ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PROVA INDICIÁRIA
Sumário

I - Não é a convicção pessoal do recorrente, ou de qualquer outro interveniente que irá sobrepor-se à convicção do Tribunal. Caso contrário, nunca seria possível alcançar uma decisão final.
O Tribunal de recurso apenas poderá intervir de forma correctiva perante a invocação fundamentada de um erro de apreciação da prova, que venha a concluir ter existido.
II - Aquando da saída do co-Arguido para o exterior do hotel, o Recorrente encontrava-se a observar o espaço, tendo-lhe feito um gesto indicando que o seguisse, sem se aproximar, sem o cumprimentar, apresentar-se ou estabelecer qualquer tipo de conversa. Apenas disse que tinha o carro ali, após o que caminharam, sempre afastados e sem falarem um com o outro, até àquela viatura. Proferiu ainda a expressão «anda que venho buscar a encomenda da …». Retirar deste comportamento que o Recorrente agiu com dolo de prática de um crime de tráfico não é errado.
III - Nada obsta ao recurso da figura da prova indirecta para obter uma resposta quanto à matéria de facto.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo Central Criminal de Lisboa – J20, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi proferido acórdão, com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, decide este Tribunal Colectivo:
a. Condenar o arguido AA, pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal, e com a atenuação especial prevista no art. 31º do mesmo diploma e nos artigos 72º e 73º, do C. Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
b. Aplicar ainda ao arguido AA, pela prática do crime acima referido, a sanção acessória de expulsão do território nacional, nos termos do disposto no artigo 34.º, nº1 da Lei nº 15/93, de 22.01, pelo período de 4 (quatro) anos.
c. Condenar o arguido BB, pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.»
- do recurso -
Inconformado, recorreu o BB formulando as seguintes conclusões:
«1.ª Afastando-nos da ideia (somente inferível) de que o BB foi ao encontro de AA para receber e, após, transportar cocaína (pontos 3 e 35), a matéria de facto objectivamente alcançada e constante dos pontos 1, 2 e 4 a 30, mesmo processada no âmbito de qualquer princípio empírico, experiência comum ou sentido de normalidade, não permite razoavelmente alcançar os elementos do dolo de um crime de tráfico de estupefacientes.
2.ª A ter-se entendido que essa matéria de facto a montante alcançada com recurso a prova directa permite sustentar inferência do elemento subjectivo do crime de tráfico de estupefacientes, o acórdão recorrido padece de erro notório na apreciação da prova, nos termos da al. c) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
3.ª Se, como parece ter acontecido no caminho intelectual percorrido pelo Tribunal a quo, a inferência do elemento subjectivo do crime de tráfico desenvolveu-se a partir de um conjunto de factos onde se incluíram os pontos 3 e 35 da fundamentação, necessariamente alcançados, a montante, também por inferência, verificamos que se operou a um duplo grau de prova indirecta ou seja recorreu-se a um silogismo judiciário que tem como premissa menor um facto já alcançado por inferência.
4.ª O duplo grau de prova indirecta é inaceitável, face ao disposto no art.º 127º do Cód. do Processo Penal.
Pelo exposto e ressalvado o doutíssimo suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Senhores Juízes Desembargadores desta Relação de Lisboa, deverá:
i.) Ser reconhecido que o Acórdão recorrido padece do vício a que alude al. c) do n.º 2 do art.º 410º do Cód. do Processo Penal – erro notório na apreciação da prova;
ou
ii.) Ser considerado que foi convocada para a demonstração do elemento subjectivo do crime de tráfico imputado ao recorrente prova obtida em segundo grau de prova indirecta, em violação do disposto no art.º 127º do Código do Processo Penal.»
- da resposta -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
«I. Conforme resulta do artigo 410º, n.º 2, do CPP, o vício de erro notório na apreciação da prova previsto na sua alínea c) apenas se verifica se resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”.
II. Ora, o texto da decisão permite apurar o raciocínio lógico, baseado na prova produzida interpretada com base em regras da experiência razoáveis e percetíveis, que levou o tribunal a dar como provada a factualidade que integra o crime pelo qual o recorrente foi condenado, em especial o elementos em causa no recurso, a saber: o conhecimento da natureza do produto estupefaciente e a vontade de o transportar.
III. Uma diferente interpretação da prova produzida consubstancia um recurso fundado em erro de julgamento, nos termos previstos no artigo 412º, 3 e 4, do CPP, e não o vício de erro notório previsto no artigo 410º, 2, do mesmo diploma legal.
IV. Nos termos do artigo 412º, 3, do CPP, “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: (…) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”.
V. Desde logo, o recorrente não cumpre este ónus, admitindo que tal decorra da circunstância de não existir nenhum elemento de prova que “imponha” decisão diferente da recorrida para além das suas declarações como arguido a negar ter conhecimento de que ia transportar produto estupefaciente.
VI. Neste caso, a versão do arguido, por inverosímil, reforçou a força probatória dos restantes elementos de prova para demonstrar a prática do crime pelo qual foi condenado, em especial, o elemento subjetivo do tipo de crime: o conhecimento do recorrente de que a mala continha droga e a sua vontade de a receber e transportar.
VII. O elemento subjetivo foi dado como provado por elementos de prova que, de acordo com as regras da experiência e respeitando integralmente as regras da apreciação da prova indireta, sustentam sem dúvida razoável a decisão do tribunal, muito bem explanada nas páginas 15 a 17 do acórdão:
a) Como primeiro elemento, as declarações do coarguido AA - um, infelizmente comum, “correio de droga” - que referiu que se ia encontrar com a pessoa a quem ficou de entregar o produto estupefaciente. Ou seja, como ponto de partida e normal nestes casos, o coarguido apenas tinha em Portugal uma pessoa que o iria contactar: a pessoa a quem ia entregar a droga. Este é o percurso normal dos “correios de droga”. Não conhecem ninguém em Portugal, nem sabem quem os irá contactar, mas sabem que quem o fizer será para ir buscar o estupefaciente. Conforme o próprio relatou e foi confirmado pelos agentes policiais inquiridos - testemunhas CC, DD e EE -, para que essa pessoa o reconhecesse enviou para o contacto do “...” – mandante do crime – uma fotografia de onde estava e informou de como estava vestido.
b) A versão do arguido foi que um indivíduo que apenas identificou por “...”, residente em ..., lhe pediu para dar uma simples “boleia” a uma pessoa, sem dizer o nome, para onde era a boleia, e que seria identificado apenas por ter uma mala e a menção de que a “boleia” vinha da parte da …. Ou seja, na sua versão, a pessoa que sabia que AA possuía a droga o teria instrumentalizado para ir buscar a droga, sem lhe dizer o que estava a fazer.
c) Esta versão poderia suscitar a dúvida se, como bem refere o tribunal, o seu comportamento exterior fosse coerente com uma simples boleia. Não foi.
d) Desde logo, não dizer qual o destino da boleia e o nome da pessoa a transportar, mas apenas uma referência a dizer que vinha da parte de uma …, e não do “cabeça”, indicia uma intenção de ocultação, logo, de atividade ilícita.
e) Mas, e este ponto é essencial como o acórdão bem explica, o modo como a “boleia” se concretizou confirma o conhecimento do recorrente de que ia buscar droga ou, no mínimo, algo ilícito, suficiente para uma atuação com dolo eventual. Se fosse uma simples boleia, o arguido limitar-se-ia a dirigir-se à entrada do Hotel, de carro ou a pé, cumprimentar a pessoa, falado normalmente com ela e se dirigido normalmente para o veículo.
f) Não foi isso que sucedeu. Conforme resulta dos depoimentos dos agentes:
a. O recorrente pára o carro num local afastado da entrada e aproxima-se da entrada do Hotel, com movimentos de vigilância do espaço antes de se aproximar. Depois, nunca se aproximou muito, não trocou uma conversa normal de quem vai dar uma boleia, nunca cumprimentou o coarguido e começam os dois a andar, um à frente do outro, como se não existisse qualquer ligação entre ambos. Conforme refere o acórdão, o arguido diz a AA “anda que venho buscar a encomenda da …”, o que é contrário ao seu depoimento de que ia dar uma boleia”.
VIII. Deste modo, não ocorre qualquer erro notório na apreciação da prova nem qualquer elemento de prova que imponha decisão contrária.»
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito suspensivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer subscrevendo o teor da resposta.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
- do erro notório na apreciação da prova, nos termos da al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal; e se
- foi a decisão fundada num duplo grau de prova indirecta, e tal é inaceitável, face ao disposto no art.º 127.º do Código do Processo Penal.
DO ACORDÃO RECORRIDO
Do acórdão recorrido consta a seguinte matéria de facto provada:
«1. Em data não apurada, anterior a ........2023, o arguido AA foi abordado, por indivíduos cujas identidades se desconhecem, que lhe propuseram que transportasse consigo cocaína, do ... para …, por via aérea e a troco do recebimento da quantia de 20 mil reais brasileiros.
2. Ainda de acordo com o aludido projecto, o arguido AA seria posteriormente instruído a entregar a cocaína a uma concreta pessoa que, em Portugal, iria ter consigo.
3. Essa pessoa tratava-se do arguido BB.
4. O arguido AA aderiu ao referido plano.
5. Posteriormente e no ..., os aludidos indivíduos entregaram ao arguido AA 18 embalagens que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 4993g.
6. O arguido AA dissimulou oito dessas embalagens junto ao corpo, numa cinta e as restantes dez embalagens numa mala de viagem, do tipo trolley.
7. No dia ........2023 o arguido AA embarcou, no ..., em ..., no ..., no voo ....
8. A aeronave aterrou no Aeroporto de Lisboa no dia ........2023, cerca das 07h15m.
9. Após o desembarque o arguido AA dirigiu-se à linha de fronteira controlada pelo SEF, a fim de sair do aeroporto.
10. Nessas circunstâncias o arguido AA tinha consigo as sobreditas 18 embalagens que continham cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 4993g, dissimuladas do modo acima descrito.
11. O arguido AA tinha também consigo um telemóvel e a quantia de €380.
12. Depois, o arguido AA deslocou-se para o ..., sito na ..., naquele concelho.
13. No decurso da tarde de ........2023 o arguido AA recebeu diversas comunicações, através de WhatsApp, de um dos aludidos indivíduos localizados no ..., identificado no seu telemóvel como “Tia”.
14. Essa pessoa instruiu o arguido AA a permanecer no hotel até que recebesse mais orientações sobre a pessoa a quem devia entregar a cocaína.
15. Mais tarde, cerca das 21h15m, o arguido AA recebeu instruções de “Tia”, através de WhatsApp, para se deslocar para o exterior do hotel, mais concretamente para a zona adjacente ao respectivo restaurante
16. Foi enviada também ao arguido AA uma fotografia da zona em questão.
17. De acordo com essas instruções estaria nessa zona alguém que iria receber a cocaína.
18. O arguido AA, no decurso dessas comunicações telefónicas, remeteu a “Tia” uma fotografia sua, bem como a descrição da roupa que vestia.
19. Logo depois, o arguido AA deslocou-se para o exterior do hotel.
20. Enquanto isso decorria, o arguido BB encontrava-se junto ao gradeamento exterior do hotel, que o delimita da via pública.
21. O arguido AA avançou até à zona da explanada, entre o ... e o ..., aí se tendo imobilizado.
22. O arguido BB caminhou pelos referidos estabelecimentos, sempre a observar o arguido AA e a zona em seu redor.
23. Depois, o arguido BB realizou uma chamada telefónica e abeirou-se do arguido AA, dizendo-lhe em voz alta “anda, que eu tenho o carro ali!”.
24. Seguidamente o arguido BB encaminhou-se na direcção do parque de estacionamento junto ao ..., sito na ..., paralela à ... e a cerca de 200m do ....
25. O arguido AA seguiu o arguido BB.
26. Chegados ao mencionado parqueamento, o arguido BB entrou no seu veículo automóvel com a matrícula ..-CB-.., ocupando o banco do condutor.
27. Quando o arguido AA se aproximou da porta dianteira direita do veículo, o arguido BB disse-lhe “entra para o carro, que eu vim buscar a encomenda da …!”.
28. Seguidamente o arguido AA entrou no automóvel, colocando a supracitada mala do tipo trolley a seus pés.
29. Logo depois, os Arguidos foram interceptados por elementos da PJ.
30. O arguido BB tinha consigo um telemóvel iPhone e, no porta-luvas do veículo, um telemóvel F2.
31. Os referidos telemóveis destinaram-se aos contactos entre o Arguidos e os indivíduos localizados no ..., que entregaram a cocaína ao arguido AA.
32. A mencionada quantia monetária destinava-se a custear as despesas da viagem do arguido AA e da sua estadia em Portugal.
33. O arguido AA nasceu na ... é cidadão desse Estado.
34. O arguido AA não tem – salvo quanto ao abaixo referido no ponto 56 sobre uma madrinha - quaisquer familiares, amigos ou emprego em Portugal, onde apenas se deslocou para praticar a factualidade acima narrada.
35. Os Arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o propósito concretizado de receber e carregar consigo o supracitado produto estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conheciam, do ... para Portugal, com o fito de o entregar a terceiros, a troco de quantias monetárias.
36. Os Arguidos actuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Mais se provou, que:
(da contestação do arguido AA)
37. No dia ........2023, ainda no aeroporto de Lisboa, o arguido AA, ao ser interceptado pelas autoridades, teve consciência da gravidade dos seus actos, e de imediato decidiu colaborar com os Senhores Inspectores da Polícia Judiciária, que acompanhou ao longo de todo esse dia.
38. Manteve então contacto com as pessoas que o encarregaram do transporte acima referido, fornecendo as informações desse modo obtidas aos Senhores Inspectores, desse modo tendo permitido a identificação e captura do arguido BB.
(dos antecedentes criminais e das condições pessoais do arguido AA)
(…)
(dos antecedentes criminais e das condições pessoais do arguido BB)
67. O arguido BB foi condenado pela prática, a ........2020, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de dois anos e dez meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por sentença de 01.04.2022, transitada em julgado a 11.05.2022 (processo n.º 1976/18.7GBABF).
68. À data dos factos a que respeitam os autos (... de 2023) o arguido BB tinha residência em apartamento T2, situado na zona de ..., integrando agregado composto por ambos os progenitores e o irmão FF.
69. Trata-se de um agregado de classe baixa, condicionado por algumas dificuldades económicas, sendo que os progenitores, auferem baixas reformas, carecendo neste contexto do apoio do Arguido e dos restantes filhos (total de 7 elementos), para fazer face às despesas.
70. O arguido tem três filhas, fruto de anteriores relacionamentos: GG e HH, de 11 e 9 anos de idade, a residir na zona de ... e outra em ..., junto das mães, salientando manter com as mesmas uma relação de proximidade, visitando-as frequentemente e contribuindo para as suas despesas / educação.
71. O Arguido terá adquirido habitação própria, na zona da ... no ano 2015, onde residiu vários anos, mantendo todavia elevada mobilidade geográfica entre o ... e a zona de …, consonante as necessidades / afetação da sua atividade laboral e do seu exercício parental.
72. À data dos factos em apreço neste processo, trabalhava como empregado do ramo da pavimentação, para a empresa “...”, de segunda a sábado, auferindo vencimento líquido médio entre os 900€ a 1.300€ mensais, conforme horas extras, encontrando-se à data a desempenhar funções laborais na zona do ....
73. Paralelamente ao trabalho desempenhado nesta empresa, o Arguido refere dedicar-se ao longo dos últimos anos, a funções como comerciante de peças e veículos automóveis, em território nacional e para o seu país de origem, fazendo uso da sua rede contactos e conhecimentos, função que lhe permitiria obter um rendimento extra mensal, estimado entre os 500€ e os 900€.
74. Apresentava à data uma situação económica e laboral percecionada como estável, auferindo em média, com os dois trabalhos desempenhados, cerca de 2000€ por mês, valor que considera adequado às despesas, salientando manter como encargos mensais 450€ de renda da casa no ... (partilhada), 180€ do crédito da sua casa, e 150€ de prestação de alimentos para cada um dos filhos, contribuindo ainda com apoio regular aos progenitores, nomeadamente despesas da casa e alimentação.
75. Mantinha à data uma rotina descrita como centrada no exercício laboral, vida familiar e aprofundamento da relação com a namorada II residente no ....
76. Aquando das vindas para ... em trabalho, tinha por hábito, nos tempos livres, estar com as filhas e conviver a espaços, com o seu grupo de amigos, salientando que a maior parte dos seus amigos residem na zona da ...
77. O processo de socialização de BB, decorreu na ..., integrado numa família de classe baixa e numerosa, que se dedicaria à agricultura de subsistência numa quinta.
78. Cresceu tendo como figura de referência a mãe e oito irmãos germanos (foi o penúltimo a nascer) e mais cinco irmãos consanguíneos, encontrando-se o pai do Arguido a trabalhar em Portugal na …, apoiando o agregado financeiramente, retornando a espaços, ao país de origem.
79. O Arguido terá frequentado a escola no país de origem, vindo a abandonar o processo de ensino aos 14 anos de idade, com o 6º ano de escolaridade, para trabalhar com os familiares.
80. Cerca dos 20 anos de idade, emigrou para Portugal em busca de melhores condições de vida, beneficiando do apoio de irmãos residentes em Portugal, viria a desenvolver alguns anos funções laborais no ramo da …, para diversas empresas, com vínculo precário, até que em 2009 iniciou funções para a “...”, onde trabalha até à data, vindo a estabilizar.
81. Na referida empresa onde trabalha há cerca de 15 anos, é considerado como um trabalhador responsável e cumpridor, que foi evoluindo em termos salariais e de responsabilidade, mantendo à data uma posição estável, pelo que se mantém em aberto a possibilidade de imediato regresso às suas funções, quando sair em liberdade.
82. Desde que chegou a Portugal, esteve cerca de seis meses em casa de um irmão, tendo arrendado um quarto, num apartamento de um colega de trabalho, na ..., onde esteve, até comprar casa no ano de 2015, na zona de ..., para onde foi morar com a anterior companheira, vindo a ter duas filhas.
83. O casal veio a separar-se amigavelmente no decurso do ano de 2019, ficando o Arguido a residir na habitação, mantendo uma relação de proximidade com as filhas.
84. Obteve a habilitação de condução no ano de 2016 e a cidadania portuguesa no decurso do ano de 2017, ano em que os seus pais emigraram de ... para Portugal, acabando por se vir a fixar na região ..., beneficiando do apoio do Arguido e dos restantes filhos, para fazer face a despesas, sendo que, estão reformados, dispondo de pensões diminutas.
85. BB apresenta como aspiração / projecto, quando sair do contexto prisional, regressar para junto da família e da namorada e retomar o seu exercício laboral.
86. BB encontra-se em situação de prisão preventiva, desde .../.../2023, presentemente no Estabelecimento Prisional de ..., à ordem do presente processo.
87. Mantém uma rotina ajustada às regras prisionais, encontrando-se a desempenhar funções laborais em contexto prisional desde .../.../2024, e beneficia ainda de visitas e apoio por parte de amigos e familiares, aparentando dispor de uma sólida rede de suporte em Portugal.
88. O Arguido aparenta vivenciar o presente processo com marcado sentido de preocupação e apreensão, salientando não ter qualquer relação com pares ou contextos associados ao tráfico de estupefacientes.
89. Aparenta, pelo seu discurso, reconhecer o desvalor do bem jurídico em apreço, transparecendo algum sentido crítico face a contextos associados ao consumo e tráfico e aparente vínculo a um projeto de vida alicerçado em hábitos de trabalho que valoriza.
90. O Arguido salienta o impacto da prisão no seu projeto de vida e em particular junto da sua família, filhos e namorada.»
FUNDAMENTAÇÃO
- do erro notório na apreciação da prova, nos termos da al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal
Em sede de recurso, pode o Tribunal da Relação de Lisboa reapreciar a matéria de facto por uma de duas vias.
Por um lado, como consequência da apreciação dos vícios previstos no art.º 410.º/2 do Código de Processo Penal, ou seja, com um âmbito mais restrito. Neste domínio, o Tribunal deverá verificar a ocorrência de tais vícios a partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Constatada a ocorrência de um dos apontados vícios, cumpre ao Tribunal de recurso corrigir a decisão de facto em conformidade, ou remeter o processo à primeira instância para proceder a tal reparação caso não esteja ao seu alcance, desta forma alcançando o fim do recurso.
Por outro lado, poderá o Tribunal da Relação de Lisboa ser chamado a pronunciar-se no âmbito de uma impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412.º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, caso em que a apreciação versará a prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.
Neste recurso que nos ocupa, a pretensão recursiva visa a apreciação restrita, pois o Recorrente quer que se reconheça ter ocorrido um erro de julgamento relativamente aos factos que traduzem o seu dolo.
No seu entender a matéria de facto constante dos pontos 1, 2 e 4 a 30 dos factos provados, mesmo processada no âmbito de qualquer princípio empírico, experiência comum ou sentido de normalidade, não permite razoavelmente alcançar os elementos do dolo de um crime de tráfico de estupefacientes.
Vejamos, então.
A fundamentação da decisão de facto é: «O Tribunal fundou a sua convicção, quanto à matéria de facto dada como provada, com base no conjunto da prova produzida, analisada criticamente, à luz das regras do bom senso e da experiência comum.
Desde logo, e no que respeita à factualidade imputada ao arguido AA, foram consideradas as respectivas declarações, durante as quais admitiu, confessando-os, os referidos factos (o transporte do estupefaciente que lhe foi apreendido, o acordado com as pessoas que o encarregaram de tal tarefa, designadamente quanto ao valor que receberia, e ao posterior encontro com outra pessoa a quem deveria entregar a substancia em causa), tendo esclarecido o contexto em que os mesmos ocorreram, em termos essencialmente coincidentes com o descrito a propósito das suas condições pessoais e com base no relatório social.
Mais confirmou o mesmo Arguido que o telemóvel que lhe foi apreendido foi o usado para os contactos tendentes à entrega, que ficou de efectuar, do produto estupefaciente em território português, e que a quantia em euros que tinha consigo – que obteve com recurso a empréstimos - se destinava a custear as despesas da sua estadia em Portugal, estadia essa que tinha como único propósito a entrega do produto estupefaciente.
O arguido AA deu ainda conta, nas suas declarações, da colaboração que prestou à Policia Judiciária, por forma a que fosse possível a identificação e detenção da pessoa que teria ficado de receber o produto estupefaciente em Portugal, como veio a acontecer, nos termos acima descritos nos pontos 37 e 38 dos factos provados e confirmados pelos depoimentos testemunhais dos Senhores Inspectores CC, DD e EE.
Com efeito, a propósito dos termos em que o Arguido colaborou com as autoridades, registou-se apenas, entre as declarações do primeiro e os depoimentos acima mencionados, a divergência de o Arguido ter referido que foram os Senhores Inspectores a manter – através do seu telemóvel – as conversas tendentes à obtenção de indicações sobre o local e momento da entrega do estupefaciente, enquanto que estes afirmaram ter sido o próprio Arguido a escrever as mensagens, fazendo-o na sua presença e com o seu total conhecimento.
Tal divergência não nos parece assumir relevância, por qualquer das versões em causa se mostrar compatível com a efectiva cooperação do Arguido, nos termos alegados em sede de contestação e julgados provados sob os pontos 37 e 38.
Levou-se ainda em conta a prova já constante dos autos, sendo concretamente o auto de notícia de fls. 2 e ss, a reportagem fotográfica de fls. 14 e ss - na qual são visíveis as embalagens do produto que veio a apurar-se ser cocaína e o modo como parte destas se encontravam presas junto ao corpo do Arguido –, o auto de apreensão de fls. 18-19, o auto de diligência de fls. 27 a 29 – relativo à deslocação dos elementos da PJ com o Arguido até ao ... e ao aí ocorrido – o auto de análise de equipamento de fls. 30 a 33 (contendo imagens fotográficas das conversas mantidas entre o Arguido e a pessoa que lhe fornecia as indicações tendentes à entrega do estupefaciente) e ainda o bilhete electrónico e a reserva de hotel juntos a fls. 20 a 22.
A factualidade demonstrada por tais elementos de prova foi ainda confirmada pelas testemunhas CC, DD e EE, todos Inspectores da Polícia Judiciária que, depondo de forma segura e isenta, em termos perfeitamente coerentes entre si e compatíveis com o relatado nos autos de notícia e de diligência acima referidos, deram conta das suas intervenções, sendo o Sr. Inspector DD ainda no aeroporto (onde se deslocou após ter sido detectado produto suspeito de ser estupefaciente na posse do arguido AA) e todos eles, nas instalações da Polícia Judiciária – para onde o Arguido foi levado –, no percurso até ... e nos factos aí ocorridos.
Quanto ao arguido BB, em declarações que prestou em audiência de julgamento, o mesmo, não pondo em causa a sua ida até ao ... e contacto aí estabelecido com o arguido AA negou, contudo, que tal deslocação visasse, da sua parte, a recolha de produto estupefaciente, bem como o conhecimento de que a pessoa com quem iria encontrar-se o teria consigo.
Assim, declarou ter sido contactado por um amigo que vivia em ... e apenas conhece por “...”, o qual lhe perguntou se estava em … e lhe pediu para ir buscar uma pessoa a um hotel, para depois a levar até casa de um primo seu, numa morada que apenas depois lhe indicaria, devendo para tanto o Arguido ligar-lhe novamente quanto tivesse essa pessoa consigo no carro.
Mais referiu que o seu amigo “...” o informou do hotel onde deveria ir recolher essa pessoa e descreveu a roupa que a mesma usava, dizendo-lhe ainda que que esta traria consigo uma mochila e que deveria dizer à mesma que vinha “da parte da …”.
Esclareceu ainda o Arguido que o primeiro contacto telefónico recebido do “...” a pedir tal favor teve lugar entre as 14 e as 15 horas, e que pelas 19 horas o mesmo voltou a ligar-lhe dizendo que já podia ir ter ao hotel e fornecendo as demais informações acima referidas sobre, designadamente, o modo como o indivíduo trajava.
Em declarações prestadas também pelo arguido BB em sede de primeiro interrogatório de arguido detido, perante Juiz de Instrução Criminal, reproduzidas em audiência de julgamento, havia já o mesmo dado conta do pedido feito pelo seu amigo “...” para dar boleia a uma pessoa que deveria recolher no hotel.
Mais referiu que, nessa data, veio do ... – onde reside - para a zona de … para ir dar apoio à filha, a qual estaria na escola até às 17h30, e que nessa mesma tarde voltaria para o ....
Ora, a versão do arguido BB acima sintetizada mostra-se, por si só e no entender do Tribunal, totalmente destituída de sentido, face ao que são as regras da lógica e da experiência comum.
Com efeito, mesmo admitindo-se que alguém peça a um amigo, ou conhecido (a circunstância de o Arguido apenas o conhecer como “...” e o demais referido quanto à relação entre ambos não permite sequer concluir por grande proximidade entre ambos) o favor de dar boleia a outrem que não conhece, sem que para tanto lhe preste muitas informações, já se mostra totalmente desfasado do que são tais regras de experiência comum que não informe sequer o nome da pessoa a transportar, ou, desde logo, o destino desse transporte, antes descrevendo a roupa usada pela mesma, como única forma da sua identificação, e combinando novo contacto para, então, indicar onde a mesma deve ser levada.
Por outro lado, tendo o Arguido afirmado, em primeiro interrogatório de arguido detido, que se deslocara do ... para Lisboa para estar com a filha – que precisava do seu apoio – e que regressaria ainda nessa tarde, não se compreenderia que se comprometesse a (durante o período em que poderia estar com a filha) se mantivesse disponível para fazer esse favor, por tempo completamente indeterminado e, a partir de certa altura, claramente incompatível com o referido propósito da sua deslocação, de estar com a filha.
Com efeito, o Arguido referiu ter recebido o primeiro telefonema do amigo a pedir o favor entre as 14 e as 15 horas, e novo telefonema deste pelas 19, dizendo-lhe para ir para o hotel, o que fez, resultando do auto de diligência de fls. 27 e ss, do auto de busca e apreensão de fls. 41 e ss e do auto de apreensão de veículo de fls. 44, que o arguido AA recebeu indicação por mensagem para ir para o exterior do hotel pelas 21h15m e que a abordagem do arguido BB na sua viatura terá ocorrido pelas 21h30.
Finalmente, e mais importante, a conduta do arguido BB – apurada com base no descrito no auto de diligência e nos depoimentos testemunhais prestados - ao encontrar-se com o arguido AA mostra-se totalmente incompatível com o invocado propósito de ir dar-lhe boleia a pedido de um amigo e, por outro lado, claramente compatível, com o apontado objectivo de ir junto do mesmo recolher produto estupefaciente.
De facto, de acordo com o descrito nesse auto e, em termos consentâneos, pelas testemunhas acima referidas, o arguido BB encontrava-se, aquando da saída de AA para o exterior do hotel, a observar o espaço, tendo feito a este último um gesto indicando que o seguisse, mas sem se aproximar do mesmo, cumprimentá-lo, apresentar-se ou estabelecer qualquer tipo de conversa, tendo-lhe apenas dito para ir que tinha o carro ali, após o arguido AA o seguiu e ambos percorreram, sempre afastados um do outro e sem falar um com o outro, o percurso até ao local onde se encontrava a viatura.
A testemunha DD referiu ainda ter ouvido ao arguido BB, dirigindo-se a AA, a expressão “anda que venho buscar a encomenda da …”.
Tais são os motivos que levaram o Tribunal, não só a afastar, sequer como hipótese a conceber, a versão apresentada pelo arguido BB, como a concluir, a partir do comportamento por este adoptado, conjugado com as instruções recebidas pelo arguido AA (a quem foi dito que se deslocasse àquele hotel para ir ao encontro da pessoa a quem deveria entregar o estupefaciente, pedido que enviasse uma fotografia para ser identificado por essa pessoa, e indicado que fosse para o exterior quando o arguido BB já lá estava) e com o apurado, com base nos demais elementos acima referidos, quanto ao produto estupefaciente que AA trouxera consigo desde o ..., que BB efectivamente se deslocou aquele lugar para aí receber esse produto, de acordo com instruções recebidas nesse sentido, em execução de plano previamente gizado, sendo do seu conhecimento a natureza do produto que iria recolher.
A prova da factualidade relativa aos objectos encontrados na posse do arguido BB assentou na análise dos autos de revista e de busca e apreensão de fls. 37 e ss, e a relativa às características, natureza e quantidade do produto estupefaciente, no teor do relatório de exame pericial de fls. 237.
Os aspectos relativos aos elementos subjectivos, designadamente referentes ao conhecimento, por parte dos Arguidos, do carácter proibido e punível das suas condutas, e aos propósitos por si visados, resultam logicamente demonstrados em decorrência da demais matéria provada, e por referência às regras da experiência comum, nada se tendo apurado que fizesse duvidar terem os arguidos agido de forma livre, deliberada e consciente, forma essa aliás patente no modo como actuaram, em face das circunstâncias apuradas.
Especificamente, no que respeita ao destino – venda a terceiros – do produto estupefaciente em causa, não poderiam os Arguidos desconhecê-la, face às características de tal substância e aos fins evidentes do seu transporte.
A prova da ausência de antecedentes criminais do arguido AA e do antecedente do arguido BB resultaram da análise dos respectivos CRC, juntos aos autos, enquanto a matéria relativa às condições pessoais, económicas, sociais e familiares dos arguidos resultou provada com base no teor dos relatórios sociais elaborados, nas declarações dos Arguidos – que, no essencial, confirmaram o que resulta de tais relatórios – e, quanto ao arguido BB, no teor do extracto remunerações declaradas à Segurança Social. ».
Perante o princípio da livre apreciação da prova tal como consagrado no art.º 127.º do Código de Processo Penal, que permite ao julgador recorrer às regras da experiência e sua convicção, desde que logre justificá-la permitindo a respectiva compreensão e sindicância, desde já se adianta que a fundamentação citada é clara, perceptível e não enferma de qualquer dos vícios do art.º 410.º/2 do Código de Processo Penal.
Com efeito, a matéria de facto relativa à acção do Arguido ora Recorrente ficou demonstrada pelos relatos dos Inspectores intervenientes na vigilância e os argumentos do Tribunal a quo sobre a motivação e intenção do Arguido mostram-se isentos de censura. Com efeito, repete-se o argumento: «Os aspectos relativos aos elementos subjectivos, designadamente referentes ao conhecimento, por parte dos Arguidos, do carácter proibido e punível das suas condutas, e aos propósitos por si visados, resultam logicamente demonstrados em decorrência da demais matéria provada, e por referência às regras da experiência comum, nada se tendo apurado que fizesse duvidar terem os arguidos agido de forma livre, deliberada e consciente, forma essa aliás patente no modo como actuaram, em face das circunstâncias apuradas.
Especificamente, no que respeita ao destino – venda a terceiros – do produto estupefaciente em causa, não poderiam os Arguidos desconhecê-la, face às características de tal substância e aos fins evidentes do seu transporte.».
Não é a convicção pessoal do recorrente, ou de qualquer outro interveniente que irá sobrepor-se à convicção do Tribunal. Caso contrário, nunca seria possível alcançar uma decisão final. O Tribunal de recurso apenas poderá intervir de forma correctiva perante a invocação fundamentada de um erro de apreciação da prova, que venha a concluir ter existido.
Ora, as provas das ações do Arguido resultaram dos depoimentos das testemunhas que os presenciaram. Viram os seus movimentos, ouviram as suas palavras. Estando o Tribunal ciente daquilo que era exigido ao co-Arguido para entregar a droga que transportava, interpretou o decisor as acções do Recorrente como sendo destinadas à recolha do produto. Atente-se no argumento de que a conduta do Recorrente apurada com base na descrição do auto de diligência e nos depoimentos testemunhais presenciais, se mostra totalmente incompatível com o propósito de ir dar-lhe boleia a pedido de um amigo. Pelo contrário, é compatível com o objectivo de recolha do produto estupefaciente.
Mas, conforme entendeu o Tribunal Recorrido, aquando da saída do co-Arguido para o exterior do hotel, o Recorrente encontrava-se a observar o espaço, tendo-lhe feito um gesto indicando que o seguisse, sem se aproximar, sem o cumprimentar, apresentar-se ou estabelecer qualquer tipo de conversa. Apenas disse que tinha o carro ali, após o que caminharam, sempre afastados e sem falarem um com o outro, até àquela viatura. Pedra de toque final, o Tribunal a quo reportou que uma testemunha ouviu o recorrente, dirigindo-se co-Arguido, a expressão «anda que venho buscar a encomenda da …».
Retirar deste comportamento que o Recorrente agiu com dolo de prática de um crime de tráfico não é errado, pelo que soçobra o argumento do recurso
- foi a decisão fundada num duplo grau de prova indirecta, e tal é inaceitável, face ao disposto no art.º 127.º do Código do Processo Penal.
Segundo a leitura do Recorrente, quando Tribunal a quo inferiu os factos correspondentes ao elemento subjectivo do crime de tráfico, fê-lo assentando numa factualidade já por si alcançada com base num silogismo a partir da prova indirecta.
Não é, como vimos, o caso. O apuramento das acções do ora Recorrente assentou em prova directa, nomeadamente na descrição do auto de diligência e nos depoimentos testemunhais presenciais.
Ainda assim, porquê distinguir a prova indirecta, quando esta é perfeitamente admissível à luz do Direito processual penal?
Nada obsta ao recurso da figura da prova indirecta para obter uma resposta quanto à matéria de facto levada à apreciação do Tribunal. Com efeito, «Sabido é que o tribunal a quo pode prevalecer-se da prova indirecta ou indiciária para chegar à convicção que formou, pois, esta prova (que se distingue da prova directa) é admissível pelo nosso ordenamento jurídico.
A prova indirecta ou indiciária reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência (sendo estas “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentemente do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.
A eficácia probatória da prova indiciária está dependente da verificação de quatro requisitos, a saber: a prova dos indícios; concorrência de uma pluralidade de indícios; raciocínio dedutivo entre os indícios provados e os factos que deles se inferem, devendo existir um nexo preciso, directo, coerente, lógico e racional.
Se o tribunal recorre à prova indiciária, tem de dar a conhecer o seu raciocínio dedutivo e, sendo este omitido, impede a instância de recurso de sindicar se efectuou (ou não) uma apreciação objectiva da prova produzida, em conformidade com as regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.» [ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 24/09/2019, Desembargador Artur Vargues, ECLI:PT:TRL:2019:294.17.2JGLSB.L1.5.7B] – (negrito nosso).
Como este mesmo Desembargador acrescenta, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/09/2023, [ECLI:PT:TRE:2023:147.21.0PCSTB.E1.1E], «De acordo com o artigo 349º, do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”, admitindo-se as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, como se extrai do artigo 351º do mesmo.
E é perfeitamente possível o recurso à prova indirecta ou indiciária para chegar à convicção que formou o tribunal a quo, pois esta prova (que se distingue da prova directa) é admitida no nosso ordenamento jurídico também no âmbito do processo penal – cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 11/12/2003, Proc. nº 03P3375; 07/01/2004, Proc. nº 03P3213; 09/02/2005, Proc. nº 04P4721; 04/12/2008, Proc. nº 08P3456; 12/03/2009, Proc. nº 09P0395 e de 18/06/2009, Proc. nº 81/04PBBGC.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt e também o Ac. do Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, que decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 127º, do CPP, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal –assim também o Acórdão deste mesmo Tribunal nº 521/2018, de 17/10/2018, que pode ser lido no respectivo sítio.
A prova indirecta reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, da lógica, do raciocínio indutivo e inferência, extrair uma ilação quanto ao tema da prova.»
No mesmo sentido encontramos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2006, Conselheiro Santos Carvalho, [ECLI:PT:STJ:2006:06P4096.3A] «As normas dos artigos 126° e 127° do CPP podem ser interpretadas de modo a permitir que possam ser provados factos sem que exista uma prova directa deles. Basta a prova indirecta, conjugada e interpretada no seu todo.
Essa interpretação não ofende quaisquer princípios constitucionais, como o da legalidade, ou das garantias de defesa, ou da presunção de inocência e do contraditório, consagrados no art.º 32.°, n.º 1, 2, 5 e 8 da Constituição da República Portuguesa, desde que haja uma fundamentação crítica dos meios de prova e um grau de recurso em matéria de facto para efectivo controlo da decisão.»
Ou seja, não há que temer a prova indirecta. Existem regras para a sua utilização e não produz decisões arbitrárias ou incoerentes. Tem um substracto objectivo e é fruto de um processo sindicável. «A prova indirecta (ou indiciária) não é um “minus” relativamente à prova directa. Pelo contrário, pois se é certo que na prova indirecta intervêm a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova directa intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. No entanto, a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.» - ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 16/11/2010, Desembargadora Alda Tomé Casimiro
ECLI:PT:TRL:2010:3607.05.6TASNT.L1.5.D3.
Como tal, não se vislumbra qualquer erro na decisão recorrida, pelo que naufraga o recurso agora apreciado.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso, mantendo-se inalterada a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a respectiva taxa de justiça.

Lisboa, 06.Maio.2025
Rui Coelho
Manuel Advínculo Sequeira
Ana Cristina Cardoso