ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
NATUREZA SUBSIDIÁRIA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA PRESTAÇÃO
Sumário

I - A obrigação de restituir fundada no instituto do enriquecimento sem causa, regime consagrado nos arts. 473º e segs., do Código Civil, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos e pressuposto: i) a existência de um enriquecimento de alguém; ii) que esse enriquecimento careça de causa justificativa; iii) que o mesmo tenha sido obtido, diretamente, à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição; iv) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído.
II - O enriquecimento carecerá de causa justificativa sempre que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, falte justificação para a deslocação patrimonial verificada, isto é, falte legitimação para o enriquecimento verificado (o que tem de ser apreciado casuisticamente).
III - As ações baseadas nas regras do instituto do enriquecimento sem causa têm natureza subsidiária, isto é, só pode recorrer-se a elas quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reação. Sendo facultados outros meios, tem a pretensão deduzida com fundamento naquele instituto de ser julgada improcedente e o Réu absolvido do pedido.
IV - Residindo a causa justificativa de obrigação de prestação num contrato, o regime a aplicar à obrigação de restituição/indemnização é o da responsabilidade civil contratual tendo a tutela do caso de ser encontrada no seio desse instituto, nas suas regras e princípios, próprios, dominados pela autonomia da vontade e liberdade contratual, no respeito pela boa fé e com os limites impostos pela válvula de segurança do sistema que é o abuso de direito.
V - Não são, pois, em sede de responsabilidade contratual de aplicar, para assegurar o equilíbrio, as regras do enriquecimento sem causa, instituto que, com regras próprias, sendo fonte autónoma de obrigações, nunca deixa de ter aplicação subsidiária.
VI - Contudo, em matéria de risco, por impossibilidade de cumprimento da obrigação, nos contratos bilaterais, em que quando “uma das prestações se torne impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa” (negrito nosso e v. nº1 do art. 795º, do Código Civil), remetendo a lei a, específica, regulação para o regime do enriquecimento sem causa, apesar de inviável pretensão fundada diretamente em enriquecimento sem causa, a poder, na economia de toda a petição inicial, chegar-se à interpretação de o pedido de restituição ser formulado com base em tal impossibilidade objetiva, razões de celeridade, de economia de meios e de justiça conduzem a que mereça satisfação a pretensão de restituição formulada com base naquele instituto (art. 479º e segs), a nele poder o caso ser subsumido por via indireta (ex vi tal preceito).

Texto Integral

Processo nº 2061/24.8T8MTS.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível de Matosinhos - Juiz 4

Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. José Nuno Duarte
2º Adjunto: Des. Ana Olívia Loureiro

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

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I. RELATÓRIO

AA propôs ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a Herança aberta por óbito de BB, representada pelas herdeiras CC, DD e EE, mulher do falecido e únicas filhas do mesmo, pedindo que:

i) se declare a resolução do contrato-promessa de compra e venda descrito no artigo 1º da petição inicial e junto como documento nº1 e, em consequência, se condenem as rés a restituir-lhe a quantia, total, de 30.000,00 euros, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento; e,

caso assim se não entenda,

ii) sejam as Rés condenadas a pagar à Autora o montante de 30.000,00 euros, a título de enriquecimento sem causa.

Alega, para tanto e em síntese, que no dia 26 de março de 2014 celebrou um contrato promessa de compra e venda com o seu falecido irmão, BB, e a mulher deste, CC, os quais se comprometeram a vender-lhe o quinhão hereditário do promitente marido na herança por óbito de FF, mãe da autora e do falecido, que pagou 30.000,00 euros ao seu falecido irmão e que este acabou por falecer previamente à mãe de ambos. Alega, ainda, que intentou uma ação que correu termos neste mesmo Juízo Local Cível de Matosinhos, Juiz 4, sob o nº 5617/22.0T8MTS, visando a execução específica desse contrato-promessa e aí foram consideradas provadas a outorga do contrato, a entrega da quantia de 30.000,00 euros e a impossibilidade total e definitiva de cumprimento da prestação. Pretende, agora, a restituição do valor dos 30.000,00 euros, por via da resolução, e, caso assim não se entenda, a restituição por via do enriquecimento sem causa, alegando o enriquecimento das Rés equivalente ao referido valor, que devem restituir à Autora por ser um locupletamento injusto, sem causa justificativa ou a título legítimo, invocando como justificada a aplicação do art. 473º, nº1, do Código Civil.

A Ré apresentou-se a contestar pugnando pela improcedência da ação e pela absolvição da Ré do pedido e, caso assim se não considere, deve o valor de restituição ser fixado no montante de 10.000,00€, com base em diversa interpretação e qualificação dos factos.


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Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador-sentença em que, além do mais, foi:

i) - julgada verificada a “autoridade de caso julgado relativamente aos factos atinentes ao contrato promessa e demais vicissitudes que o rodearam, tal como já foi julgado e decidido no âmbito da ação nº 5617/22.0T8MTS”;

ii) - Proferida decisão a:

- enunciar e apreciar as seguintes “Questões a decidir”:

“(1) se há fundamento para a resolução do contrato-promessa e, consequentemente, (2) se a ré herança deve ser condenada a restituir a quantia de 30.000,00 euros acrescida de juros legais até efetivo e integral pagamento.

Na negativa, (3) se se verifica o enriquecimento da herança, representada pelas rés, à custa do empobrecimento da autora e, na afirmativa, a restituição da referida quantia com esse fundamento”,

- julgar:

a) - o pedido principal (de resolução do contrato e de restituição da prestação) nos seguintes termos:

- “…carece de fundamento legal a pretensão da autora de ver declarada a resolução do contrato promessa de compra e venda em análise.

Razão pela qual também não se reconhece o direito a exigir a restituição do valor de 30.000,00 euros pago ao abrigo da figura da resolução”.

“Na parte respeitante à resolução, tendo improcedido o pedido com esse fundamento, igualmente improcederá o pedido respeitante aos juros, por falta de fundamento legal”(negrito e sublinhado nossos):

b) - o pedido subsidiário (de restituição com base em enriquecimento sem causa) como se exara:

- “…condeno a ré Herança aberta por óbito de BB a restituir à autora a quantia de 30.000,00€ (trinta mil euros).

Custas a cargo da ré”.


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Apresentou a Ré recurso de apelação, pedindo seja o mesmo julgado procedente com base nas seguintes

CONCLUSÕES:

(…)


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Apresentou a Autora/apelada contra-alegações a pugnar pela improcedência do recurso e por que seja mantida a decisão recorrida, apresentando as seguintes

CONCLUSÕES:
(…)

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Pronunciou-se o Tribunal a quo no sentido da inexistência da arguida nulidade da sentença nos seguintes termos:
“A ré recorrente defendeu que o Tribunal incorreu na nulidade prevista no art. 615º nº 1 al. c) do Código de Processo Civil, por se verificar oposição entre os fundamentos e a decisão tomada, no que concerne ao pedido subsidiário.
(…) Entende a recorrente que “… tendo os falecidos sido casados um com o outro no regime de bens da comunhão geral e na ausência de qualquer outra prova/ critério, forçoso será concluir que o valor enunciado deveria ser imputado na proporção de metade à aquisição de cada um dos referidos quinhões.
Estando apenas em causa, na presente acção, a extinção da obrigação assumida em sede de contrato promessa e, não tendo sido impugnado o contrato de compra e venda do quinhão hereditário referente à herança aberta por óbito do pai da Recorrida – o qual é válido tendo produzidos efeitos, forçoso será concluir que o montante peticionado deveria ter sido reduzido a metade do seu valor, ou seja 15.000,00€.
Por ter sido este o valor que as partes, como confessado pela Autora, efetivamente atribuíram a cada um dos quinhões.
Ora, a aderir à tese da sentença em recurso, o que refira-se se concebe sem conceder, admitindo-se ser o instituto do enriquecimento sem causa aplicável à situação sub judice, teria de se concluir, como consequência lógica da factualidade dada como assente nos pontos elencados, pela condenação da Recorrente no pagamento à Recorrida do valor de 15.000,00€, por ser este o valor para o qual, na referida tese, não há justificação.
Concluir diferentemente, como o fez a decisão Recorrida (…) encerra uma contradição insanável entre os fundamentos e a decisão o que constitui nulidade da sentença”.
Contudo, entende o Tribunal que a recorrente faz uma diferente interpretação da factualidade e dela pretende retirar uma diferente conclusão daquela que o Tribunal retirou.
Na ótica do Tribunal, o que releva é que se recorreu à figura do enriquecimento sem causa porquanto a autora pagou um valor sem que tivesse recebido a contrapartida acordada, não se descortinando a oposição apontada pela recorrente.
Termos em que se desatende à nulidade suscitada, por se não concordar com a interpretação que a recorrente pretende fazer, não nos cabendo alterar a factualidade que se deu como provada e que levou à decisão tomada”.

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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

1. Se a sentença padece do vício de nulidade previsto na al. c), do nº1, do art. 615º, do CPC, por contradição entre a fundamentação e a decisão.

2. Da inviabilidade da pretensão de restituição de prestação contratual ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.

3. Do direito da Autora exigir a restituição de prestação contratual já realizada, no caso em que a prestação da outra parte no contrato bilateral se tornou objetivamente impossível (risco), “nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa”.


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

O Tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:

1. No dia 26 de março de 2014, BB e esposa, CC, na qualidade de primeiros outorgantes e a autora, na qualidade de segunda outorgante, assinaram um documento escrito que apelidaram de «contrato compra e venda».

2. De acordo com o referido escrito, BB, com o consentimento da sua mulher, CC, declarou vender à autora, que aceitou comprar, pelo preço de 1.379,14€ (mil trezentos e setenta e nove euros e catorze cêntimos), já recebido pelos primeiros outorgantes, o quinhão hereditário daquele na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG, correspondente a três/oitenta avos da respetiva herança.

3. Na mesma data, dia 26 de março de 2014, BB e a esposa CC, na qualidade de primeiros outorgantes e promitentes vendedores, e a autora, na qualidade de segunda outorgante e promitente compradora, estabeleceram entre si um acordo que designaram de «contrato promessa de compra e venda».

4. No acordo mencionado em 3, foram convencionadas as seguintes cláusulas:

«1.ª O primeiro outorgante marido é irmão da segunda outorgante, sendo ambos filhos de GG, falecido em 17 de julho de 2006 e de FF, que também usa HH.

2.ª A herança aberta por óbito do pai destes outorgantes permanece ilíquida e indivisa e no dia de hoje, 26 de março de 2014, os primeiros outorgantes, através de escritura notarial, venderam à segunda o quinhão hereditário a que o primeiro tem direito nessa herança ilíquida e indivisa.

3.ª Pelo presente contrato os primeiros outorgantes prometem vender, e a segunda outorgante promete comprar, o direito e acção futuros à herança de que o primeiro outorgante marido venha a beneficiar por morte da mãe de ambos, a identificada FF, que também usa HH.

4.ª O preço da referida venda é de 30.0000,00 € (trinta mil euros) que na presente data a segunda outorgante entrega aos primeiros que por este mesmo meio lhe dão quitação.

5.ª A escritura definitiva de compra e venda será celebrada logo que tal seja possível, aberta que seja a mesma herança, e quando a promitente compradora assim o desejar, devendo, para tal, comunicar o dia, hora e local de celebração da mesma, com a antecedência mínima de 5 (cinco) dias aos primeiros outorgantes através de carta registada com aviso de receção.

6.ª Todos os outorgantes estão conscientes que o presente contrato promessa de compra e venda versa sobre bens futuros e com isso se conformam, submetendo o mesmo à disciplina da execução específica prevista no art. 830.º do Código Civil.»

5. Em momento anterior à outorga do acordo mencionado em 4, a autora entregou a BB e esposa CC, a quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros) em numerário.

6. No momento da outorga do acordo mencionado em 4, a autora entregou a BB e à esposa CC um cheque à ordem no valor de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros).

7. Por escrito particular redigido e assinado em 26 de março de 2014, BB e a sua mulher CC, declararam o seguinte:

«[…] na presente data receberam de AA, NIF n.º ..., casada, residente na Rua ..., freguesia ..., Barcelos o cheque n.º ..., do Banco 1..., no montante de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros) para pagamento de parte do preço da venda do quinhão na herança aberta por óbito GG, celebrada pro escritura pública e ainda do contrato promessa de compra e venda hoje celebrado para venda do direito (quinhão) futuro na herança de FF. Tal cheque é do próprio Banco (Banco 1...) e está à ordem da referida AA que procedeu ao seu endosso».

8. O valor de 30.000,00€ (trinta mil euros) constante da cláusula quarta do acordo mencionado em 3 e 4, respeitava ao pagamento dos quinhões hereditários de BB na herança por óbito de GG e de FF, seus pais.

9. BB faleceu a 03 de janeiro de 2019, no estado de casado, sob o regime de comunhão de adquiridos, em primeiras e únicas núpcias com CC, tendo-lhe sucedido como únicas e legais herdeiras, a sua cônjuge sobreviva e as suas duas filhas DD e EE.

10. FF faleceu a 09 de abril de 2021.

11. Através de cartas registadas com aviso de receção, datadas de 03 de junho de 2022, a autora remeteu a CC, DD e EE, missiva com o seguinte teor:

«[…] No dia 26 de março de 2014, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda entre BB e mulher CC e AA, referente à e venda do quinhão hereditário de BB na herança da sua mãe FF,

Sendo certo que, consta ainda da cláusula quinta do referido contrato promessa de compra e venda, que a “escritura definitiva de compra e venda será celebrada logo que tal seja possível, aberta que seja a mesma herança, e quando a promitente compradora assim o desejar, devendo, para tal, comunicar o dia, hora e local de celebração da mesma, com a antecedência mínima de 5 (cinco) dias aos primeiros outorgantes através de carta registada com aviso de receção”.

Ora, a FF já faleceu a 09 de baril de 2021, encontrando-se reunidos os pressupostos para a realização da escritura definitiva de compra e venda.

Assim comunicamos a V.Ex.ª que a escritura de compra e venda encontra-se marcada para o dia 17 de junho de 2022, pelas 16h00, no Cartório Notarial do Notário Dr. II, sito na Avenida ... – Barcelos – Braga – Portugal, 1.ª andar, sala ..., ... Barcelos.

Contudo desde já advertimos V. Ex.ª que, na eventualidade de não comparecer no dia, hora e local designado para a outorga da escritura pública, nas exatas condições previstas no referido contrato promessa de compra e venda, darei entrada do competente processo judicial para cumprimento do referido contrato. […]».

12. A missiva endereçada a DD, foi devolvida pelos serviços de distribuição postal (CTT) com a informação “objeto não reclamado”, já as demais foram entregues ao destinatário.

13. Nenhuma das três compareceu na primeira data agendada para a celebração da escritura pública do contrato prometido, agendada para o dia 17 de junho de 2022, pelas 16h00, no Cartório Notarial do Notário Dr. II, sito na Avenida ... - Barcelos - Braga - Portugal, 1º andar, sala ..., ... Barcelos.

14. No dia 05 de agosto de 2022 a autora requereu a notificação judicial avulsa das três referidas herdeiras, para comparência na celebração da escritura pública agendada para o dia 13 de outubro de 2022, pelas 10h00, no Cartório Notarial do Notário Dr. II, sito na Avenida ... - Barcelos - Braga - Portugal, 1º andar, sala ..., ... Barcelos, processo que correu termos sob o n.º 3820/22.1T8MTS, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 2.

15. A CC foi notificada no dia 10 de outubro de 2022.

16. A DD foi notificada no dia 11 de outubro de 2022.

17. A EE foi notificada no dia 10 de outubro de 2022.

18. No dia 13 de outubro de 2022, pelas 10h00, nenhuma das três herdeiras compareceu no Cartório Notarial do Notário Dr. II, sito na Avenida ... - Barcelos - Braga - Portugal, 1.º andar, sala ..., ... Barcelos.

19. A DD tomou conhecimento da pretensão de BB, seu pai, de vender à autora o seu quinhão hereditário na herança futura por óbito de FF, bem assim dos termos do acordo mencionado em 3 e 4, em momento prévio à sua celebração.

20. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o dia 05 de novembro de 2021, a EE tem conhecimento da celebração do acordo mencionado em 3 e 4, e do seu respetivo teor.

21. CC, DD e EE são as únicas herdeiras do falecido BB.


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2. FACTOS NÃO PROVADOS

Considerou o tribunal de 1ª instância não provado que a autora deva à herança aberta por óbito de BB a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), correspondente ao remanescente do preço acordado no acordo mencionado em 3 e 4, e ainda não pago, acrescida de juros já vencidos no valor de 1.759,45€ (mil setecentos e cinquenta e nove euros e quarenta e cinco cêntimos).


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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Começando-se por referir que a ação se mostra definitivamente decidida quanto ao pedido principal, não objeto de recurso, temos que se centra este na reapreciação do pedido subsidiário (julgado, em 1ª instância, procedente, com condenação da Ré a restituir à Autora, a título de enriquecimento sem causa, a quantia de € 30.000,00). O pedido principal, julgado improcedente, não faz parte do objeto do recurso, interposto pelo Réu, não podendo ser (cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº2 e 639º, nº1 e 2, todos do Código de Processo Civil, abreviadamente CPC).

Entrando no objeto do recurso temos que se insurge o Réu contra a decisão proferida, na parte que lhe foi desfavorável, pretendendo, a reapreciação do decidido no atinente à condenação na restituição da importância em dinheiro entregue, no cumprimento do contrato referido nos factos assentes, com base no instituto do enriquecimento sem causa. E estando as questões a decidir por este Tribunal balizadas pelas conclusões das alegações, cabe analisar do erro de julgamento incorrido na decisão na parte desfavorável à Apelante, cumpre começar pela apontada nulidade da sentença, arguida por erro de julgamento, a prender-se com a decisão da matéria de facto.

Analisemos.

1. Da nulidade da sentença.

Argui a Apelante, no recurso que apresentou, a nulidade da sentença por padecer de oposição entre os fundamentos e a decisão, vício previsto na al. c), do nº1, do art.º 615.º, do Código de Processo Civil, por razões a prenderem-se com a decisão da questão da autoridade do caso julgado relativamente à ação comum nº 5617/22.0T8MTS que correu termos no Juízo Local Cível de Matosinhos, Juiz 4, e relacionadas com a decisão da matéria de facto referindo que se atem aos factos fixados sob os pontos 1 a 4 e 8, entendendo dever a decisão recorrida ser alterada no sentido de se julgar que o valor do contrato que tem por objeto o quinhão hereditário celebrado pelas partes tem o valor de 15.000,00€.
Analisemos, em primeiro lugar, da invocada nulidade, pois que a mesma contende com a própria validade da decisão.
Começa por se referir que as “Causas de nulidade da sentença”, vêm taxativamente consagradas no referido preceito que estabelece na al. c) que é nula a sentença quando “c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
E como a relatora afirmou acórdãos que relatou, as nulidades da sentença são tipificados, vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, reportando-se à estrutura, à inteligibilidade e aos limites, sendo vícios do silogismo judiciário inerentes à sua formação e à harmonia formal entre as premissas e a conclusão, que não podem ser confundidas com erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito[1]. Trata-se de um error in procedendo, nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in judicando).
E, como vícios intrínsecos daquela peça processual, as nulidades da sentença são apreciadas em função do texto da sentença e do discurso lógico que nela é desenvolvido, não podendo ser confundidas com erros de julgamento de facto nem com erros de aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito. Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas e/ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, antes o mérito da relação material controvertida, nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando atacáveis em via de recurso[2].
Os vícios da sentença são, portanto, aqueles que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”[3] ou condenar ultra petitum, tendo o julgador de limitar a condenação ao que, concretamente, vem peticionado, em obediência ao princípio do dispositivo.
Os referidos vícios respeitam à “estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)”[4].

Analisemos o invocado vício, que se reporta à estrutura, exarando-se, desde já, que, a mesma não contém ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível.
Quanto ao vício consagrado na al. c), os fundamentos estarem em oposição com a decisão ou ocorrer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, cumpre referir que “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial (art. 186-2-b)”[5].
Verificando-se contradição entre os fundamentos e a decisão quando no raciocínio do julgador existe vício tal que apontando a fundamentação num sentido a decisão segue em sentido oposto, pelo menos diferente, constata-se que, no caso, a decisão se orienta no mesmo sentido da fundamentação.
A diferente interpretação da factualidade e a diferente conclusão da apelante relativamente à posição do tribunal não é suscetível de gerar nulidade da sentença.
A apontada nulidade não se verifica no caso, pois que nenhuma oposição entre os fundamentos e a decisão se verifica, antes os fundamentos aduzidos conduzem, necessariamente, à decisão, que de ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível não padece, antes a mesma tem um só sentido e é clara, evidente e bem percetível, prendendo-se a questão suscitada, antes com o mérito, a ser objeto de reapreciação.
Não padece, pois, a decisão do apontado vício formal, que improcede.


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2- Da restituição com base no instituto do enriquecimento sem causa.

Cumpre, agora, analisar e decidir do erro de julgamento relativamente ao pedido subsidiário, de restituição de prestação contratual com base em enriquecimento sem causa.

Considerou o Tribunal a quo a fundamentar a obrigação de restituição de prestação de contrato, que afirmou existir, o instituto do enriquecimento sem causa.

Refere e bem: “… são três os pressupostos constitutivos do instituto do enriquecimento sem causa: (i) a existência de um enriquecimento; (ii) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; e (iii) a ausência de causa justificativa para o referido enriquecimento.

Porém, não basta a verificação, sem mais, dos mencionados requisitos, uma vez que o instituto jurídico do enriquecimento sem causa é de aplicação subsidiária (art. 474º do Código Civil), ou seja, o empobrecido não pode utilizar este recurso no caso de existir outro fundamento para a ação de restituição”.

Mais analisa “Por outro lado, também não há lugar à restituição por enriquecimento quando a lei negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento (art. 474º do Código Civil).

“O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de caráter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista. Umas vezes a vantagem traduzir-se-á num aumento do ativo patrimonial (…); outras, numa diminuição do passivo (…); outras, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes atos sejam suscetíveis de avaliação pecuniária; outras ainda, na poupança de despesas” (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, p. 481).

Esse enriquecimento pode ser entendido em sentido real, como a “vantagem patrimonial concreta de qualquer tipo, com valor pecuniário, obtida pelo enriquecido”; ou em sentido patrimonial, “através da comparação entre a situação patrimonial vigente e a situação patrimonial que existiria sem a obtenção do enriquecimento” (MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Vol. I, p. 406).

Ademais, o enriquecimento deve ser obtido à custa de outrem, ou seja, a vantagem patrimonial obtida pelo enriquecido resulta do sacrifício económico correspondente suportado pelo empobrecido.

(…)Quanto à ausência de causa justificativa para o enriquecimento, dispõe o art. 473º nº 2 do Código Civil que “a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

Em particular, no enriquecimento por prestação, alguém efetua uma prestação a outrem, mas sem causa jurídica. A realização da prestação tem por finalidade um incremento de património alheio, mas não é obtido o fim visado por essa prestação, porque a obrigação se extinguiu (condictio indebiti), o efeito futuro não se verificou (condictio ob rem) ou a causa jurídica da prestação desapareceu depois da sua realização (condictio ob causam finitam)”.
E mais refere ter a autora entregue a quantia de 30.000,00 euros ao seu irmão, no cumprimento de obrigação que assumiu no contrato aludido nos autos, e nada ter recebido em contrapartida, concluindo “com o pagamento dessa quantia por parte da autora, a ré herança obteve um óbvio favorecimento patrimonial, tendo a autora ficado prejudicada na mesma proporção”, “existiu um verdadeiro enriquecimento por parte da ré, obtido à custa de outrem – da autora”, mais afirmando não vislumbrar meio específico para a restituição.

Insurge-se a apelante contra a decisão por, movendo-se a ação em matéria contratual, não poderem as regras e os princípios que norteiam o enriquecimento sem causa, de aplicação subsidiária, ser convocadas para a solução do caso, regulado pelo regime da responsabilidade contratual, designadamente as da invalidade do contrato e as da impossibilidade da prestação.
Ora, na verdade, no rigor dos princípios, não pode ser mantida a decisão quanto à restituição da prestação por enriquecimento sem causa, pois que existem, em sede de responsabilidade civil contratual, regras e princípios a regular os contratos (sua celebração, vícios da vontade, validade, eficácia, interpretação, vicissitudes, impossibilidade, risco, ...). E a tutela que a Autora possa merecer tem de ser encontrada no seio deste regime, o da responsabilidade civil contratual.
Com efeito, a não haver causa para a transferência patrimonial, sempre a Ré teria de restituir a importância com que se enriqueceu, o que seria imposto pelas mais elementares razões de justiça, tendo, para tanto, de se recorrer às regras que constituem válvulas de segurança do sistema.
E o instituto jurídico do enriquecimento sem causa, que constitui uma fonte obrigacional, com o seu regime consagrado nos arts. 473º e segs., do Código Civil, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência, prescreve naquele artigo que
Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
Deste modo, para que exista enriquecimento sem causa, torna-se necessária a verificação de três requisitos cumulativos:
i) a existência de um enriquecimento patrimonial de alguém;
ii) que esse enriquecimento careça de causa justificativa;
iii) que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
Necessário se mostra, ainda, dado o caráter supletivo deste instituto, que a lei não faculte ao empobrecido outro meio para ser restituído/indemnizado/ressarcido.
O primeiro requisito consiste na obtenção de uma vantagem de caráter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista.
Quanto ao segundo requisito, faltará causa justificativa quando haja desarmonia com a ordenação dos bens aceites pelo sistema jurídico: se o enriquecimento está de acordo com o sistema jurídico a deslocação patrimonial tem causa justificativa; ao invés, se não está, se o enriquecimento houver de pertencer a outrem, carece de causa. Assim, haverá uma situação de enriquecimento sem causa quando, à luz do sistema jurídico, não exista uma relação ou um facto que legitime o enriquecimento, quer porque tal relação ou facto (a causa) nunca existiu quer porque, entretanto, desapareceu.
Pelo terceiro requisito exige-se que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa de quem exige a restituição, isto é, sem que exista entre o ato gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro ato jurídico de permeio, tendo, assim, de existir um nexo causal entre o enriquecimento do enriquecido e o empobrecimento da pessoa que exige a restituição.
A não existir causa para a deslocação patrimonial, a nenhum contrato ter sido celebrado, sempre a vantagem patrimonial do enriquecido sem causa (que à luz das regras ou dos princípios do nosso sistema jurídico justifique a deslocação patrimonial ocorrida), teria de ser restituída.
Contudo, no caso, como vimos, existe uma causa. Verifica-se que foi celebrado um contrato, não se mostrando, pois, verificado enriquecimento sem causa justificativa à custa da Autora, antes a deslocação patrimonial tem uma causa – o contrato alegado pela Autora e que resultou provado ter sido celebrado entre ela e o falecido e esposa.
E “havendo um contrato há uma causa para a deslocação patrimonial que venha a ocorrer em consequência da execução desse contrato”[6]. “A ação de enriquecimento sem causa não é permitida sempre que o empobrecido disponha, em abstrato, de outra via de direito contra o enriquecido que lhe permita obter satisfação…”[7].
Consagra o art. 474º, do Código Civil, com a epígrafe Natureza subsidiária da obrigação”:
Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”,
ficando, assim, a possibilidade de utilizar este instituto restringida a situações limitadas, sendo que “funciona como último recurso de que o empobrecido pode socorrer-se”, não podendo o empobrecido utilizá-lo a ter outro meio de ser restituído ou ressarcido. Outrossim, também não o pode fazer se a lei considerar de aceitar o enriquecimento de um à custa do outro [8].
O instituto do enriquecimento sem causa é um instituto diferente da responsabilidade civil, seja contratual seja extracontratual, não se podendo confundir a restituição do enriquecimento injustificado com reparação de um dano[9]. E não pode o enriquecimento sem causa pôr em cheque princípios fundamentais do direito contratual, como a liberdade de contratar[10] e que os contratos são para serem cumpridos, pacta sunt servanda, sendo que aquilo com que alguém enriquece é o que é recebido sem causa, não se verificando essa situação quando o recebido o foi no cumprimento de um contrato, na execução de uma obrigação assumida num contrato a que, livremente, se vinculou.
Há, contudo, regimes legais que remetem para o enriquecimento sem causa e outros que mandam calcular o objeto de um direito segundo “as regras do enriquecimento sem causa[11] (negrito e sublinhado nossos).
E, como se considerou no Ac. RP de 12/7/2023, proc. nº 2121/21.7T8VLR.P1 (Relator: Miguel Baldaia Morais), citando-se para melhor perceção as respetivas notas “a ação baseada nas regras do instituto do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária (cfr. art. 474º do Cód. Civil[12]), só podendo a ela recorrer-se quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reação, o que, no fundo, funcionará como um novo pressuposto ou requisito legal para o recurso à ação de restituição com base nesse instituto[13].

De frisar, no entanto, que sendo o enriquecimento fonte autónoma da obrigação de restituir (embora subsidiária), por mor da regra vertida no nº 1 do art. 342º do Cód. Civil (no qual, segundo entendimento dominante, se consagra o pensamento fundamental da teoria das normas), é sobre o autor (alegadamente empobrecido) que impende o ónus de alegação e prova dos correspondentes factos que integram cada um dos requisitos supra enunciados. Daí que a mera falta de prova da existência de causa da atribuição não seja suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar também que efetivamente a causa falta[14]”. Assim vem, efetivamente a ser considerado pela Jurisprudência [15].
Como escreve Luís Menezes de Leitão quanto “ao enriquecimento por prestação, a aplicação do art 473º é naturalmente excluída sempre que exista uma pretensão fundada num negócio jurídico. Os negócios constituem causas justificativas da aquisição enquanto a ação de enriquecimento pressupõe a ausência de causa justificativa” [16].
No caso temos que existe uma causa, a causa justificativa da atribuição patrimonial, o contrato e, como tal, não pode, no rigor dos princípios e na ponderação da verificação dos pressupostos/requisitos do enriquecimento sem causa, haver restituição com base na direta aplicação das regras deste instituto, que pressupõe falta de causa.
É com base nas regras reguladoras da responsabilidade civil contratual que tem de ser encontrada a solução da questão, não sendo de procurar o equilíbrio num outro instituto, de aplicação subsidiária.
Assim, a existência de meio a regular o direito (responsabilidade civil contratual) conduziria à improcedência da pretensão formulada, de restituição de prestação contratual, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.

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3. Do direito de exigir a restituição de prestação contratual já realizada em contrato bilateral em que o cumprimento da contraprestação se impossibilitou (o que se mostra já, definitivamente, decidido), “nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa”.

Interpretando, contudo, a pretensão formulada pela autora, na petição inicial com que introduziu a ação em juízo, a efetuar na economia de toda a peça em causa, com vista a obviar a nova ação[17] (o que poderia aparentar violência e decisão menos justa, embora esteja o tribunal vinculado por regras e princípios que norteiam adjetivamente o processo, como o princípio do pedido, e vigore o princípio da autorresponsabilização das partes), passemos a analisar o que, literalmente, pedido se encontra a título subsidiário, pedido este, como vimos, o único a apreciar e que se traduz no seguinte:

“…deve a presente ação ser julgada procedente, por provada e, em consequência, serem as Rés condenadas a pagar à Autora a quantia de 30.000,00 € (trinta mil euros), a título de enriquecimento sem causa justificativa das Rés”.

Sendo manifesto o lapso na referência a Rés, dado ré na ação ser, apenas, uma, temos que alegado vem, pela Autora, que a realização da prestação da Ré se tornou impossível, afirmando ser a impossibilidade “objetiva, absoluta, definitiva e total e não imputável ao devedor (cfr. art. 790º, nº1 e 2, do Código Civil” como “resulta da douta sentença” (cfr. arts 17º e segs da petição inicial), sentença que julgou inadmissível a execução específica do contrato (em anterior ação já decidida, com transito em julgado, ação 5617/22.0T8MTS), tendo a decisão recorrida julgado, com trânsito em julgado, nessa parte, não ser de reconhecer à Autora o direito a exigir a restituição do valor, de 30.000,00 euros, pago, ao abrigo da figura da resolução, por carecer de fundamento legal a pretensão de resolução do contrato promessa de compra e venda, dado não ter ocorrido qualquer incumprimento.

Deixa claro a decisão recorrida, assim decidindo, nessa parte,Ocorreu, sim, conforme já analisado na ação 5617/22.0T8MTS uma impossibilidade de cumprimento, impossibilidade definitiva e não imputável ao devedor (art. 790º nº 1 do Código Civil): “1. A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor”. (…) Assim, não há porque resolver um contrato cuja obrigação se mostra extinta pela impossibilidade.

Considerou o Tribunal a quo, para assim decidir, ter sido celebrado entre as partes um contrato promessa, sendo “contrato promessa a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato (art. 410º n 1 do Código Civil), e o quadro que lhe é aplicável é, em primeira linha, o das disposições que lhe são típicas (art. 410º a 413º, 442º, 755º nº 1 al. f) e 830º do Código Civil). (…) O contrato prometido constitui assim o padrão do contrato promessa, pelo que, salvo as normas cuja razão de ser apenas se compadece com o contrato prometido, e algumas relativas à forma, regem o contrato promessa as mesmas disposições que regem o prometido, ao abrigo do princípio da equiparação (art. 410º nº 1 do Código Civil)”. “Um contrato promessa adequado e perfeitamente eficaz faz nascer na esfera jurídica dos contraentes a vinculação a outorgarem o contrato prometido nos moldes em que este deva celebrado (…) Se essa adstrição onerar as esferas jurídica das suas partes contraente a promessa diz-se bilateral, por outro lado, se apenas onera a esfera de uma delas diz-se unilateral (art. 410º nº 2 e 411.º do Código Civil). (…) celebram entre si, validamente, um contrato promessa bilateral de compra e venda de quinhão hereditário, com eficácia obrigacional (art. 410º e 413º do Código Civil)”, “contrato cuja obrigação se mostra extinta pela impossibilidade”.

Resulta, assim, interpretando o pedido subsidiário no contexto da causa de pedir, densificada na petição inicial, que a Autora invoca, como fundamento do pedido de restituição que formula, a impossibilidade objetiva da prestação, pretendendo lhe seja restituído o que entregou de prestação contratual – 30.000,00€, preço que pagou por uma coisa que nunca poderá adquirir, sendo injusto que lhe não seja restituído (cfr. art.s 15º e 16º, da petição inicial). E foi julgado o pedido principal improcedente, considerando-se inexistir fundamento de resolução, dada a impossibilidade objetiva de cumprimento do contrato.

Ora, com base na, afirmada, impossibilidade, considerando o pedido subsidiário na ótica dessa alegação e, ainda, a impossibilidade já apreciada no saneador-sentença, causa da improcedência da pretensão formulada a título principal, visto o referido fundamento do pedido subsidiário, a ação procede, sendo que o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa decorre do facto de, definitivamente decidido se mostrar, que a prestação do vendedor, falecido, já não pode ser cumprida, por razões que se não devem a culpa do devedor.

Assim, por via dessa qualificação jurídica, já efetuada (de impossibilidade objetiva), o instituto do enriquecimento sem causa é, ainda assim, chamado a regular a questão, do foro contratual, não diretamente, mas ex vi o nº1, do artigo 795.º, que completa, para os contratos bilaterais, o regime consagrado no nº1, do art. 790º, assim sendo de confirmar a sentença, na parte objeto de recurso, decorrendo a procedência do pedido subsidiário, necessariamente, da razão pela qual improcedeu o principal: a consideração de que ocorreu impossibilidade de cumprimento não culposa.

Estabelece o referido preceito, para os contratos bilaterais, que:

“1. Quando no contrato bilateral uma das prestações se torne impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa”.

Estatui esta disposição, em matéria de risco, regulando a impossibilidade de cumprimento fortuita ou casual nos contratos sinalagmáticos, aplicável ao contrato de promessa de compra e venda em causa nos autos. Esta “norma trata diretamente do destino (risco) da contraprestação nos contratos bilaterais meramente obrigacionais … Sendo imediatamente aplicável a uma impossibilidade superveniente objetiva…, absoluta, total e definitiva… conferindo o direito à sua restituição”[18]. “O desaparecimento de uma das obrigações arrasta a extinção da contra-obrigação, dado o sinalagma que as liga”[19], correndo o risco pelo devedor da obrigação extinta por impossibilidade que “Não pode exigir a contraprestação nem retê-la, se o seu devedor já a tiver satisfeito”[20], este o caso dos autos, sendo que o direito a exigir a restituição do que prestou, que ao seu devedor (a Autora) se não pode negar, se desenha “nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa” (arts 479º e segs), por força do regime dos contratos e regras do risco (art. 795º, nº1) (sendo que, como bem observa Ana Prata “Diversa é a solução quando se trate de impossibilitação (ou incumprimento definitivo) culposa, pois aí, o credor, tendo direito a resolver o contrato, repete a prestação realizada por inteiro…[21]).
Destarte, no essencial pelas mesmas razões indicadas na decisão recorrida, tem esta decisão, na parte objeto de recurso, de ser confirmada, bem tendo sido aplicadas as regras do enriquecimento sem causa, se bem que por força do nº1, do art. 795º, não cabendo apreciar das arguidas nulidades do contrato, prejudicadas pela definitiva decisão dada ao pedido principal, que conduz à procedência do pedido subsidiário.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, devendo a decisão recorrida ser mantida.

As custas do recurso são da responsabilidade da apelante, dada a improcedência da pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).


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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, mantêm a decisão recorrida, na parte objeto do recurso (condenação da Ré a restituir à Autora a importância de 30.000,00, nos termos ordenados, prescritos para o enriquecimento sem causa).


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Custas pela apelante.


Porto, 28 de abril de 2025

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
José Nuno Duarte
Ana Olívia Loureiro
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[1] Cfr., entre muitos, Ac. do STJ de 1/4/2014, Proc. 360/09: Sumários, Abril /2014, e Ac. da RE de 3/11/2016, Proc. 1070/13, in dgsi.Net.
[2] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in dgsi.net.
[3] Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., Janeiro/2014, pág. 734.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág. 735.
[5] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág. 736-737.
[6]Cfr. Anotação de Júlio Gomes ao artigo 474º, Comentário ao Código Civil, Direito das obrigações Das obrigações em geral, Universidade Católica Editora, pág. 256.
[7] Ibidem, pág. 256
[8] Ana Prata, Código Civil Anotado, vol. I, 2017, Almedina, pág. 614 e seg, onde são citados exemplos.
[9] Cfr. referida Anotação de Júlio Gomes ao artigo 474º, Comentário ao Código Civil, Direito das obrigações Das obrigações em geral, pág. 256.
[10] Ibidem, pág. 257.
[11] Ana Prata, Idem, pág. 615, com densificação de casos.
[12] No qual se dispõe que “[n]ão há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
[13] Refira-se, no entanto, que a doutrina vem recorrentemente sublinhando que a denominada regra da subsidiariedade não tem um alcance absoluto – cfr., inter alia, MENEZES CORDEIRO, ob. citada, págs. 249 e seguintes, MENEZES LEITÃO, O enriquecimento sem causa no Direito Civil, págs. 914 e seguintes e JÚLIO GOMES, ob. citada, págs. 415 e seguintes. (MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português – Direito das Obrigações, tomo III, Almedina, MENEZES LEITÃO, in O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, Almedina, 2005 e JÚLIO GOMES, O Conceito de Enriquecimento sem Causa – O enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Universidade Católica Portuguesa, 1998, págs. 433 e seguintes e 675 e seguinte)
[14] Cfr., neste sentido, na doutrina, ANTUNES VARELA, ob. citada, págs. 482 e seguinte e ALMEIDA COSTA, ob. citada, pág. 501; na jurisprudência, acórdãos do STJ de 28/10/1993 (processo nº 083871), de 22/06/2004 (processo nº 1688/04-1), de 25/11/2008 (processo nº 08A3501), de 02/02/2010 (processo nº 1761/06.97UPRT.S1), de 14/10/2010 (processo nº 5938/04.3TCLRS.L1.S1), de 19/02/2013 (processo nº 2777/10.6TBPTM.E1.S1), de 20/03/2014 (processo nº 2152/09.5TBBRG.G1.S1) e de 29/04/2014 (processo nº 246/12.9T2AND.C1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt. (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, 2004 e ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 491)
[15] Cfr. Ac. RC de 2/11/2010, proc. 1867/08.0TBVIS.C1, com o seguinte sumário: “I – O enriquecimento sem causa constitui, no nosso ordenamento jurídico, uma fonte autónoma de obrigações e assenta na ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se à custa alheia. II - A obrigação de restituir/indemnizar fundada no instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos quatro seguintes requisitos: a) a existência de um enriquecimento; b) que ele careça de causa justificativa; c) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição; d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado. III – O enriquecimento tanto pode traduzir-se num aumento do activo patrimonial, como numa diminuição do passivo, como, inclusive, na poupança de despesas. IV – Enriquecimento (injusto) esse que igualmente tanto poderá ter a sua origem ou provir de um negócio jurídico, como de um acto jurídico não negocial ou mesmo de um simples acto material. V – O enriquecimento carecerá de causa justificativa sempre que o direito não o aprove ou consinta, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida, isto é, que legitime o enriquecimento. VI – Dado, porém, que a lei não define tal conceito e dada a natureza diversa da fonte de que pode emergir, tal significa que o enriquecimento injusto terá sempre que ser apreciado e aferido casuisticamente, interpretando e integrando a lei à luz dos factos apurados. VII – Naquilo que tem sido entendido como uma ampliação ao 3º requisito acima enunciado, a obrigação de restituir pressupõe ainda que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga ao direito à restituição, por forma a não dever haver de permeio, entre o acto gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro qualquer acto jurídico – carácter imediato da deslocação patrimonial. VIII – Porém, tal exigência não deverá assumir um carácter absoluto, por forma a deixar-se ao julgador campo de manobra suficiente de modo a poder aferir se a mesma aplicada a uma situação em concreto se mostra excessiva e evitar, nesse caso, que ela conduza a uma solução que choque com o comum sentimento de justiça. IX – As acções baseadas nas regras do instituto do enriquecimento sem causa têm natureza subsidiária, só podendo a elas recorrer-se quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reacção”.
Aí se refere “acção baseada nas regras do instituto do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, só podendo a recorrer-se a ela quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reacção (o que, no fundo, funcionará como um novo pressuposto ou requisito legal para o recurso à acção de restituição com base no instituto do enriquecimento sem causa).
Como escrevem os profs. Pires de Lima e Antunes Varela (in “Ob. cit., pág. 433”) “a subsidiariedade da acção de enriquecimento tem, no entanto, de ser entendida em termos hábeis. Pode originariamente a lei não permitir o exercício da acção de enriquecimento, em virtude de o interessado dispor de outro direito e, posteriormente, facultar o recurso àquela acção, em consequência da caducidade desse direito”.
Por fim, dir-se-á que constitui entendimento claramente prevalecente no sentido de que, à luz do artº 342, nº 1, é sobre o autor (alegadamente empobrecido) que impende o ónus de alegação e prova dos correspondentes factos que integram cada um daqueles requisitos, ou seja, de todos aqueles pressupostos legais que integram o referido instituto. (Vidé, por todos, e além dos Mestres atrás citados, Acs. do STJ de 16/9/2008, de 20/9/2007, 14/7/2009, e de 14/5/1996, respectivamente, nos processos 08B1644, 07B2156, proc. 413/09.2YFLSB, publicados in “www.dgsi.pt/jstj”, sendo o último na CJ, Acs. do STJ, Ano III, T2 – 172” e Ac. da RC de 2008/12/17, proc. Apelação nº 278/08.1TBAVR.C1, publicado in “dgsi.pt/jtrc”).
[16] O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Social, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1996, págs. 948-949.
[17] Fundada em diversa causa de pedir (não a resolução, por incumprimento culposo, nem restituição, pelo instituto do enriquecimento sem causa, mas restituição com base no risco, por impossibilidade objetiva).
[18] José Brandão Proença, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em geral, Universidade Católica Editora, in anotação ao artigo 795º, pág. 1092.
[19] Ana Prata (Coord.), Idem, pág. 993.
[20] Ibidem, pág. 993
[21] Ibidem, pág. 993.