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DECISÃO SUMÁRIA
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Sumário
Sendo a reclamação para a conferência destinada a apreciar a decisão sumária, e não a questão por ela julgada, não terá sustentação a reclamação que se limite a desprezar aquela decisão, devidamente fundamentada, por dela discordar, procurando uma reapreciação da sua argumentação, agora por três Juízes. A conferência não é mais uma instância de recurso, funcionando num patamar hierárquico acima do Relator. A decisão sumária do Relator já é a decisão do Tribunal da Relação, restando o procedimento de reclamação como meio de controlo da legalidade daquela. Inexistindo argumentação original destinada a questionar a legalidade da decisão sumária, está a reclamação condenada ao fracasso.
Texto Integral
Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
Nos autos foi proferida decisão sumária no sentido de rejeitar recurso por manifestamente infundado.
Não se conformando com a mesma, veio o Arguido dela reclamar para a conferência, por discordando quanto aos seus fundamentos. Reitera o entendimento de que existe uma contradição óbvia entre o que foi considerado provado e a motivação da decisão da matéria de facto, entre o facto provado 5 e as als. a) e b) dos factos não provados.
Para além da discordância quanto ao sentido da decisão, não invoca qualquer vício na mesma, nem aduz qualquer argumentativo respeitante à decisão sumária.
DA DECISÃO SUMÁRIA
Transcreve-se a fundamentação da decisão sumária:
«da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto
Invoca o Recorrente a existência de uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto apelando ao artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal. Tal contradição apenas ocorre quando se mostre impossível ultrapassá-la através da própria decisão recorrida, contrapondo entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Ou seja, não basta existir uma contradição, é preciso que a mesma se revele tão crassa que não se compreenda o sentido do processo decisório.
No caso concreto, veja-se, aponta o Recorrente que o Tribunal a quo expôs uma contradição entre a resposta à factualidade e a fundamentação, tudo porque nesta se exprimiu referindo os dois agentes da autoridade e nos factos apenas um surge como objecto da acção do Arguido.
O trecho da fundamentação que sustenta a pretensão do Recorrente é, na sua totalidade, o seguinte «Na verdade, as lesões sofridas pelo arguido são compatíveis com a resistência tipicamente associada a um processo de algemagem e detenção e vão ao encontro do relato trazido pelos pelos dois militares da GNR visados pelas agressões, AA e BB, assim como pela militar da GNR que os acompanhava no momento dos factos, CC. As três testemunhas atestaram que os militares AA e BB puxaram o arguido para fora da sua viatura, pelas pernas, o que fez com que o mesmo caísse no solo e, já no chão, o arguido foi agarrado por cada um dos braços para ser algemado, o que permite enquadrar as lesões registadas.».
A leitura dos dois parágrafos revela quão descontextualizada surge a afirmação do Recorrente, procurando criar um erro onde ele, manifestamente, não existe. A decisão revela-se coerente na sua íntegra. A situação de facto é a de dois militares da Guarda Nacional Republicana quererem algemar o Arguido e este reagir com o intuito de impedir tal acto. Tem de o fazer, necessariamente, contra os dois. Nessa sequência, apenas se provou que conseguiu atingir um deles na sua integridade física.
O Tribunal, ao explicar a sua decisão, juntou os dois militares numa única categoria, descrevendo-os como os visados da conduta do Arguido. Nada contraria a decisão de facto.
Mostra-se, assim, manifestamente infundada a argumentação recursiva.
DA QUALIFICAÇÃO DOS FACTOS COMO TENTATIVA
Entende o Recorrente que não corresponde à verdade que tenha criado obstáculos à acção militar pois como esteve sempre rodeado por três militares da Guarda Nacional Republicana com capacidade e preparação física para o deterem, nunca teria condições para praticar um crime de resistência e coação sobre funcionário com possibilidade de ser bem-sucedido.
Prevê o art.º 347.º/1 do Código Penal que «1 - Quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique ato relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique ato relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, (…) »
Daqui resulta que o crime é um crime de acção e não de resultado. Não se exige que o agente consiga impedir a prática do acto relativo ao exercício das funções do militar, mas apenas que se oponha à sua realização.
O agente pode fazê-lo perante um ou perante dez militares, sem nunca ter capacidade de se eximir à prática do acto. Mas terá sempre capacidade de se opor.
No caso concreto provou-se exactamente essa oposição. Vejam-se os factos provados 4. a 8.1 Ficou provada a actuação do Arguido com vista a opor-se à intervenção policial. Consumou-se, pois, a prática do crime, tal como decidido pelo Tribunal a quo. Mais uma vez, mostra-se manifestamente infundada a pretensão recursiva.»
DA SENTENÇA RECORRIDA
Da sentença recorrida no Juízo Local Criminal de Almada – J3 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa consta o seguinte dispositivo: «Pelo acima expendido, julga-se a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em conformidade decide-se: a) Absolver o arguido DD pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p.e.p pelo art.º 347.º, n.º 1 do Cód. Penal; b) Condenar o arguido DD pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p.e.p pelo art.º 347.º, n.º 1 do Cód. Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão; c) Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses, nos termos do art.º 50.º, n.ºs 1 e 5 do Cód. Penal; d) Condenar o arguido no pagamento das custas judiciais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC’s (art.º 513.º do Cód. Proc. Penal e art.º 8.º, n.º 9 do Reg. Custas Processuais e tabela III anexa).»
Para tanto, foi fixada a seguinte matéria de facto provada e não provada: «1. No dia ... de ... de 2022, pelas 4 horas, na ..., na ..., o Arguido, que conduzia o veículo automóvel de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-AQ-.., foi sujeito a uma fiscalização aleatória pela Guarda Nacional Republicana. 2. Nessa ocasião, quando os Militares da GNR, BB e AA, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções, lhe solicitaram que realizasse exame de pesquisa de álcool no ar expirado, o Arguido recusou. 3. Ao ser informado pelos Militares da GNR de que, ao recusar-se a realizar o referido exame, estaria a cometer um crime de desobediência, o Arguido continuou a manter a sua recusa em realizar o exame. 4. Tendo sido dada voz de detenção ao Arguido por parte do militar da AA, o mesmo introduziu-se no respectivo veículo. 5. Quando o militar da A Atentava retirar o Arguido do interior do seu veículo para o algemar e impedir que o mesmo fugisse do local, este desferiu, pelo menos, três pontapés em AA, nas zonas da cintura e barriga. 6. Como consequência directa e necessária da conduta do Arguido, o Militar da GNR ficou com dores nas zonas atingidas pelos pontapés, no momento do impacto, não tendo resultado dos mesmos quaisquer lesões para aquele. 7. Ao empregar violência, desferindo pontapés no corpo do Militar AA, o Arguido, que conhecia a qualidade de Militar da Guarda Nacional Republicana deste, sabendo que se encontrava no exercício das suas funções, agiu com o propósito de impedir que o agente praticasse actos relativos ao exercício das suas funções, nomeadamente que levasse a cabo a sua detenção e condução à esquadra policial. 8. O Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida. E ainda que: 9. O arguido tem o 10.º ano de escolaridade. 10. É barman, auferindo mensalmente a quantia correspondente ao salário mínimo nacional. 11. Em regra, trabalha 160 horas mensais, mas por vezes também trabalha 180 horas mensais. 12. Tem folgas rotativas. 13. Reside com a avó e o pai, contribuindo mensalmente com cerca de € 400,00 para as despesas do agregado. 14. Do seu certificado do registo criminal consta a seguinte condenação: no proc. n.º 973/21.0GCALM, por sentença transitada em julgado em 03/05/2022, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, no total de € 910,00, pela prática, em ...-...-2021, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, que foi extinta, pelo pagamento, por decisão de 24-05-2024. B. Factos não provados Com relevo para a decisão da causa, foram dados como não provados os seguintes factos: a. Na circunstância descrita no ponto 5., o arguido desferiu um pontapé na barriga de BB. b. Na circunstância descrita no ponto 5., o arguido desferiu pontapés nos órgãos genitais de AA.»
DO RECURSO
Inconformado, recorreu o Arguido formulando as seguintes conclusões: «I. O ponto 5 da matéria de facto considera provado que foi o AA o único militar atingido com um pontapé do arguido, quando o tentava tirar de dentro do respetivo automóvel; II. As alíneas a) e b) dos factos não provados, na sequência da alteração não substancial dos factos determinada em julgamento, consideram não provado que o militar BB tivesse sido atingido por pontapés, desferidos pelo arguido, na barriga e nos órgãos genitais do mesmo. E, todavia, III. A págs. 6 da douta sentença recorrida, em sede de motivação da decisão sobre a matéria de facto, a Mm.ª Juiz a quo referiu-se-lhes como os “(…) dois militares da GNR visados pelas agressões, AA e BB” (sic.). IV. Pelo exposto, e sendo óbvio o desajuste deste trecho da motivação da decisão sobre a matéria de facto com o próprio julgamento da matéria, é de concluir que se regista uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto (artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do CPPenal). Por outro lado, V. O crime de resistência e coação sobre funcionário não é um crime contra a pessoa do funcionário, antes, contra a autoridade pública; VI. Por não ser um crime contra as pessoas, é indiferente o número de funcionários envolvidos ou visados pela conduta criminosa para efeitos de qualificação do crime, ou seja, a pluralidade de funcionários não provoca a pluralidade de crimes; VII. O que já não é indiferente é que a resistência e coação tenham por alvo um funcionário administrativo ou um agente de uma força de segurança com funções policiais, como é o caso dos autos. Com efeito, VIII. “I - Para o preenchimento do tipo legal de Resistência e coação sobre funcionário previsto no art.º 347.º do C. Penal, relevam as caraterísticas do funcionário na situação concreta em que se encontra, incluindo as especiais capacidades e aptidões que são inerentes à sua função, como sejam as decorrentes da formação, treino ou adestramento ministrados com vista a poder resistir a níveis de oposição e constrangimento que sejam normalmente de esperar no exercício das suas funções” – cf. Acórdão da Relação de Évora de 20-03-2018, identificado na douta sentença recorrida (v., tb., supra); IX. Não corresponde à verdade, todavia, que o arguido tenha criado “(…) obstáculos à ação do militar numa ocasião em que este se encontrava sozinho perante o arguido e sem superioridade numérica” (sic.), como melhor resulta do enquadramento jurídico-penal da resistência e coação sobre funcionário feita pela Mm.ª Juiz a quo; X. Efetivamente, o arguido foi intercetado, interpelado e admoestado sempre por 3 militares da GNR, o que se vê à saciedade dos excertos de depoimentos acima identificados e transcritos. Pelo exposto, XI. É de concluir que o arguido esteve sempre rodeado por 3 militares da GNR com capacidade e preparação física para o deterem, pelo que nunca teria condições para praticar um crime de resistência e coação sobre funcionário com possibilidade de ser bem-sucedido. Quando muito, XII. Os factos apurados nos presentes autos poderiam ser punidos como tentativa, ao abrigo do disposto no artigo 22.º, n.º 2, alínea b) do CPenal, atenta a falta de idoneidade para produzir o resultado típico, nunca como crime consumado. Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, e a douta sentença recorrida revogada e substituída por acórdão que determine a absolvição do arguido ou, caso assim se não entenda, que determina a aplicação aos factos do regime da tentativa, por falta de idoneidade dos atos de execução para produzirem o resultado típico.»
FUNDAMENTAÇÃO
Proferida decisão sumária que conheceu do recurso, reclamou o Arguido para a conferência.
Na decisão sumária foi determinado as seguintes as questões a decidir seriam:
a) da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto (artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal;
b) da qualificação dos factos como tentativa.
Ambas foram conhecidas e decididas.
Sendo a reclamação para a conferência destinada a apreciar a decisão sumária, e não a questão por ela julgada, não terá sustentação a reclamação que se limite a desprezar aquela decisão, devidamente fundamentada, por dela discordar, procurando uma reapreciação da sua argumentação, agora por três Juízes.
Com efeito, a conferência não é mais uma instância de recurso, funcionando num patamar hierárquico acima do Relator. A decisão sumária do Relator agora reclamada já é a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, restando o procedimento de reclamação como meio de controlo da legalidade daquela [Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 17.12.2014, Desembargador Luis Ramos - ECLI:PT:TRC:2014:453.10.9GBFND.C1.67; ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 10.10.2024, Desembargadora Ana Marisa Arnêdo - ECLI:PT:TRL:2024:9366.22.0T8LRS.L1.9.6C].
Como tal, inexistindo argumentação original destinada a questionar a legalidade da decisão sumária, está a presente reclamação condenada ao fracasso.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar a presente reclamação para a conferência improcedente mantendo-se inalterada a decisão sumária reclamada.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 5 UC a respectiva taxa de justiça.
Lisboa, 06.Maio.2025
Rui Coelho
Paulo Barreto
Manuel Advínculo Sequeira
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1. 4. Tendo sido dada voz de detenção ao Arguido por parte do militar da AA, o mesmo introduziu-se no respectivo veículo. 5. Quando o militar da A Atentava retirar o Arguido do interior do seu veículo para o algemar e impedir que o mesmo fugisse do local, este desferiu, pelo menos, três pontapés em AA, nas zonas da cintura e barriga. 6. Como consequência directa e necessária da conduta do Arguido, o Militar da GNR ficou com dores nas zonas atingidas pelos pontapés, no momento do impacto, não tendo resultado dos mesmos quaisquer lesões para aquele. 7. Ao empregar violência, desferindo pontapés no corpo do Militar AA, o Arguido, que conhecia a qualidade de Militar da Guarda Nacional Republicana deste, sabendo que se encontrava no exercício das suas funções, agiu com o propósito de impedir que o agente praticasse actos relativos ao exercício das suas funções, nomeadamente que levasse a cabo a sua detenção e condução à esquadra policial. 8. O Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.