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SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DA EXECUÇÃO DE OPERAÇÕES A DÉBITO DAS CONTAS BANCÁRIAS
CANCELAMENTO DE FUNDOS
Sumário
I – A SOB (suspensão temporária da execução de operações a débito de conta bancária) prevista nos art.ºs 48.º e 49.º Lei nº 83/2017-18agosto, basta-se com a suspeita – é dizer, um indício, no singular, cfr. art.º 1.º e) CPP e sem graduação de intensidade – da prática de crimes de catálogo; II – Já o congelamento de fundos, previsto no art.º 49.º/5 Lei nº 83/2017-18agosto exige: a) indiciação – não necessariamente forte - de proveniência ou relacionamento com a prática de crimes de catálogo; b) cumulada com a verificação de perigo de dispersão dos proventos na economia legítima; III – Não obsta ao cancelamento de fundos que a preexistente SOB se não mostre vigente ao momento do decretamento, tão só se exigindo que a delimitação deste, nas suas balizas máximas, se estabeleça pelo objeto da preexistente SOB.
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- Relatório 1- Antecedentes processuais a) Promoção para e despacho de confirmação de suspensão temporária da execução de operações a débito de conta bancária (doravante SOB)
No âmbito destes autos, na sequência de promoção do Ministério Público de 20dezembro2022 (ref. 2069831) (SIC, com exceção da formatação do texto, da responsabilidade do Relator, o que vale para todas as demais situações de idêntica natureza)
(…)
2. CONFIRMAÇÃO DE SUSPENSÃO DE OPERAÇÕES FINANCEIRAS
Das COS apresentadas e dos relatórios da UIF ora juntos (que aqui se dão por reproduzidos por motivo de economia processual), apurou-se que a movimentação de fundos nas contas das sociedades adiante indicadas (na sua maioria constituída no decurso do corrente ano), caracterizada por um volume transacional incoerente e indocumentado, articulada com elementos recolhidos em sede fiscal, revelam consistência com tipologia "contas passagem", gerando a forte suspeita de esquema fraudulento de natureza fiscal, relacionado com o comércio de equipamentos e componentes de informática e telecomunicações.
(…)
Porém a análise do histórico transacional revelou um volume inusitado de operações entrecruzadas e atípicas face ao perfil de caraterização, do tipo empresa e todas com atividade no setor do comércio a retalho de equipamento de telecomunicações, controladas por cidadãos, nacionais e estrangeiros, alguns deles não residentes.
Neste âmbito foram identificados os seguintes intervenientes:
AA, NIPC ..., com sede na ... e atividade no setor da importação, exportação e comercialização de computadores, equipamentos periféricos e programas informáticos.
O Conselho de Administração é constituído por J… (Presidente), V… e L… (ambos Vogais).
(…)
No epicentro das reservas encontra-se o alerta interno sobre volume transacional incoerente e indocumentado, cujas caraterísticas são consistentes com tipologia "conta passagem" e fazem pressupor constituírem parte em esquema fraudulento de natureza fiscal.
Através de pesquisas na base de dados do Banco de Portugal, apurou-se que a maioria das entidades indicadas é titular de outros contratos de depósito bancário junto das principais instituições de crédito a operar em Portugal, conforme quadro junto a fls. 1 1 a 13 do relatório da UIF.
Em razão do exposto conclui-se por muito agravado o risco de branqueamento de capitais, impondo-se a manutenção da suspensão temporária de todas as contas comunicadas e dos demais contratos de depósito bancário identificados pela UIF, em sede de análise, titulados pelas mesmas entidades e outras intervenientes na movimentação entrecruzada, obstando-se por esta via à utilização instrumental de contas em Portugal, num possível esquema de fraude intracomunitária.
Na realidade, existem suspeitas fundadas de que os intervenientes nas comunicações efectuadas se encontram a utilizar o sistema financeiro português para camuflar a origem ilícita de fundos pecuniários com o intuito de os introduzir na economia legítima e, consequentemente, a prática de crime de branqueamento.
O Ministério Público, nos termos do art.º 48.º n.º 1 e 3 da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, no dia 16.12.2022, determinou provisoriamente a suspensão de qualquer operação de débito nas contas supra referidas.
Com efeito, impõe-se averiguar os reais motivos subjacentes às operações financeiras cuja suspensão se determinou, bem como a origem dos fundos, com vista a infirmar ou a confirmar a suspeita da prática dos aludidos crimes.
Enquanto decorrer tal investigação, importa impedir que os referidos fundos se dissipem e sejam introduzidos em benefício dos agentes dos factos na economia legítima.
Caso não seja objecto de medida de suspensão de operação financeira nos termos do disposto no art.º 49.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, as quantias em causa serão rápida e totalmente dissipadas, ficando definitivamente fora do alcance da Justiça.
Atento o disposto no art.º 49.º n.ºs 1 e 2 da supracitada Lei 83/2017, tal medida carece de confirmação judicial no prazo de 2 (dois) dias úteis após a sua prolação, terminando o prazo para a apreciação judiciai às 24:00h de 20.12.2022.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 47.º, 48.º , 49.º , n.º 1 e 2, e do art.º 4.º, n.º 4 da Lei n.º 5/2002, de 1 1 de Janeiro, o Ministério Público promove ao Mm 0 Juiz de Instrução Criminal que confirme a suspensão provisória e determine o bloqueio, por três meses, de todas as operações a débito, bem como de todos os pagamentos associados, sobre as seguintes contas bancárias:
(…)
AA, NIPC ..., contas ..., ... do banco ... ... do ... e conta BIC n....
(…)
Mais se promove que a decisão judicial proferida seja comunicada às IF's em causa pela via mais expedita.
Quanto à comunicação aos visados, titulares das contas bloqueadas, promove-se ainda que se suste a mesma por 30 dias, de forma a serem desenvolvidas diligências urgentes de recolha de prova no sentido de verificar a origem e destino de todos os fundos mobilizados e identificar todas as contas utilizadas, nos termos do disposto no art.º 49.º, 3 da Lei 83/2017 de 18 de Agosto.
(…)
foi proferido, a 20dezembro2022(ref. 8184568) (fls. 1289), pelo Juiz de Instrução Criminal, o seguinte despacho: (SIC, cfr. condições supra)
(…)
II. Da suspensão de operações bancárias
Indiciando-se a prática de factos susceptíveis de integrarem, inter alia, o crime de branqueamento, previsto e punido nos termos dos artigos 368.º-A, do Código Penal, e atentas as razões invocadas na douta promoção que antecede (fls. 1272 a 1287), que se dão por integralmente reproduzidas, confirma-se, em consonância com o artigo 49.º, n.º 1, da Lei n.º 83/2017, de 18-08, a suspensão temporária de operações de débito, pelo período de 3 (três) meses, bem como de todos os meios de pagamento associados, quanto às contas identificadas em fls. 1284 a 1286.
Nos termos do disposto no artigo 54.º, n.º 1 e n.º 5, da Lei n.º 83/2017, de 18-08, comunique-se de imediato a presente decisão às entidades bancárias em causa, com a advertência expressa do dever de não divulgação a que está sujeita.
Após a confirmação da medida pela entidade bancária, e decorridos 30 (trinta) dias do presente despacho, notifique os titulares das contas, nos termos do artigo 49.º, n.º 3, do sobredito diploma.
(…) b) Requerimento e subsequente despacho
Na sequência de requerimento da AA. (fls. 1639ss.), pelo Juiz de Instrução Criminal, foi proferido, a 23janeiro2023 (ref. 8222378) despacho, ordenando: (SIC, cfr. condições supra)
(…)
Tomei conhecimento do requerimento de AA, fls. 1639 a 1640.
Cumpra-se o artigo 49.º, n.º 3, da Lei n.º 83/2017, de 18-08, como previamente determinado,
quanto à requerente e quanto aos demais visados, notificando-os da decisão judicial confirmatória (fls. 1289).
(…) c) Requerimento e subsequente despacho
Na sequência de requerimento da AA(fls. 1705ss.), pelo Juiz de Instrução Criminal, após contraditório junto do Ministério Público, com manifestação de oposição pelo mesmo, foi proferido, a 8fevereiro2023 (ref. 8250791) despacho, ordenando: (SIC, cfr. condições supra)
Requerimentos de fls. 1693 a 1696 e de fls. 1705 a 1706:
(…)
A requerente solicita, ademais, ser notificada da promoção do Ministério Público e suscita a irregularidade da notificação feita ao abrigo do artigo 49.º, n.º 3, do diploma sobredito, por não ser acompanhada de cópia daquela promoção.
O Ministério Público opõe-se atento o segredo de justiça determinado e judicialmente validado.
Atendendo ser a promoção do Ministério Público para a confirmação judicial de suspensão de operação bancária, como é expectável, muito detalhada no que concerne a matéria sujeita a segredo de justiça—motivo pelo qual também não poderá o Juiz de Instrução, como não o fez a signatária, pormenorizar o seu conteúdo no despacho que sobre a mesma recai (ainda que, concordando com os seus fundamentos, como ocorreu, a eles aluda por remissão), não sendo tão pouco notificada às entidades bancárias—, indefere-se de igual modo, a sua notificação à requerente, ao abrigo do artigo 89.º, n.º 1 e n.º 2, do Código de Processo Penal, podendo vir a conhecê-la oportunamente.
Pela mesma razão, julga-se não verificada a irregularidade de notificação suscitada, tendo sido levada a cabo uma concordância prática dos interesses em jogo, e em linha com os mecanismos legais criados para combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.
Notifique e devolva ao Ministério Público. d) Recurso (apenso B)
Inconformada com o dito despacho de 8fevereiro2023, veio AA (a 9março2023 – ref. 161324), interpor recurso, o qual subiu de imediato, em separado e com efeito devolutivo, dando azo a Decisão Sumária (7junho2023 – ref. 20087060) proferida na 9.ª Secção Penal deste Tribunal da Relação de Lisboa, onde se determinou que: (SIC, cfr. condições supra)
(…)
III - DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, julga-se provido parcialmente o recurso interposto pela requerente “AA” e, em consequência, anula-se o despacho recorrido, bem como o anterior que se limitou a remeter para a promoção do MºPº (na sua fundamentação), que deverá ser substituído por nova decisão, contendo a enunciação e fundamentação, ainda que sucinta, mas perceptível e completa, dos factos a ter em consideração, a exposição das razões e a indicação das disposições legais em que se fundamenta e a afirmação de um juízo autónomo sobre a questão de manutenção de SOB, (nomeadamente sobre a irregularidade da notificação feita, sem que lhe tenha sido dado conhecimento da promoção do MºPº no despacho de folhas 1289), devidamente fundamentado, bem como da manutenção da medida de SOB, OU que profira outro despacho em que determine a notificação da promoção do MºPº.
(…) e) Despacho e subsequente recurso (apenso C) – tramitação subsequente
Na sequência da referida Decisão Sumária de 7junho2023, foi pelo Juiz de Instrução Criminal proferido, a ... 2600), despacho em conformidade, sendo que do mesmo veio AA (a ... 185154), interpor recurso, o qual subiu de imediato, em separado e com efeito devolutivo, dando azo a Acórdão (25janeiro2024 – ref. 21015921) proferida na 9.ª Secção Penal deste Tribunal da Relação de Lisboa, onde se determinou que: (SIC, cfr. condições supra)
(…)
3 - DISPOSITIVO
Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, determinando-se o levantamento da SOB decretada quanto à Recorrente.
A ... (ref. 205004) operou a baixa definitiva deste apenso C à 1.ª instância.
A ... (ref. 8746230) (21:53:33) pelo Juiz de Instrução Criminal foi proferido despacho do qual resulta: (SIC, cfr. condições supra)
(…)
Tomei conhecimento do acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 25.01.2024.
Dê conhecimento ao Ministério Público.
Solicite a remessa do processo principal e abra aí conclusão. 2 - Despacho recorrido
No âmbito destes autos, na sequência de promoção do Ministério Público de ... (ref. 2134696) (SIC, cfr. condições supra) Remeta os autos ao Tribunal Central de Instrução Criminal para apreciação e decisão
(…)
II - Do congelamento dos saldos bancários
Nos presentes autos encontra-se em vigor, até ao dia ...-...-2024, a medida de suspensão temporária de todas as operações a débito e de todos os pagamentos sobre as contas bancárias identificadas a fls. 3013 e 3014 e tituladas pelas seguintes sociedades (cfr. despacho de fls. 3019):
(…)
AA, NIPC ..., contas ... e ... do ..., ... do ..., e conta BIC n.º ...;
(…)
As decisões de suspensão acima indicadas fundaram-se, em suma, nas suspeitas de que os fundos movimentados nas contas afectadas têm origem em condutas criminosas, atentas as características dos movimentos bancários registados.
Ou seja, as contas bancárias estarão a ser utilizadas na circulação de fundos, no âmbito de esquema financeiro que visa camuflar a sua origem ilícita, a qual estará relacionada com a prática de crime de natureza fiscal, praticado no contexto de comércio de equipamentos e componentes de informática e telecomunicações.
Em concreto, no ano de 2022, ocorreram transacções de equipamentos electrónicos, informáticos e de telecomunicações, realizadas entre as sociedades acima identificadas, cuja configuração se suspeita terem como propósito a não entrega ao Estado do IVA liquidado pelas entidades que se podem designar por "missing traders".
Tendo por base o teor do relatório elaborado pela DSIFAE, que aqui se dá por integralmente reproduzido, em 2022, as transacções realizadas pelas missing traders (primeiro patamar da rede de fraude ao IVA) é absorvida pelas buffers, sendo depois disseminadas para a buffer/broker T…, brokers e outros clientes não suspeitos.
Acresce que os movimentos financeiros identificados — e constantes do mencionado relatório — nomeadamente os créditos registados em contas tituladas pelas suspeitas missing traders A…, S… e B…, pelas buffers R…, RI… e Q…., bem como pela buffer/broker T…, na sua globalidade, têm origem noutras sociedades suspeitas e ora investigadas.
Verificam-se, pois, indícios suficientes de que os créditos existentes nas contas bancárias referidas são provenientes e/ou estão relacionados com a apropriação ilegítima de IVA liquidado no sector dos equipamentos eletrónicos, informáticos e de telecomunicações.
Subsiste, assim, o risco — caso seja permitido aos suspeitos movimentarem as contas bancárias que actualmente se encontram sujeitas à medida de suspensão temporária de operações bancárias - de os fundos serem dispersos pela economia legítima, mediante transferências para outras contas, ou mesmo na aquisição de bens e serviços de difícil ou impossível rastreio e apreensão.
Ora, prevê o artigo 49.º, n.º 6, da Lei n.º 83/2017, de 18.08 que: "A solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução pode determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objeto da medida de suspensão aplicada, caso se mostre indiciado que os mesmos são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima".
Ou seja, para a aplicação de tal medida exige-se apenas a verificação de "indícios", bastando meras suspeitas materializadas em determinados índices objectivos considerados como de risco de branqueamento. O que ora se verifica.
Atento o supra exposto, requer o Ministério Público que, nos termos do disposto no artigo 49.º, n.º 6, da Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto, se determine o congelamento dos fundos depositados nas contas bancárias tituladas pelas seguintes sociedades:
(…)
AA, NIPC ..., contas ... e ... do ..., ... do ..., e conta BIC n.º ...;
(…)
foi proferido, a ...(ref. 8741268) (18:03:10), pelo Juiz de Instrução Criminal, o seguinte despacho: (SIC, cfr. condições supra)
“Veio o Ministério Público, invocando o disposto no art.º 49.º, n.º 6, da Lei n.º 83/2017, de 18.08, requerer que se determine o congelamento dos fundos depositados nas contas bancárias identificadas a fls. 3608 e 3609.
Prevê o n.º 6 do art.º 49.º da citada Lei n.º 83/2017 que, a solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução pode determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objecto da medida de suspensão aplicada, caso se mostre indiciado que os mesmos são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima.
Investiga-se nestes autos a prática do crime de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368.º-A, n.ºs 1, al. j), a 4, do Código Penal, surgindo como ilícito antecedente o crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.º, n.º 1, e 104.º, ambos do RGIT.
As suspeitas que conduziram à confirmação da suspensão temporária de operações bancárias têm vindo a ser corroboradas pela investigação em curso, mostrando-se neste momento indiciado que o saldo das contas bancárias acima referidas está relacionado com a prática dos referidos ilícitos criminais.
Na ponderação que neste momento terá de ser feita entre, por um lado, a circunstância de os presentes autos se encontrarem sujeitos ao regime do segredo de justiça e, por outro lado, o dever de fundamentação dos actos decisórios (art.º 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal), pode concluir-se, como o faz o Ministério Público na promoção de fls. 3605 (II) a 3609, que: as contas bancárias estarão a ser utilizadas na circulação de fundos, no âmbito de esquema financeiro que visa camuflar a sua origem ilícita, a qual estará relacionada com a prática de crime de natureza fiscal, praticado no contexto de comércio de equipamentos e componentes de informática e telecomunicações; em concreto, no ano de 2022, ocorreram transacções de equipamentos electrónicos, informáticos e de telecomunicações, realizadas entre as sociedades acima identificadas, cuja configuração se suspeita terem como propósito a não entrega ao Estado do IVA liquidado pelas entidades que se podem designar por “missing traders”.
Por seu turno, com a cessação da vigência da medida de suspensão temporária de operações bancárias, mantém-se o perigo de as quantias que se indicia terem sido obtidas ilicitamente, e que estão depositadas nas contas bancárias em causa, serem dispersas pela economia legítima.
Pelo exposto, defere-se o requerido e, consequentemente, determina-se o congelamento dos fundos depositados nas contas bancárias identificadas a fls. 3608 e 3609.
Notifique e comunique às instituições bancárias.” 3 - Recurso
Inconformada com o referido despacho, do mesmo AAinterpôs recurso (7março2024), motivando-o e delimitando-o no objeto com as conclusões que se transcrevem: (SIC, cfr. condições supra) a) O douto despacho recorrido incorre no vício de falta de fundamentação em que já incorreu o douto o despacho de fls. 1726 que foi anulado pela douta decisão sumária proferida em recurso por este Tribunal da Relação de Lisboa, no Apenso A, e em que e em que também incorreu o douto despacho de 14/07/2023 (fls. 2600), que mereceu revogação por douto acórdão proferido em 25 de Janeiro de 2024 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no recurso a que respeita o Apenso B; b)O douto despacho recorrido volta a insistir na mesma fundamentação que foi invalidada por este Tribunal da Relação, com a agravante de agora visar fundamentar medida cujos pressupostos são mais exigentes, uma vez que a aplicação medida de congelamento de fundos já não se basta com a mera suspeita e impõe a verificação de indícios, como decorre da norma do art.º 49º, nº 6 da Lei nº 83/2017, de 18 de Agosto. c) A fundamentação invocada pelo douto despacho em crise mantém-se no essencial a mesma que levou o Tribunal da Relação de Lisboa a revogar já por duas vezes, em recurso, os despachos que confirmaram a aplicação de medida de SOB, pelo que incorre precisamente nos mesmos vícios que determinaram aquelas duas decisões, d) Com o que Tribunal Recorrido violou de forma flagrante o dever de respeito e cumprimento das duas decisões proferidas por Tribunal superior, ao usar de motivação idêntica à já rejeitada em recurso, para mais agora na fundamentação de aplicação de medida mais gravosa do que a de SOB, o que ofende a norma do art.º 4º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto e a norma do art.º 152º, nº 1 do Código de Processo Civil, aqui aplicável por remissão do art.º 4º do Código de Processo Penal, não aplicadas e o deviam ter sido, o que constitui nulidade insuprível. e) A norma do art.49º, nº 6 da Lei nº 83/2017, de 18 de Agosto, impõe para a aplicação da medida de congelamento de fundos que estes estejam sob medida de suspensão provisória previamente decretada e em vigor; f) Assim se conclui da inserção sistemática daquele nº 6 em norma que regula a confirmação por juiz de instrução criminal da medida de suspensão temporária prevista no artigo 48º prévio e no na redacção daquela norma das expressões “dos fundos, valores ou bens objecto da medida de suspensão”, sendo o verbo usado é na forma pretérita: “aplicada” e não aplicável, e no uso dos termos “os mesmos”. o que importa que haja uma coincidência entre os fundos objecto da SOB e os que sejam congelados; g) O douto acórdão proferido em .../.../2024 pelo Tribunal da Relação de Lisboa transitado em julgado (Apenso C) decidiu pelo levantamento da medida de suspensão provisória que afectara as contas onde se encontram depositados os fundos objecto da medida de congelamento, medida aquela, aliás, que caducaria em 16/02/2024 por então ter expirado o prazo máximo de duração do inquérito; i) Ao determinar o congelamento dos fundos de contas bancárias tituladas pela recorrente que são as mesmas antes afectadas pela medida de SOB extinta por douto acórdão deste Tribunal da Relação, o douto despacho recorrido determinou a aplicação de medida de congelamento sem que se verifique a condição que ali prevê como necessária, ou seja, que os fundos a congelar estejam sob medida de suspensão provisória válida e vigente, pelo que violou a norma do art.º 49º, nº 6 da Lei nº 83/2017, de 18 de Agosto e é irregular, como previsto no art.º 118º, n º2 do CPP. j) A aplicação da medida de congelamento de fundos pressupõe, ainda, que se mostre indiciado que os fundos são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas ou financiamento do terrorismo e que se verifique o perigo de virem a ser dispersos na economia legítima, como previsto na citada norma do art.º 49º, nº 6, e já não se basta com a mera suspeita, havendo que sustentar a decisão com a verificação e explicação concreta de indícios; k) O despacho impugnado não indica na sua motivação facto que permita demonstrar mínima suspeita e muito menos indício, de que os fundos congelados são provenientes participante em facto ilícito criminal ou a relação concreta dos fundos congelados com os factos criminalmente relevantes em investigação, sem evidenciar indícios de qualquer das hipóteses previstas na norma do art.º 49º, nº 6 da Lei nº 83/2017 de 18 de Agosto, como sucede com o douto despacho recorrido, impondo tal ilegalidade a sua revogação. p) Sem conceder, o despacho decisório proferido no processo penal que aplica medida de congelamento de fundos limita o direito fundamental de propriedade da pessoa afectada e deve ser fundamentado de facto e de direito, impondo-se esse ónus pelo disposto na norma do art.º 97º, nº 5 do Código de Processo Penal (CPP) e na norma do art.º 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa; q) A motivação de facto desse despacho judicial importa que se enunciem de forma concreta, perceptível e completa, os factos em que assente a decisão, só assim se dando aplicação à norma do art.º 97º, nº 5 do Código de Processo Penal (CPP) e à norma do art.º 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que o Tribunal Recorrido não aplicou e que devia ter aplicado, pelo que foi violado o dever de fundamentação a que está vinculado; r) Tal constitui irregularidade processual que invalida a decisão que determinou o congelamento de fundos, por aplicação das normas do art.º 11 Io, nº 1, al. c) e do art.º 118º, nº 2 do Código de Processo Penal, que o Tribunal recorrido não aplicou e deveria ter aplicado, impondo a sua revogação por ilegalidade. s) Aquela omissão de fundamentação de facto impede à recorrente o exercício cabal do seu direito de defesa no processo penal, designadamente na vertente de contradição e impugnação efectiva a decisão que afecte os seus direitos por desconhecimento do que se lhe impute, o que viola de forma desproporcional, desnecessária e desadequada odireito de defesa consagrado pela norma do art.º 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, o que constitui ilegalidade; t) A interpretação da norma do art.º 49º, nº 6 da Lei nº 83/2017, de 18 de Agosto, no sentido de que admite a aplicação de medida de congelamento de fundos no processo penal sem que a decisão judicial expresse de forma concreta quais os factos indiciam que os fundos são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas ou financiamento do terrorismo e em que se verifica o perigo de virem a ser dispersos na economia legítima, limita de forma desproporcional o direito e garantia de defesa do afectado por tal medida no processo criminal e é inconstitucional por violar a norma do art.º 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa. 4 – Resposta ao recurso
Regularmente admitido o recurso (9abril2024 - ref. 8807763), o Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu ao mesmo (13maio2024 - ref. 215552) nos termos infra, pugnando no sentido de que o despacho recorrido não merece censura, concluindo nos termos que se transcrevem: (SIC, cfr. condições supra)
1. Nos presentes autos de Inquérito, por despacho proferido em ........2024, o Tribunal a quo, a requerimento do Ministério Público, determinou o congelamento dos fundos depositados nas contas bancárias identificadas a fls. 3608 e 3609, tituladas pela ora Recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 49.º, n.º 6, da Lei n.º 83/2017, de 18.08 (cfr. fls. 3622 e 3623).
2. Não se conformando com o teor da decisão, veio a sociedade AA interpor recurso, sustentando, em suma, que: (i) o despacho ora recorrido mantém o vício de falta de fundamentação; (ii) para aplicação de medida de congelamento dos fundos é necessário que os fundos estejam sujeitos a medida de suspensão provisória de operações bancárias previamente decretada e em vigor, o que, no caso, não se verifica; (iii) o despacho recorrido não fundamenta a existência de indícios de que os fundos são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas ou financiamento do terrorismo e que se verifica o perigo de virem a ser dispersos na economia ilegítima; (iv) o despacho recorrido viola o direito de propriedade da ora Recorrente.
3. É, no entanto, entendimento do Ministério Público que não merece qualquer reparo a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
4. Investiga-se nestes autos a prática de factos integradores do crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.º-A, n.ºs 1, alínea j) a 4, do Código Penal, surgindo como ilícito antecedente o crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, e 104.º, ambos do RGIT.
5. Por despacho datado de 19.12.2023, foi autorizada a prorrogação da medida de suspensão temporária de operações bancárias sobre as contas tituladas pela sociedade AA até ao dia 16.02.2024.
6. Em 16.02.2024, o Ministério Público requereu o congelamento dos fundos depositados nas supra mencionadas contas bancárias, nos termos do disposto no artigo 49.º, n.º 6, da Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto.
7. Sobre tal promoção recaiu despacho de deferimento, ora recorrido.
8. Quanto ao alegado vício de falta de fundamentação, o texto da decisão, e ao contrário do que alega a Recorrente, contém um esforço argumentativo e explicativo de análise e ponderação dos argumentos apresentados pelo Ministério Público, tendo a decisão sido tomada em atenção a critérios jurídicos, resultantes da interpretação do Direito, aplicável aos factos conhecidos, realizada pelo juiz que proferiu a decisão.
9. Tratando-se de uma decisão interlocutória, basta a indicação clara, ainda que sumária, não tendo paralelo com o que é exigível na sentença que, a final, conhece do mérito.
10. É, pois, entendimento do Ministério Público que o Tribunal a quo fundamentou, de forma cabal, a decisão de congelamento de fundos, sendo tal medida adequada, proporcional e necessária à defesa da Justiça e do combate à criminalidade internacional económica e financeira, não se verificando omissão do dever de fundamentação, quer de facto, quer de direito.
11. Questão distinta da falta de fundamentação é a discordância da Recorrente com os fundamentos invocados.
12. Quanto ao alegado vício de ter sido decretada medida de congelamento de fundos sem que vigorasse medida provisória de operações bancárias, verifica-se que aquando da promoção visando o congelamento de fundos (datada de 16.02.2024), o Ministério Público não tinha conhecimento do sentido da decisão do mencionado Acórdão, porquanto os autos baixaram à Primeira Instância apenas a 15.02.2024, tendo o Mm.º Juiz de Instrução tomado conhecimento do teor do mesmo a ........2024.
13. Assim sendo, a sua posição é consentânea com os princípios da boa-fé e lealdade processual.
14. Razão pela qual se afigura que a única interpretação possível é a de que à data em que a medida de congelamento foi promovida e decretada, a mesma incida sobre uma medida de suspensão de operações bancárias com carácter de contemporaneidade.
15. Ainda que assim não se entenda, refira-se que o legislador não exige que a medida de congelamento de fundos, prevista no artigo 49.º, n.º 6, da Lei n.º 83/2017, de 18.08, seja decretada durante a vigência de uma SOB, podendo ser decretada já depois da mencionada medida ter sido cessada.
16. Por fim refira-se que ao recurso foi fixado efeito meramente devolutivo, razão pela qual o mesmo não suspende o andamento do processo.
17. Quanto à alegada falta de indícios para aplicação da medida de congelamento, não corresponde à verdade que a medida de congelamento de fundos tenha sido decretada sem que existam indícios de que os fundos em causa são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas.
18. O despacho recorrido explicita os pressupostos de facto e de direito que justificam a aplicação de tal medida, assentando a indiciação de que os fundos em causa são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas em prova documental coligida nos autos principais (no caso, extractos bancários), os quais foram apresentados ao Mmo. Juiz de Instrução aquando da promoção de congelamento de fundos.
19. Encontrando-se os autos instruídos com os elementos probatórios, o despacho ora recorrido realizou uma correcta interpretação e aplicação da lei ao caso concreto, não padecendo de qualquer violação de legal ou constitucional.
20. Quanto à alegada violação do direito de propriedade da ora Recorrente, importa ter presente que a aplicação da medida de congelamento de fundos visa impedir que os valores/fundos sejam integrados na economia legítima e sucessivamente branqueados.
21. Ou seja, o sacrifício dos direitos fundamentais da pessoa - designadamente, do direito de propriedade - está justificado pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, sem prejuízo do necessário e apertado controlo jurisdicional na sua aplicação.
22. Atento o supra exposto, afigura-se ao Ministério Público que o douto despacho recorrido não enferma de qualquer irregularidade ou nulidade, nem merece qualquer reparo, porquanto concretiza as garantias de defesa do arguido, os direitos constitucionais a um processo justo e equitativo e a uma tutela jurisdicional efectiva, devendo ser mantido nos seus precisos termos. 5- Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação (21junho2024 – ref. 21759215), o processo foi com vista ao Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, o qual, acompanhando a posição exarada nos autos pelo Ministério Público na 1.ª instância, emitiu parecer pugnando pela improcedência do recurso (24junho2024 – ref. 21759231). Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório, inexistindo resposta do recorrente.
Conclusos os autos para efeito de exame preliminar (2setembro2024 – ref. 21845536) foi proferido despacho pelo Relator a ordenar a remessa dos mesmos à distribuição para sorteio de novo 1.º Adjunto, em virtude da transferência, entretanto ocorrida, da inicialmente sorteada para outro tribunal. Efetuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso seja julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência (1), cumpre apreciar e decidir. II- Fundamentação 1- Objeto do recurso
Sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, é a partir das conclusões que o recorrente extrai da sua fundamentação de motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem na sede de recurso (art.s 403.º;412º/1 CPP e jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Penal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19outubro1995).
O recurso versa em exclusivo matéria de direito -, sendo que em sede de fundamentação de motivação e de conclusões inerentes opera suficiente cumprimento do determinado nas alíneas a) e b) do art.º 412.º/2CPP. E daí que se logre percecionar – como de imediato se circunscreverá – qual é o final, delimitado, possível e concreto objeto do recurso, assim se permitindo a este Tribunal Superior conhecer do Direito.
Tendo em conta o contexto normativo e o teor das conclusões efetuadas pelo recorrente, as questões que importa decidir sustentam-se:
- na falta de fundamentação do despacho recorrido;
- na violação do art.º 4.º/1 LOSJ - Lei62/2013-26agosto (e art.º 4.º EMJ – Lei21/85-30julho) ;
- na violação do disposto no art.º 49.º/6 Lei83/2017-18agosto. 2 - Apreciação do recurso 1.ª questão: da alegada falta de fundamentação
Reporta a recorrente que o despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal, a ...(ref. 8741268), padece de falta de fundamentação, o mesmo vício de que já padeceu o despacho de 8fevereiro2023 (fls. 1726), por isso anulado pela Decisão Sumária de 7junho2023 (apenso B), assim como o despacho de ... 2600), merecedor do Acórdão de 25janeiro2024 (apenso C).
Cumpre decidir, sendo que para tanto há, desde já, que firmar que o ato decisório, com natureza interlocutória, ora sob recurso, assume a natureza de despacho (art.º 97.º/1b)CPP), tendo sido proferido em fase processual de inquérito, como ato jurisdicional da competência do Juiz de Instrução Criminal (art.º 81.º - Lei83/2017-18agosto), inquérito este que se mostra sob segredo de justiça (até 16maio2026 - cfr. despacho de 31maio2025 – ref. 8868315). Competência esta que tem a sua génese no papel de juiz das liberdades ao qual cabe ser guardião e garante dos direitos fundamentais das pessoas afetadas por decisões e por medidas impostas em tal fase processual, em linha com a afirmação constitucional da tutela jurisdicional efetiva estabelecida pelo art.º 20.º/5CRP, nos quais se inclui o direito de propriedade. (neste sentido cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional 388/2019, rel. Juíza Conselheira Fátima Mata-Mouros, acessível inwww.tribunalconstitucional.pt, bem como Pedro Soares de Albergaria, in Comentário Judiciário ao CPP, p. 297)
Nos crimes sob investigação – branqueamento de capitais, com precedente em crime de fraude fiscal - é nuclear ter presente a opacidade que lhes é própria, uma vez que na normalidade do seu desenrolar operam em grupo fechado e com regras de auto proteção, o quanto acarreta diretas dificuldades investigatórias. E daí muitas das especificidades inerentes às regras que a Lei 83/2017-18agosto vem estabelecer, fazendo-o através da transposição de Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho, numa direta ligação à necessidade de reconhecimento de que a prevenção de crimes é um valor constitucionalmente consagrado (art.º 272.º/3CRP) a implicar não só atuações reativas, mas essencialmente atuações preventivas. De facto, as tidas como medidas clássicas preventivas e repressivas próprias do CPP não asseguravam resposta adequada e suficiente a este tipo de criminalidade tão grave. Impunha-se a criação de instrumentos preventivos e repressivos próprios para este fenómeno que pode ter (e normalmente tem) inúmeros crimes precedentes ou subjacentes, cada vez mais sofisticados e geradores de avultados proventos ilícitos, e cujo branqueamento se incrimina através do tipo legal previsto no art.º 368.º-A-CP. Sendo esta uma criminalidade altamente organizada (na aceção do art.º 1.ºm)CPP) que utiliza o sistema financeiro nacional para a comissão de ilícitos, quando há suspeitas de tal suceder (nomeadamente por se desconhecer a origem e o modo como foram angariados certos fundos) urge impedir, ainda que temporariamente, que tais fundos se dissipem e/ou sejam utilizados em benefício dos seus agentes, na economia legítima e/ou, até, canalizados para outro país, ficando fora do alcance da justiça. (cfr. Damião da Cunha in Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira. P. 77ss.)
O que gera per se todo um modo de atuação processual por parte do Ministério Público, como dominus do inquérito, onde se destaca a importância que o segredo de justiça assume quanto à eficácia investigatória nestas matérias, o que não pode, contudo, permitir uma prevalência deste ao ponto de colocar em falência os elementares direitos de defesa. Razão, também, da intervenção do Juiz de Instrução Criminal, não para se imiscuir na investigação criminal própria do objeto do inquérito, sim "para salvaguardar a liberdade e a segurança dos cidadãos no decurso do processo-crime e para garantir que a prova canalizada para o processo foi obtida com respeito pelos direitos fundamentais. A exigência de intervenção judicial no inquérito em relação a atos que afetem direitos fundamentais institui-se, pois, como pilar da arquitetura sistémica que se foi construindo para o processo penal português.” (neste sentido cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional 121/2021, rel. Juíza Conselheira Mariana Canotilho, acessível inwww.tribunalconstitucional.pt)
Fundamentar as decisões judiciais mais não é do que garantir a estrutura basilar do próprio Estado de direito democrático, sendo que no domínio do processo penal ao nível dos atos decisórios, a mesma assume uma função estruturante da expressão do pensamento do julgador, do mesmo modo que assegura as garantias de defesa do sujeito a quem a decisão se dirija (cfr. art.º 205º/1CPP) uma vez que lhe permite o conhecimento, e inerente controlo das razões que motivam o ato, com vista a adoção conscienciosa das estratégias processuais subsequentes, tudo reforçando o direito a um processo justo e equitativo que assim pode ser, de forma segura e compreensível, analisado em sede de recurso. (sobre a tríplice função, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, rel. Juiz Conselheiro Eduardo Loureiro, NUIPC 1063/19.0GCALM.L2.S1, 19maio2022, acessível inwww.dgsi.pt/jstj)
Em cumprimento deste princípio geral, no CPP, ao nível do art.º 97.º/5, consagram-se as mínimas exigências de reporte aos atos decisórios, sem prejuízo de, relativamente a alguns particulares e específicos que afetam ou possam afetar essenciais direitos, operar reiteração e reforço deste princípio geral.
Ora, desde logo se firme que a medida ora sob escrutínio – congelamento de fundos (freezing) – não se traduz nem numa concreta apreensão, nem os fundos, valores ou bens objeto da medida equivalem a bens apreendidos ou arrestados por virtude de infração. O que antes está em causa é um estado entre a livre disponibilidade e a apreensão, que visa impedir que os valores/fundos sejam integrados na economia legítima e sucessivamente branqueados.
O que de imediato nos leva à evidência de não se estar perante uma situação paralela à das medidas de coação ou de garantia patrimonial, mas sim algo a funcionar não só num patamar ex ante como num patamar de intervenção menos gravosa, uma vez que se trata dum meio de prevenção da prática de crimes de catálogo – onde opera uma clara intenção de prevenir que o sistema financeiro seja utilizado para efeitos de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, desta forma inviabilizando a disseminação dos fundos detetados (de proveniência duvidosa) no referido sistema financeiro. (neste sentido, cfr. os Acórdãos desta 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa, respetivamente rel. Juíza Desembargadora Alda Tomé Casimiro, 3maio2022, NUIPC 261/20.9TELSB-E.L1-5, rel., o ora 1.ª Adjunto, Juiz Desembargador Rui Poças, 11março2025, NUIPC 559/24.7TELSB-A.L1-5 e rel. Juiz Desembargador João Grilo Amaral, 11março2025, NUIPC 102/23.5TELSB-C.L1-5 – em que o ora 2.ª Adjunto ali o é igualmente - acessíveis inwww.dgsi.pt/jtrl)
E assim sendo, não se justificando para o caso concreto a excecionalidade de fundamentação que se impõe no art.º 194.º/6CPP, estamos perante a regra geral de irregularidade se de ausência de fundamentação o ato decisório padecer.
Descendo ao concreto, o despacho sob recurso, nem é redondo, nem é impreciso ou destituído de concretização. Antes é um despacho que começa por identificar quais são as contas bancárias cujo congelamentos de fundos o Ministério Público requer, expressando de seguida qual a norma inerente ao instituto chamado à decisão, seguindo-se a delimitação dos crimes sob investigação. No imediato, em resultado da análise do decurso da atividade investigatória encetada no inquérito firma que se está perante indiciação de que os saldos das contas bancárias sob escrutínio se relacionam com a atividade inerente aos crimes em causa, sendo que na ponderação de confronto entre o segredo de justiça presente e a necessidade de fundamentação legalmente exigida, trazendo à colação a argumentação de facto que o Ministério Público manifesta, com a qual concorda e, por isso, em expressa, direta e específica explanação, conclui pelo deferimento do pretendido.
No mais, sempre se dirá que o despacho em apreço sequer se move pelo suficiente expressar de concordância face à prova recolhida, em termos indiciários, com a promoção do Ministério Público de congelamento das contas e nesta, além do mais, estarem reforçados os indícios sobre a origem ilícita dos fundos, invocando-se também o risco de dispersão dos ativos creditado na conta em apreço. Vai mais além, como se disse, sendo que mesmo que se quedasse pela aludida adesão, não é a mesma per se sinónimo direto de insuficiência de fundamentação. (sobre o tema, quanto a remissão, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, rel. Juiz Desembargador Rui Miguel Teixeira, NUIPC 533/20.0TELSB-C.L1-3, 20dezembro2023, acessível inwww.dgsi.pt/jtrl, assim como o Acórdão do Tribunal Constitucional 147/2000, rel. Juiz Conselheiro, acessível inwww.tribunalconstitucional.pt; quanto a remissão em sede de despacho de SOB – renovação - cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, rel. Juíza Desembargadora Paula Penha, NUIPC 140/22.5TELSB-A.L1-0, 24novembro2022, assim como o já referido Acórdão desta 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no NUIPC 559/24.7TELSB-A.L1-5, acessíveis inwww.dgsi.pt/jtrl)
Ou seja, mediante promoção concretizada por quem para tanto tem legitimidade processual – o Ministério Público -, promoção na qual está delineada específica conta bancária, assim como sumariada a atividade que permite a indiciação dos crimes em apreço, com remessa para concretizados meios de prova, entendeu-se ser caso para solicitar, por necessário e adequado, o operar do meio preventivo de congelamento de fundos. Perante tal promoção o competente Juiz de Instrução Criminal apreciou os autos e verteu para o despacho, ora sob sindicância, o quanto exigido legalmente se impõe.
Não estamos, lido que está o despacho em causa, perante qualquer fundamentação sumária, muito menos insuficiente ou em falta. De facto, a constatação de ausência determina para os despachos um vício processual, gerador de uma irregularidade. Diferente é o despacho que abarque a enunciação de fundamentos, mas estes apresentam-se-nos incompletos ou insuficientes para permitir que se extraia a ilação jurídica ali formulada, o quanto gera vício substantivo. (sobre os conceitos, no quadro de sentença, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, rel. Juiz Conselheiro Santos Cabral, NUIPC 15/10.0JAGRD.E2.S1, 26março2014, inwww.dgsi.pt/jstj, assim como Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, volume V, Reimpressão, 1984, p. 139-140)
Diga-se, ainda a propósito da distinção entre fundamentação sintética, ou sumária, mas ainda assim não insuficiente, versus ausência de fundamentação, que aquela é uma forma legalmente admissível de formatar a decisão judicial. Como, em lugar paralelo, refere Mouraz Lopes (in Fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português Legitimar, Diferenciar, Simplificar) a fundamentação sumária traduz-se num modo de elaboração da fundamentação da decisão que consiste numa redução do âmbito da estrutura justificativa dos atos decisórios tendo em conta a especificidade estrutural que cada ato assume no procedimento. Nada obsta a que na sua formulação, desde que respeitado esse conteúdo mínimo exigível a cada uma das decisões, seja possível uma forma de fundamentação sumária, desde que garantida a possibilidade do seu controlo.
No caso presente – como supra se deu conta - não opera qualquer falta de fundamentação (que seria geradora de nulidade, se cominada expressamente - art.º 118.º/1CPP-, ou de irregularidade, como é comum nas demais situações - cfr. art.º 118.º/2CPP), como não opera uma qualquer insuficiência de fundamentação.
De facto, resulta claro do despacho em causa que o Juiz de Instrução Criminal não deixou de desempenhar o papel que é o seu, de garante dos direitos, liberdades e garantias. Pronunciou-se quanto aos factos e ao direito e, ponderados os interesses a acautelar, descreveu no esmiuçadamente possível os factos em causa.
Assim sendo, como o é, o quanto opera nos autos é somente um desacordo por parte da recorrente quanto à argumentação expendida pelo Tribunal a quo. Desacordo esse que ao ser per se expresso pela recorrente logo evidencia que o despacho em crise enuncia de forma suficiente as razões pelas quais decidiu num certo e determinado sentido. Nenhuma falta de fundamentação existe. O que existe é uma fundamentação em desacordo com a argumentação expedida pela recorrente. Mas tal não conduz à nulidade ou à irregularidade, consoante o caso, do ato decisório em causa. (neste sentido cfr. José Mouraz Lopes, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, p. 798)
Em síntese, a fundamentação do despacho de ...é a adequada, proporcional e necessária à defesa da Justiça e do combate à criminalidade internacional económica e financeira. É uma medida cautelar que protege os fins da lei de combate ao branqueamento sem, contudo, deixar de transmitir expressamente à recorrente os motivos do deferimento judicial da promoção do dominus do inquérito.
Improcede, deste modo, a inicial argumentação da recorrente. 2.ª questão: da alegada violação do art.º 4.º/1 LOSJ - Lei62/2013-26agosto (e art.º 4.º EMJ – Lei21/85-30julho)
Questão tão colateral quão umbilical à antecedente, coloca a recorrente quando afirma que o despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal a ...(ref. 8741268) viola o dever de acatamento das decisões proferidas por Tribunal Superior.
Decidindo.
Resulta da norma do art.º 4.º/1 LOSJ (que tem muito similar redação no art.º 4.º/1EMJ) – em expressa manifestação do princípio de independência consagrado no art.º 203.ºCRP – a assunção duma das essenciais manifestações da integridade da liberdade intelectual do julgador, dando corpo à independência dos Tribunais dos quais os Juízes são os diretos representantes, numa exposição que os obriga a julgar segundo a Constituição e a Lei, de forma independente, por não estarem sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por Tribunais Superiores. (art.º 4.º/1 LOSJ – Lei 62/2013-26agosto e art.º 4.º EMJ – Lei 21/85-30julho)
Descendo ao concreto da análise duma questão desta dimensão, a única situação em que seria possível chamar à colação as normas em causa - mas que não faz parte do objeto do presente recurso - reporta à relação entre a Decisão Sumária de 7junho2023 e o subsequente despacho de 14julho2023, por se tratar da mesma questão de facto e de direito. É dizer, reportaria à decisão de SOB, sendo que então cumpriria vislumbrar se operara violação pelo Juiz de Instrução Criminal, em moldes de incumprimento do decidido a 7junho2023, situação que, note-se, sequer pela recorrente foi colocada no recurso que deu azo ao Acórdão de 25janeiro2024. O que, ex abundanti se diga, não se vislumbra ter ocorrido. No mais - como modo de estabelecimento de fronteira -, o então em apreço dizia respeito a SOB, sendo que o ora em apreço diz respeito a diferenciada medida, em concreto de congelamento de fundos, a primeira da competência do Ministério Público, baseada em suspeição, e sujeita a confirmação judicial, a segunda, baseada em indiciação concreta acrescida de constatação de perigo, sujeita a legitimada promoção e da competência do Juiz de Instrução Criminal.
O que diretamente, por falta de identidade de questão de facto e de direito – noutras palavras, porque perante objeto diverso daquele despacho que foi sindicado na Decisão Sumária e no Acórdão reportados -, vale para aqui firmar a absoluta falta de razão da recorrente. 3.ª questão: da alegada violação do art.º 49.º/6 Lei83/2017-18agosto
Como inicial argumento, porque a medida de congelamento de fundos foi promovida pelo Ministério Público a ... e só a ... foi deferidapelo Juiz de Instrução Criminal, sendo que havia sido proferido a 25janeiro2024 Acórdão (apenso C)a determinar o levantamento da SOB, invoca a recorrente que só é possível a aplicação da medida de congelamento de fundos uma vez que se mostre vigente a medida de SOB, o que não aconteceria.
Decidindo, começando por uma nota inicial que cumpre firmar, uma vez que a recorrente aventa situação de não confiabilidade de atuação de boa fé. De facto, sendo o Acórdão que determina o levantamento da SOB de 25janeiro2024, certo é que só a 19fevereiro2024 se concretizou a baixa definitiva à 1.ª instância – leia-se ao Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) - do apenso em separado em que o recurso subira. E daí que, mesmo na consideração de a Magistratura do Ministério Público ser una, não se vislumbre nos autos – e é somente com os autos que podemos contar - como podia a Magistrada do Ministério Público subscritora da promoção de ... – no DCIAP e não no TCIC - ter conhecimento de que à data já havia operado o dito levantamento de SOB. No mais, com relação ao Juiz de Instrução Criminal é certo que quer o despacho a deferir a promoção de ... – o despacho ora sob recurso – quer o despacho a tomar conhecimento da decisão de 25janeiro2024 são de .... Porém, o de deferimento é prévio ao de conhecimento, o que se por um lado inviabiliza qualquer alteração, por outro confirma a idoneidade do decidido assim esvaziando o que a recorrente, mesmo que a latere, sindica.
Uma nota final, qual seja a de que os recursos interpostos nos apenso B e C foram-no com efeito devolutivo, o que vale por dizer que a SOB até ao trânsito do Acórdão de 25janeiro2024 esteve plenamente vigente.
Continuemos, relembrando a essencial destrinça entre as medidas ora chamadas:
a) a SOB (art.º 48.º - Lei83/2017-18agosto) assume a natureza de medida preventiva e repressiva no combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita, dirigindo-se à preservação de um património, sendo suportada no risco da sua origem ou utilização ilícitas e visando evitar a sua dispersão na economia legítima, bastando-se com a suspeita (é dizer, um indício, no singular – cfr. art.º 1.ºe)CPP – e sem graduação de intensidade) materializada em índices objetivos considerados, expressa e legalmente, como de risco de branqueamento, sendo decretada pelo Ministério Público e confirmada pelo Juiz de Instrução Criminal, podendo ser prorrogada por períodos que não devem ser superiores a três meses (sob a égide rebus sic stantibus), com o limite máximo do prazo do inquérito previsto no CPP (e não o prazo em que o inquérito pode perdurar - neste sentido cfr. o Acórdão desta 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa, rel. Juíza Desembargadora Maria José Machado, 6julho2021, NUIPC 740/16.2TELSB-B.L1-5, onde em recensão histórica e até abrangente do processo legislativo inerente, esta específica questão de duração da SOB é abordada; no mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, rel. Juiz Desembargador Calheiros da Gama, 11fevereiro2021, NUIPC 1151/18.0TELSB-A.L1-9, ambos acessíveis inwww.dgsi.pt/jtrl), prazo com o qual caducam;
b) a medida de congelamento (art.º 49.º/6 - Lei83/2017-18agosto) consubstancia uma ação destinada a impedir o movimento, transferência, alteração, utilização ou operação sobre fundos, ou o acesso aos mesmos, que sejam suscetíveis de provocar uma alteração do respetivo valor, volume, localização, propriedade, posse, natureza, destino ou qualquer outra alteração suscetível de permitir a sua utilização, incluindo a gestão de carteiras de valores mobiliários, cumulativamente exigindo-se para o seu decretamento a indiciação de proveniência ou relacionamento com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e a verificação do perigo de serem dispersos na economia legítima.
E daí que (como se afirma expressamente no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, rel. Juiz Desembargador Nuno Pires Salpico, NUIPC 109/19.7TELSB-A.P1, 14julho2020, acessível inwww.dgsi.pt/jtrp) a nota essencial distintiva entre os dois institutos supra se afira na constatação de que ”[n]o momento de determinação da ordem de suspensão, em que não existe nenhuma investigação, não pode ser exigido mais do que um juízo de suspeição, sob pena de destituir de qualquer sentido útil o instrumento jurídico ali criado. Numa fase ulterior, reunidos elementos probatórios que sustentem uma indiciação da proveniência dos fundos, poderá ser decidido o seu congelamento. Ou, obviamente, findo o inquérito ou o prazo deste sem que seja possível sustentar esta indiciação, terá de ser declarada cessada a ordem de suspensão (...). Transformando-se a suspeita em indiciação, será então o momento de ponderar o congelamento dos fundos.”
Ou seja, da SOB pode vir a decorrer o congelamento dos fundos, bens e valores que da mesma foram objeto, uma vez que se verifique a existência de indícios de que os fundos são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades dos crimes de catálogo e a verificação do perigo de serem dispersos na economia legítima, de acordo com os princípios gerais do direito penal e processual penal, em matéria de confisco, apreensão e perda a favor do Estado dos instrumentos e dos produtos do crime (arts. 109.º a 111.ºCP, 178.º a 186.º, 227.º e 228.ºCPP, além do regime jurídico da perda ampliada – Lei5/2002-11janeiro).
Não se exige que os indícios sejam fortes, nem que seja imputada ao titular dos fundos a prática da atividade criminosa da qual esses fundos são provenientes. O que se exige é que haja indícios de que os fundos ou valores estão relacionados com a prática de atividades criminosas e não necessariamente que das mesmas são provenientes e que os mesmos possam desaparecer através da sua utilização em negócios legais, facilmente exequíveis, dessa forma impossibilitando o combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita que a Lei83/2017-18agosto quis fortalecer.
A argumentação da recorrente, sendo semântica, passa desde logo pela invocação de que o Acórdão de 25janeiro2024 se fundou na inexistência de factos bastantes para o decretamento da SOB razão do seu levantamento. Porém, assim não é, pois ainda que a solução do Acórdão seja de natureza eminentemente substantiva, a sua razão é de forma.
No mais, invocando as regras de interpretação da lei, por recurso ao art.º 9.º/3CC, discorre sobre o tempo verbal “aplicada” e a expressão “os mesmos”.
Descendo, então, ao concreto da questão colocada pela recorrente, dir-se-á que do texto do art.º 49.º/6 Lei83/2017-18agosto tão só decorre que o congelamento se determine em função dos fundos, valores ou bens que foram objeto da SOB. Essa sim é condição. É dizer, o objeto do congelamento mostrar-se-á sempre delimitado, nas suas balizas máximas, pelo objeto duma preexistente SOB.
Mas já não parece decorrer como condição que a SOB se mostre vigente, o que se compreenderá se se tiver presente que os pressupostos são não só diferentes, como gradativamente mais exigentes, para além de nada na lei resultar em termos de medidas concorrentes ou concomitantes temporalmente, mas sim alternativas em que a segunda depende não só da preexistência da primeira, como da evolução da suspeição subjacente à primeira se ter transformado em indiciação.
Vejamos se assim efetivamente é, uma vez que a questão ora em apreço se prende – neste momento da análise – mais com a questão da exigência de contemporaneidade da vigência da SOB ao momento do decretamento do congelamento, do que com a relação sucedânea que entre tais medidas existe.
Para tanto há então que perceber a evolução dos institutos.
A Lei83/2017-18agosto mais não é do que a evolução da Lei25/2008-5junho, que revoga (art.º 190.º - Lei83/2017-18agosto), sendo que na originária versão desta, bem como nas subsequentes (e foi sujeita a 9 alterações até que revogada o foi), a questão ora tratada como SOB se firmava no art.º 17.º, inexistindo uma concreta referência a um instituto como o do vigente congelamento (ainda que a norma do art.º 44.º/2 da Lei25/2008-5junho reporte um conceito relacionado). É, pois, nesta Lei83/2017-18agosto (que já contém 6 alterações – a última decorre da Lei99-A/2021-31dezembro - mas em que em nenhuma se buliu com o n.º 6 do art.º 49.º) que se determina este novo instituto, instituto o qual – como decorrência da própria razão da Lei, tal qual já referido – não assume só uma índole de prevenção de crimes mas também já de reação a crimes. Daí a sua natureza baseada na referida exigência de indiciamento subsequente e não com base na mera suspeição, mas sempre acrescida da necessidade de evitação da dispersão do produto na economia legítima.
E é aqui que alguma estranheza – por alguns tida por incoerência – de sistema se pode vir a constatar.
De facto, o regime instituído pela Lei83/2017-18agosto recorrentemente fala de inquérito. Na certeza de que a significância inquérito se afere pelo art.º 262.ºCPP, partindo sempre dum pressuposto reativo necessário à investigação da existência dum crime, notícia do qual, por regra, o determina.
Serve o presente para dizer que se as regras inerentes ao instituto da SOB sendo pensadas para uma fase de prevenção, com caráter eminentemente proativo, afinal e por decurso da própria Lei, têm que ser aplicadas em fase que se pode apodar de repressão, no sentido de reação que sempre é o inquérito porque baseado na notícia dum crime. Assim o é, desde logo pela própria exigência de a SOB, como o congelamento por da antecedente existência daquela depender, ter confirmação ou determinação em sede de inquérito (cfr. art.º 49.º/1 - Lei83/2017-18agosto). E se para este último instituto não se estranha a exigência uma vez que as decorrências do mesmo são muito mais restritivas, nomeadamente ao nível da impossibilidade total e absoluta de movimentação das contas bancárias, já para aquele só se compreenderá a razão de recurso ao processado em causa pela natureza do quanto em última ratio não deixa de estar presente, pois ainda que só se esteja perante suspeição, certo é que a SOB indubitavelmente revolve nas linhas mestras do direito de propriedade - não com a mesma robustez que o congelamento, uma vez que ainda assim, quando justificadamente seja alegado, pode ser ponderadamente autorizada pelo Juiz de Instrução Criminal, após contraditório, a realização de operação pontual (cfr. art.º 49.º/5 - Lei83/2017-18agosto) (cfr., neste sentido, o já referido Acórdão desta 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no NUIPC 102/23.5TELSB-C.L1-5), autorização esta que necessariamente – tal qual a confirmação inerente à SOB - tem que operar num âmbito processual de natureza judicial.
Tudo a levar-nos à solução da questão, a qual passa por perceber que na normalidade do que era o instituto de SOB à luz da antecedente legislação, em que até inexistia um limite temporal para a sua vigência (cfr. neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, rel. Juiz Desembargador João Pedro Nunes Maldonado, NUIPC 31/17.1TELSB-A.P1, 21junho2017, acessível inwww.dgsi.pt/jtrp, assim como o já referido Acórdão desta 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no NUIPC 740/16.2TELSB-B.L1-5) uma vez reforçada a suspeição inerente com uma indiciação – é dizer firmada uma conexão entre o ilícito em investigação e o bem sujeito, com perigo de dispersão do produto na economia legítima -, o caminho processual passaria pelo recurso ao meio de obtenção de prova ou de garantia da futura decisão de confisco constitutivo da apreensão (art.º 178.ºCPP) – onde este perigo se não exigia, mas só a conexão se exigia (admitindo-se ainda o eventual recurso nas condições exigidas para tal, necessariamente de tutela mais reduzida, das medidas de garantia patrimonial de caução económica – art.º 227.ºCPP – ou de arresto preventivo – art.º 228.ºCPP) (cfr. João Conde Correia in Apreensão ou arresto preventivo dos proventos do crime – RPCC, 2015, p. 505) sendo que hodiernamente tal caminho processual se mantém, mas também se permite o caminho que foi usado nos presentes autos: o do congelamento pela via do art.º 49.º/6 Lei83/2017-18agosto, à luz da literalidade da norma e desde que o perigo se verifique. (sobre distinção entre os conceitos de SOB e de apreensão, cfr. o Acórdão desta 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa, rel. Juiz Desembargador Simões de Carvalho, 22fevereiro2022, NUIPC 397/20.6TELSB-A.L1-5; sobre distinção entre congelamento, apreensão e arresto cfr., uma vez mais, o referido Acórdão desta 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no NUIPC 102/23.5TELSB-C.L1-5, em especial nota de rodapé 3 e 4, ambos acessíveis inwww.dgsi.pt/jtrl)
Cientes desta mescla de institutos, não se olvide que os mesmos – o que decorre da sua génese – visam um alargamento de intervenção do Ministério Público, cuja finalidade é comum: obstaculizar a este, tão especifico quão gravoso, tipo de criminalidade, seja em termos preventivos, seja já em termos reativos, aqui também na ciência de que a medida de congelamento não se mostra restringida ao prazo de inquérito (tal qual não está a apreensão – neste sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional 298/2008, rel. Juiz Conselheiro Carlos Fernando Cadilha, 29maio2008, acessível inwww.tribunalconstritucional.pt).
No fundo, permite-se um caminho típico do processo penal, como se permite um caminho específico para a criminalidade em presença, sem grande diferenciação procedimental entre os mesmos que não algumas razões típicas, como sem diferenciada consequência garantística face à válvula de salvaguarda do art.º 49.º/7 Lei83/2017-18agosto.
E dai que, como decorre do Acórdão desta 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa (rel. Juíza Desembargadora Maria José Machado, NUIPC 669/21.2TELSB-A.L1, 4março2024, não publicado – do qual possuímos cópia fornecida pelo Gabinete de Apoio aos Juízes Desembargadores – Tribunal da Relação de Lisboa) “Embora a decisão de congelamento surja, na generalidade dos casos, na sequência da suspensão das operações bancárias, isso não é imprescindível nem resulta do preceito que o congelamento tenha de se seguir imediatamente à suspensão. Se se verificarem os pressupostos enunciados no n.º 6 do artigo 49.º da Lei, pode, de imediato, ser determinado o congelamento dos fundos, valores ou bens que foram ou ainda são objecto da medida de suspensão aplicada. O congelamento não tem de ser necessariamente decidido no decurso do inquérito, podendo ocorrer noutra fase do processo desde que se mostrem verificados aqueles pressupostos, isto é, que haja indícios que os fundos são provenientes ou estão relacionados com a prática de actividades criminosas e exista o perigo de serem dispersos na economia legítima.”
Caminho específico o qual foi seguido nos autos, verificados que estavam os pressupostos indiciados, ao que não obsta o levantamento da SOB o quanto determina o inviabilizar da solução desta questão nos moldes pretendidos pela recorrente. (cfr. neste sentido, uma vez mais – sendo que no seu último parágrafo aborda diretamente a questão ora em apreço, o referido Acórdão desta 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no NUIPC 740/16.2TELSB-B.L1-5)
A terminar e com relação à argumentação de desconformidade constitucional e de desrespeito de elementares Direitos Humanos, que a recorrente coloca, cumpre dizer que decorre do art.º 18.º/2/3CRP que podem operar restrição de direitos, liberdades e garantias através de leis restritivas (como é o caso da Lei 83/2017-18agosto, por força dos art.s 161.ºc) e 165.º/1b)CRP), desde que sejam necessárias para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Claramente o art.º 61.º/1CRP ressalva que a iniciativa económica privada se exerce livremente, em consonância com os limites definidos pela Constituição e pela Lei e tendo em conta o interesse geral, do mesmo modo que o art.º 62.º/1CRP também garante a tutela do direito à propriedade privada nos termos da Constituição, o quanto per se inculca as restrições operadas pela Lei em apreço, porque necessárias para salvaguarda doutros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. (cfr. neste sentido os Acórdãos do Tribunal Constitucional 724/2014 e 387/2019, respetivamente rel. Juíza Conselheira Maria José Rangel de Mesquita e rel. Juíza Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros, 26junho2019, acessível inwww.tribunalconstritucional.pt)
De igual modo, decorrendo do art.º 1.º do protocolo adicional à CEDH e do art.º 17.º da DUDH uma inequívoca proteção da propriedade, como instrumento de realização pessoal associado à liberdade de iniciativa económica, certo é que a sua proteção não é absoluta, e como direito não absoluto está sujeito a interferências e limitações, como tal devendo ser interpretado à luz da função social do bem e da atividade sob proteção. Como tem sublinhado o TEDH [desde o Acórdão Sporrong and Lönnroth v. Sweden, Application nº. 7151/75; 7152/75, de 23September1982, posição no Acórdão Perdigão vs. Portugal, (Application nº. 24768/06), de 16November2010], a norma do art.º 1.º do protocolo adicional à CEDH deve ser compreendida através da invocação de três regras distintas: esta disposição, em primeiro lugar, enuncia o princípio geral de reconhecimento do direito de propriedade, em segundo lugar disciplina a possibilidade de privação da liberdade e disciplina as respetivas condições e em terceiro lugar reconhece ao Estado o poder de regulamentar o uso dos bens em conformidade com o interesse geral.
Daí reconhecer-se que no domínio que agora nos ocupa, ou seja, no contexto do “confisco” das vantagens do crime, essa limitação do direito de propriedade estará naturalmente justificada. Isto mesmo se afirma, entre outros, no Acórdão do TEDH Lavrechov v. Czech Republic, Abril de 2010, onde se refere que “a tramitação própria do processo penal, e no geral o combate e prevenção do crime preenche indubitavelmente o interesse público previsto no artigo 1.º do protocolo n.º 1”. A privação da propriedade nestes casos não poderá deixar de considerar-se uma medida proporcional e adequada a garantir o restabelecimento da ordem patrimonial dos bens face ao direito vigente, e com isso corrigir a perturbação produzida no ordenamento jurídico pelo incremento patrimonial resultante da prática do crime. É esta regra que nos deve servir de referencial no que concerne à aplicação dos mecanismos de “confisco” das vantagens em confronto com o direito “à propriedade” estabelecido nos citados diplomas normativos supranacionais.
Acresce ainda que a proteção da propriedade, nesta dimensão do “confisco” das vantagens, assume ainda uma singularidade que não deverá ser subestimada. Isto porque será necessário convocar a regra nuclear de que o crime não é título aquisitivo da propriedade, pelo que, em bom rigor, não poderá ser reconhecido ao agente do crime qualquer direito de propriedade sobre os bens que obteve com a atividade criminosa.
Tudo a chamar a conjugação final, para o caso concreto, dos definidos níveis do segredo de justiça, com proteção constitucional no art.º 20.º/3CPR, sendo que analisado o despacho ora sob recurso, não se vislumbra que pela via do mesmo tenha ocorrido qualquer restrição ilegítima do direito de propriedade por violação do princípio da proporcionalidade, designadamente na sua dimensão de adequação aos fins visados pela Lei, por ser justificada à luz do interesse da realização da justiça, em nada se mostrando desvirtuado o princípio constitucional de garantia de defesa consagrado no art.º 32.º/1CRP uma vez que é perfeitamente percetível a fundamentação do despacho em causa, tão percetível que permitiu à recorrente insurgir-se contra as razões ali avançadas. (neste sentido, cfr. o Acórdão desta 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa, rel. Juiz Desembargador Pedro José Esteves de Brito, ora 2.º Adjunto, NUIPC 279/24.2JELSB-C.L1-5, 18fevereiro2025, acessível inwww.dgsi.pt/jtrl) III- Decisão
Nestes termos, em conferência, acordam os Juízes que integram a 5.ª Secção Penal deste Tribunal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto por AA e, consequentemente, confirmar na íntegra a decisão do Tribunal a quo.
Porque decaiu integralmente nas suas pretensões recursivas há lugar ao pagamento de custas criminais a cargo da recorrente AA, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta (UC), o que a coloca na mediania, uma vez que o recurso interposto não é mínimo, do mesmo modo que não é de assaz complexidade, nos termos dos art.s 513.º/1;514.º/1;524.ºCPP, e Tabela III anexa de reporte aos art.s 1.º;2.º;3.º/1;8.º/9, acrescidas dos encargos previstos no art.º 16.º, ambos RCP (DL34/2008-26fevereiro e alterações subsequentes).
Notifique (art.º 425.º/6CPP).
D.N.
Lisboa, 06-05-2024.
• o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários; com datação eletrónica – art.º 153.º/1CPC – e com aposição de assinatura eletrónica - art.º 94.º/2CPP e Portaria 593/2007-14maio
Manuel José Ramos da Fonseca
Rui Poças
Pedro José Esteves de Brito
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1. Conhecido que é o requerimento apresentado pelo IM da recorrente a 1abril2025 – ref. 749729 (51880614) – merecedor que foi o mesmo do despacho, de 2abril2025, do Sr. Juiz Desembargador Presidente deste Tribunal da Relação de Lisboa – ref. 229966931 – no qual o quanto a seguir se expressa não é referido, consigna-se para os devidos efeitos, nomeadamente para que a recorrente tome conhecimento das razões inerentes, que só é possível realizar a conferência na presente data uma vez que o Juiz Desembargador Relator, desde 28outubro2024, face à necessidade de elaboração de Acórdãos nos NUIPC 99/17.0JBLSB.L1 – conhecido como processo do ... – com 4 recursos interpostos e com Acórdão proferido a 30dezembro2024 -, NUIPC 184/12.5TELSB.L1 – conhecido como processo .../.../GES – com 7 recursos interpostos e com Acórdão proferido a 11abril2025 – e NUIPC 196/23.3PAPDL.L1 – com 4 recursos interpostos e com Acórdão a 22abril2025 – processos esses de elevada complexidade, com natureza urgente e com prazos relativos a medidas de coação a extinguirem-se, respetivamente a 4janeiro2024, 14abril2025 e 28abril2025, se encontra em regime de exclusividade – cfr. despachos n.º 143/2024, 158/2024, 2/2025, 19/2025, 33/2025 e 47/2025, todos da Presidência do Tribunal da Relação de Lisboa, acessíveis in https://servicos.tribunais.org.pt/servicos/distribuicao-de-processos/condicionamentos, agora com vista a elaboração de Acórdão no NUIPC 2949/15.7TDLSB.L1- conhecido como processo do ... - processo este de elevada complexidade – 7 recursos interpostos.