PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONDOMÍNIO
FUNDO COMUM DE RESERVA
CONTRIBUTO DO CONDÓMINO
Sumário

O contributo de cada condómino para o Fundo Comum de Reserva afere-se por referência às concretas contribuições para o condomínio que cada um suporta, sendo as responsabilidades de cada um deles acertadas posteriormente em função das específicas obras de conservação que se venham a realizar com recurso ao Fundo Comum de Reserva.

Texto Integral

Processo nº 709/23.0T8PVZ.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 709/23.0T8PVZ.P1 elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório

Em 24 de abril de 2023, com referência ao Juízo Local Cível ..., Comarca do Porto, comprovando ter requerido apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, AA casado com BB[1] instaurou ação declarativa sob forma comum contra o Condomínio do Edifício Urbanização ... pedindo que sejam anuladas as deliberações tomadas na assembleia geral ordinária de condóminos do réu realizada em 23 de fevereiro de 2023.

Para fundamentar as suas pretensões o autor alegou, em síntese, que é dono de três frações autónomas destinadas a comércio do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...1/2008, sendo o réu o condomínio desse prédio; no dia 23 de fevereiro de 2023, pelas 19h30 realizou-se uma assembleia geral ordinária de condóminos do réu em que, além do mais, foi votado e aprovado, por maioria, com o voto contra do autor, o orçamento de gestão ordinária para o ano de 2023, resultando dessa aprovação a imputação de quotas para o Fundo Comum de reserva, no montante de mais de 30% do valor das contribuições para o condomínio para cada uma das frações do autor, quando essas quotas deveriam ser de 10% da quota-parte nas restantes despesas do condomínio.

Após notificação do indeferimento do pedido de apoio judiciário foi paga taxa de justiça inicial.

Citado, o réu contestou pugnando pelo indeferimento da petição inicial por não ter sido comprovado o deferimento do apoio judiciário requerido aquando da interposição da ação; arguiu a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir e impugnou muita da matéria alegada na petição inicial concluindo pela correção da quota do Fundo Comum de Reserva imputada ao autor e terminando pela procedência das exceções deduzidas ou, quando assim não se entenda, pela total improcedência da ação.

Depois de notificado para tanto, o autor respondeu às exceções invocadas pelo réu na sua contestação sustentando a sua improcedência.

Em 18 de janeiro de 2024, tendo em conta que no formulário da petição inicial são identificados como autores AA e BB e que apenas está junta aos autos procuração forense outorgada pelo autor, determinou-se a notificação da autora e do Sr. Advogado subscritor da petição inicial para juntarem aos autos procuração outorgada por esta, sendo os autores convidados a comprovarem o pagamento de multa em virtude de aquando da interposição da ação não terem demonstrado o pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça; foram ainda os autores convidados a juntar aos autos prova documental, a prestar esclarecimentos factuais e a pronunciar-se, querendo, sobre a ilegitimidade da autora.

Os autores ofereceram requerimento requerendo a prorrogação do prazo para oferecimento de prova documental, sustentaram que dada a iminência da caducidade da ação de anulação de deliberação da assembleia geral objeto destes autos era legalmente admitida a mera comprovação de ter sido requerido apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, pugnaram pela legitimidade da autora para a presente ação e reafirmaram a posição adotada na petição inicial quanto à forma de cálculo da contribuição para o Fundo Comum de Reserva.

Em 05 de fevereiro de 2024 foi proferido despacho dando sem efeito a notificação para comprovação do pagamento de multa e deferindo a prorrogação do prazo para oferecimento de prova documental.

Oferecida a prova documental solicitada pelo tribunal e a procuração forense outorgada pela esposa do autor, julgou-se ratificado o processado e convidou-se o réu a, querendo, pronunciar-se sobre os esclarecimentos factuais prestados pela parte contrária.

O réu pronunciou-se reiterando a posição assumida na contestação.

Em 22 de maio de 2024 foi proferido despacho saneador sentença[2] julgando improcedente a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir e conheceu-se do mérito da causa, julgando-se a ação procedente, com o seguinte dispositivo:

Nestes termos e pelos fundamentos que antecedem, julgo a acção provada e procedente e, em consequência, anulo a deliberação tomada no ponto três da ordem de trabalhos, na assembleia de condóminos realizada em 23/02/2023, em que se aprovou a comparticipação dos autores para o fundo comum de reserva calculada por referência à sua permilagem sobre o orçamento global aprovado e não na percentagem de 10% da quota das suas fracções no orçamento aprovado.

Em 26 de junho de 2024, inconformado com a sentença que precede, Condomínio do Edifício Urbanização ... interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. VENERANDOS DESEMBARGADORES, através da sentença ora recorrida julgou o Tribunal a quo anulável “a deliberação tomada no ponto três da ordem de trabalhos, na assembleia de condóminos realizada em 23/02/2023, em que se aprovou a comparticipação dos autores para o fundo comum de reserva calculada por referência à sua permilagem sobre o orçamento global aprovado e não na percentagem de 10% da quota das suas frações no orçamento aprovado.”

II. Os Autores interpuseram a presente ação contra o Condomínio (ora Recorrente) alegando que o cálculo da sua comparticipação para o fundo comum de reserva (doravante FCR) tinha de ser efetuado sobre a quota-parte do orçamento que compete à sua fração e não sobre a quota parte da sua fração sobre o orçamento global das despesas do condomínio aprovado.

III. Por seu turno, o Condomínio, aqui Recorrente, defendeu que o modo de cálculo da comparticipação de cada condómino para o FCR tem de ser calculado tendo por base o seguinte critério: 10 % do valor do orçamento global aprovado multiplicado pela permilagem de cada fração.

VI. Na sentença recorrida o Tribunal a quo entendeu que os Autores tinham razão, julgando anulável a referida deliberação e tendo feito constar na factualidade provada dois factos que correspondem a ilações retiradas da interpretação defendida na sentença recorrida.

VII. Cremos, com todo o respeito por opinião diversa, que aquele douto Tribunal a quo não efetuou uma correta interpretação e aplicação do direito, designadamente do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 268/94, situação que originou a inserção de factualidade cuja eliminação da factualidade provada se impõe (conforme infra melhor se explanará).

VIII. Inconformado com a referida decisão (quer quanto à interpretação das normas aplicáveis, quer quanto ao julgamento de facto que teve tal interpretação na sua base), vem o CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO ... interpor o presente recurso para este VENERANDO Tribunal com os fundamentos que infra se expõem.

IX. Conforme é consabido, o julgador, enquanto intérprete normativo que é, nessa tarefa de interpretar e aplicar as normas, deve fazê-lo quer ao abrigo dos princípios que subjazem à interpretação das normas, quer de acordo com critérios de equidade e justiça, retirando do sentido de cada norma aquele que melhor se coaduna com a realidade existente no momento da aplicação da respetiva norma (vide artigo 9.º do Código Civil).

X. Impõe-se, pois, compreender a complexidade atual das propriedades horizontais (atualmente bem mais complexas do que as propriedades horizontais existentes à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro, que veio estabelecer a obrigatoriedade de comparticipação de todos os condóminos para o FCR), bem como interpretar as normas em causa em termos de globalidade do ordenamento jurídico (leia-se, interpretação integrada com as demais normas aplicáveis à propriedade horizontal), bem assim, atendendo à intenção do legislador quando previu a existência obrigatória do FCR.

XI. Acerca da constituição obrigatória de um FCR destinado especificamente a custear as despesas de conservação do Edifício ou conjunto de Edifícios, veio o artigo 89.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro (que aprovou o regime jurídico da urbanização e edificação) dispor que: “1 - As edificações devem ser objeto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético”.

XII. Foi precisamente a necessidade de realização destas obras periódicas de conservação que conduziu à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro que impôs a todos os condomínios a criação do FCR, o qual não pode ser aplicado na satisfação de despesas correntes, sob pena de frustração do fim que presidiu à sua criação.

XIII. Não existe disposição legal que permita ou diga que a aplicação da percentagem do FCR incide sobre o valor obtido dessa repartição diferente do critério supletivo previsto no art.º 1424.º, n.º 1 do CÓDIGO CIVIL.

XIV. O fundo de reserva é obrigatório por lei, sendo o seu valor o resultado das comparticipações de todos os condóminos, para ajudar a pagar as obras de conservação que sejam necessárias efetuar no futuro (o saldo da conta visa exclusivamente a realização de obras de conservação extraordinária nas partes comuns do edifício (sejam elas fachadas, telhados, fundações, etc)).

XV. Conforme lapidarmente tem sido salientado em vasta jurisprudência, a posição de condómino confere direitos e obrigações, assentando na dicotomia existente entre o direito de usufruir das partes comuns do edifício – decidindo tudo o que a elas respeite – e a obrigação de contribuir para as despesas de conservação dessas partes comuns.

XVII. A respeito da obrigação de contribuir para as despesas comuns de conservação do edifício, dispõe o artigo 1424.º, n.º 1 do CÓDIGO CIVIL que “salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comuns são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas frações”.

XVIII. In casu, conforme se alcança da ata n.º 58 junta com a petição inicial e dos respetivos documentos integrantes da mesma, o valor do orçamento para o ano 2023 (despesas comuns sem contabilizar o seguro e o FCR) foi de 8.420,00 €, sendo, pois, o FCR constituído por (pelo menos) 10% do referido montante, ou seja, 842,00 € (cfr. quadro constante da referida ata e relatório e contas que dela faz parte integrante).

XIX. Apurado o valor mínimo do FCR, resta efetuar a chamada “regra de três simples” a fim de apurar em quanto é que as frações dos Autores (doravante AA.), aqui Recorridos, “cabem” no referido “bolo” (842,00€), contribuição mínima imposta por lei:

1000 -------- 8.420,00 € (orçamento global das despesas do condomínio)

157,92 (permilagem das frações dos AA.) -------- X

X = 8.420,00 € x 157,92 = 1.329,6864: 1000 x 10 % =132,99 €

ou

842,00 € [10% do orçamento das despesas do condomínio] x 157,9200

[permilagem das três frações]: 1000 = 132,99 €

XX. Cremos que dúvidas inexistem de que o cálculo constante da ata n.º 58 se encontra corretamente efetuado (cumprindo com o mínimo imposto por lei) não merecendo, pois, a deliberação em causa qualquer reparo, contrariamente ao que decidiu a sentença recorrida.

XXI. Efetuar o cálculo nos moldes que os AA. pretendem e que o Tribunal a quo considerou ser o que resulta da letra da lei, traduzir-se-ia numa iniquidade, totalmente dissonante da lei, cálculo esse inclusive cabalmente alheio à génese de um condomínio, olvidando os AA. e o Tribunal a quo a existência de partes comuns (tendo todos os condóminos de comparticipar com base no mesmo critério/valor base [conforme a lei refere no art.º 4.º, n.º 2 supra citado] para tal fundo obrigatório que serve às partes comuns, cuja comparticipação será distribuída de acordo com a permilagem de cada fração).

XXII. Na interpretação e aplicação das normas em apreço olvidou o Tribunal a quo o propósito do legislador com a criação de tal fundo obrigatório.

XXIII. Vejamos, pegando no exemplo concreto da deliberação posta em crise pelos AA., a diferença de comparticipação seguindo um e outro critério:

Critério aplicado pelo Condomínio:

1000 -------- 8.420,00 € (orçamento global das despesas do condomínio)

157,92 (permilagem das frações dos AA.) -------- X

X = 8.420,00 € x 157,92 = 1.329,6864: 1000 x 10 % =132,99 €

ou

842,00 € [10% do orçamento das despesas do condomínio] x 157,9200

[permilagem das três frações]: 1000 = 132,99 €

XXIV. Vejamos agora o critério que os AA. e o Tribunal a quo entendem como sendo o correto:

Orçamento para estabelecimentos comerciais/frações dos AA. = 442,17 € x 10 % =

44,22 €

XXV. Não faz o mais ínfimo sentido à luz dos princípios da legalidade, justiça e equidade que cada condómino comparticipe para o FCR de acordo com critérios distintos dos demais e distintos daquele que inclusivamente vem previsto na lei.

XXVI. Atendendo à génese da criação do referido fundo, cremos que a norma em causa não pode ser interpretada nos moldes constantes da sentença recorrida, mas sim conforme tem vindo a ser aplicada pelo ora Recorrente, i.e., apura-se o orçamento global do prédio, correspondendo o valor mínimo do FCR a 10% desse valor; apurados os 10% do orçamento global resta calcular quanto é que cada fração, em função da respetiva permilagem, cabe no referido bolo de 10% do orçamento global.

XXVII. Cremos que o critério defendido pelos AA. e pelo Tribunal a quo não se coaduna com as regras que subjazem à interpretação das normas.

XXVIII. Ao julgador não se pede uma tarefa autómata de aplicar a lei com o sentido literal da mesma (isso violaria, aliás, as próprias regras de interpretação da lei, designadamente o vertido no art.º 9.º do CÓDIGO CIVIL).

XXIX. Pelo contrário, exige-se uma tarefa de hermenêutica, de silogismo, de ponderação com critérios de justiça e equidade ao caso concreto, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

XXX. Apelando às regras da interpretação, cremos que nenhuma dúvida pode restar quanto ao critério legal da repartição da contribuição dos condóminos para o fundo em referência – conforme expressamente previsto no referido n.º 1 do artigo 1424.º do CÓDIGO CIVIL, “em proporção do valor das suas frações”.

XXXI. Aliás, nos casos em que o custo das obras de conservação necessárias ultrapassar o montante existente no FCR, constituirá, naturalmente, encargo de todos os condóminos o pagamento do montante em falta, na proporção da sua quota, nos termos estabelecidos no referido n.º 1 do artigo 1424.º do CÓDIGO CIVIL, ou seja, de acordo com a permilagem que consta no título constitutivo da propriedade horizontal e que constitui o critério legal para a fixação da proporção da obrigação de contribuição para as despesas de conservação do prédio.

XXXII. Ou seja, as despesas relativas às obras de conservação do edifício que se mostre necessário realizar terão sempre de ser pagas por todos os condóminos na proporção do valor das suas frações: seja antecipadamente, através da contribuição para o FCR; seja aquando da execução das obras, na hipótese de os montantes existentes no FCR se vierem a revelar insuficientes.

XXXIII. Ora, não faria qualquer sentido aplicar um valor a título de contribuição para o FCR que fosse proporcional à contribuição para as restantes despesas do condomínio já que, em variadíssimos casos, por força da aplicação das regras especiais previstas nos n.ºs 3 e 4 do referido artigo 1424.º, a medida da responsabilidade de cada condómino nas despesas de fruição das partes comuns e no pagamento de serviços de interesse comum é muito diversa, não se conduzindo à proporção do valor da respetiva fração.

XXXIV. Da aplicação das mencionadas regras especiais dos n.ºs 3 e 4 do referido artigo 1424.º resulta, efetivamente, que, num mesmo prédio/condomínio, pode haver condóminos obrigados a contribuir para o custeio de todas as despesas correntes inerentes à utilização das partes comuns, condóminos obrigados a contribuir para o custeio de apenas parte das despesas correntes e condóminos que não têm de contribuir para o custeio de quaisquer despesas correntes. Mas todos eles têm de contribuir para o FCR, na proporção do valor das suas frações. A toda esta realidade foi o Tribunal a quo alheio na interpretação e aplicação do direito ao caso concreto.

XXXV. A entender-se, como defendem os AA./Recorridos e o Tribunal a quo, que a contribuição para o FCR seria necessariamente proporcional à contribuição para as despesas do condomínio, um condómino que não tivesse de comparticipar em quaisquer despesas correntes do condomínio (por exemplo, por a respetiva fração se situar no rés-do-chão, com entrada direta da rua, não beneficiando de qualquer serviço de interesse comum) nenhum valor teria de pagar a título de contribuição para o FCR, pois, 10% de zero sempre seria zero, ou melhor, qualquer percentagem de zero sempre seria zero.

XXXVI. Tal entendimento, esse sim, desvirtuaria o regime jurídico consagrado na lei.

XXXVII. Na verdade, o que se encontra estabelecido no n.º 2 do referido artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 268/94 é, tão-só, um quantum mínimo da contribuição para o FCR – o que ali se encontra estabelecido é que “cada condómino contribui para esse fundo com uma quantia correspondente a, pelo menos, 10% da sua quota-parte nas restantes despesas do condomínio”.

XXXVIII. Nada impedindo que, de facto, um dado condómino esteja obrigado a uma contribuição anual para o FCR em valor superior à sua quota anual nas despesas gerais do condomínio – tal sucederá sempre que haja condóminos que não tenham de comparticipar nas despesas correntes do condomínio, como supra referido, e/ou sempre que haja grandes discrepâncias na medida das comparticipações dos condóminos de um dado condomínio nas ditas despesas correntes.

XXXIX. Em suma, e conforme resulta de tudo o exposto, a deliberação posta em crise pelos AA./Recorridos que aprovou o orçamento para 2023 e concretamente a comparticipação dos condóminos para o FCR é válida e legal, tendo sido cumprido o quadro jurídico aplicável, designadamente o disposto no n.º 1 do artigo 1424.º do Código Civil e no n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de Outubro.

XL. Pelos motivos vindos de expor, não podemos, com o devido respeito, aceitar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, dissonante da realidade e do próprio quadro jurídico aplicável ao regime da propriedade horizontal, tendo, assim, a sentença recorrida incorrido em erro na aplicação do direito, erro este do qual o ora Recorrente apela a este Venerando Tribunal.

XLI. Devendo, pois, tal deliberação manter-se no ordenamento jurídico, como válida e eficaz que é.

XLII. Na sequência do erro de interpretação constante na sentença recorrida, o Tribunal, no âmbito do referido “vício de raciocínio”, fez constar na factualidade provada dois factos cuja remoção se impõe, a saber, o facto n.º 7. e 8., factualidade esta que consiste em ilações retiradas pelo julgador a quo decorrentes da interpretação que defendeu ao longo da sentença, interpretação esta posta em crise com o presente recurso.

XLIII. Requer, assim, VENERANDOS DESEMBARGADORES, definido o critério de interpretação das normas em causa conforme supra propalado pelo ora Recorrente, sejam consequentemente eliminados os factos n.º 7 e 8 da factualidade provada.

XLIV. Devendo, em sua substituição, constar o seguinte: “Mercê do referido em 6., a comparticipação exigida aos Autores para o fundo comum de reserva corresponde à aplicação do critério legalmente aplicável, ou seja, 8.420,00 € [orçamento global] x 10% = 842,00; 842,00 € x a permilagem das frações dos Autores [157,9200] = 132,99.”

XLV. EM SÚMULA, VENERANDOS DESEMBARGADORES, revogando a sentença recorrida nos termos supra propalados V. Excelências farão cumprir o verdadeiro propósito do direito em prol da habitual e tão almejada justiça.

Não houve resposta ao recurso.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo.

Uma vez que o objeto do recurso envolve impugnação da decisão da matéria de facto sem reapreciação de qualquer prova gravada e, no mais, reveste-se de natureza estritamente jurídica, com o acordo dos restantes membros do coletivo dispensaram-se os vistos, cumprindo apreciar e decidir de seguida.

2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da eliminação dos pontos 7 e 8 dos factos provados e da sua substituição pelo ponto de facto indicado pelo recorrente[3];

2.2 Da validade da deliberação da assembleia ordinária de condóminos do condomínio recorrente tomada em 23 de fevereiro de 2023 no que respeita às contribuições para o Fundo Comum de Reserva pelas frações autónomas dos autores.

3. Fundamentos

3.1 Da eliminação dos pontos 7 e 8 dos factos provados e da sua substituição pelo ponto de facto indicado pelo recorrente

O recorrente pugna pela eliminação dos pontos 7 e 8 dos factos provados e a sua substituição por um ponto cujo conteúdo é o já anteriormente indicado.

O recorrente alega para fundamentar esta pretensão que essa factualidade consiste em ilações retiradas pelo julgador a quo decorrentes da interpretação que defendeu ao longo da sentença, interpretação esta posta em crise com o presente recurso”.

Os pontos impugnados pelo recorrente têm o seguinte teor:

- “Mercê do referido em 6. [[4]] a comparticipação exigida dos autores para o fundo comum de reserva é superior a 10% das suas quotas no orçamento aprovado” (ponto 7 dos factos provados);

- “E a comparticipação das frações de habitação é inferior a 10% das quotas que lhe correspondem no orçamento aprovado” (ponto 8 dos factos provados).

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do disposto no nº 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais factos que foram decisivos para a sua convicção.

A tarefa da dilucidação do que constitui matéria de facto da que constitui matéria de direito e ou conclusiva nem sempre é fácil e, desde logo, porque, a identificação do denominado facto implica um prévio juízo jurídico de pertinência ou relevância da matéria a selecionar e, depois, porque o acesso ao denominado facto é sempre mediado pela linguagem mais ou menos precisa e tendencialmente descritiva.

Assim, constituem objeto da instrução os factos[5], incluindo-se nestes as ocorrências da vida real exterior e passíveis de perceção, as ocorrências da vida interna das pessoas, como sejam as intenções, os conhecimentos, as dores, as alegrias, etc…, as situações virtuais, seja no passado, seja no futuro, como sucede, por exemplo, na determinação da vontade conjetural em caso de redução ou conversão do negócio jurídico e, finalmente, os juízos periciais de facto, isto é, as apreciações de certos factos efetuadas por pessoas dotadas de conhecimentos científicos e com base nesses conhecimentos[6].

Dos factos ou enunciados de facto deve distinguir-se toda aquela operação que não consiste na perceção de uma ocorrência da vida real, trate-se de um facto externo ou interno[7], mas antes constitui um juízo acerca de certa realidade factual[8]. Dentro desta matéria conclusiva, devem distinguir-se os juízos de facto periciais[9], dos juízos de facto comuns passíveis de serem emitidos por qualquer pessoa com base nos seus conhecimentos[10].

Esta distinção justifica-se, em nosso entender, porque pode ser objeto de prova pericial a apreciação de factos[11], quando para tanto sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuam, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial (artigo 388º do Código Civil).

No caso dos autos, a matéria vertida nos pontos 7 e 8 dos factos provados é uma mera conclusão, correta sublinhe-se, que decorre da análise do que se acha contido no ponto 6 dos mesmos factos e da aplicação das regras da aritmética.

Trata-se de matéria conclusiva que não deve ser vertida nos fundamentos de facto, tanto mais que a aritmética não depende de prova[12], mas sim da aplicação das regras dessa ciência.

Assentes por via probatória as parcelas aritmeticamente relevantes, as conclusões a extrair com base na aritmética não têm o seu lugar em sede de fundamentos de facto, mas antes em sede de análise crítica e valoração da factualidade provada.

Deste modo, é fundada a pretensão do recorrente de que os pontos 7 e 8 dos factos provados sejam removidos da factualidade provada, rectius dos fundamentos de facto na medida em que não devem constar nem da factualidade provada, nem da factualidade não provada.

Significa isto que deve ser aditada à factualidade provada o ponto indicado pelo recorrente?

A nossa resposta é negativa por duas razões.

Em primeiro lugar, constitui matéria de direito a afirmação de que a comparticipação exigida aos autores para o Fundo Comum de Reserva corresponde à aplicação do critério legalmente aplicável, aliás, trata-se da magna questão a resolver nestes autos e, obviamente, com a aplicação das regras de direito pertinentes aos factos provados e não com base em prova testemunhal ou de outra natureza.

Em segundo lugar, como já antes se referiu quando se apreciou a correção da inclusão dos pontos 7 e 8 nos fundamentos de facto, as operações aritméticas não constituem matéria de prova, apenas relevando para este efeito as concretas parcelas pertinentes para essas operações, dados esses que constam do ponto 6 dos factos provados.

Assim, face ao exposto, esta questão recursória procede parcialmente, devendo excluir-se dos fundamentos de facto os pontos 7 e 8, indeferindo-se a inclusão do ponto proposto pelo recorrente pelas razões antes enunciadas.

3.2 Fundamentos de facto exarados na decisão recorrida que não se mostram impugnados, não se divisando qualquer razão legal para a sua alteração oficiosa

3.2.1 Factos provados

3.2.1.1

Mediante a apresentação n.º 2608 de 20/06/2012, encontra-se inscrita a favor do autor, casado com a autora sob o regime de bens da comunhão de adquiridos, a propriedade das frações autónomas, destinadas a comércio e sitas no rés do chão, designadas pelas letras J, K e L do prédio submetido ao regime da propriedade horizontal sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...56/20050422.

3.2.1.2

Às frações supra, correspondem as seguintes permilagens:

- Fração “J” - 85,37 em 1000 do valor total do edifício;

- Fração “K” - 43,17 em 1000 do valor total do edifício;

- Fração “L” - 29,38 em 1000 do valor total do edifício.

3.2.1.3

O condomínio do edifício identificado em 1. [3.2.1.1] é administrado pela A..., Lda.

3.2.1.4

No dia 23 de fevereiro de 2023, pelas 19:30 horas, reuniram em Assembleia-Geral Ordinária, em segunda convocatória, os condóminos do edifício identificado em 1 [3.2.1.1], com a seguinte Ordem de Trabalhos:

PONTO UM – Votação das contas do ano de 2022;

PONTO DOIS – Eleição de administração para o ano 2023;

PONTO TRÊS – Votação do orçamento de gestão ordinária para o ano de 2023;

PONTO QUATRO (…)

3.2.1.5

Na assembleia supra estiveram e/ou representados condóminos cujas assinaturas totalizam 613,91 em 1000 do valor total do edifício.

3.2.1.6

No ponto três da referida assembleia geral de condóminos foi aprovado por maioria dos condóminos presentes e/ou representados, com o voto contra do autor, o seguinte orçamento de gestão ordinária para o ano/exercício de 2023:

ExercícioPrestação
Fração%OrçamentoFCRSeguroTotal4 x Orç.4 x FCR1 x Seg.Total
Estabelecimentos
J – Loja R/c Norte Fase 185,3700
239,08
71,90263,68574,6659,7717,98263,68341,43
K – R/c Poe/Norte Fase 143,1700
120,87
35,35133,34290,5630,229,09133,34172,65
L – R/c Norte Fase 229,3800
82,27
24,7490,75197,7620,576,1990,75117,51
Total da Zona157,9200
442,22
132,99487,771.062,98110,5633,26487,77631,59
Garagens
A – Garagem nº 354,4800
17,07
3,7713,8434,684,270,9413,8419,05
B – Garagem nº 344,4800
17,07
3,7713,8434,684,270,9413,8419,05
C – Garagem nº 325,2400
19,96
4,4116,1840,554,991,1016,1822,27
D – Garagem nº 315,1100
19,47
4,3015,7839,554,871,0815,7821,73
E – Garagem nº 225,4500
20,76
4,590,0025,355,191,150,006,34
F – Garagem nº 215,4500
20,76
4,5916,8342,185,191,1516,8323,17
G – Garagem nº 176,9500
26,47
5,8521,4753,796,621,4621,4729,55
H – Garagem nº 165,0100
19,08
4,2215,4738,774,771,0615,4721,30
I – Garagem nº 76,9700
26,55
5,870,0032,426,641,470,008,11
Total da zona49,1400
187,19
41,37113,41341,9746,8110,35113,41170,57
Habitações Ent. ...4 (2ª Fase)
M – R/c Poent. Fase 217,9000
191,14
15,0755,29261,5047,793,7755,29106,85
N – R/c Nasc. Fase 221,5500
218,47
18,150,00236,6254,624,540,0059,16
R – 1º andar Norte Fase 239,2400
350,90
33,04121,20505,1487,738,26121,20217,19
S – 1º andar Nas Fase 225,8700
250,80
21,7879,91352,4962,705,4579,91148,06
T- 1º andar Poe. Fase 222,5700
226,10
19,0069,71314,8156,534,7569,71130,99
U – 1º andar Sul Fase 236,7500
332,28
30,940,00363,2283,077,740,0090,81
AA – 2º andar Norte Fase 235,6000
323,66
29,98109,96463,6080,927,50109,96198,38
AB – 2º andar Nasc Fase 220,2900
209,05
17,0862,67288,8052,264,2762,67119,20
AC – 2º andar Poe. Fase 228,6800
271,85
24,150,00296,0067,966,040,0074,00
AD – 2º andar Sul Fase 236,4900
330,32
30,72112,71473,7582,587,68112,71202,97
AH – 3º andar Norte Fase 239,6600
354,04
33,39122,50509,9388,518,35122,50219,36
AI – 3º andar Nasc. Fase 220,2900
209,05
17,0862,67288,8052,264,2762,67119,20
AJ – 3º andar Poe. Fase 228,4100
269,81
23,9287,75381,4867,455,9887,75161,18
AK – 3º andar Sul Fase 236,6500
331,52
30,860,00362,3882,887,720,0090,60
Total da zona409,9500
3868,95
345,16884,375098,52967,2686,32884,371937,95
Habitações Ent. 78 (1ª Fase)
O – 1º andar Norte Fase 157,4300
556,97
48,360,00605,33139,2412,090,00151,33
P – 1º andar Poe/Nort. Fase 129,4900
329,23
24,8391,0946,15 [aliás 445,15]82,316,2191,09179,61
Q –1º andar Sul Fase 141,0000
423,05
34,52126,64584,21105,768,63126,64241,03
V – 2º andar Norte Fase 159,5800
574,58
50,170,00624,75143,6512,540,00156,19
X – 2º andar Poe/Nort. Fase 129,4900
329,23
24,8391,09445,1582,316,2191,09179,61
Z – 2º andar Sul Fase 138,6600
403,99
32,55119,41555,95101,008,14119,41228,55
AE – 3º andar Norte Fase 156,1200 546,2947,250,00593,54136,5711,810,00148,38
AF – 3º and.Poe./Nort. Fase 129,4400 328,8424,7990,93444,5682,216,2090,93179,34
AG – 3ªº andar Norte Fase 141,7800 429,4235,180,00464,60107,368,800,00116,16
Total da Zona382,9900
3.921,60
322,48519,164.763,24980,4180,63519,161.580,20
Total1.000,0000
8.420,00
842,002.004,7111.266,712.105,04210,562.004,714.320,31

3.2.2 Factos não provados

Inexistem.

4. Fundamentos de direito

Da validade da deliberação da assembleia ordinária de condóminos do condomínio recorrente tomada em 23 de fevereiro de 2023 no que respeita às contribuições para o Fundo Comum de Reserva pelas frações autónomas dos autores

O recorrente pretende a revogação da decisão recorrida porque, na sua perspetiva, a deliberação anulada não padece de qualquer ilegalidade.

Para tanto e em síntese o recorrente alega que, atenta a finalidade do Fundo Comum de Reserva de prover à constituição de um capital para custear as despesas de conservação do edifício ou conjunto de edifícios, a determinação do montante devido por cada um dos condóminos deve fazer-se de acordo com o critério geral constante do nº 1 do artigo 1424º do Código Civil, pois não se mostra afastada a sua aplicação pela previsão do nº 2 do artigo 4º do decreto-lei nº 268/94 de 25 de outubro.

Na decisão recorrida sustentou-se a anulabilidade da deliberação em apreço com base, em síntese, nas seguintes razões:

- a letra do nº 2 do artigo 4º do decreto-lei nº 268/94 de 25 de outubro;

- como cada condómino não usa e frui das partes comuns na mesma medida, o valor da sua quota não é calculado inexoravelmente sobre a globalidade do orçamento aprovado, mas antes sobre a parte do mesmo correspondente às despesas relativas às partes comuns de que beneficia;

- porque cada condómino não usa e frui das partes comuns em partes iguais é que a contribuição de cada condómino para o Fundo Comum de Reserva deve ser calculada sobre a sua quota no orçamento aprovado – é que esta, ao refletir o benefício que cada condómino retira das partes comuns, igualmente refletirá em que medida é provável que cada condómino venha a ter de comparticipar nas obras a realizar no prédio.

- se de antemão se sabe que a maior parte das despesas em que incorre o condomínio dizem respeito a partes comuns por cujas despesas determinados condóminos não são responsáveis, não fará sentido impor-lhes uma contribuição correspondente à sua permilagem, mas antes uma que incida sobre a sua quota.

Além destas razões, a decisão recorrida abona-se com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de setembro de 2020[13] e o acórdão deste Tribunal da Relação de 30 de maio de 2023[14], ambos acessíveis na base de dados do IGFEJ.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 4º do decreto-lei nº 268/94 de 25 de outubro, “[é] obrigatória a constituição, em cada condomínio, de um fundo comum de reserva para custear as despesas de conservação do edifício ou conjunto de edifícios.”

Salvo melhor opinião, esta previsão visa a constituição de um capital em cada condomínio a fim de, chegada a hora própria, existir capital suficiente ou algum capital para custear as despesas necessárias com a conservação do edifício ou do conjunto de edifícios, já que um condomínio pode abarcar um conjunto de edifícios (veja-se o artigo 1438º-A do Código Civil).

A nosso ver, não resulta desta previsão legal que o legislador tenha em vista apenas as despesas com obras de conservação extraordinária[15], ou seja, todas as que não sejam legalmente impostas periodicamente (vejam-se o artigo 9º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas[16], aprovado pelo decreto-lei nº 38 382 de 07 de agosto de 1951 e o artigo 89º, nº 1, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação[17], aprovado pelo decreto-lei nº 555/99 de 16 de dezembro)[18]. De facto, por força do disposto na alínea f) do artigo 2º do já citado do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, as obras de conservação são “as destinadas a manter uma edificação nas condições existentes à data da sua construção, reconstrução, ampliação ou alteração, designadamente as obras de restauro, reparação ou limpeza”.

Nos termos do nº 2 do artigo 4º do decreto-lei nº 268/94 de 25 de outubro, “[c]ada condómino contribui para esse fundo com uma quantia correspondente a, pelo menos, 10% da sua quota-parte nas restantes despesas do condomínio.”

Estabelece-se neste normativo um montante mínimo com que cada condómino deve contribuir para o Fundo Comum de Reserva e que corresponde a 10% da sua quota-parte nas restantes despesas do condomínio. Porém, não se estabelece qualquer outro limite à contribuição para o Fundo Comum de Reserva.

A questão que se coloca é a de saber se a contribuição para o Fundo Comum de Reserva é sempre feita com referência àquela que cada condómino suporta pelas restantes despesas do condomínio, como sustentam os autores ou, ao invés, como pugna o réu, se cada condómino suporta a permilagem que corresponde à sua fração calculada sobre 10% do total das despesas do condomínio[19].

Que dizer?

Antes de mais, rememoremos as regras fundamentais que se devem seguir na interpretação de um texto legal[20].

O intérprete da lei não deve limitar-se à letra da lei, devendo antes reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos[21], tendo em atenção a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as exigências específicas do tempo em que é aplicada (artigo 9º, nº 1 do Código Civil)

Porém, o intérprete não poderá relevar o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, mesmo que deficientemente veiculado (artigo 9º, nº 2 do Código Civil).

Finalmente, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador estabeleceu as soluções mais adequadas e que soube exprimir o seu pensamento de forma certeira (artigo 9º, nº 3, do Código Civil).

No caso em análise, a letra do nº 2 do artigo 4º do decreto-lei nº 269/94 de 25 de outubro, ao aludir a um valor por referência à quota-parte de cada condómino nas restantes despesas do condomínio, no mínimo de 10%, conforta a interpretação sufragada pelo tribunal recorrido.

De facto, se acaso o legislador pretendesse que o Fundo Comum de Reserva se constituísse de acordo com a permilagem de cada fração sobre 10% de todas as contribuições deles para as despesas do condomínio ter-se-ia exprimido de modo diverso e, nomeadamente, teria aludido à permilagem de cada fração para obter a concreta contribuição de cada condómino para o Fundo Comum de Reserva.

No preâmbulo do decreto-lei nº 269/94 de 25 de outubro que criou as contas poupança-condomínio escreveu-se que com esse instrumento se queria “estimular os condóminos na mobilização dos recursos necessários à conservação ou reparação extraordinária de imóveis em regime de propriedade horizontal” e que, para tanto, importava “criar mecanismos financeiros que possam prevenir a degradação do tecido urbano, através da constituição de um fundo de reserva para fazer face a obras nas partes comuns dos prédios.”

Porém, nem todos os custos das obras nas partes comuns se repartem de acordo com a permilagem de cada fração, como previsto no nº 1 do artigo 1424º do Código Civil, pois que as despesas relativas às partes comuns que sirvam exclusivamente alguns dos condóminos ficam a cargo dos que delas se servem (artigo 1424º, nº 3 do Código Civil), tal como as despesas dos ascensores ficam a cargo dos condóminos cujas frações possam ser por eles servidas (artigo 1424º, nº 4, do Código Civil).

Se acaso o Fundo Comum de Reserva apenas se destinasse a ser utilizado para pagar os custos de obras de conservação por que todos os condóminos respondessem nos termos previstos no nº 1 do artigo 1424º do Código Civil, seria compreensível o critério usado pelo réu para determinação da contribuição de cada condómino para o Fundo Comum de Reserva e isto desde que o valor base sobre o qual incidiria a permilagem de cada fração respeitasse apenas ao custo previsível de obras de conservação em partes comuns da responsabilidade de todos os condóminos.

Contudo, não é assim pois são também obras de conservação as realizadas em partes comuns que apenas sirvam alguns dos condóminos e, nessa eventualidade, como já vimos, suportam essas despesas os condóminos que delas se servem.

Neste contexto, percebe-se que o contributo de cada condómino para o Fundo Comum de Reserva se afira por referência às concretas contribuições para o condomínio que cada um suporta, sendo as responsabilidades de cada um deles acertadas posteriormente em função das concretas obras de conservação que se venham a realizar com recurso ao Fundo Comum de Reserva.

Conclui-se assim que a decisão recorrida não é merecedora de qualquer censura e que o recurso improcede, com custas a cargo do recorrente por ter ficado vencido, pois que a parcial procedência da pretensão da decisão da matéria de facto se revelou inócua para a sorte do recurso (artigo 527º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil).

5. Dispositivo

Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam, não obstante a parcial procedência da impugnação da decisão da matéria de facto, em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Condomínio do Edifício Urbanização ... e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida proferida em 22 de maio de 2024.

Custas a cargo do recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.


***



O presente acórdão compõe-se de dezoito páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 28/4/2025

Carlos Gil

José Nuno Duarte

Jorge Martins Ribeiro

__________________________________
[1] No formulário da petição inicial são identificados como autores AA e BB. Ora, por efeito do disposto no nº 2 do artigo 7º da Portaria nº 280/2013 de 26 de agosto, em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos.
[2] Notificado às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 23 de maio de 2024.
[3] Este ponto de facto indicado pelo recorrente tem o seguinte teor: “Mercê do referido em 6., a comparticipação exigida aos Autores para o fundo comum de reserva corresponde à aplicação do critério legalmente aplicável, ou seja, 8.420,00 € [orçamento global] x 10% = 842,00; 842,00 € x a permilagem das frações dos Autores [157,9200] = 132,99.
[4] O ponto 6 dos factos provados refere-se à aprovação por maioria dos condóminos presentes e/ou representados, com o voto contra do autor, do ponto três da referida assembleia geral de condóminos do orçamento de gestão ordinária para o ano/exercício de 2023, orçamento que diferencia em termos de custos quatro grupos distintos de frações: os estabelecimentos comerciais, as garagens, as habitações com entrada pelo nº ...4 e as habitações com entrada pelo nº ...8.
[5] Ou para os mais puristas, enunciados de facto. É evidente que dizer que se prova um facto é uma expressão redutora e simplificadora do que efetivamente sucede, pois que nunca se tem acesso direto ao real, muito menos com palavras, salvo se estas forem o próprio objeto probando. O acesso ao real é sempre mediado, seja pelas palavras, seja pelos próprios órgãos de perceção. Sobre esta problemática leia-se La Prueba, Marcial Pons 2008, Michele Taruffo, páginas 19 e 20, nº 5.
[6] Michele Taruffo, in Simplemente la verdad, El juez y la construcción de los hechos, Marcial Pons 2010, páginas 53 a 56 [existe tradução portuguesa desta obra de 2012, encontrando-se a passagem citada nas páginas 59 a 62], reduz os factos aos históricos e aos psicológicos, afirmando que os enunciados de facto que os veiculam são apofânticos, no sentido de que podem ser verdadeiros ou falsos, não aludindo aos denominados factos hipotéticos, nem aos juízos periciais de facto, a que se refere, por exemplo, J.P. Remédio Marques in Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2ª edição, Coimbra Editora 2009, páginas 524 a 527.
[7] Referimo-nos aos factos psíquicos.
[8] As operações aritméticas são também matéria conclusiva, sendo matéria de facto a prova das parcelas necessárias à efetivação de tais operações. A aritmética, enquanto tal, por razões óbvias, não constitui objeto de prova, sendo constituída por regras que são do conhecimento geral e, nomeadamente, do julgador.
[9] Como exemplos destes juízos periciais de facto podem referir-se a incapacidade para o trabalho, o perigo de ruína (artigo 1226º nº 1 do Código Civil) e a graduação do quantum doloris e do dano estético.
[10] Incluir-se-ão nestes os factos hipotéticos ou conjeturais que não careçam de conhecimentos especiais para serem emitidos, como sucede relativamente à vontade hipotética ou conjetural das partes (artigos 292º, parte final, 293º, parte final e 2202º, parte final, todos do Código Civil).
[11] Não se objete contra esta afirmação que os juízos de valor não são passíveis de prova, sendo apenas fundados ou infundados, como afirma Michele Taruffo in La Prueba de los Hechos, Editorial Trotta, cuarta edición 2011, páginas 118 e 129, pois é a própria lei substantiva que inclui na matéria da instrução a apreciação de factos em sede de prova pericial (veja-se o artigo 388º do Código Civil que distingue a perceção de factos da apreciação dos factos, em ambos os casos por meio de peritos). Assim, incluindo-se estes juízos periciais de facto nos temas da prova, a instrução destinar-se-á a determinar se são fundados ou não, não sendo de excluir a inserção em tal peça de juízos periciais de facto contraditórios, destinando-se a instrução, entre outras finalidades, precisamente à determinação do juízo que se reputa fundado ou mais fundado.
[12] Anote-se que o próprio ponto 6 tal como foi dado como provado contém um erro de aritmética quando, relativamente à fração Q, na coluna do total dos custos, refere o valor de € 46,15, quando o somatório das parcelas relevantes é de € 445,15.
[13] Proferido no processo nº 19286/18.8T8LSB.L1-2.
[14] Proferido no processo nº 1499/20.4T8PVZ.P1.
[15] Embora o nº 1 do artigo 1074º do Código Civil, em sede de arrendamento urbano, continue a referir-se a obras de conservação ordinária e extraordinária não existe no atual regime do arrendamento urbano uma definição de tais obras como existia no artigo 11º do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo decreto-lei nº 321-B/90 de 15 de outubro. Este artigo, com a epígrafe “Tipos de obras” tinha a seguinte redação: “1 – Nos prédios urbanos e para efeitos do presente diploma, podem ter lugar obras de conservação ordinária, obras de conservação ordinária e obras de beneficiação. 2 – São obras de conservação ordinária: a) A reparação e limpeza geral do prédio e suas dependências; b) As obras imposta pela Administração Pública, nos termos da lei geral ou local aplicável, e que visem conferir ao prédio as características apresentadas aquando da concessão da licença de utilização; c) Em geral, as obras destinadas a manter o prédio nas condições requeridas pelo fim do contrato e existentes à data da sua celebração. 3 – São obras de conservação extraordinária as ocasionadas por defeito de construção ou por caso fortuito o de força maior e, em geral, as que, não sendo imputáveis a acções ou omissões ilícitas perpetradas pelo senhorio, ultrapassem, no ano em que se tornam necessárias, dois terços do rendimento líquido desse mesmo ano. 4 – São obras de beneficiação todas as que não estejam abrangidas nos dois números anteriores.”
[16] Este artigo tinha o seguinte teor: “As edificações existentes deverão ser reparadas e beneficiadas pelo menos uma vez em cada período de oito anos, com o fim de remediar as deficiências provenientes do seu uso normal e de as manter em boas condições de utilização, sob todos os aspectos de que trata o presente regulamento.” Este normativo foi revogado pela alínea e) do artigo 129º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.
[17] Com o seguinte conteúdo: “As edificações devem ser objeto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético.”
[18] Nos fundamentos do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de setembro de 2020, proferido no processo nº 19286/18.8T8LSB.L1-2, acessível na base de dados do IGFEJ consta, além do mais, que o saldo da conta constituída para depósito do Fundo de Reserva Comum visa exclusivamente a realização de obras de conservação extraordinária nas partes comuns do edifício. Porém, visto o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 1º do decreto-lei nº 269/94 de 25 de outubro, parece claro que o saldo dessa conta tanto pode ser utilizado para custear obras de conservação ordinária e extraordinária, podendo também ser usado para custear obras de beneficiação, desde que tenham sido determinadas pelas autoridades administrativas.
[19] Qualquer que seja a forma de cálculo adotada, o valor global que a final se obtém para o Fundo Comum de Reserva é igual, divergindo num e noutro método as concretas contribuições de cada um dos condóminos. No método dos autores, a contribuição de cada condómino é sempre proporcional às restantes despesas de condomínio que suporta, enquanto na fórmula do réu, essa proporcionalidade não existe, chegando os titulares das frações autónomas com maior permilagem a pagar para o Fundo Comum de Reserva um valor inferior a 10% das restantes despesas de condomínio que suportam. Assim, por exemplo, a fração O, com uma permilagem de 57,43, responsável pelo pagamento de despesas de condomínio no montante de € 556,97, pelo método dos autores pagará para o Fundo Comum de Reserva, no mínimo, € 55,697 (€ 556,97 x 0,1= € 55,697), enquanto que pelo método do réu paga apenas € 48,36 (€ 842,00 x 0,05743= € 48,36, arredondando por defeito). No caso da fração V, com uma permilagem de 59,58, responsável pelo pagamento de despesas de condomínio no montante de € 574,58, pelo método dos autores pagará para o Fundo Comum de Reserva, no mínimo, € 57,458 (€ 574,58 x 0,1= € 57,458), enquanto que pelo método do réu pagará apenas € 48,38 (€ 842,00 X 0,057458 = € 48,38, arredondando por excesso).
[20] Não se desconhece a discussão sobre o valor percetivo das regras legais que enunciam os passos a seguir na interpretação dos textos legais (veja-se por todos João Baptista Machado in Introdução ao Direito e ao Discurso legitimador, Almedina 1985, páginas 173 e 174), mas cremos que sempre devem ser um ponto de partida na determinação do sentido das normas, ainda que não fechado.
[21] Sobre a interpretação deste segmento do nº 1 do artigo 9º do Código Civil veja-se Estudos Sobre a Decisão Judicial, Universidade Católica Portuguesa 2024, António Agostinho Guedes, página 146, último parágrafo antes do ponto 26.