I - A afirmação pelo tribunal de que um facto se considera provado não depende da íntima convicção do julgador, mas fundamentalmente de critérios racionais que, em processo civil, se regem pelo standard de probabilidade prevalecente, isto é, num juízo de preponderância em que esse facto provado se apresente, fundadamente, como mais provável ter acontecido no que não ter acontecido.
II - Se o apelante aceita determinado facto como provado não pode pretender que seja dado como provado o facto contrário que foi considerado não provado, sob pena de o tribunal ser colocado perante uma situação em que, na procedência da impugnação, se veria como que “obrigado” a afirmar factos incompatíveis entre si.
III - Significa isto que, nessas circunstâncias, ao não impugnar factos provados contrários a factos não provados cujo juízo probatório pretende ver alterado, fica vedada ao apelante a possibilidade de impugnar estes últimos, pois somente dessa forma se pode obstaculizar a ocorrência da apontada contradição entre realidades factuais antagónicas, posto que o tribunal não pode afirmar, ao mesmo tempo, uma determinada realidade de facto e o seu contrário.
IV - Dependendo a apreciação do recurso pertinente à interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto do prévio sucesso do simultâneo recurso interposto sobre a matéria de facto fixada, sendo este último julgado improcedente, fica necessariamente prejudicado o conhecimento daquele primeiro.
V - Não devem considerar-se provadas a área e as confrontações de um prédio constantes do registo predial, por não ser atribuível à respetiva certidão força probatória plena, sendo que a presunção contemplada no artigo 7º do Código de Registo Predial não abrange esses fatores descritivos, cingindo-se apenas à existência do direito e à sua pertença às pessoas em cujo nome se encontra inscrito.
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Penafiel – Juízo Local Cível, Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Martins Ribeiro
2ª Adjunta Desª. Carla Fraga Torres
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I. RELATÓRIO
AA, BB, CC e DD intentaram a presente ação declarativa sob a forma comum contra EE e FF, pedindo que:
a) seja declarado o direito de propriedade dos Autores, como legítimos e exclusivos donos e proprietários do prédio e respetivas frações autónomas, incluindo a parcela de terreno ora em crise como parte integrante do prédio, tudo melhor identificado nos artigos 1 a 13 da petição inicial e com as áreas e os limites assinalados na planta junta sob o documento 17 com a petição inicial;
b) seja declarado o direito de propriedade dos Autores da parcela de terreno em causa nos presentes autos, como parte integrante do prédio identificado, tudo melhor identificado supra nos artigos 1 a 13 da petição inicial;
c) sejam os Réus condenados a proceder, a expensas suas, à eliminação ou recuo do muro por si erigido na parcela de terreno em causa nos presentes autos, que confronta a nascente com o prédio dos Autores, no prazo mínimo de 15 (quinze) dias, removendo todos os artefactos e outros ali colocados, repondo o estado anterior ao ilícito;
d) sejam os Réus condenados a absterem-se de toda e qualquer utilização presente ou futura da parcela de terreno em questão, não devendo ainda por qualquer meio ou forma invadir o prédio dos Autores, perturbar a posse e o direito de propriedade dos Autores sobre o mesmo;
e) os Réus se abstenham de causar quaisquer danos na propriedade dos Autores decorrentes daquela eliminação ou recuo;
f) sejam os Réus, solidariamente, condenados no pagamento aos Autores da quantia de €1.200,00 (mil e duzentos euros), a título de compensação por danos não patrimoniais.
Para substanciar tais pretensões alegam, em síntese, que são proprietários de um prédio rústico que identificam e do qual faz parte uma parcela de terreno que os Réus ilicitamente ocuparam com a construção de um muro, o que lhes causou inúmeros prejuízos de natureza não patrimonial.
Regularmente citados, os Réus contestaram tendo, para além do mais, impugnado os factos alegados pelos Autores no articulado inicial.
Deduziram ainda pedido reconvencional, no qual pedem:
a) a declaração do direito de propriedade dos Réus/Reconvintes como donos e legítimos proprietários do prédio rústico composto por terreno de cultivo, sito no lugar ..., da Freguesia ... e concelho de Penafiel, inscrito na matriz sob o n.º ... da Freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º ... – ...;
b) a condenação dos Autores/Reconvindos a reconhecerem e respeitarem o direito de propriedade dos Réus/Reconvintes sobre o prédio rústico indicado acima e a absterem-se da prática de quaisquer atos que, por qualquer forma, impeçam ou diminuam o livre exercício do direito de propriedade sobre o referido prédio rútico;
c) a condenação dos Autores/Reconvindos a reconhecerem que na confrontação a nascente do prédio rústico dos Réus/Reconvintes existe um caminho em terra batida, com a largura de 2,5 metros e numa extensão de 16 metros;
d) a condenação dos Autores/Reconvindos a absterem-se da prática de quaisquer atos que por qualquer forma impeçam ou diminuam o livre acesso e utilização do caminho pelos Réus/Reconvintes.
Alegaram, em suma, que são proprietários de um prédio com a configuração, área e limites que identificam e da qual faz parte a parcela de terreno que ocuparam com a construção do muro e ainda que sobre a parcela de terreno que os Autores se arrogam proprietários existe um caminho de natureza pública que confronta a nascente com o seu prédio.
Os Autores apresentaram réplica, impugnando os factos alegados pelos Réus em sede de reconvenção.
Foi proferido despacho saneador em termos tabelares, definiu-se o objeto do litígio e fixaram-se os temas da prova.
Realizou-se audiência final com observância do formalismo legal, vindo a ser proferida sentença na qual se decidiu: «(i) julgar a ação parcialmente procedente, por provada, e em consequência declarar o direito de propriedade dos Autores sobre as frações autónomas identificadas nos pontos 1 a 8 dos factos provados, absolvendo os Réus quanto ao demais peticionado; (ii) julgar a reconvenção parcialmente procedente, por provada, e em consequência declarar o direito de propriedade dos Réus Reconvintes sobre o prédio identificado em 16 dos factos provados, condenando os Autores Reconvindos a absterem-se da prática de quaisquer atos que impeçam ou diminuam o livre exercício do seu direito de propriedade sobre o identificado prédio, absolvendo os Autores Reconvindos quanto ao demais peticionado».
Não se conformando com o assim decidido, vieram os autores interpor o presente recurso, admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentaram alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
1. Os Recorrentes não se conformam com a decisão da sentença recorrida, que incorreu em erro na apreciação da matéria de facto e na aplicação da matéria de Direito.
2. A presente ação visa o reconhecimento do direito de propriedade dos Autores sobre o seu prédio, incluindo a parcela de terreno em crise, ocupada ilicitamente pelos Réus.
3. Os Réus apresentaram uma versão inócua, quanto à natureza da parcela de terreno em causa o que, por si só, merecia censura por parte do Tribunal a quo, que pareceu aceitar tal exercício de “exploração de narrativa” dos mesmos.
4. Não se conformam os Apelantes com a fixação da matéria de facto dada como provada e não provada que entendem ser manifestamente contraditória, por fixação conclusiva e por não valoração ou incorreta valoração de toda a prova junta aos autos.
5. Entendem os Apelantes que a matéria de Direito, resultou em erro de fundamentação, não se encontrando adequadamente aplicada e fundamentada, designadamente, quanto à análise crítica da prova produzida, especificação dos fundamentos que foram decisivos para o julgamento de factos essenciais e instrumentais, como provados ou não provados, que se mostram manifestamente insuficientes, e desconsideração da prova documental e por confissão, o que constitui violação do disposto no artigo 607.º, n.º 4 C.P.C.
6. É, assim, entendimento dos Apelantes que o Tribunal a quo:
a) Peca na sua decisão pelo erro promovido pela superficialidade ou pelo desassossego de usar adequadamente o ius decidendi;
b) Não considerou matéria como provada, que o deveria ser;
c) Não subsumiu de forma correta e adequada os factos e prova documental e testemunhal trazidos à sua apreciação, e que teriam de ser dados como provados, ao direito aplicável;
d) Credibilizou declarações de parte de ambos os Réus que, para além da manifesta parcialidade e de duvidosa credibilidade, que não poderiam passar despercebidas à Mm.ª Juiz a quo;
e) Desconsiderou prova documental, em detrimento de prova testemunhal, de duvidosa credibilidade, e que salvo o devido respeito pela livre apreciação da prova, não podia ser infirmada da forma que o foi;
f) Julgou como provada matéria de facto em total ausência de produção de prova e até em total contradição com a prova produzida.
7. Com base na prova documental e testemunhal apresentada, e face à desconformidade das conclusões e motivações do Tribunal a quo, devem ser apreciadas por essa Relação as seguintes questões:
- Nulidade da sentença por omissão de pronúncia e contradição entre a fundamentação e a decisão artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), primeira parte, do C.P.C.
- Modificação da matéria de facto considerada provada e não provada, por erro notório na apreciação da prova artigo 640.º do C.P.C.
- Errada aplicação do Direito - por violação das seguintes normas: artigo 7.º do Código do Registo Predial; artigos 1263.º, alíneas a) e b), 1267.º, n.º 1, 1287.º, 1296.º e 1316.º do Código Civil.
8. A sentença ora recorrida deixou de se pronunciar sobre a questão essencial dos autos: a titularidade da parcela de terreno.
9. Como resulta da sentença recorrida, o Tribunal a quo refere expressamente que uma das questões a decidir é “saber a que prédio pertence a parcela identificada nos autos (…)”, reforçando e afirmando que “Nos presentes autos, a verdadeira controvérsia situa-se na parcela de terreno identificada em 25 dos factos provados.”.
10. Ora, a sentença recorrida omitiu o conhecimento de questões que lhe competia conhecer, o que salvo o devido respeito, gera nulidade conforme dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do C.P.C.
11. Da prova produzida, não resulta qualquer razão de facto ou de direito que permitisse aos ali Réus manter a situação por si ardilosamente criada em junho de 2021, impedindo, dessa forma, os Apelantes de usar e fruir plenamente da sua propriedade, pelo que, foi, pois, manifestamente violado pelo Tribunal o artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do C.P.C.
12. Tendo decidido como decidiu, sem se pronunciar concretamente sobre a verdadeira controvérsia - a parcela de terreno -, o Tribunal a quo vem tacitamente legalizar uma ação ilícita dos ali Réus, ao permitir que os mesmos mantenham um muro numa parcela de terreno que não lhes pertence, muito embora não se tenha pronunciado sobre tal questão de forma expressa e explícita, o que desde logo, também, constitui nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do C.P.C.
13. Resultou provado que os Réus não têm a propriedade de tal parcela de terreno, e ficou provado também que a mesma não tem natureza pública.
14. Os Apelantes pretendem a modificação da matéria de facto e a retificação da decisão, com o devido reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno em causa, e a consequente condenação dos Réus na totalidade dos pedidos.
15. Ainda que não se admita a nulidade da sentença, persiste o erro notório na apreciação da prova e a necessidade de modificação da matéria de facto considerada provada e não provada, justificando a revisão da decisão proferida, nos termos do artigo 640.º do C.P.C.
16. Os Apelantes pretendem impugnar a decisão relativa à parte da matéria de facto, concretamente no que se refere ao ponto 37. constante dos factos dados como provados e ínsito na sentença de que se recorre, uma vez que consideram que esta matéria foi incorretamente julgada pelo Tribunal.
17. Os Apelantes pretendem impugnar também a decisão relativa à parte da matéria de facto, concretamente no que se refere aos pontos b), c), g), h), i), k), l), q), r) e s) dos factos tidos como não provados ínsitos na sentença de que se recorre, e que deveriam ter sido dados como provados, pelo que, ao não o fazer, o Tribunal julgou, igualmente, incorretamente aquela matéria de facto.
18. Consideram os Apelantes que foram obtidos elementos suficientes para que o Tribunal a quo decidisse de forma diversa relativamente aos sobreditos factos.
19. Com o devido respeito, in casu, o Tribunal a quo priorizou, essencialmente, depoimentos de testemunhas arroladas pelos Réus, ignorando a demais prova produzida.
20. Relativamente aos factos descritos como provados, mormente quanto ao ponto 37. da sentença de que ora se recorre, este encontra-se indevidamente fundamentado e incorretamente dado como provado, uma vez que a fundamentação deste ponto não encontra suporte na prova produzida, já que a prova testemunhal contraria a conclusão do Tribunal a quo.
21. O mencionado ponto 37. foi, erradamente, dado como provado pelo Tribunal a quo, considerando, nomeadamente que, das declarações de parte do Autor AA, que foram corroboradas pelo depoimento da testemunha GG, resulta o contrário.
22. Entendem os Apelantes que há prova testemunhal que foi desconsiderada pelo Tribunal a quo, levando a conclusões contrárias às evidências, pelo que se impõe alterar a decisão relativamente ao facto 37. dado como provado, devendo o mesmo ser considerado não provado.
23. Exigem também revisão por essa Relação, uma vez deveria ter sido formada uma convicção diversa pelo Tribunal a quo, os seguintes factos descritos como não provados:
- “b) O prédio identificado em 10 sempre apresentou a configuração, áreas e limites identificados na planta junta com a pi sob o documento n.º 17”;
- “c) O prédio identificado em 10 sempre esteve demarcado em toda a sua extensão incluindo no lado que confronta com o prédio identificado em 16 com marcos de pedra antiga”;
- “g) O prédio identificado em 16 tem acesso pela Rua ....”;
- “h) Os Autores sempre utilizaram, desde tempos imemoriais, para acederem ao prédio identificado em 10 a parcela de terreno referida em e) junto ao tanque ali existente”;
- “i) Os Réus sempre souberam que a parcela de terreno referida em e) não lhes pertence.”;
- “k) Os Réus deixaram depositados no prédio identificado em 10 restos de pedras que utilizaram para a construção do muro.”;
- “l) Os Autores sentem-se com preocupação, angústia e desconforto com o comportamento dos Réus;”
- “q) A parcela de terreno onde se encontra implantado o tanque faz parte do prédio identificado em 10;”
- “r) Os Autores e seus ante possuidores utilizam a área do prédio descrito em 10, no qual se inclui a parcela de terreno identificada em 25, colhendo os seus frutos, cortando mato e lenha, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja, há mais de 10, 20 e 30 anos.”
24. Desde logo, no que respeita ao facto dado como não provado no ponto b), as testemunhas credíveis - HH e II - corroboraram as declarações dos Autores, confirmando que a propriedade destes sempre apresentou a configuração, áreas e limites identificados na planta junta aos autos, sob documento n.º 17, impondo-se a alteração deste facto, dando-o como provado.
25. No que diz respeito ao facto dado como não provado no ponto c), a Ré FF, em declarações de parte, confessou a propriedade dos Autores, bem como a sua delimitação, corroborado por testemunhas - II - que confirmaram a demarcação desse prédio, pelo que se impõe a alteração deste facto, dando-o como provado.
26. Quanto ao facto dado como não provado no ponto g): ambos os Réus confessaram e admitiram o acesso alternativo, à sua propriedade, pelo lado da rua pública, ou seja, pelo lado da Rua ..., facto corroborado pela testemunha GG, pela inspeção judicial ao local e prova documental (fotografias) junta aos autos.
27. Entendem, por isso, os Apelantes que tais elementos contrariam a decisão do Tribunal a quo, pelo que se impõe alterar a decisão relativamente a este facto, dando-o como provado.
28. Relativamente ao facto dado como não provado no ponto h), também não concordam os Apelantes com o decidido pelo Tribunal a quo, uma vez que resulta, nomeadamente, do depoimento da Ré FF que os Autores utilizavam aquela parcela de terreno, junto ao tanque, para acederem ao seu prédio, pelo que também este ponto deve ser alterado, dando-o como provado.
29. O facto dado como não provado no ponto i), também terá necessariamente de ser alterado, devendo ser dado como provado, considerando que resulta das declarações dos Réus a consciência de que a parcela de terreno não lhes pertence, confirmada pela posição assumida pelos mesmos ao longo dos presentes autos, no que diz respeito à própria natureza dessa parcela de terreno, o que justifica a alteração deste facto.
30. Salvo o devido respeito, os Réus tentaram fugir à verdade, omitindo deliberadamente o seu conhecimento e perceção dos factos, pois estavam conscientes de que a realidade é de que sempre tiveram conhecimento de que aquela parcela de terreno não lhes pertence, nem nunca pertenceu.
31. Sendo notórias as incongruências e contradições dos Réus ao longo dos seus depoimentos, deveria o Tribunal a quo ter decidido em sentido contrário ao que decidiu, devendo ser dado como provado o sobredito facto i).
32. Relativamente ao facto dado como não provado no ponto l), os Autores AA e BB foram consistentes, credíveis e claros ao afirmarem o impacto emocional que a situação acarretou para os mesmos, tratando-se de uma herança de família, e tal credibilidade deveria ter sido reconhecida pelo Tribunal a quo, pelo que deverá ser alterado tal facto, dando-o como provado.
33. Quanto ao facto dado como não provado no ponto k), o próprio Réu EE confirmou ter deixado as pedras do lado do caminho, ou seja, fora da sua propriedade, o que constitui confissão, pelo que também este facto deverá ser alterado, dando-o como provado.
34. O facto dado como não provado no ponto q), os depoimentos das testemunhas JJ e GG, demonstram o contrário do decidido pelo Tribunal a quo, isto é, que a parcela de terreno onde se encontra implantado o tanque, faz efetivamente parte da propriedade dos Autores.
35. Ambas as testemunhas mencionadas referem, de forma isenta e clara, que o terreno à volta do tanque não ser de domínio público, e família em questão impondo-se, assim, a alteração deste facto, dando-o como provado.
36. Relativamente ao facto dado como não provado no ponto r), ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, tal resultou provado pelas declarações de ambos os Réus, bem como dos Autores AA e BB, corroborado ainda pelos depoimentos das testemunhas HH e KK, que os Autores utilizavam a parcela de terreno há mais de 50 anos, praticando atos de posse sobre a mesma, impondo-se, assim, a alteração desta facto, devendo ser dado como provado o mesmo.
37. Ora, a análise da matéria de facto deve ser resultado de um percurso lógico que correlacione todos os elementos probatórios, que evidencie quais os factos que foram extraídos de determinado meio de prova e os respetivos raciocínios que conduziram às conclusões do Tribunal.
38. Com o devido respeito, não se podem não dar como provados determinados factos com base em determinado meio de prova, por ser credível, e, inversamente, com base nesse mesmo meio de prova, dar como não provado outro facto, resultando em inconsistências.
39. Da prova documental constante dos autos, designadamente, das fotografias e demais documentos juntos, nomeadamente plantas e levantamentos topográficos do prédio dos Apelantes e dos Réus, e cotejados os seus depoimentos, facilmente se conclui que factos constantes dos pontos b), c) g), k) e q) dos factos não provados, foram incorretamente julgados.
40. Os Apelantes consideram que a decisão sobre os Factos dados como Provados e Não Provados, carece de um exame crítico adequado, não tendo sido realizado qualquer nexo de imputação entre os meios de prova e os factos que sustentam.
41. O princípio da livre apreciação da prova, salvo o devido respeito, não confere ao julgador uma margem de subjetividade ilimitada, pelo que atendendo à prova produzida, bem como aos documentos supra mencionados, e conforme supra exposto, deverão os factos considerados nos pontos b), c), g), h), i), k), l), q), r) e s) dos factos não provados, ser alterados, atribuindo-lhe resposta positiva.
42. Pelo que, entende que a decisão da matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo terá necessariamente de ser alterada por essa Relação, considerando que existem elementos probatórios que impunham uma decisão diferente da que foi proferida, conforme o disposto no artigo 662.º, n.º 1, 2, e 3 do C.P.C., proferindo decisão que decrete a procedência da totalidade dos pedidos formulados pelos Autores.
43. Sem conceder, ainda que não se considere qualquer vício, que não existiu qualquer erro na apreciação da prova e que a matéria dada como provada e como não provada se encontra bem apreciada, subsiste a errada aplicação do Direito e erro na determinação da norma aplicável por parte do Tribunal a quo, assim como por violação das seguintes normas:
- artigo 7.º do Código do Registo Predial;
- artigos 1263.º, alíneas a) e b), 1267.º, n.º 1, 1287.º, 1296.º e 1316.º do Código Civil.
44. A questão fulcral que motivou os presentes autos é, somente, o direito de propriedade dos Apelantes sobre a concreta parcela de terreno identificada nos autos, constante no ponto 25 da matéria de facto provada, e que é efetivamente parte integrante do prédio dos Autores.
45. Não podem restar dúvidas, e perante todos os elementos constantes dos autos, resulta a aquisição do direito de propriedade do referido prédio dos Autores, incluindo o registo predial a favor destes, o que, em conformidade com o disposto no artigo 7.º do Código de Registo Predial, faz presumir a titularidade desse direito por parte dos Autores que, como tal e por força dessa presunção, estavam dispensados de fazer essa prova.
46. O registo predial faz presumir não só que o direito existe, mas também que pertence à pessoa em nome de quem se achar inscrito.
47. Nesse sentido tem-se pronunciado a jurisprudência, nomeadamente no Acórdão do STJ, de 15.09.2022, proferido no Proc. n.º 113/14.1T8SEI.C1.S1 que refere « (…) VIII. Não tendo sido ilidida a presunção de que os autores são titulares do prédio descrito nos factos provados e assente que este tem a área e a configuração igualmente provadas, tem de ser repristinada a condenação dos réus a reconhecer que o prédio tem a configuração descrita na sentença pertence à herança que está em causa.».
48. Por outro lado, os Apelantes invocaram factos em função dos quais era possível estabelecer o seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno, fizeram menção aos limites físicos e áreas do prédio; identificaram a concreta faixa de terreno (que consideram sua); alegaram a existência de atos de posse exercidos sobre aquela parcela de terreno; alegaram elementos factuais que permitiam concluir pela existência de posse, que fossem até suscetíveis de determinar a aquisição do respetivo direito de propriedade por usucapião.
49. Pelo que, com o devido respeito, conclui-se que o Tribunal decidiu em manifesto erro de apreciação, má gestão processual e na apreciação da prova, pelo que incorreu na incorreta subsunção da factualidade às regras do Direito.
50. Ora, encontrando-se provados os concretos dados físicos do prédio, a presunção resultante do registo estender-se-á à totalidade da área que esteja incluída dentro desses limites, dispensando o respetivo titular de fazer prova da efetiva aquisição (originária) do direito de propriedade em relação a qualquer parcela ou área que esteja incluída dentro daqueles limites.
51. E, ainda no que respeita ao modo de aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, sempre se dirá que tal significa que pela posse de tal direito real de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação (cfr. artigo 1287.º do C. Civil).
52. Nesse sentido, também se tem pronunciado a jurisprudência, nomeadamente no Acórdão do STJ, de 15.02.2018, proferido no Proc. n.º 1824/15.0T8PRD.P1.S1.
53. No caso sub judice, resultou da prova produzida que os Autores e seus antepossuidores, utilizavam e praticavam atos de posse sobre a parcela de terreno em causa, muito antes do ano de 2017, ao contrário do que vem decidido pelo Tribunal a quo, sucedendo durante mais de 50 anos.
54. E verificou-se também através da mesma prova a prática reiterada por aqueles, com publicidade, há mais de 50 anos, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, comportando-se como titulares do direito real correspondente aos atos de posse, pelo que deveria o Tribunal a quo ter concluído pela verificação do animus.
55. Ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, entende-se ter decorrido o período de tempo a que alude o artigo 1290.º do C. Civil para a aquisição do direito real de propriedade sobre a parcela de terreno, considerando que o cômputo desse prazo não pode ser considerado, apenas, desde 2017, como erroneamente fez o Tribunal a quo.
56. Com o devido respeito, reitera-se uma vez mais que o Tribunal a quo, não retirou as devidas e necessárias consequências jurídicas que uma apreciação crítica, ponderada e conjugada de toda a prova documental e testemunhal, imporiam, desvalorizando até, sem qualquer razão aparente, os depoimentos de testemunhas, considerando-se apenas o ano de 2017 como altura em que existiu um único ato de posse.
57. Concluindo, não pode colher, nem podem os aqui Apelantes aceitar a fundamentação vertida na sentença de que se recorre, quanto à convicção de que não existiu demonstração da prática de atos de posse pelos Autores e/ou antepossuidores e que os mesmos não lograram demonstrar o lapso de tempo necessário à aquisição originária do direito de propriedade sobre tal parcela de terreno.
58. Pelo que, uma correta e adequada aplicação do Direito teria imposto ao Tribunal a quo uma decisão diversa daquela ora em crise, impondo-se a revogação da sentença proferida, e, por conseguinte, a sua substituição por um Acórdão que acolha as alegações acima expostas.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes, são as seguintes as questões solvendas:
. da nulidade da sentença por omissão de pronúncia e por contradição entre a fundamentação e a decisão;
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto;
. decidir em conformidade face à alteração, ou não, da materialidade objeto de impugnação, mormente dilucidar se os autores são os proprietários da parcela de terreno identificada no ponto nº 25 dos factos provados.
Nas suas alegações recursórias os apelantes advogam, desde logo, que o ato decisório sob censura enferma de vício de nulidade que reconduzem à previsão das alíneas c) e d) do nº 1 do art. 615º, concretamente por contradição entre a fundamentação e a decisão e por omissão de pronúncia.
Certo é que não identificam em que passos concretos da sentença ocorre o primeiro vício formal invocado - o que, per se, motivaria, por falta de objeto, o indeferimento de tal invocação, dado que, nessas circunstâncias, este tribunal ad quem está impedido de aferir da justeza da crítica que direcionam a essa peça processual -, limitando-se a alegar, de forma marcadamente genérica e conclusiva, que o mesmo se verificará “porque da prova produzida, não resulta qualquer razão de facto ou de direito que permitisse aos réus manter a situação por si ardilosamente criada em junho de 2021, impedindo, dessa forma, os apelantes de usar e fruir plenamente da sua propriedade” e que “ao não declarar que a parcela de terreno ora em crise, existente a nascente da propriedade dos réus, em terra batida, com uma largura de cerca de 2,5 metros e um comprimento de cerca de 16 metros, com início na Rua ... e assim devendo ser reconhecida pelos réus, não aplicou corretamente o direito aos factos assentes, enfermando a mesma de uma contradição entre a fundamentação e a decisão”.
Como quer que seja, sempre se dirá não se vislumbrar em que medida possa a referida alegação genérica ser reconduzida à previsão normativa da al. c) do nº 1 do art. 615º, nos termos da qual «[é] nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão».
Como emerge do inciso transcrito, verifica-se o vício formal nele previsto quando haja contradição lógica entre os fundamentos e a decisão, isto é, a fundamentação conduz logicamente a resultado distinto do que consta do dispositivo da decisão judicial. Dito de outro modo, a fundamentação seguiu uma determinada linha de raciocínio, apontando num dado sentido, e depois a decisão (no seu dispositivo) segue outro oposto, chegando a uma conclusão completamente diferente da apontada pela fundamentação.
A razão de ser desta causa de nulidade ancora-se primordialmente na ideia de que a sentença deve constituir um silogismo judiciário, em que a norma jurídica constitui a premissa maior, os factos a premissa menor e a decisão será a consequência lógica de tais premissas, não devendo, pois, existir qualquer contradição ou oposição entre os fundamentos e a decisão.
Portanto, o vício em questão ocorre quando se verifique contradição real entre os fundamentos e a decisão: a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.
Ora, para além de, como se referiu, os apelantes não terem identificado a concreta contradição que imputam ao ato decisório sob censura, certo é que da sua exegese resulta com meridiana clareza que o juiz a quo, nos respetivos fundamentos, considerou não se ter provado que a parcela de terreno em discussão nestes autos faça parte integrante do prédio daqueles (designadamente por não estarem reunidos os requisitos necessários para afirmar a sua aquisição pela via originária da usucapião), pelo que, na decorrência dessa argumentação, decidiu julgar improcedente o pedido de reconhecimento dessa dominialidade que haviam formulado no terminus da peça processual com que deram início à presente demanda.
Resulta, assim, do exposto inexistir qualquer contradição intrínseca entre os fundamentos e o dispositivo da sentença recorrida, sendo certo que, como tem sido salientado[2], a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão-pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se antes como erro de julgamento.
Já no que tange à alegada nulidade por omissão de pronúncia afirmam os apelantes que tal vício ocorre porquanto o tribunal a quo não se pronunciou “sobre a questão de saber a que prédio pertence a parcela de terreno identificada em 25 dos factos provados”.
Também neste ponto não lhes assiste razão. Basta, na verdade, analisar a sentença recorrida para se verificar que nela o julgador de 1ª instância tomou expressa posição acerca da mencionada questão, concluindo não ter resultado provado que a ajuizada parcela de terreno faça parte integrante do imóvel pertencente aos autores, não atendendo, de igual modo, o pedido reconvencional aduzido pelos réus no sentido de se reconhecer que essa parcela assume natureza de caminho público. É facto que os recorrentes poderão não concordar com esse sentido decisório, mas isso não constitui nulidade, podendo, quando muito, consubstanciar erro de julgamento.
Não se verificam, pois, os invocados vícios formais da sentença.
3.1. Factualidade considerada provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob o n.º ...-A e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ... a fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma habitação do tipo T2, no rés-do-chão esquerdo, sita no lugar ..., ..., Penafiel.
2. Pela ap. ... de 2019.07.25 mostra-se registada a aquisição da propriedade da fração identificada em 1 a favor de AA.
3. Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob o n.º ...-B e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ... a fração autónoma designada pela letra “B”, correspondente a uma habitação do tipo T2, no rés-do-chão direito, sita no lugar ..., ..., Penafiel.
4. Pela ap. ... de 2019.07.25 mostra-se registada a aquisição da propriedade da fração identificada em 3 a favor de BB.
5. Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob o n.º ...-C e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ... a fração autónoma designada pela letra “C”, correspondente a uma habitação tipo T2, no 1.º andar esquerdo, sita no lugar ..., ..., Penafiel.
6. Pela ap. ... de 2019.07.25 mostra-se registada a aquisição da propriedade da fração identificada em 5 a favor de CC.
7. Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob o n.º ...-D e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ... a fração autónoma designada pela letra “D”, correspondente a uma habitação tipo T2, sita no 1.º andar direito, sita no lugar ..., ..., Penafiel.
8. Pela ap. ... de 2019.07.25 mostra-se registada a aquisição da propriedade da fração identificada em 7 a favor de DD.
9. As frações identificadas em 1, 3, 5 e 7 foram adjudicadas aos Autores por partilha efetuada em 27.05.2019 das heranças abertas por óbito dos seus pais, LL, falecida em 21.1.2006 e MM, falecido em 15.11.2019.
10. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob o n.º ..., o prédio urbano, situado no lugar ..., com a área total de 2135m2, área coberta de 135m2 e descoberta de 2000m2.
11. Tal prédio encontra-se aí descrito como composto por casa de três pavimentos com quintal e a confrontar do norte e nascente com caminho público, do sul com NN e do ponte com OO.
12. Pela ap. ... de 1967.09.04 mostra-se registada a aquisição do prédio descrito em 10 e 11 por compra a favor de MM e LL.
13. Os Autores habitam e utilizam as frações identificadas em 1 a 8 há mais de 10, 20, 30 e 40 anos.
14. À vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.
15. Na convicção de que as mesmas lhes pertencem.
16. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob o n.º ... o prédio rústico situado no lugar ... aí descrito como tendo a área total e descoberta de 290m2, composto por terreno de cultivo e a confrontar do norte e nascente com caminho, sul com PP e poente com NN.
17. Pela ap. ... de 2017.01.24 mostra-se registada aquisição por compra do prédio descrito em 16 a favor de EE e FF.
18. Por escrito denominado de “título de compra e venda”, outorgado em 4.1.2017, EE e FF declararam comprar a QQ e RR, que declararam vender, o prédio descrito em 16.
19. O prédio identificado em 10 confronta com a Rua ..., tendo também acesso pela Rua ....
20. Na confrontação do prédio identificado em 16 sempre existiu um muro em pedra.
21. Os Réus deitaram abaixo o muro referido em 20 e procederam à construção de um novo muro numa extensão de cerca de 15/16 metros e colocaram rede em toda a sua extensão.
22. E procederam a uma abertura para o seu prédio junto à extremidade do referido muro que confronta com a Rua ....
23. Os Réus passaram a usar a entrada para aceder ao prédio identificado em 16 quer a pé quer de carro.
24. O prédio identificado em 16 é de cultivo e encontra-se em declive, dividido por duas hortas, a uma cota de nível inferior em relação à rua ....
25. Há 30, 40, 50 ou mais anos que existe a nascente do muro referido em 20 uma parcela de terreno em terra batida com uma largura de cerca de 2,5 metros e um comprimento de cerca de 16 metros, com início no Rua ... e um caminho que se encontra perpendicular a esta após percorridos os 16 metros.
26. Tal parcela de terreno dava acesso ao prédio identificado em 16 através de uma abertura existente no muro identificado em 20, aos prédios localizados a poente deste, a um tanque público e a uma presa de água.
27. Tal parcela de terreno separa o muro identificado em 20 e uma parcela de terreno onde se situa o referido tanque público e a presa.
28. Sendo tal parcela de terreno (a referida em 25) utilizada há mais de 30, 40 e 50 anos pelos habitantes do lugar ... para acederem ao tanque público.
29. Junto ao tanque existe um reservatório de água.
30. O leito de tal parcela de terreno encontra-se delimitada pelo muro de pedra identificado em 20 na confrontação a nascente do prédio identificado em 16.
31. Tal parcela de terreno há mais de 30 e 50 anos era utilizado para aceder aos locais identificados em 26.
32. Há mais de 30, 40 e 50 anos que no tanque público existe uma fonte de água (a fonte cimo de vila) de fornecimento gratuito de água pública.
33. Até 2012 foi através da dita parcela de terreno em terra batida que se fazia o acesso ao tanque público, como passagem exclusiva.
34. Em data não concretamente apurada a Junta de Freguesia ... e a Câmara Municipal ... realizaram obras de remodelação do dito tanque público.
35. E em 2012, a Junta de Freguesia ..., procedeu à construção de umas escadas de ligação da Rua ... ao tanque.
36. Foi a Junta de Freguesia ... que procedeu à construção do tanque público há mais de 40 anos, onde antes existia uma presa de água utilizada para lavagens e rega.
37. É a Câmara Municipal ... e a Junta de Freguesia ... que procede à limpeza e corte de vegetação nas imediações do tanque e da parcela de terreno referida em 25.
38. Em setembro de 2022 a Junta de Freguesia ... realizou obras de colocação de nova canalização das águas pluviais, limpou o tanque e cortou a vegetação.
39. No decurso do ano de 2017, MM, o pai dos autores colocou três pilares de pedra junto à confrontação a nascente do prédio descrito em 18.
40. E colocou, ainda, pedras de grandes dimensões no solo e sobrepostas por um arame, obstruindo a entrada para a parcela de terreno identificada em 25.
41. Os Réus procederam ao derrube de dois dos pilares referidos em 39.
42. E apresentaram reclamação junto da Junta de Freguesia pela obstrução referida em 39 e 40.
43. O Presidente da Junta de Freguesia ... comunicou à Câmara Municipal ... que “Depois de ouvir várias pessoas do antigo lugar ..., as mesmas referem que aquele caminho sempre existiu. Assim, solicita-se a vossa ajuda no sentido de esclarecer a caraterização do dito caminho.”
44. No dia 24.2.2022, Câmara Municipal ... comunicou ao réu marido, na qualidade de requerente, entre o mais, que “Atendendo ao pedido de informação requerido e após consulta dos registos da base de dados geográfica do Gabinete de Sistemas de Informação Geográfica é possível informar que o caminho identificado e alvo em análise, sito na localidade de ... não integra o processo de toponímia aprovado para a Freguesia ...; a área do terreno em causa não é um caminho público, pela a situação exposta pelo requerente, sendo do foro privado, deverá ser tratada pela instância própria.”
O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
a) O prédio descrito em 10 confronta a poente com o prédio descrito em 16;
b) O prédio identificado em 10 sempre apresentou a configuração, áreas e limites identificados na planta junta com a pi sob o documento n.º 17;
c) O prédio identificado em 10 sempre esteve demarcado em toda a sua extensão incluindo no lado que confronta com o prédio identificado em 16 com marcos de pedra antiga;
d) O prédio identificado em 10 no lado que confronta com o prédio identificado em 16 desde sempre foi delimitado e demarcado por um muro divisório construído em pedra que se iniciava na Rua ... e vinha alinhado numa extensão de cerca de 16 metros de comprimento;
e) Aquando da construção referia em 21 dos factos provados, os Réus invadiram o prédio identificado em 10 em cerca de 1 metro de largura num comprimento de cerca de 16 metros;
f) O referido em c) e d) foi erigido pelo pai dos Autores há 40, 50 ou mais anos;
g) O prédio identificado em 16 tem acesso pelo Rua ...;
h) Os Autores sempre utilizaram, desde tempos imemoriais, para acederem ao prédio identificado em 10 a parcela de terreno referida em e) junto ao tanque ali existente;
i) Os Réus sempre souberam que a parcela de terreno referida em e) não lhes pertence;
j) E sempre souberam que tal parcela é parte integrante do prédio identificado em 10;
k) Os Réus deixaram depositados no prédio identificado em 10 restos de pedras que utilizaram para a construção do muro;
l) Os Autores sentem-se com preocupação, angustia e desconforto com o comportamento dos Réus;
m) O muro erigido pelos Réus foi construído no mesmo local onde se encontrava o muro antigo, tendo, em parte recuado aproximadamente cerca de 40 cm para dentro do prédio identificado em 16;
n) A parcela de terreno identificada em 25 sempre esteve delimitada por um pequeno esteio em pedra com cerca de 0,5 metros de altura que estabelecia a entrada no caminho através da Rua ...;
o) As pessoas da localidade ainda utilizam a água da fonte, abastecendo-se de água com recurso a baldes ou outros utensílios a estes equiparados para transportar água para as suas habitações para a realização de limpezas das mesmas ou outros fins que tenham por convenientes;
p) A água da presa identificada em 26 é utilizada por proprietários de terrenos adjacentes para a realização de regas de terrenos e cultivos;
q) A parcela de terreno onde se encontra implantado o tanque faz parte do prédio identificado em 10;
r) Os Autores e seus ante possuidores utilizam a área do prédio descrito em 10, no qual se inclui a parcela de terreno identificada em 25, colhendo os seus frutos, cortando mato e lenha, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja, há mais de 10, 20 e 30 anos;
s) A parcela de terreno identificada em 25 apenas era utilizada pelos Autores e pelo proprietário do prédio a poente;
t) Após a construção das escadas identificadas em 35, as pessoas continuaram a aceder ao tanque pela parcela de terreno identificada em 25.
Como emerge das respetivas conclusões recursivas, os apelantes advogam que: (i) deve ser dada como não provada a afirmação de facto vertida no ponto nº 37 dos factos provados; (iii) devem ser dadas como provadas as proposições constantes das alíneas b), c), g), h), i), k), l), q), r) e s) dos factos não provados.
Começando pelo primeiro segmento da impugnação, no facto nº 37 deu-se como provado que «É a Câmara Municipal ... e a Junta de Freguesia ... que procedem à limpeza e corte de vegetação nas imediações do tanque e da parcela de terreno referida em 25».
Sustentam os recorrentes que essa afirmação de facto deve transitar para o elenco dos factos não provados, já que “tal não resulta da prova direta produzida em audiência de julgamento”, mormente dos depoimentos prestados pelo autor AA e pela testemunha GG.
Ora, ao invés do que argumentam os recorrentes, a materialidade acolhida no transcrito ponto factual foi confirmada por várias das testemunhas inquiridas na audiência final, designadamente por SS, TT e UU, que despuseram com conhecimento por residirem nas imediações da ajuizada parcela de terreno há várias décadas.
Assim, SS (que reside no local há cerca de 70 anos) declarou, a este propósito, que a construção do tanque público que aí se encontra e bem assim as escadas que dão acesso ao mesmo foram construídos pela Junta de Freguesia ... e pela Câmara Municipal ..., entidades estas que durante vários anos realizaram obras de remodelação, de limpeza e manutenção desses espaços de molde a permitir o acesso a esse tanque para abastecimento de água ao público em geral, embora a sua utilização seja menos frequente a partir do momento em que a Junta construiu umas escadas entre o tanque e a Rua ....
Também a testemunha TT (que há já vários anos reside a cerca de 50/100 metros do terreno dos réus) referiu que no espaço em causa existe um tanque público que foi construído pela Junta de Freguesia ... e que durante largo tempo foram trabalhadores ao serviço desta quem levou a cabo obras de reparação, limpeza e manutenção desse tanque e do caminho que dava acesso ao mesmo, o qual era utilizado para permitir o abastecimento de água às pessoas que viviam nas redondezas.
Essa realidade foi, de igual modo, corroborada pela testemunha UU (que reside no local há cerca de 76 anos), afiançando que há já várias décadas que a parcela de terreno em causa vinha sendo utilizada por pessoas que habitavam nas proximidades para aceder ao tanque público aí existente para abastecimento de água, sendo a Junta de Freguesia ... quem fazia a manutenção desses espaços.
É facto que sobre tal facticidade também depôs o autor AA e a testemunha GG.
O primeiro adiantou que quem fazia a limpeza da parcela em causa sempre foi o seu pai (MM) ou alguém a seu mando, sendo que após o óbito daquele foram os autores quem passou a realizar esse trabalho.
Por seu turno, a testemunha GG embora refira que o tanque de água existente no local tenha sido construído pela Junta de Freguesia ... e que é esta entidade quem proceder às obras de reparação do mesmo, desconhece, no entanto, quem fazia (e faz) a limpeza do terreno que lhe dá acesso, “julgando” que quem trataria disso teria sido o pai dos autores ou estes após a sua morte.
Isto posto, a questão que naturalmente se coloca é a de saber se na presença dos subsídios probatórios convocados pelos apelantes se justifica a impetrada alteração do sentido decisório referente à facticidade objeto de impugnação.
Como a este propósito escreve LEBRE DE FREITAS[3], quanto ao grau de convicção exigível em processo civil, “no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma absoluta certeza, raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança, que o necessário recurso às presunções judiciais (arts. 349 e 351 CC) por natureza implica, mas que não dispensa a máxima investigação para atingir, nesse juízo, o máximo de segurança”.
Ainda sobre esta temática explica PIRES DE SOUSA[4] que o standard que opera no processo civil é o da probabilidade prevalecente ou “mais provável do que não”, o qual se consubstancia em duas regras fundamentais que enuncia nos termos seguintes: “(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais; (ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa”.
Portanto, sob esse enfoque, a afirmação pelo tribunal de que um facto se considera provado não depende da íntima convicção do julgador, mas fundamentalmente de critérios racionais que, em processo civil, se regem pelo standard de probabilidade prevalecente, isto é, num juízo de preponderância em que esse facto provado se apresente, fundadamente, como mais provável ter acontecido no que não ter acontecido.
No caso presente, a proposição factual em crise diz essencialmente respeito à identificação da entidade ou entidades que procedem à limpeza do terreno situado em torno do tanque de abastecimento de água situado nas imediações nos prédios pertencentes aos autores e aos réus e do acesso ao mesmo.
Ora, cotejando os subsídios probatórios adrede produzidos afigura-se-nos – tal como afirmado pelo julgador de 1ª instância – que os depoimentos prestados pelas indicadas testemunhas SS, TT e UU se revelaram mais consistentes, mormente pelo facto de residirem nas proximidades do local há já várias décadas, sendo pessoas desinteressadas no desfecho da lide e que despuseram com efetivo conhecimento sobre a apontada realidade controvertida, razão pela qual, à luz do indicado standard de probabilidade prevalecente, se justifica, em termos objetivos, a emissão de um juízo probatório positivo quanto à dita proposição factual.
Como assim, deve o ponto nº 37 permanecer no elenco dos factos provados.
. “O prédio identificado em 10 sempre apresentou a configuração, áreas e limites identificados na planta junta com a pi sob o documento n.º 17” (alínea b));
. “O prédio identificado em 10 sempre esteve demarcado em toda a sua extensão incluindo no lado que confronta com o prédio identificado em 16 com marcos de pedra antiga” (alínea c));
. “O prédio identificado em 16 tem acesso pela Rua ...” (alínea g));
. “Os Autores sempre utilizaram, desde tempos imemoriais, para acederem ao prédio identificado em 10 a parcela de terreno referida em e) junto ao tanque ali existente” (alínea h));
. “Os Réus sempre souberam que a parcela de terreno referida em e) não lhes pertence” (alínea i));
. “Os Réus deixaram depositados no prédio identificado em 10 restos de pedras que utilizaram para a construção do muro” (alínea k));
. “Os Autores sentem-se com preocupação, angustia e desconforto com o comportamento dos Réus” (alínea l));
. “A parcela de terreno onde se encontra implantado o tanque faz parte do prédio identificado em 10” (alínea q));
. “Os Autores e seus ante possuidores utilizam a área do prédio descrito em 10, no qual se inclui a parcela de terreno identificada em 25, colhendo os seus frutos, cortando mato e lenha, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja, há mais de 10, 20 e 30 anos” (alínea r));
. “A parcela de terreno identificada em 25 apenas era utilizada pelos Autores e pelo proprietário do prédio a poente” (alínea s)).
Na economia da ação as transcritas proposições factuais surgem em contraponto aos factos que no ato decisório sob censura foram dados como provados nos pontos nºs 20, 21, 25, 26, 27, 28, 30, 31, 32, 33 e 40.
Certo é que tais factos não foram alvo de impugnação em sede recursória, razão pela qual, para efeitos endoprocessuais, o juízo probatório emitido quanto aos mesmos não pode ser modificado.
Problema que então se coloca é o de saber quais as consequências dessa afirmação para a sorte da impugnação referente aos transcritos enunciados fácticos.
Neste conspecto, temos como certo que se o apelante aceita determinado facto como provado não pode pretender que seja dado como provado o facto contrário que foi considerado não provado, sob pena de o tribunal ser colocado perante uma situação em que, na procedência da impugnação, se veria como que “obrigado” a afirmar factos incompatíveis entre si.
Significa isto que, nessas circunstâncias, ao não impugnar factos provados contrários a factos não provados cujo juízo probatório pretende ver alterado fica vedada ao apelante a possibilidade de impugnar estes últimos, pois somente dessa forma se pode obstaculizar a ocorrência da apontada contradição entre realidades factuais antagónicas, posto que o tribunal não pode afirmar, ao mesmo tempo, uma determinada realidade de facto e o seu contrário.
Por tais razões encontra-se, pois, este tribunal ad quem em situação de não pode conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto neste ponto aduzida pelos apelantes.
Na economia do recurso interposto pelos autores/apelantes, a alteração do sentido decisório plasmado no dispositivo da sentença recorrida pressupunha a modificação do juízo probatório emitido pelo tribunal de 1ª instância quanto aos factos que considerou provados e não provados, isto é, o pedido de alteração desse ato decisório no que respeita à interpretação e aplicação do Direito dependia do prévio sucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não se revestindo de autonomia, já que os apelantes, verdadeiramente, não sindicaram ter existido erro «na determinação da norma aplicável», ou na forma como deveria «ter sido interpretada e aplicada».
Consequentemente não tendo tido êxito na pretensão de alteração da matéria de facto considerada para o efeito na sentença, ficou necessariamente prejudicado o conhecimento do recurso sobre a matéria de direito que dele dependesse, nos termos do art. 608.º, n.º 2, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, não sendo, de qualquer modo, despiciendo sublinhar que essa decisão, perante o substrato factual apurado, não é merecedora de censura, já que, como nela se evidencia – em moldes que merecem a nossa concordância –, os apelantes não lograram demonstrar que a ajuizada parcela de terreno fizesse parte integrante do seu imóvel, mormente que a houvessem adquirido pela via originária da usucapião.
Refira-se, de igual modo, que os recorrentes laboram em erro quando afirmam que “a presunção resultante do registo se estende à totalidade da área nele indicada, dispensando, portanto, o respetivo titular de fazer prova da efetiva aquisição originária do direito de propriedade em relação a qualquer parcela ou área que esteja incluída” nessa área e que, nesse contexto, “se transfere para a parte contrária o ónus de ilidir essa presunção”.
É que, de há muito, constitui entendimento pacífico na jurisprudência[5] que não devem considerar-se provadas a área e as confrontações de um prédio constantes do registo predial, por não ser atribuível, nesse aspeto, à respetiva certidão, força probatória plena, sendo que a presunção contemplada no art. 7º do Código de Registo Predial não abrange esses fatores descritivos, cingindo-se apenas à existência do direito e à sua pertença às pessoas em cujo nome se encontra inscrito.
Impõe-se, pois, a improcedência total do presente recurso de apelação.
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo dos apelantes (art. 527º, nºs 1 e 2).
Porto, 28.04.2025
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Martins Ribeiro
Carla Fraga Torres
_____________
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Assim, LEBRE DE FREITAS, A ação declarativa comum, pág. 298 e AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 54.
[3] In Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 160 e seguinte.
[4] In Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 2020, págs. 55 e seguintes.
[5] Cfr., inter alia, acórdãos do STJ de 29.10.1992 (processo nº 082672), de 18.01.2018 (processo nº 668/15.3T8FAR.E1.S2), de 28.09.2017 (processo nº 809/10.7TBLMG.C1.S1) e de 10.12.2019 (processo nº 1808/03.0TBLLE.E1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.