso à via pública, ou seja, nas escadas exteriores de sua casa, localizadas no logradouro, separado da via pública por muro e vedação, pelo que não se enquadra no conceito de acidente de trabalho (in itinere).
O Instituto da Segurança Social, IP veio deduzir contra a ré seguradora pedido de reembolso.
Entretanto no apenso de fixação de incapacidade foi proferida decisão que decidiu que a autora esteve em situação de ITA desde ../../2021 até 13/10/2021, 91 dias, e que está curada desde a data da alta com a incapacidade permanente parcial de 2,00% (0,02).
Prosseguindo os autos, e após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Assim, e nos termos expostos, julgo a ação procedente por provada e, consequentemente, condeno a ré EMP01... SA, sem prejuízo dos juros que se mostrem devidos (art.º 135.º do Código de Processo do Trabalho), no: I - Pagamento à autora AA das seguintes quantias: a. €1.826,24 a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta; b. o capital de remição correspondente à pensão anual e vitalícia, devida em 14.10.2021, no montante de €146, 50; c. €36,00 a título de reembolso de despesas de transporte. II – reembolso ao Instituto da Segurança Social, I.P da peticionada quantia de €871,13, correspondente ao valor pago ao autor a titulo de subsídio de doença no período compreendido entre 15.08. 2021 a 13/10/2021, § - Este valor de reembolso deve ser descontado no valor referido em a) de €1.826,24 a pagar à autora pela ré a título de diferenças nas indemnizações por incapacidade temporária.”
Inconformada com esta decisão, dela veio a ré interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
“1- É absolutamente inquestionável que a queda, conforme relata a demandante, ocorreu dentro da residência da demandante, o que aliás resultou provado nos presentes autos.
2- Portanto, num local onde a demandante conhecia e controlava, DE FORMA EXCLUSIVA, os riscos inerentes à sua circulação pedestre nesse mesmo local.
3- Assim sendo, não pode o acidente sofrido pela demandante considerar-se como acidente de trabalho; pois manifestamente não preenche os requisitos exigidos pela alínea a) do nº 1 do artº 9º, assim como pela alínea b) do nº 2 do mesmo artº 9º da Lei 98/2009, de 04/09.
4- Tendo a queda ocorrido ainda dentro da sua habitação, embora em espaço exterior, não se pode aplicar a extensão do conceito de acidente de trabalho “in itinere”.
5- Precisamente pelo facto da demandante ainda se encontrar dentro da sua habitação, em espaço cujo risco controlava perfeitamente.
6- O entendimento contrário, defendido na Douta Sentença aqui em recurso, leva a um “esticar” inadmissível e, acima de tudo, absolutamente injustificável, do conceito de acidente de trabalho.
7- Na verdade, atente-se nos seguintes exemplos que, nos presentes autos, sendo meramente académicos, podem perfeitamente verificar-se:
- Imagine-se que a demandante, em vez de ter caído nas escadas exteriores de acesso do primeiro andar ao logradouro, tinha caído em alguma escada interior da habitação;
- Ou, então, e porque a jornada de trabalho de um trabalhador inicia-se sempre com os actos de acordar e levantar da cama, caia ao chão ao levantar-se da cama; Ou, então, imagine-se que a trabalhadora cai ao tomar banho, que também é um acto que faz parte da rotina de quem vai para o trabalho?
8- O momento a partir do qual se deve considerar, no percurso do trabalhador, para efeitos do início do roteiro “in itinere” só pode ser aquele a partir do qual sai da sua residência, seja habitação coberta, seja logradouro, e transponha a separação física entre a sua residência, local privado sobre o qual apenas o trabalhador tem domínio e controla os respectivos riscos, e o espaço público, via pública, onde todos têm acesso e o trabalhador não controla, de todo, os respectivos riscos.
9- É precisamente esta diferença entre o espaço privado do trabalhador e o espaço de domínio e acesso públicos que marca o início da aplicação do conceito de acidente “in itinere”.
10- No caso dos presentes autos, tendo-se verificado a queda ainda dentro da habitação da demandante, embora em espaço aberto, não se pode, por aplicação do artº 9º da Lei 98/2009, de 04/09, esticar o conceito de acidente “in itinere”, sob perigo de se alargar esse conceito a todos os actos praticados pelo trabalhador, desde que se levanta até que se deita.
A Douta Sentença em recurso violou, pois, a alínea a) do nº 1 do artº 9º, assim a alínea b) do nº 2 do mesmo artº 9º da Lei 98/2009, de 04/09.
NESTES TERMOS, julgando procedente o recurso e, por conseguinte, alterando a Douta Sentença recorrida no sentido de se considerar que o sinistro dos autos não integra o conceito de acidente de trabalho “in itinere”, absolvendo-se, em consequência, a demandada de todos os pedidos formulados, V. Exas farão, como aliás é costume,
INTEIRA JUSTIÇA!”
A recorrida apresentou contra-alegação, pugnando pela improcedência do recurso conforme as seguintes conclusões:
“…
4- Aquando do acidente, a A, seguia o seu caminho habitual e com a intenção de se dirigir e prestar o seu serviço no seu local de trabalho.
5- Logo que, a A. transpõe a porta da sua residência inicia o seu percurso para o local de trabalho.
6- Os factos dados como provados, não deixam dúvidas de que a A., caiu nas escadas exteriores da sua residência, único meio de acesso da mesma à via pública, depois de sair da sua habitação, e quando se dirigia para o seu local de trabalho.
7- A lei não fala em via publica, refere apenas entre residência habitual ou ocasional, i.é, a sua habitação, onde dorme, se alimenta, abriga, vive.
8- Ninguém se alimenta, dorme, abriga no logradouro ou nas escadas exteriores da sua habitação.
9- Dai que, o inicio do trajeto seja desde o lado de fora da porta de entrada na sua habitação, até ao local onde tem que cumprir a sua obrigação laboral- cfr art 9º nº 1 al .a) e nº 2 al. a) e b) da Lei 98/2009 de 4/09 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 2016, disponível em www.dgsi.pt.
10- Pelo que, estamos perante um acidente in itinere, conforme resulta da conjugação dos arts 9º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) e b) da supra identificada Lei.
11- Conclui-se, que tendo o acidente da A. ocorrido dentro do trajeto normalmente utilizado pela A., entre a sua habitação e o seu local de trabalho, deverá considerar-se acidente de Trabalho in itinere.
…”
Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Tal parecer não mereceu qualquer resposta.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II OBJECTO DO RECURSO
Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 640.º, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enuncia-se então a questão que cumpre apreciar:
a) O acidente a que se reportam os autos é de caracterizar como acidente de trabalho? III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos considerados provados na decisão recorrida são os seguintes:
“A.
AA nasceu no dia ../../1995.
B.
No dia 14-07-2021 a autora exercia a atividade profissional de embaladora na indústria têxtil, sob as ordens, direção e fiscalização da entidade empregadora EMP02..., Soc Invest C Industriais, S.A., com sede na
Rua ..., ... ...;
C.
(…) mediante a retribuição anual ilíquida de €10.464,34;
D.
(…) a responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho relativamente a ela encontrava-se integralmente transferida para a ré EMP01... SA, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ...84.
E.
Submetida a perícia médica na fase conciliatória do processo no GML ..., o Exmº perito médico que a observou:
fixou-lhe o período de incapacidade temporária absoluta (correspondente ao período durante o qual a vítima esteve totalmente impedida de realizar a sua atividade profissional), desde ../../2021 até 13/10/2021 (91 dias);
deu-lhe a alta a 13.10.2021,
com uma incapacidade permanente e parcial de 2,00% (0,02);
F.
Foi emitido à sinistrada Certificado de Incapacidade Temporária para o Trabalho por doença direta, pela USF ... no o período entre 15/08/2021 a 13/10/2021.
G.
Realizada a tentativa de conciliação a 04.07.2022, viria a mesma a frustrar-se, já que a ré seguradora não aceitou qualquer responsabilidade pela reparação do acidente dos autos, por considerar que:
não se enquadra no conceito de trajeto da al. a), do nº 1 e 2 do artº. 9º da LAT;
não aceitou o nexo causal entre as lesões e o evento ocorrido, nem
(…) o resultado da perícia médica.
H.
O Instituto Da Segurança Social, IP pagou à autora relativamente ao período compreendido:
entre ../../2021 e ../../2021 a titulo de «subsidio de doença» a quantia de € 1.253,11
(…) 2021 a titulo de «Subsídio de Natal» a quantia de € 83,30.
I.
Na data mencionada em A), a autora, pelas 07:40 horas, em ..., ..., deslocava-se como era habitual para o seu local de trabalho;
J.
(…) que iniciava ás 8 horas desse dia;
K.
(…) quando descia as escadas exteriores de sua casa, do ... andar da uma moradia, escorregou.
L.
(…) na sequência do que sofreu entorse no tornozelo direito;
M.
Em resultado das lesões que sofreu a autora ficou afetada de ITA desde ../../2021 até 13/10/2021.
N.
Das lesões que sofreu resultaram sequelas para a autora;
O.
Determinantes de IPP de 2,00% (0,02) desde a data da alta.
P.
A A. gastou em deslocações obrigatórias a este Tribunal e ao GML ..., a quantia de € 18,00;
Q.
As escadas referidas em G) localizam-se junto ao logradouro, separado da via pública por muro e vedação.” IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO
- Dacaracterização do acidente como acidente de trabalho
Na decisão recorrida exarou-se a propósito:
“O dissenso entre as partes radica no facto de a autora ter caído nas escadas exteriores localizadas dentro do logradouro que é propriedade privada e não em espaço público.
Relativamente ao local da queda diremos que, naturalmente, o espaço exterior da habitação da autora tem entre outras funções a de servir de caminho para o trabalho.
O que a lei exige é que o sinistrado tenha transposto a porta principal da residência, com o objetivo de deslocação para o trabalho (ou o contrário), e que o faça no trajeto habitualmente utilizado e no tempo habitualmente gasto. “O que importa é a conexão do trajeto com o trabalho - para trabalhar é preciso previamente caminhar até lá e regressar - e o risco laboral desse percurso que deve recair no empregador por ser ele quem mais aproveita a atividade laboral e assim deve suportar os riscos genéricos a ela associados”1.
1 Ac. do TRG de 06.02.2020, proc. nº 3157/16.5T8VCT.G1, acessível no sitio da internet www.dgsi.pt
2 Processo nº 3157/16.5T8VCT.G1, acessível no sitio da internet www.dgsi.pt
Ora, na al. e) do nº 2 do art. 9º da citada lei, tutela-se, na extensão do conceito de acidente de trabalho, o acidente que ocorra no trajeto de ida ou de regresso - para e do local do trabalho - normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre o local de trabalho e o local de refeição.
Como se sumariou no Ac. do TRG de 06.02.20202 “ A atual lei de acidentes de trabalho (Lei 98/2009, de 4-09-art. 9º), ao contrário da sua antecessora, não faz nenhuma restrição quanto à necessidade de o trajeto iniciar ou acabar, numa das suas pontas, na “porta de acesso da habitação para as áreas comuns do edifício ou para a via pública”, sendo interpretação legítima considerar que é acidente “in itinere” o ocorrido em espaços privados como logradouros/quintais, garagens, escadas, exteriores à porta de acesso à habitação, desde que o sinistrado fosse ou viesse do trabalho” negrito meu.
Não se desconhece a controvérsia jurisprudencial em torno desta matéria3 havendo quem considere que, com tal interpretação, se abre uma “caixa de Pandora4” sendo a mesma excessiva, como se refere no citado acórdão. Contudo, este entendimento que secundamos, tem sido unanimemente mantido pela Secção Social da Relação de Guimarães5, podendo ler-se noutro recente acórdão, 01.07.20216, que “ Nos termos conjugados do artigo 6.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e do artigo 6.º, n.º 2, al. a), do DL n.º 143/99, de 30 de Abril, era considerado como acidente “in itinere” o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do sinistrado, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública até às instalações que constituem o seu local de trabalho. II – No entanto, a Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, atualmente em vigor, veio alargar o conceito de acidente in itinere, ao estipular, nos termos dos arts. 8.º e 9.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. b), que se considera acidente de trabalho o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do sinistrado e as instalações que constituem o seu local de trabalho. III – Atentas as referidas alterações, deve interpretar-se os atuais normativos como integrando no seu âmbito de aplicação o acidente ocorrido nos espaços exteriores à habitação do sinistrado, ainda antes de se entrar na via pública, independentemente de se tratar de espaço próprio ou de espaço comum a outros condóminos ou comproprietários, bastando para tal que já tenha sido transposta a porta de saída da residência, desde que a vítima se desloque para o local de trabalho, segundo o trajeto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador”.- negrito meu.
No caso dos autos, a factualidade provada em I) a L), e Q), enquadram-se na previsão do supracitado art.º 9.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea b) da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, pelo que o sinistro aqui em apreço, apesar de ocorrido fora do local e tempo de trabalho, deve ser qualificado como acidente de trabalho.
Assim, e tendo a ré assumido por via do contrato de seguro celebrado com a empregadora da autora a responsabilidade pela reparação dos acidentes de trabalho de que este fosse vítima, é responsável pela reparação legalmente prevista”
Concordamos com o entendimento sufragado pelo Tribunal recorrido que, como se dá nota na citada fundamentação reportando para vários acórdãos desta Relação, tem sido também o entendimento persistentemente acolhido por este Tribunal da Relação de Guimarães.
E entendimento esse que, de resto, é manifestamente preponderante na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores e muito sedimentado, como é ex. aquele da RP trazido à colação no douto parecer do Ministério Público (Ac. de 22/04/2013, Proc. nº 253/11.0TTVNG.P1), do qual vem citado o excerto: “Comparada a redacção das disposições da LAT/97 e da LAT/2009, constatamos que atualmente o acidente, para ser qualificado como de trabalho in itinere, não tem que ocorrer na via pública, bastando que ocorra em qualquer ponto do trajeto que liga a habitação do sinistrado e as instalações do local de trabalho, seja a via pública, sejam as partes comuns do edifício se o sinistrado habitar numa das fracções, seja no logradouro se a habitação for numa moradia, desde que se verifiquem os seguintes requisitos: trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador”
E não vemos razão para divergir agora de tal entendimento, não esgrimindo a ora recorrente qualquer (novo) argumento que nos convença a mudar de posição.
Como resulta dos factos provados o acidente aconteceu quando a autora descia do 1.º andar de sua casa, pelas escadas exteriores (localizadas junto ao logradouro, este separado da via pública por vedação), e escorregou, sendo que então a autora se dirigia, como era habitual, para o seu local de trabalho.
Enfatiza a recorrente que o acidente ocorreu num local onde a autora conhecia e controlava, “DE FORMA EXCLUSIVA”, os riscos inerentes à sua circulação pedestre nesse mesmo local.
E para ilustrar o desacerto do entendimento perfilhado na decisão recorrida, entre outras situações hipotéticas que chama à colação, diz a recorrente: “Imagine-se que a demandante, em vez de ter caído nas escadas exteriores de acesso do primeiro andar ao logradouro, tinha caído em alguma escada interior da habitação;”!
Concluindo assim que não pode o acidente sofrido pela demandante considerar-se como acidente de trabalho pois, diz, manifestamente não preenche os requisitos exigidos pela alínea a) do n.º 1 do art. 9.º da LAT (Lei 98/2009, de 04/09) - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido: 1 - a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte; -, assim como pela alínea b) do n.º 2 do mesmo art. 9.º - 2 - A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador: (…) b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;.
Esta argumentação, salvo o devido respeito, não convence.
Defende, a nosso ver com inteiro acerto, Pedro Miguel dos Reis Portugal Lima que “o motivo delineador do que é um acidente de trabalho já não se prende apenas com a empresa e os riscos da mesma, com a autoridade ou subordinação típica da relação, indo além desses elementos: a alma delineadora do que é acidente, da reparação, enfim de todo o regime, é o indivíduo e o seu desenvolvimento em sociedade. E é por termos plena convicção neste aspecto que consideramos inútil falar de nexo causal e mesmo responsabilidade pelo risco (económico ou de autoridade). Estamos perante uma responsabilidade social normativamente delimitada (…)”[1].
Como tem sido assinalado, e concordamos, a nova redacção dos pertinentes preceitos da actual LAT - em particular aquela citada alínea b) do n.º 2 do at. 9.º -, em que se deixou cair a restrição inerente ao segmento “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública” (cf. al. a) do n.º 2 do art. 6.º do DL 143/99 de 30.4), inculca quanto a nós a ideia[2] de que o legislador pretendeu abranger no conceito de acidente in itinere os acidentes ocorridos nas deslocações de e para o local de trabalho ainda, ou já, dentro da vedação exterior da residência, delimitadora de eventual logradouro, desde que não no interior da habitação propriamente dita.
Mas um acidente ocorrido nessas circunstâncias não é o mesmo, não equivale, a um acidente, como por ex. uma queda, na escada interior da habitação.
Como escreveu Bruno Mestre, “A existência de um logradouro implica sempre uma certa exposição exterior, pelo que não nos parece inteiramente coincidente com o interior de uma habitação: fazendo apelo ao exemplo do duche dado pelo Sr Desembargador, será que uma pessoa comum teria a mesma descontração em tomar um duche ou se vestir para ir trabalhar (i.e: estando totalmente despida, nua, como veio ao mundo) num logradouro, exposto ao olhar de terceiros, como o tem no interior da sua habitação? Cremos que o logradouro integra a esfera da vida privada e não da vida íntima (como o interior da habitação), pelo que se justifica aqui o alargamento da tutela.”[3]
Esta também é a posição mais consentânea com o facto de agora (a partir da Lei 100/97) a legislação infortunística prescindir (cf., designadamente, Base V/2 b) da Lei 2127), para a caraterização do acidente de trabalho in itinere, da verificação quer de um risco especifico quer de um risco genérico agravado: o acidente in itinere é-o independentemente dos riscos do percurso.
Ademais como refere Júlio Gomes na obra citada, a págs. 182, “é sempre em alguma medida arbitrário o ponto em que começa e finda o trajeto protegido”, interrogando-se também (v. pág. seguinte) “sobre se para decidir se uma viagem, por exemplo, já terminou, não haverá, de algum modo, que atender à adequação social e à unidade de ação que ela pode ajudar a conceber”, o que, a responder-se afirmativamente, como nos parece curial, bem se acomoda à tese que acima perfilhamos (parece-nos óbvio que, no aludido exemplo, onde se diz “já terminou” podia dizer-se com igual pertinência “já começou”).
Acresce que, como realça Bruno Mestre no local citado (a págs. 131), “(…) não é qualquer acidente ocorrido num logradouro [como numas escadas exteriores, acrescentamos] que recai no âmbito do regime dos acidentes in itinere mas somente os acidentes motivados por uma deslocação para o trabalho pelo que os actos puramente privados ocorridos num logradouro se encontram à partida excluídos da tutela da norma.”
Ante o exposto, improcede o recurso, sendo de manter a decisão recorrida.
V - DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo da recorrente.
Notifique.
Guimarães, 24 de Abril de 2025
Francisco Sousa Pereira (relator)
Antero Veiga
Vera Maria Sottomayor
[1] Que Autoridade no Trabalho? Reflexões para a Superação de uma teoria, Dissertação em Ciências Jurídico-Empresariais/Menção em Direito Laboral, pág. 39, in https://baes.uc.pt/bitstream/10316/42460/1/Pedro%20Lima.pdf [2] Não sendo consensual esta interpretação, colocando-a por ex. em dúvida Júlio Gomes em O Acidente de Trabalho - O Acidente in Itinere e a sua Descaracterização, Coimbra Editora, Coimbra Editora, 2013, pág. 181. [3] Os acidentes de trabalho «in itinere» na jurisprudência recente (2018-2023), Prontuário de Direito do Trabalho, 2023 - I, Centro de Estudos Judiciários, págs. 130/131.