IN DUBIO PRO REO
INCUMPRIMENTO DOS DEVERES DE SERVIÇO
Sumário

I- Quando o Tribunal, após a produção de prova, permanece com uma dúvida fundada acerca da ocorrência ou não de uma determinada factualidade, deve resolvê-la a favor do arguido em obediência ao princípio in dubio pro reo.
II – Não cometem o crime de incumprimento dos deveres de serviço, p. e p. pelo artigo 67º, nº 1 alínea d), do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro, os militares que, no decurso do serviço de patrulha que se encontravam a desempenhar, receberam do então seu superior hierárquico (o militar mais graduado) ordem para descansar, dado que se encontravam de serviço há muitas horas, tendo este assegurado que a missão continuaria a ser por si assegurada. Uma coisa é adormecer sabendo-se que, com isso, a missão em curso não se cumpre, total ou parcialmente, ou fica em risco. Outra é adormecer com a garantia de que a missão não é beliscada, continuando a ser assegurada por outrem.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores e o Juiz Militar da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
I. No processo comum coletivo nº 49/23.5GTBJA do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa, Juiz 5, foi proferido acórdão, em 11.12.2024, no qual se decidiu absolver os arguidos AA, BB, CC e DD da prática do crime de incumprimento dos deveres de serviço, p. e p. pelo artigo 67º, nº 1, alínea d), do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15 de novembro, de que vinham acusados.
II. Inconformado, recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«
I. - No douto acórdão ora em crise foi decidido absolver os quatro arguidos - AA, DD, BB e CC - que estavam acusados da prática, em autoria material de um crime de incumprimento dos deveres de serviço, p. e p. pelo artigo 67º, nº1/d do C. de Justiça Militar (CJM).
II. - No que respeita aos arguidos AA e DD, foi entendido que inexistiu prova cabal e contundente quanto a estes arguidos que estivessem a dormir, já no que respeita aos arguidos BB e CC, ali se escreveu que os mesmos terão actuado sem culpa, porque outros assegurariam a missão e porque apenas se limitaram a obedecer a ordem dada pelo militar mais graduado no terreno.
III. – O depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha EE (14m21seg. e ss. aos 16min54seg.), aliado à informação de serviço que havia elaborado à data dos factos, foi claro no sentido de:
• desde o carro da primeira patrulha até ao carro ocupado por AA e DD, ter feito uma caminhada de 2 minutos durante os quais esta testemunha foi fazendo feixes de luz na direcção do carro onde se encontrava a patrulha constituída pelos arguidos AA e DD;
• apesar de tais feixes, dentro do carro não houve movimento;
• que esta testemunha ficou parada junto ao vidro da porta do condutor, lugar onde estava sentado o arguido AA,
• que olha para dentro do veículo e para o seu condutor e vê este arguido de olhos fechados;
• vê também o arguido DD deitado de lado, no banco reclinado, virado de costas para si;
• com a insistência da luz, o arguido AA acaba por abrir os olhos e tem uma breve conversa com a testemunha;
• apenas quando este arguido reage, o arguido DD reage também.
IV. A descrição das circunstâncias em que esta testemunha encontra aqueles dois arguidos é totalmente compatível com o facto de estarem aqueles a dormir, daí a não reacção imediata que é suposto existir para quem, sendo militar, está (ou deve estar) em prontidão operacional, como era o caso dos arguidos.
V. – Considerando as circunstâncias referidas no ponto 3 das conclusões, admitir o contrário é contrariar as regras da experiência. A explicação mais evidente, é aquela a adoptar pois que será essa a consentânea com as regras da experiência e do normal acontecer. Todos os “sinais lidos” e declarados (oralmente e por escrito) pela testemunha EE são confluentes e concordantes com o facto de aqueles dois arguidos estarem a dormir.
VI. – E não se diga como se escreveu no douto acórdão que inexiste “razão objectivável para que prevaleça a convicção adquirida pela testemunha EE, ao aproximar-se do veículo, sobre a versão sustentada de forma firme e categórica pelos arguidos.”, pois que ser arguido e em caso de condenação, ser-lhe aplicada uma pena – abstractamente fixada num mínimo de 1 mês a 1 ano de prisão, máximo – e eventualmente ser sujeito a um processo disciplinar, são razões objectiváveis para a negação categórica dos factos.
VII. - Para além desta negação categórica dos arguidos AA e DD, nenhuma outra prova existiu que ponha em causa a tese da acusação.
VIII. - Desta forma e quanto à apreciação dos factos relativos a estes dois arguidos, entendemos que o Tribunal violou o disposto no art.º 67º, nº1/d do Código de Justiça Militar e nos artigos 127º, 374º, nº 2 e 355º do código de processo penal, pelo que em face da prova produzida – testemunhal e documental – as al.s A), B) e C) dos factos não provados no que respeita aos arguidos AA e DD deverão transitar para os factos provados, condenando-se aqueles dois arguidos em conformidade.
IX. – No que respeita aos arguidos BB e CC, apesar de ter sido dado como provado que estavam a dormir, foi considerado pelo Tribunal a quo que actuaram sem culpa, não só por que lhes foi garantido por AA que ele e o guarda DD assegurariam a missão, como também por que lhes foi dada ordem pelo arguido AA nesse sentido, não se tendo por isso colocado propositadamente na situação de impossibilidade de cumprir a missão, como também porque deviam escrupuloso respeito a tal ordem.
X. - Os arguidos BB e CC, estavam de serviço naquele dia, aquela hora e naquele local, conforme havia sido decido pelo Comandante do Destacamento Territorial, pelo que eram todos aqueles arguidos necessários à garantia de prossecução da missão que lhes tinha sido confiada.
XI. - Ignoraram estes arguidos a ordem do seu Comandante e deixaram-se adormecer, bem sabendo que de tal forma se colocavam na impossibilidade de exercer as funções inerentes ao serviço para o qual estavam legalmente nomeados.
XII. - Com ordem ou sem ordem do arguido AA (e no caso, essa ordem era ilegal), é um facto que aqueles dois arguidos adormeceram, voluntariamente, e facto também é que o fizeram por que quiseram dormir. Dormirem em serviço apenas dependeu de si e da sua vontade, ainda que soubessem que não o podiam fazer.
XIII. – Quanto à ordem que lhe foi dada, cumpre salientar que os arguidos BB e CC foram nomeados pelo Comandante do Destacamento Territorial para o exercício daquela missão. Ou seja, possuíam uma ordem superior aquela que lhes foi transmitida pelo arguido AA.
XIV. - Ainda que se pudesse equacionar um conflito de deveres (que não era o caso) – o existente face ao Comandante do Destacamento Territorial vs. o existente face ao guarda mais graduado no terreno - sendo possível hierarquizá-los, o comportamento só não seria ilícito se os arguidos optassem pelo cumprimento do dever mais valioso, ou seja, o dever de cumprimento da ordem do Comandante do Destacamento Territorial. Mas assim não sucedeu.
XV. - Os arguidos BB e CC ignoraram a ordem do seu Comandante que os determinava ao cumprimento de uma missão, tendo antes optado por cumprir, ilegitimamente, diga-se, uma ordem contrária, violando assim o art.º 15º do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana.
XVI. - Desta feita, entendemos que o Tribunal violou o disposto nos arts. 15º do do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana, 67º, nº1/d do Código de Justiça Militar, no art.º 35º do C.Penal e nos artigos 127º e 374º, nºs 2 e 3/a do código de processo penal, pelo que em face da prova produzida, nomeadamente em face da confissão do arguido BB e do depoimento da testemunha FF, também os arguidos BB e CC deverão ser condenados em conformidade».
III. Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito devolutivo.
IV. Notificados para tanto, responderam os arguidos, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
«
I- Veio o digno Ministério Público, inconformado, recorrer do douto acordão que absolveu os arguidos, militares da GNR, AA, DD, BB e CC, da prática do crime de incumprimento dos deveres de serviço, p. e p pelo artigo 67.º, n.º 1, alínea d), do Código de Justiça militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro, de que vinham acusados, pretendendo que sejam os mesmos condenados pela prática daquele crime.
II- Contudo, não assiste razão à pretensão do Ministério Público, porquanto o douto acordão proferido nos autos não enferma de qualquer vício, tendo sido feita uma correcta e clara interpretação da prova que foi carreada e produzida em audiência de julgamento, e, consequentemente, fez uma correcta aplicação dos factos apurados e considerados provados ao direito aplicável.
III- Pretende o Ministério Público que seja valorado de forma diferente o depoimento prestado pela testemunha EE, de forma a que seja dado por provado os factos constantes nas alíneas A), B) e C) dos Factos Não Provados, e, em consequência, condenar-se os arguidos AA e DD, sendo que, na verdade, tal depoimento em audiência de julgamento não foi suficientemente esclarecedor relativamente aos factos, suscitando muitas dúvidas, contrariamente ao alegado pelo recorrente.
IV- Os arguidos negaram categoricamente que tivessem adormecido no decurso do serviço de patrulha e a testemunha EE, a única que se aproximou do veículo onde aqueles se encontravam, quando lhe foi perguntado pelo Ministério Público, no inicio do seu depoimento, se com a aproximação, da testemunha enquanto dava "flashadas" com a laterna o arguido AA acordou, disse de imediato e de forma espontânea: "Não sei se era acordar se não era. Em principio... (...)" - cfr. depoimento da testemunha EE a partir do minuto 14m38s.
V- Ou seja, ao longo do seu depoimento a testemunha EE referiu várias vezes que viu o arguido com os olhos fechados (cfr. gravação do minuto 14min21segs a 16min54seg) e, instado pela Meretíssima Juiz Presidente para esclarecer se os arguidos AA e DD estavam ou não a dormir, enquanto dava "flashadas" com a sua laterna na direcção daqueles, respondeu: "O cabo estava de olhos fechados, o outro militar eu não consegui ver porque ele estava de lado, de costas viradas, de costas viradas para mim". - depoimento da testemunha EE a partir do minuto 16m.17s.
VI- Ou seja, da prova produzida em audiência de julgamento não resultou esclarecido se o arguido AA tinha os olhos fechados, se os fechava encadeado pelas "flashadas" da laterna ou se estava a dormir, e, ainda, ficou claro que a testemunha nem conseguiu ver tampouco o rosto do arguido DD.
VII- Não pode Ministério Público pretender que os arguidos AA e DD sejam condenados com base numa suposição ou presunção, pois, como é consabido, para uma condenação exige-se um juízo de certeza, e não de mera probabilidade, pelo que, na ausência daquele juízo prevalece o princípio da presunção de inocência e o seu corolário que é o in dubio pro reo.
VIII- Além de que, recorrer apenas com base no entendimento de que o Tribunal a quo deveria ter atribuído maior credibilidade a uma testemunha em concreto, como o faz o digno Ministério Público, é colocar em causa o princípio da livre apreciação de prova.
IX- Certo é que o Ministério Público não logrou fazer prova que contrariasse a versão dos arguidos AA e DD, e, como tal, o douto acordão não merece qualquer reparo, devendo manter-se intocada a decisão sobre a matéria de facto constante no acordão recorrido relativamente aqueles dois arguidos.
X- De igual forma não merece reparo o douto acordão no que concerne aos arguidos BB e CC
XI- Desde logo, os arguidos BB e CC receberam ordem de descanso pelo militar mais graduado que se encontrava no local, AA, e, contrariamente, ao que alega o Ministério Público, tratou-se de uma ordem legitima e que aqueles tinham obrigatoriamente que acatar.
XII- O militar AA, além de ser o militar mais graduado das duas patrulhas, tinha recebido instruções do seu superior hierárquico para coordenar as operações no local, conforme resulta do depoimento da testemunha GG, 1.º sargento, superior hierárquico de todos os militares ― depoimento esse que o MP parece ignorar ou não pretende ver valorado ―, e que resulta da prova gravada de minutos 04m.22segs a 05m.33segs, e de minutos 06m.02s, a 06m.56s., nomeadamente:
- 04m50s.: Testemunha TR: (...) E de facto a indicação ao militar mais antigo da patrulha, neste caso era o cabo AA
Advogada: Portanto é ao cabo AA que deu indicações?
Testemunha TR: Claro que sim, sim porque isto é...
Advogada: E quais foram as indicações em concreto?
Testemunha TR: As indicações foi, como já tinha dado em patrulhas anteriores, para dosearem o esforço. (...)
- 06m.02s.: Advogada: "... Já agora nessa sequência, deu alguma indicação específica no sentido de do cabo AA coordenar a operação?
Testemunha GG: Sim, no local, não estando lá eu (...)
- 06m.39s.: Testemunha TR: "(...) naturalmente depois dou indicações que seja ele a coordenar no local a forma como se processa, não é, porque eu não estou lá.
Advogada: Existia nessa altura ou manifestava-se nessa altura já algum cansaço da parte destes homens que estavam no terreno?
Testemunha GG: "Sim, claramente, (...)"
XIII- Logo, os arguidos não ignoraram a ordem do seu Comandante, contrariamente ao que o Ministério Público alega, pois mantiveram-se no local do cumprimento da missão para o qual estavam nomeados, tendo unicamente acatado a ordem do superior hierárquico que se encontrava no local, no sentido de poderiam descansar e mais foram informados de que a missão continuaria a ser assegurada por aquele e pelo militar DD.
XIV- Assim, os arguidos obedeceram, como tinham obrigatoriamente de obedecer, à ordem legítima para descansar que lhes foi dada pelo militar mais graduado no local, o qual por sua vez tinha ordem do seu superior para coordenar a operação no local, cumprindo assim as obrigatoriedades contidas nos artigos 8.º, n.º 2, al. a) e 9.º do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana.
XV- E não resultou provado que tais militares representaram como possível que cumprindo a ordem para descansar comprometiam as suas funções no serviço de patrulha e, certo é que, a matéria de facto provada e não provada afastou a possibilidade de concluir-se pelo comportamento doloso por parte dos arguidos BB e CC.
XVI- O douto Acórdão recorrido fez uma correctíssima aplicação do direito aos factos provados, não merecendo qualquer censura e, contrariamente ao alegado pelo Ministério Público, não violou o artigo 67º, n.º 1, al. d) do Código de Justiça Militar, o artigo 35.º do Código Penal ou os artigos 127.º, 374.º, n.º 2 e 355.º do Código do Processo Penal.
XVII- O Tribunal a quo, na sentença recorrida, no exercício da sua livre convicção, indicou os motivos e fundamentos da mesma relativamente ao julgamento dos factos provados e não provados, nada havendo a apontar quanto à formação do tribunal a quo, pelo que não assiste razão ao recorrente.
XVIII- Face ao exposto, e salvo melhor entendimento, afigura-se-nos que o recurso interposto pelo digno Ministério Público não merece provimento, devendo manter-se integralmente o acordão recorrido».
V. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público, que emitiu parecer concluindo pela procedência do recurso e pela condenação dos arguidos.
VI – No exercício do contraditório, os arguidos reiteraram que o recurso deve improceder.
VII – Feito o exame preliminar, foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência.
OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar.
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
1. Do erro de julgamento.
2. Do preenchimento do tipo de crime pelo qual os arguidos foram acusados e, se se concluir pela verificação dos seus elementos, da determinação das penas concretas.
DO ACÓRDÃO RECORRIDO
Do acórdão recorrido consta a seguinte fundamentação (transcrição):
FACTOS PROVADOS:
1. Os arguidos são militares da Guarda Nacional Republicana (doravante G.N.R.), sendo que, nos dias... e ... de ... de 2023, prestavam serviço na área territorial do Posto Territorial de ..., concretamente:
• O arguido CC n.º ..., AA, é militar da G.N.R. desde ... de ... de 2006 e encontra-se colocado no referido Posto Territorial de ... desde ... de ... de 2014;
• O arguido Guarda-principal n.º ... BB, é militar da G.N.R. desde ... de ... de 2002 e encontra-se colocado no Posto Territorial de ... desde ... de ... de 2009;
• O arguido Guarda-principal n.º ..., CC, é militar da G.N.R. desde ... de ... de 2024 e encontra-se colocado no Posto Territorial de ... desde ... do mesmo ano;
• O arguido Guarda n.º ..., DD, é militar da G.N.R. desde ... de ... de 2019 e encontra-se colocado no Posto Territorial de ... desde ... de ... de 2022;
2. Nos dias ... de ... de 2023 o arguido BB e o arguido CC encontravam-se legalmente nomeados para efectuar o serviço de patrulha na área do referido Posto Territorial, no período compreendido entre as 21h00 do dia 16 e as 05h00 do dia 17, com o veículo automóvel da marca “...”, modelo “...”, com a matrícula ..-XI-..;
3. Com efeito, tal serviço de patrulha, relativamente ao qual o arguido BB assumia as funções de Comandante de Patrulha, tinha como missão a operação designada por “...”, que visava fazer face aos furtos que se verificavam na referida área, desde há cerca de dois meses, bem como o controlo aleatório de fronteiras;
4. Por referência aos mesmos dois dias ... e ... de ... de 2023, o arguido AA e o arguido DD encontravam-se legalmente nomeados para efectuar o serviço de patrulha na área do referido Posto Territorial, no período compreendido entre as 22h00 do dia 16 e as 06h00 do dia 17, com o veículo da marca “...”, modelo “...”, com a matrícula L-....;
5. Tal serviço de patrulha, relativamente ao qual o arguido AA assumia as funções de Comandante de Patrulha, tinha igualmente como missão a operação designada por “...” que visava fazer face aos furtos que se verificavam na referida área, desde há cerca de dois meses, bem como o controlo aleatório de fronteiras;
6. Nesta sequência, em hora não concretamente apurada, mas situada no período compreendido entre o início do serviço de patrulha, às 22h00 e as 02h50, no exercício das suas funções e, concretamente, no âmbito dos serviços de patrulha referidos, os militares que compunham os dois serviços de patrulha estacionaram os veículos respetivamente atribuídos a cerca de cinquenta metros de distância um do outro, num sítio ermo, junto ao ..., em ...;
7. Após o que, em hora não concretamente apurada, mas situada no período compreendido entre as 22h00 e as 02h50, no decurso do serviço de patrulha, o arguido BB e o arguido CC receberam do arguido AA, militar mais graduado de entre os que se encontravam a desempenhar a aludida missão, ordem para descansar, dado que se encontravam de serviço há muitas horas e a missão continuaria a ser assegurada por si e pelo arguido DD;
8. Na sequência da referida ordem, os arguidos BB e CC adormeceram no interior do veículo automóvel com a matrícula ..-XI-..;
Mais se apurou que:
9. O arguido AA viveu em ..., onde nasceu, até aos 18 anos de idade, integrado na família de origem; o progenitor era ... e a mãe ..., sendo o arguido filho único do agregado, de condição humilde e sem problemáticas associadas;
10. Frequentou o ensino em idade própria, tendo concluído apenas o 9o ano, por desejo de autonomia financeira; posteriormente ingressou na GNR, tendo concluído Formações específicas nas áreas de ... e frequentado o Curso de Cabo da GNR; em ... cumpriu uma ... e em 2014 foi colocado no Posto Territorial de ..., onde presta serviço até à atualidade;
11. Do seu agregado familiar fazem parte o cônjuge e dois filhos, de 4 e 9 ancs de idade; o arguido tem ainda outro filho, de um anterior relacionamento, com 19 anos, que reside com a progenitora;
12. O arguido aufere, de vencimento, cerca de € 1.500 mensais e o cônjuge aufere, do exercício da sua profissão enquanto ... cerca de € 800 por mês;
13. O arguido é tido, no seio profissional, como um militar responsável e cumpridor das suas funções;
14. Dispõe de boa imagem no meio social em que se insere;
15. Não apresenta registo de sanções disciplinares;
16. Da sua folha de matrícula constam quatro condecorações, sete louvores e quatro referências elogiosas;
17. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais;
18. O arguido BB é natural de ..., região onde continua a residir; o progenitor já faleceu devido a doença oncológica e a progenitora encontra-se reformada; tem um irmão mais velho, autonomizado;
19. O agregado de origem era normativo, de condição humilde e os seus membros dedicados ao trabalho, sem problemáticas associadas;
20. Frequentou o ensino em idade própria, sem problemas de aprendizagens e comportamentais; após terminar o 9o ano iniciou actividade laborai, frequentando em simultâneo o ensino em regime noturno, tendo concluído, aos 20 anos, o 12º ano de escolaridade;
21. Ingressou na GNR com 22 anos, tendo concluído a formação específica no ...;
22. Do seu agregado familiar fazem parte o cônjuge e dois filhos, de 11 e 17 anos de idade;
23. O arguido aufere, de vencimento, cerca de € 1.500 mensais e o cônjuge aufere, do exercício da sua profissão enquanto ..., cerca ds € 900 por mês;
24. O arguido é considerado, por colegas e superiores hierárquicos, como um militar responsável, zeloso e cumpridor das suas funções;
25. Dispõe de boa imagem no meio social em que se insere;
26. Não apresenta registo de sanções disciplinares;
27. Da sua folha de matrícula constam duas condecorações, três louvores e uma referência elogiosa;
28. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais;
29. O arguido CC reside com o cônjuge, dois filhos, de 3 e 8 anos de idade, e uma enteada, de 18 anos de idade;
30. O relacionamento intra-familiar pauta-se pela harmonia e coesão;
31. Desde ... que desenvolve o respectivo trabalho no Destacamento de ..., em alguns dos Postos Territoriais que o integram; passou a integrar o contingente da GNR após cerca de sete anos de afectação ao Exército Português, no qual ingressou como voluntário, tendo alcançado o posto de sargento;
32. O arguido aufere, de vencimento, cerca de € 1.600 mensais e o cônjuge aufere, do exercício da sua profissão enquanto ..., cerca de € 870 por mês;
33. O arguido é considerado, por colegas e superiores hierárquicos, como um militar responsável e cumpridor das suas funções;
34. Dispõe de boa imagem no meio social em que se insere;
35. Não apresenta registo de sanções disciplinares;
36. Da sua folha de matrícula consta uma referência elogiosa;
37. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais;
38. O arguido DD é oriundo de um agregado familiar constituído pelos progenitores e um irmão mais novo, de 21 anos, residentes em ..., localidade onde desenvolveu todo o seu percurso de crescimento, escolar e de socialização;
39. O agregado familiar sempre residiu numa habitação de função, integrada numa herdade rural onde os progenitores trabalham; o relacionamento intra-familiar pauta-se pela coesão, inter-ajuda e apoio mútuo;
40. O arguido mantém o relacionamento afectivo com a companheira desde ha três anos, residindo com a mesma em união de facto há cerca de um ano, tendo um filho com 3 meses de idade;
41. A relação familiar é gratificante e de proximidade entre os seus elementos;
42. Teve um percurso escolar normativo e concluiu o 12º ano de escolaridade em idade adequada;
43. Ingressou na carreira militar com o curso de ... da Guarda Nacional Republicana (GNR), que concluiu aos 19 anos;
44. O arguido aufere, de vencimento, cerca de € 1.500 mensais e a companheira aufere, do exercício da sua profissão enquanto ... da ..., cerca de € 800 por mês;
45. O arguido é considerado pelo grupo de pares, colegas e amigos, como uma pessoa sensata, colaborante e empática; profissionalmente é tido como responsável e cumpridor;
46. Encontra-se socialmente adaptado na comunidade local, bem referenciado e com excelente imagem social, mostrando-se sempre disponível e participante nas atividades comunitárias; mantém ocupação de tempos livres estruturada, integrando o “...”;
47. Não apresenta registo de sanções disciplinares;
48. Da sua folha de matrícula constam quatro referências elogiosas;
49. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais;
FACTOS NÃO PROVADOS:
Com relevo para a decisão da causa, não resultou provado que;
A. Em hora situada no período compreendido entre o início do serviço de patrulha, às 22h00, e as 02h50 da data supra referida, no decurso do serviço de patrulha, os arguidos AA e DD tenham adormecido no interior do veículo com a matrícula L- …;
B. Os arguidos AA, DD, BB e CC tenham representado como possível que, encontrando-se no interior dos veículos, em sítio ermo, pudessem adormecer, conformando-se com tal resultado, bem sabendo que, ao adormecerem, se colocavam na impossibilidade de exercer as funções inerentes ao serviço de patrulha que se encontravam a efectuar e para o qual se encontravam legalmente nomeados, não cumprindo o que lhes havia sido superiormente determinado na guia de patrulha e pondo assim em causa a missão de segurança da G.N.R.;
C. Os arguidos tenham agido de forma livre, voluntária e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
*
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
O tribunal fundou a sua convicção, em primeiro lugar, com base nas declarações prestadas pelos arguidos AA, BB e DD em audiência de julgamento, tendo o arguido CC optado por, fazendo uso do seu direito ao silêncio, não prestar declarações.
Ora, o arguido AA confirmou, na generalidade, o serviço de patrulha que, em conjunto com os seus co-arguidos, se encontrava a desempenhar, nas circunstâncias de tempo e lugar que supra se consideraram assentes, tendo porém rejeitado, categoricamente, ter adormecido, rejeitando ainda que o arguido DD, que consigo se encontrava no veículo, tenha adormecido em algum momento. Mais referiu que, por nessa ocasião se encontrar a desempenhar as funções de Comandante de Patrulha no âmbito do serviço em apreço, sendo o militar mais graduado de entre os quatro, e por ter conhecimento de que os militares BB e CC se encontravam de serviço, ininterruptamente, há muitas horas, tendo igualmente prescindido de dias de folga, lhes ordenou que descansassem, assegurando- lhes que a missão continuaria a ser desempenhada por si e pelo guarda DD.
Por sua vez, as declarações prestadas em audiência pelos arguidos BB e DD foram coincidentes com as do arguido AA, tendo o primeiro reconhecido que, na sequência da ordem que recebeu do seu superior hierárquico, adormeceu por alguns instantes, e o segundo rejeitado, de forma assertiva, tê-lo feito no decurso do referido serviço de patrulha.
Ora, desde já se diga que a versão trazida a julgamento pelos arguidos AA e DD, de que não adormeceram no decurso do serviço de patrulha em apreço, não logrou ser contrariada, de modo firme, cabal e convincente pelos demais meios de prova produzidos em audiência. Na verdade, a testemunha EE, guarda-principal do Destacamento de Intervenção de ..., e subscritor da informação de serviço de fls. 8 e 9, cujo teor confirmou em audiência, referiu que, por ter estranhado não receber comunicações via rádio das equipas de patrulha que se encontram no terreno (equipas estas localizadas nas áreas dos Postos Territoriais de ...e ...), decidiu ir ao encontro de ambas, tendo localizado a patrulha composta pelos arguidos e pelos dois veículos em que os mesmos se encontravam (pertencentes ao Posto Territorial de ...) num lugar ermo nas proximidades do cruzamento de ... (esta última, localidade espanhola na fronteira com Portugal). Segundo descreveu, ao aproximar-se do veículo onde se encontravam os arguidos BB e CC, constatou que estes se encontravam a dormir profundamente, com os bancos reclinados, e que, não obstante os barulhos que produziu no exterior, os mesmos não acordaram e mantiveram-se a dormir durante cerca de vinte minutos. Mais referiu que, de seguida, ao constatar a cerca de cinquenta metros o veículo onde se encontravam os arguidos AA e DD, foi ao seu encontro, incidindo a lanterna que levava na mão para o interior da viatura, de forma que descreveu como “flashadas” de luz, o que fez com que o arguido AA, que se encontrava sentado no lugar do condutor, “acordasse” e abrisse a porta da viatura, a fim de trocar consigo algumas palavras. Mais afirmou que o arguido DD se encontrava deitado no banco dianteiro da viatura, ao lado do condutor, e que não lhe viu o rosto. Ora, confrontada a descrição efectuada pela testemunha EE, no que concerne à percepção que adquiriu quanto ao que se passava no interior do segundo veículo que compunha a patrulha, no interior do qual se encontravam os arguidos AA e DD, com as declarações por estes prestadas em audiência, verifica-se que se suscita a dúvida fundada quanto ao facto de estes se encontrarem acordados ou, conforme resultou da avaliação momentânea da testemunha, a dormir. Na verdade, segundo a descrição de EE, ao incidir a luz da lanterna para o interior do veículo, o arguido AA terá acordado, mas fica por demonstrar se, na verdade, lhe viu claramente o rosto antes de incidir na sua direcção os “flashes” de luz que descreveu, de forma a poder afirmar que o mesmo acordou na sequência dos focos luminosos da lanterna que direcionou para o interior do veículo. Por outro lado, não tendo visto o rosto do arguido DD, não é possível concluir, sem mais, que este se encontrasse a dormir, pese embora o banco onde se encontrava sentado estivesse reclinado. Assim, é inequívoco que a dúvida suscitada quanto à eventualidade de os arguidos AA e DD se encontrarem a dormir é fundada, razoável e insanável, inexistindo razão objectivável para que prevaleça a convicção adquirida pela testemunha EE, ao aproximar-se do veículo, sobre a versão sustentada de forma firme e categórica pelos arguidos. Por conseguinte, tendo em conta que se verifica o confronto de versões antagónicas, logicamente inconciliáveis e incontomáveis, e sendo ambas dotadas de coerência intrínseca, tem aplicação, indiscutivelmente, o princípio in dúbio pro reo, de cujo corolário resulta a obrigatoriedade de o tribunal se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa: o non liquet na questão da prova deve ser sempie valorado a favor do arguido.
Resta considerar que para a prova de que os arguidos BB e CC se encontravam a dormir foi ainda decisivo o depoimento prestado em audiência pela testemunha FF, guarda-principal do Destacamento de Intervenção de ... que acompanhou a testemunha EE ao local onde se encontrava a patrulha composta pelos arguidos e os dois veículos em que estes se encontravam em missão, tendo visualizado aqueles arguidos a dormir, por cerca de dez minutos, não se tendo, porém, aproximado do veículo onde se encontravam os arguidos AA e DD.
Por fim, para a prova de que os arguidos BB e CC adormeceram na sequência da ordem de descanso que lhes foi dada pelo arguido AA, seu superior hierárquico por, naquele momento, ser de entre todos o militar mais graduado, que os informou de que a missão continuaria a ser assegurada por si e pelo guarda DD, foi determinante a credibilidade e o carácter honesto que sobressaiu das declarações espontâneas e concordantes entre si, a tal respeito prestadas pelos arguidos BB e AA, nenhuma dúvida se tendo suscitado de que tais declarações não tivessem tido respaldo na verdade dos factos ocorridos.
Os meios de prova acabados de referenciar foram ainda conjugados com o teor do auto de notícia, de fls. 6 e 7, da já referida informação de serviço, de fls. 8 e 9, da escala de Serviço do Posto Territorial de ... para o dia ... de ... de 2023, de fls. 71 a 74, e das guias de patrulha de fls. 128 a 135.
Os factos provados relativos às condições pessoais, sociais e de vida dos arguidos apuraram-se por referência ao teor dos relatórios sociais elaborados pela DGRSP, constantes dos autos, e os referentes ao seu percurso profissional encontram-se sustentados no teor das folhas de matrícula de fls. fls. 75 a 95, 96 a 107, 108 a 113 e 114 a 122. A ausência de antecedentes criminais dos arguidos apurou-se em face do teor dos certificados de registo criminal constantes dos autos, e o conceito social e profissional de que os mesmos gozam, nos termos que se deram por provados, resultaram dos depoimentos a tal respeito prestados em julgamento, de forma isenta e credível, pelas testemunhas GG, HH, II, JJ e KK, todos militares da GNR e que consigo convivem e trabalham.
Os factos não provados resultaram da ausência de demonstração da sua ocorrência, nos termos acabados de explicitar».
FUNDAMENTAÇÃO
1. Do erro de julgamento.
É sabido que em face do nosso quadro normativo, a decisão da primeira instância pode ser modificada (artigo 431.º/b) por duas vias diferentes:
Ou através da invocação dos vícios referenciados no artigo 410.º/2 do CPP (a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova, onde, consabidamente, se vem inserindo a violação do princípio in dubio pro reo), vícios, aliás, de conhecimento oficioso, no que se vem denominando de “revista alargada”.
Ou mediante o que se vem denominando de “impugnação ampla”, procedendo-se à invocação de erros de julgamento, de harmonia com o estatuído no artigo 412.º/3 e 4 do mesmo diploma.
No caso dos vícios do artigo 410.º/2 do CPP estamos perante vícios da decisão, sendo que qualquer das situações aí mencionadas se traduz em deficiências na construção e estruturação da decisão e ou dos seus fundamentos, maxime na sua perspetiva interna, não sendo por isso o domínio adequado para discutir os diversos sentidos a conferir à prova.
Qualquer um dos vícios previstos no n.º 2 do referido artigo 410.º do CPP, é inerente ao silogismo da decisão e apenas dela pode ser apurado em face da mesma - não sendo possível o recurso a outros elementos que não o texto da decisão, para sua afirmação - ainda que conjugado com as regras da experiência - sendo a consequência lógica e imediata, da sua existência, salvo o caso de ser possível conhecer da causa, o reenvio do processo, nos termos do estatuído no artigo 426.º CPP.
Na sequência lógica destes pressupostos, a sua emergência, como resulta expressamente referido no artigo 410.º/2 CPP, terá que ser detetada do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410.º do CPP, não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto.
Qualquer dos vícios do artigo 410.º/2 C P Penal, pressupõe uma outra evidência, não podendo ser confundidos com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão tomada em sede de matéria de facto, nem podem emergir da mera divergência entre a sua convicção pessoal sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o tribunal firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inserto no artigo 127.º do CPP.
No caso dos autos, alega o recorrente ter havido erro de julgamento, defendendo que deveriam ter sido julgados provados os pontos que constam do elenco dos factos não provados sob as alíneas A), B) e C) e que são os seguintes:
A. Em hora situada no período compreendido entre o início do serviço de patrulha, às 22h00, e as 02h50 da data supra referida, no decurso do serviço de patrulha, os arguidos AA e DD tenham adormecido no interior do veículo com a matrícula L- ...;
B. Os arguidos AA, DD, BB e CC tenham representado como possível que, encontrando-se no interior dos veículos, em sítio ermo, pudessem adormecer, conformando-se com tal resultado, bem sabendo que, ao adormecerem, se colocavam na impossibilidade de exercer as funções inerentes ao serviço de patrulha que se encontravam a efectuar e para o qual se encontravam legalmente nomeados, não cumprindo o que lhes havia sido superiormente determinado na guia de patrulha e pondo assim em causa a missão de segurança da G.N.R.;
C. Os arguidos tenham agido de forma livre, voluntária e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Pretende o recorrente impugnar o julgamento sobre a matéria de facto nos termos prescritos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP.
Nesta situação a apreciação do Tribunal ad quem alarga-se à análise da prova produzida em audiência, mas com os limites impostos pela norma invocada.
Nos termos deste preceito,
“1 - A motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata nos termos do nº 2 do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
Assim, nos termos do normativo acabado de citar, incumbe sobre o recorrente que pretende impugnar amplamente a matéria de facto “o ónus de uma tripla especificação, a saber: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art.º 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo, relativamente às concretas provas, que quando tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na ata, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação, devendo todas estas especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas…” - cf. Ac. do TRC de 06-07-2016, proc. n.º 340/08.0PAPBL.C1, www.dgsi.pt.
Em síntese, o recorrente tem o ónus de expressamente indicar, de acordo com o disposto no artigo 412.º/3, do CPP:
i) Os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que considera incorretamente julgados;
ii) O conteúdo específico do meio de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida; e
iii) Se for caso disso, os meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, no âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º/2, do CPP, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. o artigo 430.º/1, do CPP).
No que tange às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente o ónus de, havendo gravação das provas, as mesmas deverem ser efetuadas com referência ao consignado na ata (caso funde as razões da sua discordância em prova gravada), com a concreta indicação das passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos, pois são essas concretas passagens que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, nos termos dos nºs 4 e 6 do artigo 412.º, do CPP.
Por outro lado, a procedência da impugnação, com a consequente modificação da decisão sobre a matéria de facto, não se satisfaz com a circunstância de as provas produzidas possibilitarem uma decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo. Este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção, e por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
E a demonstração desta imposição recai igualmente sobre o recorrente, que deve relacionar o “conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1135).
Como se refere no ac. do TRC de 12-07-2023 (proc. n.º 982/20.6PBFIG.C1, www.dgsi.pt) a impugnação alargada não se satisfaz com “mera discordância do recorrente quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, contrapondo apenas os seus argumentos, críticas, a negação dos factos, suscitando dúvidas – próprias que não do julgador - e não analisando o teor dos depoimentos das indicados nas respetivas passagens da gravação, indicando por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados.”
No caso sub judice o recorrente insurge-se por:
a) ter sido entendido, relativamente aos arguidos AA e DD, que inexistiu prova cabal e contundente de que estivessem a dormir;
b) o acórdão recorrido, quanto aos arguidos BB e CC, ter defendido que os mesmos terão atuado sem culpa, já que se limitaram a obedecer a ordem dada pelo militar mais graduado no terreno, no caso o arguido AA.
Liminarmente se dirá que, quanto à discordância referida em b), o recorrente não belisca a factualidade provada (ponto 7), apenas entendendo que, «com ordem ou sem ordem do arguido AA (e no caso, essa ordem era ilegal), é um facto que aqueles dois arguidos adormeceram, voluntariamente, e facto também é que o fizeram por que quiseram dormir. Dormirem em serviço apenas dependeu de si e da sua vontade, ainda que soubessem que não o podiam fazer» (vide conclusão XII). Trata-se, assim, de questão de direito, a abordar ulteriormente no ponto 2 desta fundamentação.
Vejamos então a verdadeira impugnação de facto / erro de julgamento.
O recorrente, na motivação, transcreve parte do depoimento da testemunha EE, desde o minuto 14m21seg. ao minuto 16min54seg.:
“Testemunha EE (FT) – Nós ao aproximarmo-nos, ainda não estávamos juntos, apontámos as lanternas, os bancos estavam um pouco reclinados, não tanto quanto os do Elysée e insistimos 2 ou 3 vezes, dando flashadas com a luz e depois aos aproximarmo-nos com a luz ligada o CC acabou logo por….
MP – Acordar?
EE – Não sei se era acordar se não era. Em princípio…Ele parecia-me que estava a dormir, sim.
MP – E o DD?
EE – O DD estava de lado. Estava deitado assim.
MP – E pareceu-lhe também estar a dormir?
EE – Pois, se não reagem à…ao….
Juiz – Mas quanto tempo é que esteve lá a dar as flashadas, até ter movimento dentro do carro?
EE – Desde o outo carro até ali, foi aí 2 minutos, para aí.
Juiz – Mas esteve parado junto à janela?
EE – Estive parado, estive parado junto à janela, sim.
Juiz – Junto ao vidro do carro, não é?! O vidro estava subido?
EE – Sim, estava subido.
Juiz – E esteve a dar flashadas com luz?
EE – Sim. Logo à aproximação fui dando, fomos logo dando.
Juiz – Portanto, mas o que é que o senhor viu? Viu o guarda DD de lado, não é?! Os bancos um bocado recostados, o guarda DD de lado.
EE – Sim.
Juiz – Reagiu? Fez algum movimento físico?
EE – Depois de o CC reagir, ele reagiu também.
Juiz – Então como é que o cabo reagiu? O que é que ele fez?
EE – Falou connosco a perguntar – “Eh pá, estamos aqui, ainda não vi passar nenhum carro.”. Foi as palavras que ele me disse. Eu perguntei-lhe….
Juiz – Ele desceu o vidro? Abriu a porta?
EE - Abriu a porta, abriu a porta.
Juiz – E saiu do carro ou ficou dentro do carro?
EE – Ficou dentro do carro, meio dentro, meio fora.
Juiz – Mas quando o senhor se aproxima do vidro com os flashadas eles estavam ou não estavam a dormir os dois?
EE – O cabo estava de olhos fechados, o outro militar eu não consegui ver porque ele estava de lado, de costas viradas, de costas viradas para mim.
Juiz – E o senhor aproxima-se da porta e da janela do lado do condutor.
EE – É isso.
Juiz – E vê que o guarda DD está com o corpo virado de lado, com a cara para o outro lado, portanto não viu se ele tinha os olhos fechados, portanto não viu….
EE – Sim. Não vi, não.
Juiz – Mas quanto ao cabo AA viu que ele estava com os olhos fechados.
EE – Sim, sim. Estava, estava. Estava com os olhos fechados.”.
E refere ainda da informação de serviço elaborada à data dos factos pela testemunha EE, junta a fls 8. e 9 dos autos, cuja autoria aquele reconheceu, onde fez constar o seguinte: “(…) dirigi-me junto de uma outra viatura caracterizada que se encontrava distante da primeira cerca de 50 metros (…). Aproximámo-nos da viatura e confirmámos também, dois militares no interior, à semelhança dos anteriores, a dormir. Resolvendo adotar a mesma solução da primeira viatura, aproximámo-nos e apontámos as nossas lanternas para dentro do mesmo, ao que quase de imediato os militares acordaram. (…)”.
O que conta é o que a testemunha relatou e explicou em julgamento e não aquilo que antes escreveu. Este Tribunal da Relação ouviu as gravações e a testemunha não pareceu, quando então depôs, ter dúvidas ou lapsos de memória. E não afirmou que os dois militares estavam a dormir. Em rigor, não afirmou ter constatado que algum deles dormia.
E, mesmo que atentemos apenas no excerto que o recorrente convoca, não podemos concluir, sem qualquer dúvida, que os militares AA e DD estivessem a dormir.
A testemunha não viu o rosto de DD, não sabe se tinha os olhos fechados.
Parece-lhe que AA estava a dormir, mas não tem a certeza: “Não sei se era acordar se não era. Em princípio…Ele parecia-me que estava a dormir, sim”.
Apesar das apelidadas “flashadas” que a testemunha diz que foi efetuando, não se sabe para que parte exata do carro onde estavam estes dois militares as mesmas foram direcionadas, não se podendo afastar a hipótese de não terem sido para a parte da frente e / ou a uma altura que pudessem ser vistas.
Mais, não se percebe sequer se as “flashadas” foram dadas “logo à aproximação” ou “desde o outro carro”, sendo certo que, neste caso, se estranha que o percurso tenha demorado “dois minutos”, quando está provado que os dois carros distavam um do outro apenas “cinquenta metros” (facto provado em 6.). Cinquenta metros percorrem-se a pé, por uma pessoa em normal condição física que se exige a um militar ativo no terreno, em menos de dois minutos.
Ainda que o militar cabo AA estivesse “com os olhos fechados”, a sua reação, quando abre os olhos e se apercebe da presença da testemunha, é de falar normalmente, sem hesitação ou atrapalhação “Eh pá, estamos aqui, ainda não vi passar nenhum carro.”. Não se assustou, não demonstrou desorientação por ter acordado, não teve qualquer reação própria de quem acaba de acordar (abrindo a boca, espreguiçando-se, esfregando os olhos, mostrando-se confuso ou envergonhado por ter adormecido, etc).
Uma pessoa pode fechar os olhos por breves segundos. Pode até estar momentaneamente com os olhos fechados ou semicerrados (mormente durante a noite) e permanecer alerta aos sons que possam ocorrer, entre os quais a passagem de carros e o barulho da sua aceleração. E, como refere o acórdão recorrido, foram as “flashadas” de luz feitas já para o interior da viatura, que levaram o militar cabo AA a abrir os olhos. Ora, uma pessoa, estando a dormir, em regra não acorda com meras “flashadas” pois nem as vê ou dá por elas.
Nada permite concluir, com o mínimo de segurança, que os militares AA ou DD estavam a dormir. É certo que, quanto a DD - que não se encontrava abrangido pela ordem para descansar aludida no facto provado em 7.-, a circunstância de, como referido pela testemunha EE, o mesmo se encontrar de lado, deitado no banco dianteiro que estaria um pouco recostado, não seria certamente a forma mais adequada ou diligente de cumprimento da sua missão. Porém, repete-se, EE não viu o rosto de DD, não sabe se tinha os olhos fechados, não tendo assegurado que o mesmo estava a dormir. Podia estar naquela pouco apropriada posição, mas permanecer acordado. Aliás, nem se provou que DD tenha permanecido imóvel naquela posição enquanto EE falava já com AA, sem se ter apercebido do que se estava a passar. Pelo contrário, EE referiu que, “depois de o CC reagir, ele reagiu também”.
O acórdão recorrido escreveu que «(…) é inequívoco que a dúvida suscitada quanto à eventualidade de os arguidos AA e DD se encontrarem a dormir é fundada, razoável e insanável, inexistindo razão objectivável para que prevaleça a convicção adquirida pela testemunha EE, ao aproximar-se do veículo, sobre a versão sustentada de forma firme e categórica pelos arguidos».
As dúvidas a que chegou o acórdão recorrido são razoáveis, não vendo este Tribunal da Relação como afastá-las, concluindo convictamente que AA e/ou DD estavam a dormir. E, naturalmente, em obediência ao princípio in dubio pro reo, a primeira instância resolveu, acertadamente, tais dúvidas a favor dos arguidos.
Ora, na verdade, o recorrente não invoca em seu apoio meios de prova que não tivessem sido considerados na sentença recorrida, mas apenas questiona a avaliação que o tribunal fez daqueles, procurando impor a sua visão dos factos, de modo a que se conclua em sentido contrário ao julgado provado.
Simplesmente, os elementos probatórios indicados pelo recorrente (e aqueles que constam dos autos) não impõem decisão diversa da recorrida.
Seguindo de perto o acórdão da Relação do Porto de 05.06.2024, Relator Pedro Afonso Lucas, processo 466/21.5PAVNG.P1, «Notar–se–á que a remissão para o verbo impor, especificamente estipulada no art.º 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal, consubstancia a exigência de verificação de uma obrigação impreterível, de um imperativo, de um dever mandatório inquebrável e sem alternativas. Assim, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguida/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesma arguida/arguida), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo, não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal».
No mesmo sentido, vide o acórdão desta 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.7.2023, Relatora Alda Casimiro, processo 1074/21.6JAPDL.L1-5, que refere: «A ausência de imediação determina que o Tribunal superior, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, nos termos previstos pelo art.º 412º, n.º 3, al. b) do Cód. Proc. Penal, mas já não quando permitirem outra decisão. Ou seja, a convicção da primeira instância, só pode ser posta em causa quando se demonstrar ser a mesma inadmissível em face das regras da lógica e da experiência comum. Significa isto que o recorrente não pode pretender substituir a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas impõem uma outra convicção».
Também no acórdão desta 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.12.2024, Relatora Sandra Oliveira Pinto, processo 628/23.0POLSB.L1-5, pode ler-se que «a reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão.
(…) Como expressamente resulta do disposto no artigo 412º, nº 3, alíneas a) e b), e nº 4 do Código de Processo Penal, quanto à impugnação da matéria de facto, para além da especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, deve o recorrente indicar ainda as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Esse desiderato não se alcança com a mera formulação de opiniões quanto à clareza ou precisão do que foi dito, na medida em que tais elementos possam permitir diferentes conclusões – só se atinge com a indicação das provas que impõem, que obrigam a decisão diversa.
De acordo com o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01.04.2008, citado neste último aresto de 05.12.2024 na nota de rodapé nº 6, «Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.
As provas que impõem decisão diversa são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que, tendo-o sido, ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida».
No caso em apreço, a questão do recorrente é apenas de discordância quanto à convicção do Tribunal, quanto à apreciação que o tribunal a quo fez da prova produzida em audiência.
Com efeito, quer na motivação, quer nas conclusões, limita-se a comentar e criticar o acórdão, cuja motivação probatória entendeu, mas que não aceita, fazendo prevalecer a sua convicção. O que é manifestamente insuficiente face à livre apreciação do julgador.
De acordo com o disposto no artº 127º, do CPP, a prova é apreciada segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador.
Há uma apreciação da prova inteiramente objetiva, nos casos em que é imposta pelas regras da experiência. E há uma apreciação da prova subjetiva que resulta da livre convicção do julgador.
A apreciação subjetiva da prova resulta da imediação e da oralidade, mas só pode ser afastada se o recorrente demonstrar que a apreciação do Tribunal a quo não teve o mínimo de consistência, situação que não ocorre no caso dos autos. Na verdade, o Tribunal recorrido fundamentou de modo razoável e suficiente a sua convicção, com enquadramento no artº 127º, do CPP. Fê-lo ao encontro das regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do denominado homem médio.
Ou seja, o Tribunal recorrido explicitou as razões da sua convicção e explicou o porquê de lhe ter suscitado a dúvida sobre se AA e DD estariam acordados ou a dormir, o que fez de forma lógica e global. Esse juízo sobrepõe-se sempre às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, na decorrência do princípio da livre apreciação da prova.
O recurso improcede neste segmento.
2. Do preenchimento do tipo de crime pelo qual os arguidos foram acusados e, se se concluir pela verificação dos seus elementos, da determinação das penas concretas.
Mantendo-se inalterada a matéria de facto, vejamos se se pode concluir que algum dos militares cometeu o crime de que vinham acusados.
Salienta-se que, como decorre da factualidade apurada:
- Dos quatro arguidos, todos militares da GNR, AA é cabo e os demais - BB, CC e DD – são militares (cfr. facto provado em 1.).
- Nos dias ... de ... de 2023 o arguido BB e o arguido CC encontravam-se legalmente nomeados para efectuar o serviço de patrulha na área do referido Posto Territorial, no período compreendido entre as 21h00 do dia 16 e as 05h00 do dia 17, com o veículo automóvel da marca “...”, modelo “C-Elysée”, com a matrícula ..-XI-.. (facto provado em 2.).
- Com efeito, tal serviço de patrulha, relativamente ao qual o arguido BB assumia as funções de Comandante de Patrulha, tinha como missão a operação designada por “...”, que visava fazer face aos furtos que se verificavam na referida área, desde há cerca de dois meses, bem como o controlo aleatório de fronteiras (facto provado em 3.).
- Por referência aos mesmos dois dias ... de ... de 2023, o arguido AA e o arguido DD encontravam-se legalmente nomeados para efectuar o serviço de patrulha na área do referido Posto Territorial, no período compreendido entre as 22h00 do dia 16 e as 06h00 do dia 17, com o veículo da marca “...”, modelo “...”, com a matrícula …   (facto provado em 4.).
- Tal serviço de patrulha, relativamente ao qual o arguido AA assumia as funções de Comandante de Patrulha, tinha igualmente como missão a operação designada por “...” que visava fazer face aos furtos que se verificavam na referida área, desde há cerca de dois meses, bem como o controlo aleatório de fronteiras (facto provado em 5.).
- Nesta sequência, em hora não concretamente apurada, mas situada no período compreendido entre o início do serviço de patrulha, às 22h00 e as 02h50, no exercício das suas funções e, concretamente, no âmbito dos serviços de patrulha referidos, os militares que compunham os dois serviços de patrulha estacionaram os veículos respetivamente atribuídos a cerca de cinquenta metros de distância um do outro, num sítio ermo, junto ao ..., em ... (facto provado em 6.).
- Após o que, em hora não concretamente apurada, mas situada no período compreendido entre as 22h00 e as 02h50, no decurso do serviço de patrulha, o arguido BB e o arguido CC receberam do arguido AA, militar mais graduado de entre os que se encontravam a desempenhar a aludida missão, ordem para descansar, dado que se encontravam de serviço há muitas horas e a missão continuaria a ser assegurada por si e pelo arguido DD (facto provado em 7.).
- Na sequência da referida ordem, os arguidos BB e CC adormeceram no interior do veículo automóvel com a matrícula ..-XI-.. (facto provado em 8.).
E não se provou que:
- Em hora situada no período compreendido entre o início do serviço de patrulha, às 22h00, e as 02h50 da data supra referida, no decurso do serviço de patrulha, os arguidos AA e DD tenham adormecido no interior do veículo com a matrícula … (facto não provado em A).
- Os arguidos AA, DD, BB e CC tenham representado como possível que, encontrando-se no interior dos veículos, em sítio ermo, pudessem adormecer, conformando-se com tal resultado, bem sabendo que, ao adormecerem, se colocavam na impossibilidade de exercer as funções inerentes ao serviço de patrulha que se encontravam a efectuar e para o qual se encontravam legalmente nomeados, não cumprindo o que lhes havia sido superiormente determinado na guia de patrulha e pondo assim em causa a missão de segurança da G.N.R. (facto não provado em B).
- Os arguidos tenham agido de forma livre, voluntária e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento (facto não provado em C).
O acórdão recorrido, ao subsumir os factos ao Direito, entendeu que (transcrição):
«Vêm os arguidos acusados da prática, em autoria material, de um crime de incumprimento dos deveres de serviço, p. e p. pelo artigo 67º, nº 1 alínea d), do Código de Justiça Militar (CJM), aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro.
Nos termos do disposto no art.º 67º, nº 1, al. d), do CJM, sob a epígrafe Incumprimento dos deveres de serviço, «O militar que, depois de nomeado ou avisado para serviço de segurança ou serviço necessário à prontidão operacional de força ou instalação militares, se colocar na impossibilidade, total ou parcial, de cumprir a sua missão, embriagando-se, ingerindo substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, adormecendo no posto de serviço ou infligindo a si próprio dano físico, é punido: (..) b) Com pena de prisão de 1 mês a 1 ano, em tempo de paz».
O sujeito activo deste crime é o militar que se encontre nomeado ou avisado para serviço de segurança ou serviço necessário à prontidão operacional de força ou instalação militares.
A conduta típica traduz-se em o sujeito activo colocar-se na impossibilidade, total ou parcial, de cumprir a sua missão, por um dos seguintes meios: embriagando-se, ingerindo substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, adormecendo no posto de serviço ou infligindo a si próprio dano físico.
Ora, por referência ao caso dos autos, o tipo legal de incumprimento de deveres de serviço (inserido no capítulo dos “crimes contra a segurança das forças armadas”) imputado aos arguidos consubstanciou-se, segundo a acusação, na conduta por todos adoptada, enquanto militares nomeados para o serviço de patrulha entre as 21:00/22.00 horas do dia 16.12.2023 e as 05:00/06:00 horas do dia 17.12.2023, de se terem colocado na situação de impossibilidade de cumprirem a sua missão, por terem adormecido voluntariamente. O tipo subjectivo do ilícito exige o dolo em qualquer das suas modalidades, estando arredadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes, sendo, no entanto, bastante o dolo eventual, nos termos prescritos nos artigos 13.º e 14.º do Código Penal. Trata-se de um crime de mera actividade e instantâneo, consumando-se como tal com a prática da conduta, independentemente de qualquer resultado lesivo. Na verdade, a conduta ilícita traduz-se em o militar se colocar na impossibilidade de cumprir a sua missão, não se exigindo a lesão do bem jurídico, ou a colocação deste bem em risco real e concreto, bastando a criação do perigo de lesão.
Ora, no caso em apreço não resultou provado, por um lado, que os arguidos AA e DD tenham adormecido no decurso do serviço de patrulha para o qual estavam nomeados, pelo que, quanto a estes, é desde já notório que não se encontram preenchidos os elementos objectivos típicos do ilícito de que vêm acusados.
No que concerne aos arguidos BB e CC, provou-se que, a dado momento do serviço de patrulha que se encontravam a desempenhar, receberam do arguido AA ordem para descansar, dado que se encontravam de serviço há muitas horas e a missão continuaria a ser assegurada por este e pelo arguido DD. Segundo também resultou apurado, na sequência da referida ordem, os arguidos BB e CC adormeceram. Acontece, porém, que deste singelo facto não pode ser alcançada a conclusão de que, propositadamente, se tenham colocado na situação de impossibilidade de cumprirem a sua missão, razão pela qual, correspondentemente, tal juízo conclusivo não resultou provado. E tal ausência de prova, intrinsecamente ligada à impossibilidade de preenchimento do elemento subjectivo típico do ilícito em apreço, funda- se na circunstância de a “ordem para descansar” (recebida pelos arguidos BB e CC de quem, naquele momento, se apresentava como seu superior hierárquico - o arguido AA, militar mais graduado de entre todos) ter sido determinante do facto de terem adormecido, dado que a missão continuaria a ser assegurada por este e pelo militar que, no veículo, o acompanhava (o arguido DD). Tal sequência factual, corroborada nos elencos de factualidade provada e não provada supra exarados, afasta, pois, de modo liminar, a hipótese de comportamento doloso (em qualquer das suas modalidades) adoptado pelos arguidos BB e CC no sentido de adormecerem, impedindo, em consequência, que o elemento subjectivo do tipo - comportamento doloso - se mostre verificado, o que implica, igualmente, a sua absolvição do crime que lhes é imputado. Na verdade, não é possível afirmar, em face da matéria de facto que resultou provada, que os militares BB e CC tenham representado como possível que, ao cumprirem a ordem de descanso que lhes foi dada, as funções inerentes ao serviço de patrulha que se encontravam a efectuar eram susceptíveis de ficar comprometidas, pelo que inequivocamente não existe conduta dolosa dos mesmos com aptidão ao preenchimento do tipo de ilícito que lhes foi imputado. Acresce que, segundo dispõem os arts. 8o, nº 2, al. a), e 9o do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana (aprovado em anexo à Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro), cumpre especialmente ao militar da Guarda a observância do dever de obediência, que consiste na obrigação de acatamento pronto e leal das ordens e determinações dos superiores hierárquicos dadas em matéria de serviço, competindo-lhe ainda, no cumprimento do dever de disponibilidade, manter-se permanentemente pronto para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais (art.º 15º, nº 1, do mesmo diploma). Ora, a observância de tais deveres, no caso concreto dos arguidos BB e CC, e nas concretas circunstâncias a que se reportam os autos, surgiu compatibilizada com a sua permanência no local do cumprimento da missão para a qual estavam nomeados, sem que a mesma fosse minimamente posta em causa, pese embora tenham, a dado momento, adormecido, o que aconteceu na sequência da ordem “de descanso” recebida do superior hierárquico AA, que inclusivamente informou os seus subordinados de que a missão continuaria a ser assegurada por si e pelo guarda DD durante o período de descanso concedido, em face das muitas horas de serviço já cumpridas, consecutivamente, pelos primeiros. Por conseguinte, a conjugação dos apontados elementos concorre para a exclusão inequívoca de acção dolosa empreendida pelos arguidos BB e CC no sentido do preenchimento dos elementos objectivos do tipo criminal em apreço, o que de modo manifesto impede que tenha lugar a sua punição.
Em conclusão, impõe-se a absolvição dos arguidos, por não verificados os elementos típicos da infracção criminal constante da acusação».
Sufraga-se a argumentação do acórdão recorrido.
Os arguidos BB e CC adormeceram quando estavam ao serviço. É um facto.
Mas fizeram-no, como se provou, porque receberam do arguido AA, militar mais graduado de entre os que se encontravam a desempenhar a aludida missão, ordem para descansar, dado que se encontravam de serviço há muitas horas e a missão continuaria a ser assegurada por si e pelo arguido DD
Isto é, obedeceram a uma ordem de quem, naquelas circunstâncias de tempo e lugar, era o seu superior hierárquico, por carecerem de descanso, tendo este superior hierárquico transmitido que a missão não seria com isso prejudicada.
Uma coisa é adormecer sabendo-se que, com isso, a missão em curso não se cumpre, total ou parcialmente, ou fica em risco.
Outra é adormecer com a garantia de que a missão não é beliscada, continuando a ser assegurada por outrem.
É esta segunda a realidade retratada nos autos. Por isso mesmo, não se provou que, ao adormecerem, os militares sabiam que punham assim em causa a missão de segurança da G.N.R.. Daqui resulta que, ao adormecerem, fizeram-no confiando que o seu superior hierárquico (que lhes ordenara o descanso) e o militar Pires continuariam a assegurar o cumprimento da missão que lhes havia sido confiada.
Nenhum reparo há a fazer à conclusão a que chegou o Tribunal recorrido.
Não se verificando o preenchimento dos elementos do tipo de crime de que os arguidos vinham acusados, mantém-se o juízo de absolvição.
O recurso também improcede neste segmento.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, acordam os juízes desembargadores e juiz militar deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando assim o acórdão recorrido.
Sem custas, atenta a isenção do recorrente (cfr. artº 4º, nº 1, al. a), do Regulamento das Custas Processuais).
O presente acórdão foi integralmente processado a computador e revisto pela signatária relatora, seguindo-se a nova ortografia excetuando na parte em que se transcreveu texto que não a acolheu, estando as assinaturas de todos os Juízes apostas eletronicamente – art.º 94º, nº 2, do CPP.

Lisboa, 6 de maio de 2025
Ana Cristina Cardoso
João António Filipe Ferreira
David José Gaspar