I. No âmbito do processo penal, na sequência da apreensão (cfr. art.º 178.º do C.P.P.) de produtos ou vantagens de um crime (cfr. arts. 110.º, n.ºs 1, als. a) e b), 2 e 3, e 111.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.), não é admissível a dedução de oposição mediante embargos de terceiro (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do C.P.C.);
II. Tendo sido deduzida oposição à apreensão de produtos ou vantagens de um crime mediante tal meio processual por parte de um terceiro que se arroga de boa-fé e titular sobre aqueles de um direito real de garantia, não obstante a inadequação dos embargos de terceiro, justificativa da sua não admissão enquanto tal, o certo é que, por força dos arts. 4.º do C.P.P. e 193.º, n.º 3, do C.P.C., impunha-se a sua convolação oficiosa para o requerimento a que alude o art.º 178.º, n.º 7, do C.P.P., meio processual adequado ao conteúdo daquele que foi utilizado, seja por aplicação direta do art.º 178.º, n.º 7, do C.P.P., seja por força do art.º 4.º do C.P.P. que começa por dispor que aos casos omissos se aplicam as disposições do código de processo penal que possam aplicar-se por analogia.
EMBARGOS DE TERCEIRO
PROCESSO PENAL
ARTIGO 178.º N.º 7 DO CPP
Unanimidade
Recurso Embargos de Terceiro (processo penal)
Integral
Parcialmente Provido
Sumário:
I. No âmbito do processo penal, na sequência da apreensão (cfr. art.º 178.º do C.P.P.) de produtos ou vantagens de um crime (cfr. arts. 110.º, n.ºs 1, als. a) e b), 2 e 3, e 111.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.), não é admissível a dedução de oposição mediante embargos de terceiro (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do C.P.C.);
II. Tendo sido deduzida oposição à apreensão de produtos ou vantagens de um crime mediante tal meio processual por parte de um terceiro que se arroga de boa-fé e titular sobre aqueles de um direito real de garantia, não obstante a inadequação dos embargos de terceiro, justificativa da sua não admissão enquanto tal, o certo é que, por força dos arts. 4.º do C.P.P. e 193.º, n.º 3, do C.P.C., impunha-se a sua convolação oficiosa para o requerimento a que alude o art.º 178.º, n.º 7, do C.P.P., meio processual adequado ao conteúdo daquele que foi utilizado, seja por aplicação direta do art.º 178.º, n.º 7, do C.P.P., seja por força do art.º 4.º do C.P.P. que começa por dispor que aos casos omissos se aplicam as disposições do código de processo penal que possam aplicar-se por analogia.
*
I. Relatório:
I.1. Da decisão recorrida:
No âmbito do apenso D do inquérito n.º 922/18.2TELSB, que corre termos no Departamento Central de Investigação e Ação Penal, por decisão de 16-10-2024, do Tribunal Central Instrução Criminal de Lisboa – Juiz 9, não foram admitidos os embargos de terceiro deduzidos pelo “AA”.
Inconformado com a decisão, o “AA” dela interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
“§ 1. Na sequência da notificação da apreensão de saldos bancários da titularidade da ..., em contas sediadas junto do AA, este deduziu, em tempo, oposição mediante embargos de terceiro, ao abrigo do disposto nos artigos 342.º e seguintes do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, e, bem assim, do disposto no artigo 178.º, n.º 9, também do CPP.
§ 2. Por despacho proferido pelo Tribunal Central de Instrução Criminal, foram os Embargos de Terceiro não admitidos, com fundamento, alegadamente, na sua inadmissibilidade em processo penal, mais argumentando-se que o meio processual adequado a reagir contra a medida de apreensão seria, ao invés, a interposição de recurso (o "Despacho recorrido").
§ 3. Não obstante a sua natureza, em regra, civilística e declarativa, a figura dos embargos de terceiro é, desde logo, admissível em processo penal.
§ 4. Ainda que assim não fosse — no que não se concede e apenas por mera hipótese de raciocínio se equaciona —, ou seja, ainda que se entendesse que o meio adequado ao exercício dos direitos do Embargante ora Recorrente, em reacção à notificação da medida de apreensão, seria, não a oposição mediante embargos de terceiro, mas a interposição de recurso, sempre deveria o Tribunal a quo, no lugar da sua rejeição liminar, ter, ao abrigo do disposto no artigo 193.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, oficiosamente convolado o incidente de Embargos de Terceiro no meio processual alegadamente adequado.
§ 5. Em todo o caso, e no limite, sempre o conteúdo dos Embargos de Terceiro deduzidos deveria ter sido aproveitado no respeitante ao exercício, pelo Embargante ora Recorrente, na qualidade de terceiro titular de boa-fé, dos respectivos direitos sobre bens apreendidos em processo penal, previsto, inter alia, nos artigos 111.º do CP, 178.º, n.º57 e 9, e 347.º-A, ambos do CPP.
DA ADMISSIBILIDADE DOS EMBARGOS DE TERCEIRO EM PROCESSO PENAL
§ 6. A fundamentação do Despacho recorrido — que corresponde, ipsis verbis, à argumentação expendida na promoção do Ministério Público de fls. 9653 dos autos — assenta no facto de os embargos de terceiro consubstanciarem um incidente declarativo da instância cível, por apenso a um processo executivo, não sendo admissíveis no processo penal, mas apenas no processo civil.
§ 7. Independentemente da sua natureza jurídica e consagração legal, a oposição mediante embargos de terceiro é, verificados os respectivos pressupostos legais, admissível em sede de processo penal, por aplicação subsidiária do disposto nos artigos 342.º e seguintes do CPC (ex vi artigo 4.º do CPP).
§ 8. No sentido da (e/ou tendo como pressuposto a) admissibilidade da dedução de embargos de terceiro por apenso a processos de natureza criminal, vejam-se, entre tantos outros, os seguintes arestos dos nossos tribunais superiores: Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 13.10.2022, processo n.º 210/20.4TELSB-X.L1-6; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04.11.2021, processo n.º 131/12.4TELSB-P.P1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.10.2021, processo n.º 210/20.4TELSB-E.L1-A.S1; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.10.2019, processo n.º 23/16.8T9ENT-C.E1; e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.07.2019, processo n.º 296/13.8TAVVD-O.G1.
§ 9. A única excepção prevista na lei diz respeito à dedução de embargos de terceiro "relativamente à apreensão de bens realizada no processo de insolvência", que, nos termos do disposto no número 2 do artigo 342.º do CPC, não é admitida.
§ 10. Onde o legislador não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo, devendo presumir-se "que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados" (cfr. artigo 9.º, n.º 3, do CC).
§ 11. Se o legislador quisesse ter vedado a possibilidade de oposição mediante embargos de terceiro por apenso a processos de natureza criminal, certamente tê-lo-ia feito, como, aliás, o fez para o processo de insolvência.
§ 12. Não só os embargos de terceiro são admissíveis em processo penal, como o são, em concreto, nos presentes autos, por verificados os respectivos pressupostos legais.
§ 13. O Embargante ora Recorrente é, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1285.º do CC e 342.º do CPC, terceiro, por não ser parte na causa, nem integrar a relação jurídico-criminal subjacente.
§ 14. A apreensão de saldos bancários determinada pelo Tribunal a quo consubstancia diligência ordenada judicialmente, acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, cujo conceito deve ser interpretado em sentido amplo, e não limitado, em processo penal, ao arresto preventivo previsto no artigo 228.º do CPP — que, aliás, prossegue a mesma finalidade garantística que a apreensão de bens (incluindo saldos bancários) para efeitos de declaração da perda a favor do Estado, prevista nos artigos 178.º e 181.º do mesmo código, apenas diferindo no respectivo âmbito de aplicação (património lícito vs. património ilícito).
§ 15. Tal acto (de apreensão judicial de bens) é ofensivo dos direitos do Embargante ora Recorrente enquanto credor penhoratício, emergentes do penhor específico sobre aplicações financeiras constituído a seu favor, cujo exercício se mostra incompatível com a realização ou o âmbito da diligência (de apreensão) — do que os direitos reais de garantia em geral, e o penhor em particular, são exemplo.
§ 16. Tendo, de resto, os embargos sido deduzidos por apenso à causa em que haja sido ordenado o acto ofensivo do direito do embargante, in casu, os presentes autos.
§ 17. Pelo que o meio processual (especialmente) adequado ao exercício dos direitos do Embargante ora Recorrente era (e é), precisamente, a oposição mediante embargos de terceiro, e não a interposição de recurso.
§ 18. O Embargante ora Recorrente não pretende atacar os fundamentos (i.e., o mérito) da decisão de apreensão (que, aliás, desconhece), como seja a eventual relação dos saldos bancários apreendidos com a prática dos crimes sob investigação — para o que a via de recurso seria, aí sim, o meio processualmente apto —, pretendendo, apenas e só, sindicar o âmbito e eficácia da medida de apreensão determinada.
§ 19. Termos em que deve o Despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que admita os Embargos de Terceiro oportunamente deduzidos pelo Embargante ora Recorrente na sequência da notificação da apreensão de saldos bancários.
§ 20. Os artigos 1285.º do CC, 342.º e 344.º, ambos do CPC, e 4.º do CPP, interpretados no sentido de que a oposição mediante embargos de terceiro não é admissível em processo penal, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático, da certeza e segurança jurídicas, da tutela jurisdicional efectiva, do direito de propriedade privada, e, ainda, da função jurisdicional, ínsitos nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º5 1 e 4, 62.º, 202.º, 203.º e 204.º, todos da CRP, inconstitucionalidade que se deixa, desde já, invocada para os devidos efeitos legais.
§ 21. Os artigos 1285.º do CC, 342.º e 344.º, ambos do CPC, 111.º do CP, 4.º, 178.º e 181.º do CPP, interpretados no sentido de que o terceiro titular de direito real de garantia (penhor) sobre bens (saldos bancários) alvo de medida de apreensão em processo penal não pode deduzir oposição mediante embargos de terceiro na sequência da notificação da apreensão, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático, da certeza e segurança jurídicas, da tutela jurisdicional efectiva, do direito de propriedade privada, e, ainda, da função jurisdicional, ínsitos nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º51 e 4, 62.º, 202.º, 203.º e 204.º, todos da CRP, inconstitucionalidade que se deixa, igualmente, invocada para os devidos efeitos legais.
§ 22. Os artigos 111.º do CP, 178.º, 181.º, 401.º, n.º 1, alínea d), 410.º e 412.º, todos do CPP, interpretados no sentido de que o meio processual adequado de reacção contra medida de apreensão em processo penal, pelo terceiro titular de direito real de garantia (penhor) sobre os bens (saldos bancários) apreendidos, é a interposição de recurso, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático, da certeza e segurança jurídicas, da tutela jurisdicional efectiva, do direito de propriedade privada, e, ainda, da função jurisdicional, ínsitos nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1 e 4, 62.º, 202.º, 203.º e 204.º, todos da CRP, inconstitucionalidade que se deixa, também, invocada para os devidos efeitos legais.
§ 23. Os artigos 1285.º do CC, 342.º e 344.º, ambos do CPC, 111.º do CP, 4.º, 178.º, 181.0, 401.º, n.º 1, alínea d), 410.º e 412.º, todos do CPP, interpretados no sentido de que o meio processual adequado de reacção contra medida de apreensão em processo penal, pelo terceiro titular de direito real de garantia (penhor) sobre os bens (saldos bancários) apreendidos, é a interposição de recurso e não a oposição mediante embargos de terceiro, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático, da certeza e segurança jurídicas, da tutela jurisdicional efectiva, do direito de propriedade privada, e, ainda, da função jurisdicional, ínsitos nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n." 1 e 4, 62.º, 202.º, 203.º e 204.º, todos da CRP, inconstitucionalidade que se deixa, igualmente, invocada para os devidos efeitos legais.
DA CONVOLAÇÃO OFICIOSA DOS EMBARGOS DE TERCEIRO EM RECURSO
§ 24. Entendendo o Tribunal a quo que os Embargos de Terceiro não seriam admissíveis, e que o Embargante ora Recorrente deveria, ao invés, ter interposto recurso na sequência da notificação da apreensão, impunha-se, no lugar da rejeição liminar, nos termos do disposto no artigo 193.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, a convolação/correcção oficiosa do meio processual.
§ 25. A referida disposição legal destina-se a evitar que, por razões de índole formal, deixe de ser apreciada uma pretensão deduzida em juízo, prevendo a convolação oficiosa do meio processual inadequado no meio processual adequado à prática de determinado acto (sejam articulados, requerimentos, respostas, reclamações, recursos ou embargos), seguindo-se os respectivos termos/trâmites legais.
§ 26. O que configura, mais do que mera faculdade/poder, verdadeira obrigatoriedade/dever, isto é, uma verdadeira imposição/injunção ao juiz.
§ 27. Sobre a aplicabilidade, em processo penal, do citado preceito — que constitui concretização dos princípios (transversais) da tutela jurisdicional efectiva e do acesso aos tribunais, da prevalência da substância sobre a forma, do aproveitamento dos actos processuais, da limitação dos actos, da economia processual, da gestão processual e da adequação formal —, é vasta a jurisprudência dos nossos tribunais superiores (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.11.2022, processo n.º 2290/10.1TXCBR-T.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.01.2024, processo n.º 66/20.2PBOER.L2.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.10.2019, processo n.º 2882/16.5TDLSB.L1-A.S1; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23.01.2024, processo n.º 22/23.3T8VVC.E1), não havendo, no caso em apreço, qualquer obstáculo ou limite formal a tal correcção.
§ 28. A viabilidade da convolação poderá depender da verificação de determinados pressupostos, desde logo a tempestividade do meio que deveria ter sido adoptado.
§ 29. Tendo os Embargos de Terceiro sido deduzidos no prazo de 30 (trinta) dias contados da notificação da apreensão (cfr. artigo 344.º, n.º 2, do CPC), o mesmo prazo aplicável à eventual interposição de recurso (cfr. artigo 411.º, n.º 1, do CPP), deveria o Tribunal a quo ter promovido a correcção do meio processual.
§ 30. Do mesmo modo, considerando que o Embargante ora Recorrente apenas foi notificado da apreensão na qualidade de terceiro não interveniente, sem que lhe fossem dados a conhecer os fundamentos (de mérito) da aplicação da medida, o conteúdo material de um eventual recurso a interpor seria, não só compatível, mas o mesmo que o dos Embargos de Terceiro deduzidos.
§ 31. Tal como o seria o efeito jurídico que o Embargante ora Recorrente pretenderia obter com um e outro meio: quando não a revogação da medida de apreensão, a ressalva dos direitos enquanto credor penhoratício e terceiro titular de boa-fé.
§ 32. A possibilidade de convolação, ao abrigo do disposto no artigo 193.º, n.º 3, do CPC, de meios de reacção de uma decisão — dedução de oposição (incluindo mediante embargos de terceiro), reclamação de nulidade e interposição de recurso — tem vindo a ser especificamente reconhecida pela doutrina e jurisprudência.
§ 33. Com efeito, a correcção oficiosa inclui os meios de impugnação de uma decisão, designadamente a convolação de requerimento de interposição de recurso em articulado de oposição, e vice-versa, e, bem assim, a tramitação de um requerimento autónomo de reclamação de nulidade como recurso ordinário, mesmo que, como aqui, tal articulado/requerimento não contenha conclusões (o que não é motivo para rejeição liminar de recursos em processo penal).
§ 34. A não serem considerados os pontos/artigos 53 a 60 dos Embargos de Terceiro como verdadeiras conclusões do neles anteriormente exposto —, sempre deveria, por ocasião da convolação, o Embargante ora Recorrente ter sido, nos termos dos artigos 414.º, n.º 2, e 417.º, n.º 3, ambos do CPP, convidado a apresentá-las.
§ 35. No mais, também a qualidade em que o Embargante ora Recorrente intervém nos autos não obstaculizaria a correcção oficiosa do meio processual, na medida em que o artigo 193.º, n.º 3, do CPC abrange também o erro do terceiro interveniente.
§ 36. Termos em que deve o Despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a convolação oficiosa dos Embargos de Terceiro deduzidos pelo Embargante ora Recorrente na sequência da notificação da apreensão em requerimento de interposição de recurso, seguindo-se os respectivos termos.
§ 37. Os artigos 193.º, n.º 3, do CPC, e 4.º do CPP, interpretados no sentido de que os princípios do aproveitamento dos actos processuais e da correcção oficiosa do erro no meio processual utilizado pela parte não é aplicável em sede de processo penal, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático, da certeza e segurança jurídicas, da tutela jurisdicional efectiva, e, ainda, da função jurisdicional, ínsitos nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.ºs 1 e 4, 202.º, 203.º e 204.º, todos da CRP, inconstitucionalidade que se deixa, igualmente, invocada para os devidos efeitos legais.
§ 38. Os artigos 1285.º do CC, 193.º, n.º 3, 342.º e 344.º, ambos do CPC, 4.º e 401.º, n.º 1, alínea d), ambos do CPP, interpretados no sentido de que o articulado de oposição mediante embargos de terceiro não pode ser oficiosamente convolado em requerimento de interposição de recurso, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático, da certeza e segurança jurídicas, da tutela jurisdicional efectiva, do direito de propriedade privada, e, ainda, da função jurisdicional, ínsitos nos artigos 2º,18.º, n.º 2, 20.º, n.º51 e 4, 62.º, 202.º, 203.º e 204.º, todos da CRP, inconstitucionalidade que se deixa, igualmente, invocada para os devidos efeitos legais.
§ 39. Os artigos 1285.º do CC, 193.º, n.º 3, 342.º e 344.º, ambos do CPC, 111.º do CP, 4.º, 178.º, 181.º, 401.º, n.º 1, alínea d), 410.º e 412.º, todos do CPP, interpretados no sentido de que os embargos de terceiro deduzidos por terceiro titular de direito real de garantia sobre bens apreendidos em processo penal, na sequência da notificação da apreensão, devem ser liminarmente rejeitados ao invés de oficiosamente convolados em requerimento de interposição de recurso, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático, da certeza e segurança jurídicas, da tutela jurisdicional efectiva, do direito de propriedade privada, e, ainda, da função jurisdicional, ínsitos nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.ºs 1 e 4, 62.º, 202.º, 203.º e 204.º, todos da CRP, inconstitucionalidade que se deixa, igualmente, invocada para os devidos efeitos legais.
§ 40. Os artigos 1285.º do CC, 193.º, n.º 3, 342.º e 344.º, ambos do CPC, 111.º do CP, 4.º, 178.º, 181.º, 401.º, n.º 1, alínea d), 410.º e 412.º, todos do CPP, interpretados no sentido de que os embargos de terceiro deduzidos por terceiro titular de direito real de garantia sobre bens apreendidos em processo penal, na sequência da notificação da apreensão, não podem ser oficiosamente convolados em requerimento de interposição de recurso, redunda em norma materialmente inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático, da certeza e segurança jurídicas, da tutela jurisdicional efectiva, do direito de propriedade privada, e, ainda, da função jurisdicional, ínsitos nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.ºs 1 e 4, 62.º, 202.º, 203.º e 204.º, todos da CRP, inconstitucionalidade que se deixa, igualmente, invocada para os devidos efeitos legais.
DO APROVEITAMENTO DO CONTEÚDO DOS EMBARGOS DE TERCEIRO
§ 41. Ainda que não se concluísse pela admissibilidade dos Embargos de Terceiro, ou pela sua convolação oficiosa em requerimento de interposição de recurso, impunha-se, no limite, ao Tribunal a quo, o aproveitamento do respectivo conteúdo, referente ao exercício, pelo Embargante ora Recorrente, na qualidade de terceiro titular de boa-fé, dos respectivos direitos sobre bens apreendidos em processo penal, sobretudo quando o articulado apresentado o foi, também, ao abrigo do disposto no artigo 178.º, n.º 9, do CPP, com a consequente manutenção, nos autos, das correspondentes alegações, e, enfim, a sua oportuna apreciação.
§ 42. Quer ao abrigo dos mesmos princípios do aproveitamento dos actos processuais, da prevalência da substância sobre a forma, e da limitação dos autos (e proibição de actos inúteis) — os quais, recorde-se, têm plena aplicação em sede de processo penal —, quer por força do disposto nos artigos 111.º do CP, 178.º, n.ºs 7 e 9, e 347.º-A, ambos do CPP, que — em transposição da Directiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia — prevêem os direitos e a intervenção processual dos terceiros titulares (lato sensu) de bens susceptíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado, que gozam de estatuto jurídico-processual próprio e autónomo.
§ 43. Veja-se que o Embargante ora Recorrente poderia sempre, no âmbito do regime da perda de instrumentos, produtos e vantagens regulado nos artigos 109.º e ss. do CP, em salvaguarda dos seus direitos, intervir no decurso do processo-crime.
§ 44. Por um lado, requerer, desde logo na fase de inquérito, ao juiz de instrução, a modificação ou revogação da medida de apreensão (cfr. artigo 178.º, n.º 7, do CPP);
§ 45. Por outro lado, exercer o contraditório ou prestar declarações relativamente à susceptibilidade de declaração de perda a favor do Estado dos bens apreendidos (cfr. artigo 178.º, n.º 9, do CPP), inclusive na audiência de julgamento (cfr. artigo 347.º-A, n.º 1, do CPP), bem como apresentar e requerer a produção de prova apta a contrariar os pressupostos previstos no artigo 111º, n.º 2, do CP;
§ 46. E, enfim, recorrer da decisão final que a declare ou julgue procedente [cfr. artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do CPP].
§ 47. Isto independentemente do direito real (menor) que detenha sobre os saldos bancários apreendidos, contemplando a referida Directiva expressamente a posição dos terceiros titulares dos bens, reconhecendo-lhes "o direito a invocar o seu título de propriedade ou outros direitos reais" (cfr. artigo 8.º, n.º 9).
§ 48. São terceiros os não envolvidos na relação jurídica substantiva, alheios à imputação subjectiva quanto ao crime determinante da susceptibilidade de perda a favor do Estado, e titulares não apenas os proprietários dos bens, mas também os terceiros titulares de outros direitos reais (v.g., penhor).
§ 49. Pelo que deveria o articulado apresentado pelo Embargante ora Recorrente na sequência da notificação da apreensão ter sido aproveitado como consubstanciando, pelo menos, o exercício, dos respectivos direitos sobre bens apreendidos em processo penal, não obstando, de resto, a esse aproveitamento a rejeição dos Embargos de Terceiro como tal (cfr. artigo 346.º do CPC).
§ 50. Em último caso, poderiam/deveriam os Embargos de Terceiro deduzidos pelo Embargante ora Recorrente, atendendo ao seu conteúdo material, ter sido admitidos e tramitados como incidente de revogação da medida de apreensão, igualmente autuado por apenso ao processo-crime (cfr. artigo 178.º, n.º 8, do CPP).
§ 51. Termos em que deve o Despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine o aproveitamento do conteúdo dos Embargos de Terceiro, no referente ao exercício, em processo penal, pelo Embargante ora Recorrente, na qualidade de terceiro titular de boa-fé, dos respectivos direitos sobre os saldos bancários apreendidos, maxime de requerer a revogação da medida de apreensão.”
Terminou pedindo que fosse o despacho recorrido fosse revogado e substituído por outro que:
1. Admita os embargos de terceiro;
Caso assim não se entenda,
2. Determine a convolação dos embargos de terceiro em requerimento de interposição de recurso;
Ou, sempre e em qualquer caso,
3. Determine o aproveitamento dos embargos de terceiro em requerimento da revogação da medida de apreensão.
O referido recurso foi admitido por despacho de 25-11-2024.
Ao dito recurso respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, concluindo da seguinte forma:
“1. Por despacho judicial proferido a fls. 54 do Apenso 922/18.2TELSB-D, determinou a Mma. Juiz de Instrução Criminal a não admissão dos embargos de terceiro apresentados pelo AA, aqui recorrente.
2. Inconformado com o mencionado despacho judicial de não admissibilidade dos embargos de terceiro por si deduzidos, veio o AA interpor recurso.
3. Contudo, entende o MP que não assiste razão ao Recorrente, porquanto:
4. A apreensão (de saldos bancários) não extingue os ónus existentes sobre os produtos apreendidos, isto é, o bem é apreendido com as mesmas características e limitações com que se encontrava na esfera do sujeito visado.
5. A oposição, deduzida pelo aqui recorrente, à decisão judicial de apreensão de saldos bancários, sob a forma de embargos de terceiro, previsto nos termos do art.º 342º, nº1, do CPC não se ajusta à providência decretada,
6. O referido preceito (art.º 342º, nº1, do CPC) apenas se reporta a providências de apreensão decretadas em processos cíveis, não existindo fundamento, nem em sede de integração de lacunas, para a sua aplicação em sede de processo criminal e como reação a uma apreensão ao abrigo do disposto no art.º 181º do CPP, face ao disposto no art.º 178º, nº 7, e segs. do CPP.
7. Em sede de processo penal, o terceiro cujo direito (real) tenha sido afectado por despacho judicial de apreensão (no caso, apreensão de saldo de contas bancárias) poderá reagir, querendo, por meio de interposição de recurso do respectivo despacho, nos termos do art.º 401º, nº1, al. d) do Código de Processo Penal.
8. Indica-se a título exemplificativo a anotação ao art.º 342º do CPC, da autoria de A. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/L.F. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2019, págs. 397 e seg.:
"1. Os embargos de terceiro, que constituem uma subespécie da oposição espontânea, servem para um sujeito, que não é parte na causa, reagir contra a penhora ou outro ato de apreensão ou entrega de bens, alegando a ofensa da sua posse ou titularidade de outro direito incompatível com a diligência realizada ou o seu âmbito. (...)
4. Em conformidade e, em regra, não permitem a dedução de embargos".
9. A referida anotação consta do Ac. STJ datado de 24.09.2020 (proc. 14731/16.0T8PRT-B.PL.S1 - relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO), no qual se refere expressamente que:
"Temos assim que é entendimento consagrado, tanto na doutrina como na jurisprudência, que os embargos de terceiro não podem ser deduzidos, com sucesso, por quem invoque o direito de retenção sobre a coisa objecto de penhora, pela simples razão de que o direito invocado não é incompatível com a penhora. (...)
Deste modo, os embargantes, ora Recorrentes, só poderiam pretender alcançar a tutela inerente aos embargos de terceiro - consistente no levantamento da penhora - se pretendessem tutelar a posse correspondente ao direito de propriedade, o que se afigura não ter sido o caso no presente processo e, sem qualquer dúvida, não é o caso no presente recurso.
Mais uma vez se afigura que a dedução dos embargos assentou num equívoco quanto à natureza da via processual utilizada e aos seus efeitos. (...)."
10. Tal posição tem igualmente assento na doutrina, referindo-se a título exemplificado, a posição expressamente defendida pelo Juiz Desembargador Salvador da Costa, na obra, "Os incidentes da Instância", 3.ª edição, Livraria Almedina Coimbra - 2002, p. 192, 196, e 199:
"As diligências judiciais susceptíveis de justificar os embargos de terceiro são, fundamentalmente, como se referiu, a penhora, o arresto, o arrolamento, a entrega de coisa certa ao exequente na acção executiva para pagamento de quantia certa e a entrega do locado ao senhorio no âmbito da acção de despejo."
(...)
Assim não pode embargar de terceiro, nem mesmo para se manter na posse da coisa até ao termo da acção executiva, o titular do direito real de garantia, por
exemplo, titular do direito de penhor ou de retenção, porque pode realizá-lo na acção executiva por via do concurso de credores. (...)
A apreensão no âmbito do direito penal de coisas que sejam instrumento, produto ou objecto de crime não é susceptível de embargos de terceiro, por estes serem incompatíveis com os princípios do processo penal e com os fins por ele visado.". (destacado nosso)
11. Quanto ao alegado dever de convolação oficiosa dos embargos de terceiro em recurso em processo penal, decorre que o invocado preceito (artigo 193º, nº 3, do Código de Processo Penal) estabelece o princípio de que "o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados."
12. No caso dos presentes autos, o recorrente lançou mão de um meio processual não admissível em sede de oposição ao despacho de apreensão em inquérito criminal, pelo que, entendemos, não ser exigível ao Juiz de Instrução Criminal que "corrija" tal falta e a convole para o meio processual correcto (no caso, a interposição de recurso em processo crime).
13. Entendemos que não compete ao Tribunal substituir-se à actividade das partes, não lhe cabendo suprir eventuais insuficiências dos profissionais do foro, considerando o princípio do patrocínio obrigatório.
14. Assim, não assiste razão ao recorrente porquanto não tem aplicabilidade ao caso concreto o dever de convolação oficiosa, pelo Mma. JIC a quo, dos embargos de terceiro em requerimento de interposição de recurso, por inadmissibilidade legal.
15. Na qualidade de terceiro de boa-fé titular de direito real de garantia afectado pela decretada apreensão, pretende o recorrente (conforme expressamente indicado em sede de pedido formulado nos embargos de terceiro deduzidos nos autos) a "revogação da medida de apreensão determinada sobre o saldo da conta nº 3058052556 aberta no AA pela ...").
16.O requerimento de modificação ou extinção expressamente regulamentado e tramitado por apenso nos termos do disposto nos nºs 7 a 10 do art.º 178º do CPP) traduz-se num mecanismo que visa assegurar aos (arguidos e/ou terceiros) titulares dos bens ou direitos abrangidos pela apreensão a possibilidade de fazerem valer os seus direitos.
17. Têm legitimidade para recorre a este mecanismo (requerimento de modificação ou revogação da medida de apreensão), para além do arguido, o terceiro titular de direito de propriedade afectado com a apreensão decretada.
18. Nos termos do Acórdão do TRL de 26.11.2009 (relator: Fatima Mata-Mouros - proc. 17/09.0TELSB-B.L1-9) decidiu-se:
"Nos termos do art.º 178º, nº 6, do CPP, os titulares de bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida, sendo correspondentemente aplicável o disposto no art.º 68º, nº 5 do mesmo diploma legal. O propósito do legislador foi o de proteger o direito de propriedade, enxertando um incidente judicial e contraditório no âmbito do inquérito, confiando a sua decisão à imparcialidade e neutralidade do juiz.
O incidente em presença constitui uma via de tutela jurisdicional especificada do direito de propriedade atinente a bens ou objectos afectados por medidas de investigação criminal, mormente meios de obtenção de prova. Uma tutela reclamada pela natureza de direito fundamental do direito de propriedade. (...)
O n.º 7 do referido art.º 178.º determina mesmo que, no caso de o os objectos reclamados não pertencerem ao arguido, e os mesmos serem susceptíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado, «a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o», no que constitui uma clara expressão do direito a ser ouvido antes de ser tomada uma decisão restritiva de um direito de que se é titular. O incidente em presença constitui, assim, uma via de tutela jurisdicional especificada do direito de propriedade atinente a bens ou objectos afectados por medidas de investigação criminal, mormente meios de obtenção de prova. Uma tutela reclamada pela natureza de direito fundamental do direito de propriedade." (sublinhado/destacado nosso)
19. Por outro lado, se considerarmos o disposto no art.º 111.º do Código Penal (sob a epígrafe Instrumentos, produtos ou vantagens pertencentes a terceiro) resulta que, nos termos do disposto n.º 1 e 2 do mencionado artigo, apenas é concedida protecção aos sujeitos a quem "pertençam" os "instrumentos, produtos ou vantagens".
20. Assim, o titular de um direito real de garantia, designadamente o penhor, não tem legitimidade para evitar que o bem seja apreendido e, posteriormente, declarado perdido a favor do Estado.
21. Efectivamente, o despacho de apreensão do saldo bancário detido pela arguida ASM somente poderá ser colocado em crise por terceiro (ou arguido) titular de direito de propriedade sobre o bem apreendido em sede de incidente de revogação ou modificação da medida de apreensão, ao abrigo do art, 178.º n.º 7 do CPP.
22. Face ao supra exposto, somos de entendimento que o despacho judicial a quo foi proferido no rigoroso cumprimento das leis de processo, não tendo sido cometida qualquer irregularidade ou nulidade, devendo por isso ser mantido por legalmente proferidos.”
Foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação.
Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer através do qual propugnou pela improcedência do recurso, acompanhando a posição do Ministério Público em 1.ª instância.
I.5. Da tramitação subsequente:
Tendo sido dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo penal (C.P.P.), foi apresentada resposta ao dito parecer, pelo recorrente que, em síntese, renovou as considerações já tecidas na sua peça recursiva.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
II. Fundamentação:
II.1. Dos poderes de cognição do tribunal de recurso:
Está pacificamente aceite na doutrina (cfr., por exemplo, MESQUITA, Paulo Dá, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, 2024, Livraria Almedina, pág. 217; POÇAS, Sérgio Gonçalves, in “Processo Penal – Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, Julgar, n.º 10, 2010, pág. 241; SILVA, Germano Marques da, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, 2000, pág. 335) e jurisprudência (cfr., por exemplo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2024, processo n.º 105/18.1PAACB.S12) que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de determinadas questões que obstem ao conhecimento do mérito do recurso (cfr., por exemplo, art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.), são as conclusões que delimitam o seu objeto e âmbito, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-1995, para fixação de jurisprudência, in Diário da República n.º 298, I Série A, de 28-12-1995, págs. 8211 e segs.3).
Na verdade, se o objeto do recurso constitui o assunto colocado à apreciação do tribunal de recurso e se das conclusões obrigatoriamente devem constar, se bem que resumidas, as razões do pedido (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P.) e, assim, os fundamentos de facto e de direito do recurso, necessariamente terão de ser as conclusões que identificam as questões que a motivação tenha antes dado corpo, de forma a agilizar o exercício do contraditório e a permitir que o tribunal de recurso identifique, com nitidez, as matérias a tratar.
A esta luz, são as seguintes as questões a conhecer, pela ordem da prevalência processual sucessiva que revestem:
A. Da admissibilidade da oposição mediante embargos de terceiro na sequência da apreensão em processo penal do saldo de uma conta bancária, com a finalidade de conservação dos ativos provenientes de uma atividade criminalmente ilícita, judicialmente ordenada ao abrigo do disposto nos arts. 178.º e 181.º, n.º 1, e 268.º, n.º 1, al. c), e n.º 4, do C.P.P., por parte da instituição bancária onde aquela está domiciliada, titular de um penhor sobre aquele (cfr. II.4.A.); e
B. Da convolação oficiosa (cfr. II.4.B.).
II.3. Ocorrências processuais com relevo para apreciar as questões objeto do recurso:
Ora, com relevo para o definido objeto do recurso, e resultante dos atos processuais a seguir assinalados, importa atentar no seguinte:
II.3.A. Da apreensão do saldo bancário (cfr. ref.ªs 8835188 de 24-04-2024, 8850656 de 02-05-2024 e 216351 de 15-05-2024, do processo principal):
Por despacho de 24-04-2024, do Tribunal Central Instrução Criminal de Lisboa – Juiz 9, considerando estar em causa factos suscetíveis de integrarem, em abstrato, a prática dos crimes de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelos arts. 3.º, n.º 1 e 36.º, n.ºs 1, 2 e 5, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20-01, de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368.º-A, do Código Penal (C.P.) e de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.º, n.º 1, als. a), b) e c), n.º 2 (à contrário), e n.º 3 e 104.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), do Regime Geral das Infrações Tributárias, tendo como finalidade a obtenção de prova bem como a recuperação de produto ou vantagem de atividade criminalmente ilícita, ao abrigo do disposto nos arts. 178.º e 181.º, n.º 1, e 268.º, n.º 1, al. c), e n.º 4, do C.P.P., foi determinada a apreensão imediata do saldo bancário, entre outras, da conta:
3. Banco Comercial Português | ![]() | ![]() | ![]() | ![]() | |||
Selectiva Moda | ![]() | ![]() | ![]() | ![]() | |||
Número | ![]() | Abertura | ![]() | Relação | ![]() | Início | ![]() |
20/CDA
/... | ![]() | ...1...-07 | ![]() | Titular | ![]() | ...1...-07 | ![]() |
Em ...-...-2024 a referida instituição bancária informou que “(…) considerámos apreendido o saldo existente nas seguintes contas bancárias:
Conta de Depósitos a Prazo n.º ...
(Relacionada com a conta D.O. N.º ...)
Titulada por:
- ... – NIPC ...
Saldo existente/apreendido: 375.000,00 EUR
Nota 1 – Este valor encontra-se onerado por Contrato de Penhor a favor do Banco, na sequência de responsabilidades assumidas pela ..., perante esta Instituição de Crédito”.
II.3.B. Dos embargos de terceiro (cfr. ref.ª 8955445 de 15-07-2024 do Apenso D):
No dia ...-...-2024, o “AA” veio deduzir embargos de terceiro com o seguinte teor:
“AA, sociedade aberta, com sede na ..., com o capital social de e 3.000.000.000,00, registada na Conservatória do Registo Comercial do ... sob o número de identificação de pessoa coletiva ..., e matriculada sobre o mesmo número (adiante, "AA"), tendo sido notificado da decisão de apreensão de saldos bancários sob a referência 8850656, vem, ao abrigo do disposto, nomeadamente, nos artigos 342.º e seguintes do Código de Processo Civil ("CPC"), ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal ("CPP"), e do artigo 178.º, n.º 9, também do CPP, por apenso ao processo acima identificado, deduzir
EMBARGOS DE TERCEIRO,
o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
(i) Introdução
1. Por ofício sob a referência 8850656, o AA foi notificado da apreensão de saldos de determinadas contas bancárias, tendo, por comunicação datada do passado dia ..., informado os autos da execução de tal determinação.
2. Fê-lo não só em cumprimento da lei e no espírito que sempre norteou as suas interacções no âmbito de qualquer processo judicial, mas também em salvaguarda do seu próprio património,
3. E com a ressalva de que parte desses saldos se encontram onerados por penhor a seu favor, o que motiva os presentes embargos.
4. Com efeito, uma das contas bancárias abrangidas pela notificação dirigida ao AA tem atualmente o n.º 3058052556 [depósito a prazo no valor de e 375.000,00 (trezentos e setenta e cinco mil euros)], e é titulada pela sociedade ... ("...").
5. Como se teve oportunidade de expor em requerimento anterior apresentado nos presentes autos, e que adiante se detalhará, o AA beneficia de penhor sobre o saldo da referida conta de depósito a prazo, para garantia das obrigações da ..., daí a razão de ser dos presentes embargos.
6. Não obstante, o AA não deixa de manifestar o seu respeito pelas instituições aqui em causa e a sua disponibilidade para colaborar no que se entenda necessário.
7. Naturalmente, os embargos agora deduzidos não constituem qualquer tomada de posição sobre os factos em investigação nos presentes autos, que o AA desconhece, nos quais não interveio, e que, tanto quanto lhe é possível aferir, lhe são completamente alheios.
8. Com os presentes embargos, o AA visa exclusivamente assegurar os seus direitos, enquanto terceiro de boa-fé.
(ii) Questão prévia: Da tempestividade da dedução dos presentes embargos
9. Nos termos do número 2 do artigo 344.º do CPC, relativo à dedução de embargos de terceiro, "[o] embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que (...) o embargante teve conhecimento da ofensa".
10. O ofício recebido pelo AA, determinando a "apreensão imediata" do saldo de várias contas bancárias, embora datado de 2 de Maio, foi apenas assinado em 3 de Maio (conforme Documento n.º 1 que se junta).
11. O AA teve, pois, conhecimento da referida medida de apreensão depois de 3 de Maio, pelo que está em tempo para deduzir os presentes embargos.
(iii) Dos direitos do AA sobre o saldo apreendido: existência de garantia real prévia incompatível com a medida de apreensão
12. O AA exerce a atividade bancária, com a latitude consentida por Lei.
13. No exercício da sua atividade, o AA, na qualidade de instituição de crédito, efetua, nomeadamente, operações de crédito.
14. No dia ... de ... de 2017, foi celebrado um Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente (conforme Documento n.º 2 que se junta, de ora em diante designado abreviadamente por "Contrato"),
15. Através do qual o AA abriu a favor da ... um crédito em conta corrente até ao montante máximo de € 750.000,00 (setecentos e cinquenta mil euros).
16. Nos termos da cláusula 9.2 do Contrato, a ... constituiu um penhor específico sobre aplicações financeiras para garantia de todas as responsabilidades por si assumidas no âmbito do Contrato.
17. Assim, foi celebrado entre a ... e o AA, no mesmo dia ... de ... de 2017, um Contrato de Penhor Específico sobre Depósito a Prazo (conforme Documento n.º 3 que se junta, de ora em diante designado abreviadamente por "Penhor").
18. Nos termos do Penhor, ficou acordado o seguinte:
"1.ª —O primeiro outorgante [a ...] é titular do Depósito a prazo constituído junto do BANCO, com o número ..., no montante de e 375.000,00 (trezentos e setenta e cinco mil euros).
2.ª — Sobre o depósito a prazo identificado neste contrato, e sucessivas renovações que o mesmo venha a ter independentemente da numeração interna que lhe venha a ser atribuída, constitui o primeiro outorgante penhor, a favor do AA, para garantia das responsabilidades assumidas por BB perante o Banco, provenientes do contrato de financiamento, sob a forma de Conta Corrente Caucionada, no montante de 750.000 Euros (setecentos e cinquenta mil Euros) que o Banco lhe concede nesta data, incluindo reembolso do capital até ao indicado montante (...)".
19. Numa das renovações do depósito a prazo, e conforme previsto pelo Penhor (cláusula 2.a), a conta em causa foi renumerada, daí que a conta objeto do Penhor tenha atualmente o n.º 3058052556.
De notar, ainda, que,
20. Nos termos da cláusula 3.ª do Penhor, "[o] presente penhor abrange ainda todos os rendimentos inerentes ao depósito a prazo empenhado".
21. Por sua vez, nos termos das cláusulas 6.ª e 7.ª do Penhor, respetivamente, "[o] presente penhor torna-se imediatamente exigível, logo que se verifique mora no cumprimento de qualquer obrigação cujo cumprimento garante",
22. Sendo que, "[h]avendo lugar à execução do penhor fica desde já autorizado o AA por força do presente instrumento, a utilizar da referida conta de depósito a prazo (...) as importâncias necessárias para pagamento das responsabilidades asseguradas".
Ora,
23. A garantia real constituída ao abrigo do Penhor destina-se a garantir e assegurar o pagamento dos valores em dívida ao AA resultantes do Contrato, cujo montante foi integralmente utilizado.
24. A ... ainda não liquidou ao AA os montantes utilizados ao abrigo do Contrato.
25. Do teor da notificação recebida não é possível ao AA concluir (i) quais os concretos fundamentos jurídicos que terão presidido à apreensão, e (ii) qual será o concreto objetivo dessa medida.
26. O que o AA sabe é que é titular de um direito real que incide sobre o depósito a prazo cujo saldo é agora objeto de apreensão,
27. E que esse direito foi adquirido de boa-fé e em momento prévio à apreensão.
28. A apreensão agora determinada mostra-se incompatível com o exercício do direito do AA de, em conformidade com a cláusula 7.ª do Penhor, "(…) utilizar da referida conta de depósito a prazo número ... [atualmente 3058052556] as importâncias necessárias para pagamento das responsabilidades asseguradas."
29. Entretanto, o AA iniciou os procedimentos para liquidação da conta corrente a que se refere o Contrato, protestando-se juntar as comunicações relevantes.
30. A apreensão determinada fere, assim, os direitos conferidos pelo Penhor ao AA enquanto credor penhoratício.
31. Daí a necessidade de o AA recorrer aos presentes embargos como forma de defender os seus legítimos direitos.
(iv) Da prevalência do Penhor
32. Nos termos conjugados do disposto nos artigos 178.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, ambos do CPP, respetivamente:
"São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova."
"O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objetos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome."
33. A medida de apreensão de bens, em concreto de saldos bancários, quando determinada, não como meio de conservação da prova, mas com o propósito cautelar de garantia patrimonial (1) — por forma a assegurar a eventual declaração de perda a favor do Estado, isto é, "garantir a efetivação da privação definitiva do bem" (2), "o futuro enforcement da decisão que vier a decretar o confisco" (3) —,
34. Deverá estar sujeita ao regime geral das medidas de garantia patrimonial constantes do Livro IV do CPP, designadamente a caução económica e o arresto preventivo.
35. Com efeito, "[o] Ministério Público requer prestação de caução económica quando haja fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias (...) [d]a perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente" [cfr. artigo 227.º, n.º 1, alínea b), do CPP], podendo, igualmente, o arresto preventivo ser decretado "[p]ara garantia das quantias referidas no artigo anterior" (cfr. artigo 228.º, n.º 1, do CPP).
36. Por outras palavras, tanto a apreensão como as medidas de garantia patrimonial previstas nos artigos 227.º e 228.º do CPP são meios processuais destinados a garantir a execução de uma futura decisão.
37. Em particular, "não obstante a inserção sistemática nos meios de obtenção da prova, a apreensão de bens serve também, de forma autónoma, a finalidade de garantir a execução da decisão final que venha a decretar a perda de bens a favor do Estado" (4).
38. Assim, por força da remissão operada pelos artigos 4.º e 228.º, n.º 1, do CPP, são subsidiariamente aplicáveis, em tudo o que este Código não preveja e se harmonize com os princípios gerais do processo penal, as normas do processo civil,
39. E, consequentemente, as disposições processuais e substantivas específicas do regime da penhora, por força da remissão estabelecida no número 2 do artigo 391.º do CPC e no número 2 do artigo 622.º do Código Civil ("CC"), respetivamente.
40. Abordando o reflexo processual do número 1 do artigo 822.º do CC, aplicável ex vi número 2 do artigo 622.º do mesmo diploma, Lebre de Freitas refere, em anotação ao então artigo 406.º do CPC (actual 391.º), que "Mal como a penhora, [o arresto] oferece ao credor que o requeira e obtenha o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior à data em que é efectuado (art.º 822-2 CC)" (5) (sublinhado nosso).
41. De outra perspetiva, e em consonância com este regime, prevê também o artigo 819.º do CC a oponibilidade à execução dos actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados (melhor dizendo, arrestados ou apreendidos), como de resto explicitam Pires de Lima e Antunes Varela:
"[o]s actos de disposição ou oneração dos bens, com data anterior ao registo da penhora (...), prevalecem sobre esta" (6).
Quer isto dizer que,
42. Existindo uma garantia real constituída em data anterior à data da penhora — cuja anterioridade se reportará à data da apreensão, por força do número 2 do art.º 822.º do CC — sendo o bem ou direito dado em execução, incluindo para perda a favor do Estado, o credor que beneficie de garantia real anterior terá o direito a ver o seu crédito satisfeito em primeiro lugar.
43. Em termos práticos, da conjugação dos artigos referidos resulta que o pagamento de quaisquer valores por via da apreensão determinada, incluindo do valor correspondente aos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico [cfr. artigo 227.º, n.º 1, alínea b), do CPP], só será efetuado depois de satisfeito o crédito dos credores beneficiários de garantias reais anteriores,
44. De que constitui exemplo o penhor — como é pacificamente aceite na doutrina e jurisprudência portuguesas.
45. Neste sentido pronunciam-se, a título de exemplo, Menezes Cordeiro e Calvão da Silva.
46. O primeiro autor afirma que "a garantia financeira é uma garantia real, sob a forma de penhor (...) concluída entre uma instituição de crédito ou entidade para o efeito equiparada e uma pessoa colectiva, destinada a assegurar obrigações pecuniárias ou instrumentos financeiros, que recaiam sobre "numerário" e que as partes tenham decidido submeter ao regime financeiro especial, legalmente previsto" (7).
47. Calvão da Silva, sufragando o mesmo entendimento, refere que "[a] garantia financeira é, pois, uma garantia real prestada (em princípio) por e a favor de instituições financeiras" (8),
48. Da mesma forma, tal como pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência de 10.09.2008,
"[o]utros direitos reais de garantia resultam da lei processual civil (o direito que decorre do arresto depois de convertido em penhora e no processo de execução o direito real derivado da penhora) ou de legislação autónoma (o penhor financeiro e a alienação fiduciária em garantia, instituídos pelo Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de Maio)" (sublinhado e realçado nossos) (9).
49. Se dúvidas restassem, refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.02.2013 que:
"(. ..) o penhor é considerado um direito real de garantia das obrigações e vem definido e regulado nos art.º s 666.º e segs. do C. Civil, conferindo ao credor pignoratício o direito à satisfação do seu crédito, bem como juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro, podendo a obrigação garantida pelo penhor ser futura ou condicional ( n.ºs 1 e 3). No caso concreto, estamos em presença de um penhor que incide sobre depósito bancário, que Menezes Cordeiro, "Manual de Direito Bancário", 3." Edição, pág. 625, define como penhor financeiro (qualificação que é dada pela natureza dos sujeitos, do objeto do penhor, da obrigação garantida e da vontade das partes), sublinhando que, em rigor, tratar-se de um penhor de direitos (art.º 679.º do C. Civil), sendo a garantia caracterizada pela entrega do seu objeto ao credor pignoratício ou tomador da garantia sem que, por isso, a propriedade se transfira para este último" e" [d] o contrato de penhor emerge um direito real de garantia das obrigações, conferindo ao credor pignoratício o direito à satisfação do seu crédito, bem como juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro, podendo a obrigação garantida ser futura ou condicional (art.º 666.º, n.ºs 1 e 3 do C. Civil)" (10).
(v) Da verificação dos demais pressupostos da oposição por embargos de terceiro
50. Já se referiu que o AA tomou conhecimento da medida de apreensão por notificação assinada a 3 de Maio, pelo que os presentes embargos são, desde logo, tempestivos.
51. Por outro lado, dispõe o artigo 342.º do CPC, quanto ao fundamento dos embargos de terceiro:
"1 — Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro."
52. Dá-se por reproduzido tudo quanto ficou dito quanto à constituição, a favor do AA, do Penhor.
53. A apreensão do saldo bancário da referida conta ofende o direito do AA, que não é parte na causa, sendo um terceiro, titular de direito real de garantia sobre os bens apreendidos,
54. Tendo sempre agido de boa-fé, quer na celebração, quer na execução do Contrato e do Penhor, no exercício de direitos próprios validamente constituídos e titulados.
55. Recorde-se, como se referiu, que o AA não tomou parte nem teve qualquer intervenção nos factos em investigação nos presentes autos, desconhecendo, em absoluto, qualquer eventual alegada atuação ou proveniência ilícita dos titulares das contas bancárias ou dos saldos agora apreendidos.
56. De igual jeito, nunca foi intenção do AA retirar qualquer benefício ilegítimo dos contratos celebrados com a ... (cuja celebração constitui prática corrente da sua atividade), nem provocar a lesão de interesses alheios,
57. Tendo-se limitado a atuar enquanto mutuante e credor por referência aos referidos contratos, e em estrito cumprimento dos seus deveres e obrigações (legais e contratuais) na qualidade de instituição de crédito.
Em síntese,
58. O Penhor de que o AA é beneficiário, devidamente constituído, confere-lhe, nomeadamente, o direito de utilizar as importâncias existentes na conta para pagamento das responsabilidades asseguradas,
59. Sendo a apreensão determinada incompatível com o pleno exercício dos direitos do AA, incluindo de execução do Penhor, na qualidade de terceiro de boa-fé (à luz, nomeadamente, do disposto no artigo 111.º do Código Penal).
Pelo que,
60. Nos termos do disposto no artigo 342.º do CPC, pode o AA deduzir oposição mediante embargos de terceiro, para fazer valer os seus direitos, prévios à apreensão determinada, e que com ela se mostram incompatíveis.
Nestes termos e nos demais de direito:
i. Devem os presentes embargos ser recebidos e, a final, julgados procedentes, por provados,
ii. Em consequência, ser revogada a medida de apreensão determinada sobre o saldo bancário da conta n.º 3058052556, aberta junto do AA, pela ...,
iii. Ou, sempre e em todo o caso, ser salvaguardo/ressalvado o direito real de garantia a favor do AA, enquanto credor penhoratício e terceiro de boa-fé, sobre o mesmo depósito bancário.
(1) Sobre a natureza dual da apreensão e a necessidade de deslindar se a mesma é determinada com fins probatórios ou de garantia patrimonial, vide, entre outros, GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Volume 11, Verbo, 2011, p. 289; JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, Código de Processo Penal Comentado, Edição (Revista), Almedina, 2016, p. 700; MANUEL DA COSTA ANDRADE e MARIA JOÃO ANTUNES, «Da apreensão enquanto garantia processual da perda de vantagens de crime», in RLJ, Secção de Doutrina, Ano 146, N.º 4005, 2017, pp. 360-362; FRANCISCO MARCOLINO DE JESUS, Os meios de obtenção da prova em processo penal, Almedina, 2011, pp. 202-203.
(2) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.1 I .2019, processo n.º 697/16.0IDPRT-A.P1, disponível em www.dgsi,pt, tal como os demais adiante referidos nos presentes Embargos.
(3) Acórdão do mesmo Tribunal da Relação do Porto de 02.03.2022, processo n.º 173/19.91DPRT-A1,1. No mesmo sentido, JOÃO CONDE CORREIA, segundo o qual a apreensão "é uma incontornável garantia processual penal da perda", «Apreensão..., op. cit., pp. 506-507. Assim, também, o Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 23.03.2022, processo n.º 227/20.9TELSB-K.L1-3.
(4) MANUEL DA COSTA ANDRADE e MARIA JOÃO ANTUNES, op. cit., p. 360. Assim continuam os mesmos autores: "[é] também este o sentido do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/2008 quando salienta que "a apreensão é também um meio (...) de garantir a execução da sentença penal"", p. 360.
(5) JOSÉ LEBRE DE FREITAS, ANTONIO MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.a Edição, 2008, p. 124.
(6) PIRES DE LIMA, ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume II, 3.º Edição (revista e atualizada), 1986, p. 94.
(7) ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, 5? Edição, p. 805.
(8) JOÃO CALVÃO DA SILVA, Banca, Bolsa e Seguros: Direito Europeu e Português. Torno 1.ª parte geral, 2º Edição, 2007, pp. 213-214.
(9) Proferido no âmbito do processo n.º 07A3965. No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.04.2010, processo n.º 2737/09.0TVLS13-A11-2.
(10) Proferido no âmbito do processo n.º 3251/10.6TBBRR-A.L1-6.”
II.3.C. Da posição do Ministério Público (cfr. ref.ª 8955606 de 15-07-2024 do Apenso D):
O Ministério Público pronunciou-se da seguinte forma:
“- Questão prévia da admissibilidade dos embargos de terceiro em sede de processo penal,
Os embargos de terceiro correspondem a um incidente da instância cível, incidente declarativo no âmbito do processo executivo que corre por apenso.
Assim os embargos de terceiro consubstanciam verdadeira acção declarativa, autónoma e especial como forma de reação.
Contudo, em sede de processo penal, o terceiro cujo direito (real) tenha sido afectado por despacho judicial de apreensão (no caso, apreensão de saldo de contas bancárias) poderá reagir, querendo, por meio de interposição de recurso do respectivo despacho, nos termos do art.º 401º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal.
Ora, tal entendimento foi expressamente perfilhado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.02.2004 (relator André da Silva) com o seguinte sumário: "Os embargos de terceiro não são admissíveis no processo penal".
Assim, promove o Ministério Público que seja proferido despacho de não recebimento dos embargos de terceiro deduzidos nos autos pelo AA, por inadmissibilidade legal.”
II.3.D. Do despacho recorrido (cfr. ref.ª 9053143 de 16-10-2024 do Apenso D):
Por fim, é do seguinte teor a decisão recorrida:
“Após notificação da decisão judicial proferida nos autos de apreensão de saldos bancários de diversas contas domiciliadas no AA, veio esta instituição bancária deduzir embargos de terceiro requerendo, em síntese, que seja revogada a medida de apreensão do saldo bancário da conta nº 3058052556 aberta junto do AA pela ... ou, sempre e em todo o caso ser salvaguardado/ressalvado o direto real de garantia a favor do AA, enquanto credor penhoratício e terceiro de boa-fé sobre o referido depósito bancário.
Para tal, vem alegar, em síntese, que:
- o AA beneficia de penhor sobre o saldo da conta bancária n." 3058052556, titulada pela Associação ..., correspondente ao depósito a prazo no valor de €375.000,00, para garantia das obrigações da ASM junto de tal instituição bancária;
- com os presentes embargos não pretende o AA, tomar posição sobre os factos em investigação nos autos, os quais não são do seu conhecimento;
- pretende tão-só assegurar, exclusivamente, os seus direitos enquanto terceiro de boa- fé, porquanto:
- Em ........2017 entre o AA e a ..., foi celebrado contrato de abertura de crédito em conta corrente (conta corrente nº ...) até ao montante máximo de €750.000,00 e, nos termos contratualizados, foi no mesmo dia celebrado entre os mencionados outorgantes um contrato de penhor específico sobre depósito a prazo, correspondente à actual conta bancária no 3058052556, titulada pela ASM com o saldo de€375.000,00 (a conta de depósito a prazo inicial com no ... foi renumerada - passando a apresentar o nº de conta actual no 3058052556 em decorrência das renovações do deposito a prazo em causa);
- a ASM ainda não liquidou ao AA os montantes utilizados no âmbito de referido contrato de abertura de crédito;
- o penhor de que o AA é beneficiário confere-lhe o direito de utilizar as importâncias existentes na conta para pagamento das responsabilidades asseguradas;
- considerando o AA que a apreensão do respectivo saldo bancário é incompatível com o exercício do seu direito de terceiro de boa-fé de execução do respectivo penhor.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de não admissão dos embargos de terceiro.
Os embargos de terceiro correspondem a um incidente da instância cível, incidente declarativo no âmbito do processo executivo que corre por apenso.
Assim, os embargos de terceiro consubstanciam verdadeira acção declarativa, autónoma e especial como forma de reação.
Contudo, em sede de processo penal, o terceiro cujo direito (real) tenha sido afectado por despacho judicial de apreensão (no caso, apreensão de saldo de contas bancárias) poderá reagir, querendo, por meio de interposição de recurso do respectivo despacho, nos termos do artigo 401º, nº 1, al. d) do Código de Processo Penal – neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.02.2004 com relator André da Silva com o seguinte sumário: "Os embargos de terceiro não são admissíveis no processo penal".
Pelo exposto, não se admitem os embargos de terceiro.
Custas pelo requerente, nos termos do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique.”
II.4. Da apreciação das questões objeto do recurso:
Cumpre agora analisar as já elencadas questões suscitadas pelo recorrente (cfr. II.2.):
II.4.A. Da admissibilidade da oposição mediante embargos de terceiro na sequência da apreensão em processo penal do saldo de uma conta bancária, com a finalidade de conservação dos ativos provenientes de uma atividade criminalmente ilícita, judicialmente ordenada ao abrigo do disposto nos arts. 178.º e 181.º, n.º 1, e 268.º, n.º 1, al. c), e n.º 4, do C.P.P., por parte da instituição bancária onde aquela está domiciliada, titular de um penhor sobre aquele:
Segundo o tribunal recorrido não é admissível em processo penal o meio de tutela da oposição mediante embargos de terceiro previsto no Código de Processo Civil (C.P.C.), pelo que os fundamentos da decisão proferida se alicerçaram num plano meramente formal ou adjetivo.
Pese embora os termos abrangentes da decisão recorrida (cfr. II.3.D.), o certo é que não pode a mesma ser desligada da apreensão efetuada (cfr. II.3.A.) contra a qual, de resto, o recorrente reagiu mediante aquele específico meio de tutela (cfr. II.3.B.).
Ora, são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova (cfr. art.º 178.º, n.º 1, do C.P.P.).
Acresce que o juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objetos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome (cfr. art.º 181.º, n.º 1, do C.P.P.).
A apreensão consiste na colocação de uma coisa sob o domínio, de facto e de direito, do poder público, numa imposição de um vínculo de indisponibilidade sobre uma coisa, por forma a garantir a sua integridade, que condiciona o seu uso, fruição e disposição, traduzindo-se, assim, numa restrição de direitos sobre a mesma, ainda que com carácter provisório (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-01-2023, processo n.º 267/21.0JELSB-G.L1-94; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03-02-2021, processo n.º 756/16.9TELSB-C.L1-35; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 22-10-2019, processo n.º 589/15.0JALRA-E.E16; CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Almedina, 2019, § 1 e 2, págs. 622 e 623).
O mecanismo processual da apreensão de bens tem uma função de segurança processual, isto é, impedir dificuldades ou até a completa perda da prova, mas também uma função de garantia patrimonial, ou seja, acautelar a sua perda posterior (cfr. CORREIA, João Conde, in “Apreensão ou arresto preventivo dos proventos do crime?”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 25, 2015, pág. 508).
A apreensão é, pois, um meio processual que serve quer a prova do crime em investigação quer para a execução da decisão judicial que venha a declarar o que foi apreendido perdido a favor do Estado (cfr. ANDRADE, Manuel da Costa e ANTUNES, Maria João, in “Da apreensão enquanto garantia da perda de vantagens do crime”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 146.º, pág. 361).
No presente caso, de acordo com o teor da decisão recorrida (cfr. II.3.D.), a apreensão do saldo da mencionada conta bancária teve expressamente dois fundamentos:
- Conservação da prova; e
- Conservação dos ativos provenientes de uma atividade criminalmente ilícita;
sendo que ambas as finalidades, como resulta do exposto, de acordo com a lei de processo, podem efetivamente fundamentar a apreensão (cfr. arts. 178.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, do C.P.P.).
É certo que, estando em causa quantia depositada numa conta bancária, para demonstrar que as mesmas são produto ou vantagem de atividade criminalmente ilícita poderá bastar a documentação bancária. Contudo, mesmo nesse caso, não servindo a apreensão do respetivo saldo um interesse probatório, servirá um importante interesse confiscatório. Na verdade, “a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objetos apreendidos à ordem do processo até à decisão final” (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/2008, de 29-05-20087).
Ora, o C.P. prevê a perda a favor do Estado de instrumentos (cfr. art.º 109.º, n.º 1, do C.P.), produtos (cfr. art.º 110.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do C.P.) e vantagens de facto ilícito típico (cfr. art.º 110.º, n.ºs 1, al. b), 2, e 3, do C.P.).
A perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico, pese embora a divergência doutrinal quanto à sua natureza jurídica (pena acessória, providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança ou tertium genus dentro da panóplia das reações penais), enquanto consequência jurídica de um facto ilícito típico (cfr. ANDRADE, Manuel da Costa e ANTUNES, Maria João, in “Da apreensão enquanto garantia da perda de vantagens do crime”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 146.º, pág. 366), cumpre uma função específica preventiva, procurando evitar a circulação na comunidade de instrumentos suscetíveis de serem utilizados ou reutilizados em outros factos ilícitos típicos, bem como eliminar o que tenha sido produzido ou resultado da prática de facto ilícito típico que incentivem a prática de outros (cfr. DUARTE, José Nuno R., in A Perda de Instrumentos, Produtos e Vantagens do Crime no Código Penal Português: história, soluções e desafios, Almedina, 2023, pág. 94), ligado à ideia antiga, mas nem por isso menos prezável, de que o crime não compensa (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in Direito Penal Português – as consequências jurídicas do crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág. 632).
O C.P. determina que a perda a favor do Estado não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens de facto ilícito típico não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada (cfr. art.º 111.º, n.º 1, 2.ª parte, do C.P.).
Contudo, acrescenta que ainda que os instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico pertençam a terceiro, é decretada a perda, quando:
- Tenham concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tenham retirado benefícios;
- Os instrumentos, produtos ou vantagens tenham sido, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou
- Tiverem sido, por qualquer título, transferidos para o terceiro para evitar a sua perda, sendo ou devendo tal finalidade ser por eles conhecida (cfr. art.º 111.º, n.º 1, 1.ª parte, e n.º 2, als. a) a c), do C.P.).
A atual redação da dita norma (cfr. art.º 111.º do C.P.) resulta da Lei n.º 30/2017, de 30-05 (cfr. art.º 10.º) que transpôs Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 03-04-2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia8 onde, nos considerandos 24 e 25, consta:
“(24) A prática de os suspeitos ou arguidos transferirem os seus bens para terceiros com conhecimento de causa, de modo a evitar a sua perda, é muito comum e cada vez mais generalizada. O quadro jurídico da União em vigor não contém regras vinculativas em matéria de perda de bens transferidos para terceiros. Por conseguinte, afigura-se cada vez mais necessário autorizar a perda dos bens transferidos para terceiros ou por eles adquiridos. A aquisição por terceiros abrange as situações em que, por exemplo, os bens tenham sido direta ou indiretamente adquiridos por um terceiro ao suspeito ou arguido, nomeadamente através de um intermediário, inclusive quando a infração tenha sido cometida em seu nome ou em seu benefício e quando o arguido não possuir bens suscetíveis de perda. Deverá ser possível decidir a perda pelo menos nos casos em que o terceiro saiba ou deva saber que a transferência ou aquisição teve por objetivo evitar a perda, com base em circunstâncias e factos concretos, inclusive no facto de a transferência ter sido efetuada a título gracioso ou em troca de um montante substancialmente inferior ao do valor de mercado. As regras relativas à perda de bens de terceiros dever-se-ão aplicar tanto a pessoas singulares como a pessoas coletivas. Em qualquer dos casos, os direitos de terceiros de boa-fé não deverão ser lesados. [negrito nosso]
(25) Os Estados-Membros são livres de definir a perda de bens de terceiros como uma medida subsidiária ou alternativa à perda direta, consoante seja adequado nos termos do direito nacional.”
Acresce que, na sequência desses considerandos, a referida Diretiva determinou aos Estados-Membros no seu art.º 6.º, sob a epigrafe “perda de bens de terceiros”:
“1. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda dos produtos ou dos bens cujo valor corresponda a produtos que, direta ou indiretamente, foram transferidos para terceiros por um suspeito ou arguido, ou que foram adquiridos por terceiros a um suspeito ou arguido, pelo menos nos casos em que o terceiro sabia ou devia saber que a transferência ou a aquisição teve por objetivo evitar a perda, com base em circunstâncias e factos concretos, nomeadamente o facto de a transferência ou aquisição ter sido feita a título gracioso ou em troca de um montante substancialmente inferior ao do valor de mercado.
2. O n.º 1 deve ser interpretado de forma a não prejudicar os direitos de terceiros de boa-fé. [negrito nosso]
Conforme se acabou por reconhecer na Proposta de Lei n.º 51/XIII9, apresentada em 17-01-202710, que esteve na origem da nova legislação, a noção comunitária de produtos do crime abrange o que entre nós é tido por produtos e também como vantagens do crime.
Ora, o confisco implica a perda da propriedade da coisa para o visado e a sua transferência, com eficácia real, para a esfera patrimonial do Estado (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in Direito Penal Português – as consequências jurídicas do crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág. 627).
“O n.º 1, do artigo 111.º do Código Penal, determina que a perda a favor do Estado de bens relacionados com o crime não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens pertencerem a um terceiro, o que, numa leitura imediata e restritiva do texto, em que pertença equivale a propriedade, apenas o direito de propriedade dos terceiros seria salvaguardado daquela perda.
Contudo, tendo em consideração que essa perda não constitui uma aquisição originária desses bens pelo Estado, mas apenas uma transmissão ope judicis dos mesmos, não há razão para que outros direitos reis limitados ou menores (v.g. direitos de superfície, usufruto, uso e habitação, habitação periódica, penhor, hipoteca, direito de retenção), a promessa real e direitos pessoais de gozo (v.g. o direito do locatário e do comodatário) não permaneçam na titularidade do terceiro, apesar da transferência do direito de propriedade para o Estado não deixar de se efetivar. A diferença é que, existindo um direito de propriedade de terceiro, em princípio, a perda já não pode ocorrer, uma vez que a mesma teria como consequência a transmissão desse direito para o Estado, o que é incompatível com a sua manutenção na esfera jurídica de terceiro, enquanto nos restantes direitos reais limitados ou nos direitos pessoais de gozo dos terceiros, a transmissão do direito de propriedade para o Estado pode ocorrer, mantendo-se incólumes aqueles direitos no património dos terceiros” (cfr. MARIANO, João Cura, in “A perda de bens de terceiros relacionados com o crime”, O Novo Regime de Recuperação de ativos à luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a transpôs, 1.ª edição, INCM, 2018, págs. 142 e 143).
“O mesmo é dizer que se trata aqui de uma perda relativa e que o direito adquirido pelo Estado há de coincidir então com o direito do agente, sem atingir, desta forma, os direitos a favor de terceiros que onerem a coisa ou o direito transmitido. Passando o Estado a ter sobre a coisa ou direito perdido a mesma posição que cabia ao titular anterior, refletem-se, naturalmente, na sua posição quaisquer vicissitudes ou quaisquer vícios inerentes ao título de aquisição a favor do titular anterior, bem como quaisquer ónus ou encargos que porventura gravassem a coisa ou o direito adquirido” (cfr. ponto 3.5. do Parecer n.º 15/CC/2018, do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e do Notariado, homologado em 17-04-201811).
Seja como for, aquilo que materialmente ou em espécie pode ser declarado perdido a favor do Estado, ou seja, instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico e, nesse sentido, património contaminado, deve ser apreendido (cfr. CORREIA, João Conde, in “Apreensão ou arresto preventivo dos proventos do crime?”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 25, 2015, págs. 517 e 518).
Contudo, estabelece também o C.P. que se os instrumentos (cfr. art.º 109.º, n.º 3, do C.P.), produtos e vantagens de facto ilícito típico (cfr. art.º 110.º, n.º 4, do C.P.), ainda que pertença de terceiros nos casos do art.º 111.º, n.º 2, do C.P. (cfr. art.º 111.º, n.º 3, do C.P.), não puderem ser apropriados materialmente ou em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor.
Ora, nestes casos, seja por impossibilidade genética, seja por impossibilidade superveniente, os instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico não podem ser recuperados, pelo que será confiscado o seu valor equivalente.
Acresce que, estando em causa a investigação de determinados crimes, entre os quais se inclui o crime de branqueamento de capitais, tem também aplicação a Lei de combate à criminalidade organizada e económico-financeira que estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra de segredo profissional e perda de bens a favor do Estado relativo a esse tipo de ilícitos (cfr. art.º 1.º).
Tem especial relevo a presunção, estabelecida no art.º 7.º do referido diploma legal, de que constitui vantagem criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito, para efeito de perda de bens a favor do Estado, em caso de condenação pela prática de qualquer dos crimes mencionados no art.º 1.º, definindo o art.º 12.º os termos em que se processa, na sentença condenatória, a declaração de perda de valores a favor do Estado e o seu montante.
Nessa situação é atingido património, do arguido ou mesmo de terceiros (cfr. art.º 7.º, n.º 2, als. a) a c), relativamente ao qual não é possível demonstrar ser o mesmo contaminado, no sentido exposto. Na verdade, na determinação do valor do património incongruente com os rendimentos lícitos, o qual será declarado perdido a favor do Estado (cfr. art.º 12.º, n.º 1), serão contabilizados, para além de bens propriedade do arguido, os seguintes bens titulados por terceiros:
- Os bens que, à data da constituição como arguido ou posteriormente, este tenha o domínio e o benefício “de facto”, apesar de não ser o titular do direito de propriedade sobre eles, mas sim um terceiro;
- Os bens que o arguido, após essa data, venha a transmitir para terceiro, a qualquer título; e
- Os bens que o arguido tenha transmitido para terceiro, a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à data da sua constituição como arguido (cfr. MARIANO, João Cura, in “Os bens de terceiro no regime da “perda alargada”, Estudos Projeto Ethos – Corrupção e criminalidade económico-financeira, pág. 337).
Ora, nos termos da lei de processo, embora o património não contaminado e aquele relativamente ao qual não é possível demonstrar ser o mesmo contaminado não possam ser alvo de apreensão (cfr. arts. 178.º do C.P.P.), podem ser alvo de arresto, preventivo (cfr. art.º 228.º do C.P.P.) ou alargado (cfr. art.º 10.º Lei de combate à criminalidade organizada e económico-financeira).
Acresce que logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, o que tiver sido apreendido é restituído a quem de direito (cfr. art.º 186.º, n.º 1, do C.P.P.).
Também logo que transitar em julgado a sentença ou o acórdão (cfr. art.º 97.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do C.P.P.), o que tiver sido apreendido é restituído a quem de direito, salvo se for declarado perdido a favor do Estado (cfr. art.º 186.º, n.º 2, do C.P.P.).
Contudo, nenhuma dessas duas hipóteses ocorrerá se a indisponibilidade do que tiver sido apreendido deva ser mantida a título de arresto (cfr. art.º 186.º, n.º 5, do C.P.P.).
Deste modo, facilmente se conclui que:
- O que tenha sido apreendido, que já não sirva para prova, mas que possa, ele mesmo, ser declarado perdido a favor do Estado, por ser património contaminado, deve continuar apreendido até à decisão final;
- O que tenha sido apreendido, que já não sirva para prova e não possa, ele mesmo, ser declarado perdido a favor do Estado, não constituindo património contaminado, em vez da manutenção da apreensão, deve ser arrestado, para garantia da perda do valor que vier a ser confiscado; e
- O que tenha sido apreendido, que já não sirva para prova, nem para a perda ou para garantia da sua execução, deve ser restituído (cfr. CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Almedina, 2019, § 11, pág. 716).
Ora, tal permite concluir que a apreensão (cfr. arts. 178.º, n.º 1, do C.P.P.) e o arresto, preventivo ou alargado (cfr. arts. 228.º do C.P. e 10.º da Lei de combate à criminalidade organizada e económico-financeira), embora se traduzam na imposição de um vínculo de indisponibilidade, não se confundem, possuindo distintos âmbitos de aplicação. Na verdade, a apreensão atinge o património contaminado, garantindo a perda de algo relacionado com um facto ilícito típico, isto é, seus instrumentos, produtos ou vantagens (cfr. arts. 109.º, n.º 1, 110.º, n.ºs 1, als. a) e b), 2 e 3, e 111.º, n.º 2, do C.P.). Por seu turno, o arresto incide sobre património não contaminado ou relativamente ao qual não é possível demonstrar ser o mesmo contaminado, acautelando-se a perda do valor dos instrumentos, produtos ou vantagens de facto ilícito típico (cfr. arts. 109.º, n.º 3, 110.º, n.º 4, e 111.º, n.º 3, do C.P.), ainda que, relativamente à vantagem, possa ser presumido o seu valor no caso da Lei de combate à criminalidade organizada e económico-financeira (cfr. art.º 10.º, n.º 1) (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24-02-2022, processo n.º 3/22.4JAFUN-A.L1-912; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06-09-2017, processo n.º 112/15.6T9VFR-E.P113; CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, § 35, pág. 637; RODRIGUES, Sofia dos Reis, in “Dos meios de impugnação das garantias processuais penais do confisco”, O Novo Regime de Recuperação de ativos à luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a transpôs, 1.ª edição, INCM, 2018, págs. 265, 266, 268 e 269).
Precisamente por isso, os dois mecanismos possuem diferentes requisitos formais, sendo os do arresto mais exigentes do que a apreensão, sendo, pois, natural que existam diferenças a nível processual.
No caso do arresto preventivo, a lei de processo penal estabelece algumas regras, remetendo, no mais, para as normas aplicáveis do C.P.C. (cfr. art.º 228.º do C.P.P.), umas e outras aplicáveis ao arresto alargado em tudo o que não contrariar a Lei de combate à criminalidade organizada e económico-financeira (cfr. art.º 10.º). Partindo do postulado no enunciado quadro normativo, resulta que o decretamento do arresto, seja o preventivo seja o alargado, deve seguir, no que não estiver regulado nos diplomas que especialmente os preveem, a disciplina da lei geral de processo civil, ressalvada, naturalmente, a aplicação de normas de procedimento que não se harmonizem com o arresto penal.
Assim, não é de estranhar que se reconheça àquele que não ocupe a posição processual de requerido, a possibilidade de deduzir oposição ao arresto mediante embargos de terceiro (cfr. art.º 343.º, n.º 1, do C.P.C.) quando entenda que o mesmo ofende ou se mostra incompatível com direitos de que seja titular (cfr. CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, § 42 e 43, pág. 637; MARIANO, João Cura, in “A perda de bens de terceiros relacionados com o crime”, O Novo Regime de Recuperação de ativos à luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a transpôs, 1.ª edição, INCM, 2018, pág. 182; RODRIGUES, Sofia dos Reis, in “Dos meios de impugnação das garantias processuais penais do confisco”, O Novo Regime de Recuperação de ativos à luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a transpôs, 1.ª edição, INCM, 2018, págs. 285 e segs.).
Sendo objeto do arresto património não contaminado ou relativamente ao qual não é possível demonstrar ser o mesmo diretamente contaminado, não causa qualquer surpresa que o regime processual seja assumidamente mais garantista.
É certo que o recorrente no recurso que interpôs elencou uma série de acórdãos dos tribunais superiores onde, nos respetivos processos de natureza criminal, havia sido deduzida oposição mediante embargos de terceiro (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13-10-2022, processo n.º 210/20.4TELSB-X.L1-614; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04-11-2021, processo n.º 131/12.4TELSB-P.P115; acórdão do Supremo tribunal de Justiça, de 27-10-2021, processo n.º 210/20.4TELSB-E.L1-A.S116; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 08-10-2019, processo n.º 23/16.8T9ENT-C.E117; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10-07-2019, processo n.º 296/13.8TAVVD-O.G118).
Contudo, independentemente do concreto objeto de cada um desses acórdãos, o certo é que, em na respetiva situação subjacente, embora no âmbito do processo penal, aquele meio de tutela foi deduzido contra um arresto e não contra uma apreensão.
Ora, no caso da apreensão, a lei de processo penal estabelece diverso regime.
Com a Lei n.º 59/98, de 25-08, o art.º 178.º do C.P.P. passou a prescrever que:
“6 - Os titulares de bens ou direitos objeto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 68.º, n.º 5.
7 - Se os objetos apreendidos forem suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o. A autoridade judiciária prescinde da presença do interessado quando esta não for possível.”
Por outro lado, a Lei n.º 30/2017, de 30-05, que transpôs Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 03-04-2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia, alterou o art.º 178.º do C.P.P. (cfr. art.º 15.º) e aditou a tal diploma o art.º 347.º-A, do C.P.P. (cfr. art.º 16.º).
O art.º 178.º do C.P.P. passou então a dispor:
“7 - Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida.
8 - O requerimento a que se refere o número anterior é autuado por apenso, notificando-se o Ministério Público para, em 10 dias, deduzir oposição.
9 - Se os instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos apreendidos forem suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o.
10 - A autoridade judiciária prescinde da presença do interessado quando esta não for possível.
11 - Realizada a apreensão, é promovido o respetivo registo nos casos e nos termos previstos na legislação registal aplicável.
12 - Nos casos a que se refere o número anterior, havendo sobre o bem registo de aquisição ou de reconhecimento do direito de propriedade ou da mera posse a favor de pessoa diversa da que no processo for considerada titular do mesmo, antes de promover o registo da apreensão a autoridade judiciária notifica o titular inscrito para que, querendo, se pronuncie no prazo de 10 dias.”
Por seu turno, o art.º 347.º-A do C.P.P., sob a epigrafe “declarações do terceiro titular dos instrumentos, produtos ou vantagens suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado” prescreve:
“1 - Ao terceiro ao qual pertençam instrumentos, produtos ou vantagens suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado, é garantido o exercício do direito de contraditório e a prestação de declarações, mediante perguntas formuladas por qualquer dos juízes ou dos jurados ou pelo presidente, a solicitação do próprio terceiro, do Ministério Público, do defensor ou dos advogados do assistente ou das partes civis.
2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2 e 4 do artigo 145.º e no n.º 3 do artigo 345.º”
Por outro lado, no considerando 33 da dita Diretiva consta:
“(33) A presente diretiva afeta consideravelmente os direitos das pessoas, não só os direitos dos suspeitos ou arguidos, mas também os de terceiros que não sejam sujeitos processuais. Por conseguinte, importa estabelecer garantias específicas e vias de recurso judicial para assegurar que, ao executar a presente diretiva, se respeitem os direitos fundamentais das pessoas. Isso inclui o direito a ser ouvido que assiste a terceiros que alegam ser proprietários dos bens em causa ou titulares de outros direitos de propriedade («direitos reais» ou «ius in re»), como o direito de usufruto. A decisão de congelamento deverá ser comunicada à pessoa em causa o mais rapidamente possível após a sua execução. No entanto, por imperativos da investigação, as autoridades competentes podem adiar a comunicação dessas decisões à pessoa em causa.” [negrito nosso]
Acresce que, no seu art.º 6.º, sob a epigrafe “salvaguardas”, a referida Diretiva determinou aos Estados-Membros:
“1. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que as pessoas afetadas pelas medidas previstas na presente diretiva tenham acesso a vias de recurso efetivas e a um julgamento equitativo, para defender os seus direitos.
2. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que a decisão de congelamento seja comunicada à pessoa em causa o mais rapidamente possível após a sua execução. Essa comunicação inclui, pelo menos em forma resumida, o fundamento ou os fundamentos de tal decisão. Quando tal for necessário para não prejudicar uma investigação criminal, as autoridades competentes podem adiar a comunicação da decisão de congelamento à pessoa em causa.
3. As decisões de congelamento apenas vigoram enquanto tal for necessário para salvaguardar os bens tendo em vista a eventual decisão de perda subsequente.
4. Os Estados-Membros devem prever a possibilidade efetiva de a pessoa cujos bens sejam afetados impugnar em tribunal a decisão de congelamento, em conformidade com os processos previstos no direito nacional. Esses processos podem prever que, caso a decisão inicial de congelamento tenha sido tomada por uma autoridade competente que não seja uma autoridade judiciária, essa decisão tenha de ser submetida primeiro a uma autoridade judiciária para validação ou revisão, antes de poder ser impugnada em tribunal.
5. Os bens congelados que não venham a ser objeto de uma decisão de perda subsequente são restituídos imediatamente. As condições ou as regras processuais que permitem restituir tais bens são determinadas no direito nacional.
6. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que todas as decisões de perda são fundamentadas e que a decisão é comunicada à pessoa em causa. Os Estados-Membros devem prever a possibilidade efetiva de a pessoa destinatária de uma decisão de perda impugnar em tribunal essa decisão.
7. Sem prejuízo da Diretiva 2012/13/UE e da Diretiva 2013/48/UE, as pessoas cujos bens sejam afetados pela decisão de perda têm o direito de ter acesso a um advogado durante todo o processo de decisão de perda em relação à determinação dos produtos e instrumentos, a fim de poder defender os seus direitos. As pessoas em causa são informadas deste direito.
8. Nos procedimentos referidos no artigo 5.º, a pessoa em causa deve ter a possibilidade efetiva de contestar as circunstâncias do caso, nomeadamente os factos concretos e as provas disponíveis com base nos quais os bens em causa são considerados bens provenientes de comportamento criminoso.
9. Os terceiros têm direito a invocar o seu título de propriedade ou outros direitos reais, inclusive nos casos referidos no artigo 6.º.
10. Caso, em consequência de infração penal, as vítimas possam pedir uma reparação a pessoas sujeitas a medidas de perda previstas ao abrigo da presente diretiva, os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para assegurar que as medidas de perda não impeçam que as vítimas reclamem uma indemnização.” [negrito nosso]
Por fim, a Lei n.º 39/2020, de 18-08, conferiu a redação atual ao art.º 178.º (cfr. art.º 3.º), introduzindo, nos n.ºs 7 e 9 alterações por forma a incluir “coisas ou animais” na referência ao que estava apreendido.
Sendo inequívoco que a lei de processo penal estabelece a possibilidade de uma pessoa que não seja sujeito processual requerer ao juiz a modificação ou a revogação da apreensão de algo suscetível de ser declarado perdido a favor do Estado (cfr. art.º 178.º, n.º 7, do C.P.P.) e de ser ouvido oficiosamente (cfr. art.º 178.º, n.º 9, do C.P.P.), devendo depois serem retiradas as consequências processuais (manutenção, alteração ou revogação da apreensão), sendo-lhe também garantido, em julgamento, o exercício do direito de contraditório e a prestação de declarações (cfr. art.º 347.º-A do C.P.P.), não é muito clara quanto ao âmbito subjetivo em causa no que se refere aos direitos de a mesma deve ser titular.
Na verdade, embora os termos “titulares” (cfr. art.º 178.º, n.º 7, do C.P.P), “pertencerem” (cfr. art.º 178.º, n.º 9, do C.P.P.) e “pertençam” utilizados (cfr. art.º 347.º-A, n.º 1, do C.P.P.) pareçam equivaler, numa leitura imediata e restritiva, ao conceito corrente ou quotidiano de propriedade, tendo em conta a restrição de direitos em que se traduz a apreensão, ainda que provisoriamente, bem como a evolução histórica dos preceitos, os mesmos não são incompatíveis com outras leituras de acordo com as quais as pessoas em causa podem ser titulares do direito de propriedade sobre o que foi apreendido (cfr. CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Almedina, 2019, § 18, pág. 631; CABRAL, José António Henriques dos Santos, in Código de Processo Penal comentado, Almedina, 2014, págs. 759 e 760; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27-09-2023, processo n.º 261/21.1T9ACB-D.C119; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-11-2009, processo n.º 17/09.0TELSB-B.L1-920), mas também de outros direitos (cfr. BUCHO, José Manuel Saporiti Machado da Cruz, in “A Transposição da Diretiva 2014/42/EU. Notas à Lei n.º 30/2017, de 30 de maio (aspetos processuais penais)”, O Novo Regime de Recuperação de ativos à luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a transpôs, 1.ª edição, INCM, 2018, nota 37 de pág. 199 e págs. 228 e segs.; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23-08-2021, processo n.º 324/14.0TELSB-DF-321; acórdão do Tribunal da relação do Porto, de 21-01-2004, processo n.º 031577722).
Seja como for, e independentemente dos direitos que considerem estar tutelados, o certo é que a lei de processo penal estabeleceu o regime processual para quem, não sendo sujeito processual, possa fazer valer o seu direito que, assim, terá que ser o aplicável, quer o seja diretamente quer por força do art.º 4.º do C.P.P., que começa por dispor que aos casos omissos se aplicam as disposições do código de processo penal que possam aplicar-se por analogia (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16-02-1993, in Coletânea de Jurisprudência, Ano XVIII, Tomo I, pág. 45).
Apesar de se tratar de um regime que se revela ainda deficiente (cfr. MESQUITA, Paulo Dá, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2022, págs. 497 a 501; MARIANO, João Cura, in “A perda de bens de terceiros relacionados com o crime”, O Novo Regime de Recuperação de ativos à luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a transpôs, 1.ª edição, INCM, 2018, pág. 175; BUCHO, José Manuel Saporiti Machado da Cruz, in “A Transposição da Diretiva 2014/42/EU. Notas à Lei n.º 30/2017, de 30 de maio (aspetos processuais penais)”, O Novo Regime de Recuperação de ativos à luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a transpôs, 1.ª edição, INCM, 2018, págs. 230 e segs.), o certo é que, inequivocamente, afasta as disposições processuais cíveis, pelo que não existe qualquer lacuna a desencadear a aplicação destas (cfr. art.º 4.º do C.P.P.).
Mesmo que o terceiro não tenha sido notificado da apreensão no momento ou após a sua efetivação, garantindo-lhe a lei de processo penal o contraditório, por iniciativa daquele, após ter conhecimento da apreensão, devendo daí, depois, serem retiradas consequências processuais (manutenção, alteração ou revogação da apreensão), nunca teria cabimento o recurso à oposição mediante embargos de terceiro (cfr. arts. 342.º, n.º 1, e 344.º, n.º 2, do C.P.C.).
Ora, assim sendo, no âmbito do processo penal, na sequência da apreensão (cfr. art.º 178.º do C.P.P.) de produtos ou vantagens de um crime (cfr. arts. 110.º, n.ºs 1, als. a) e b), 2 e 3, e 111.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.), não é admissível a dedução de oposição mediante embargos de terceiro (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do C.P.C.).
No caso dos autos, o recorrente visava reagir a uma apreensão de produto ou vantagem de uma atividade criminalmente ilícita, e não a um arresto, não estando em causa qualquer bem sujeito a registo.
Desta forma, ainda que com distinto fundamento, impunha-se a não admissão da oposição mediante embargos de terceiros deduzida.
Improcede, pois, neste segmento, o recurso interposto.
II.4.B. Da convolação oficiosa:
Para o caso de se concluir que não era admissível a dedução de oposição mediante embargos de terceiro, pugna o recorrente que se impunha ao tribunal recorrido a sua convolação oficiosa para requerimento de interposição de recurso ou, em alternativa, para o requerimento a que alude o art.º 178.º, n.º 7, do C.P.P.
O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados (cfr. 193.º, n.º 3, do C.P.C.).
O preceito em causa regula o erro no meio processual utilizado e estabelece a regra da correção oficiosa pelo juiz, determinando que sejam seguidos os termos processuais adequados.
A convolação pressupõe três requisitos: (i) a compatibilidade do conteúdo ato praticado com o ato que devia ter sido praticado; (ii) o respeito do prazo para o ato que devia ter sido praticado; (iii) a competência do tribunal para o novo meio processual.
O sentido desta previsão é evitar que, por meras razões de índole formal, deixe de ser apreciada uma pretensão em juízo (cfr. GERALDES, António Santos Abrantes, PIMENTA, Paulo, SOUSA, Luís Filipe Pires de, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição, Almedina, 2022, pág. 257). Na verdade, os sujeitos processuais têm ao seu alcance, ao logo do processo, distintos meios de atuação que a lei processual lhes disponibiliza para veicularem e fazerem vingar as suas pretensões ou oposições, quer no plano do mérito, quer no das questões processuais. Ora, o preceito em causa cuida do erro do sujeito processual no ato de utilização de um desses meios, determinando o aproveitamento daquele que inadequadamente foi utilizado, mas cujo conteúdo se adeque ao meio que devia ter sido utilizado (cfr. FREITAS, José Lebre de, ALEXANDRE, Isabel, in Código de Processo Civil anotado, Vol. 1, 4.ª edição, Almedina, pág. 397).
Sendo tal regra aplicável no âmbito do processo penal por força do art.º 4.º do C.P.P. (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-11-2022, processo n.º 2290/10.1TXCBR-T.S123), verifica-se que a oposição mediante embargos de terceiro foi deduzida contra a apreensão do referido saldo bancário, relativamente ao qual o recorrente invocou ser titular de um direito real de garantia que, no seu entender, seria afetado por aquela, tendo atuado de boa-fé, pedindo a revogação da apreensão e, em todo o caso, a salvaguarda/ressalva do seu direito (cfr. II.3.B.).
Versando os recursos sobre decisões (cfr. arts. 399.º, 401.º, n.º 1, al. d), 402.º, 410.º, n.º 1, e 412.º, do C.P.P.) e visando o recorrente reagir contra a apreensão do referido saldo bancário, e não contra a decisão que a ordenou, o meio processual que mais se adequa ao conteúdo do meio processual utilizado é do requerimento a alude o art.º 178.º, n.º 7, do C.P.P., por aplicação direta ou por força do art.º 4.º do C.P.P. (cfr. II.4.A.), requerimento esse que, tendo que ser apresentado no processo onde foi efetuada a apreensão, sendo autuado por apenso, não está sujeito a qualquer prazo, apenas pressupondo a manutenção daquela.
Assim, impunha-se que, não obstante a rejeição liminar dos embargos de terceiro, fosse determinada a sua convolação para o requerimento a alude o art.º 178.º, n.º 7, do C.P.P., o que agora deverá ser efetuado, seguindo-se, em 1.ª instância, os termos processuais adequados (cfr. art.º 178.º, n.º 8, do C.P.P.).
É certo que o Ministério Público já teve oportunidade de se pronunciar sobre os embargos de terceiro deduzidos (cfr. II.3.C.). No entanto, tendo o mesmo pugnado pela sua rejeição formal e, assim, com base em razões meramente adjetivas, o que veio a ser acolhido na decisão recorrida (cfr. II.3.D.), deverá ser-lhe facultada a possibilidade de se pronunciar sobre o conteúdo (substantivo) da pretensão do recorrente.
Deste modo, neste segmento, procede o recurso interposto.
É devida taxa de justiça pelo recorrente uma vez que decaiu, ainda que parcialmente, no recurso que interpôs, devendo ser condenado entre 3 UC e 6 UC a esse título, tendo em vista a complexidade da causa (cfr. arts. 524.º do C.P.P. 8.º, n.º 9, do R.C.P. e da Tabela III).
Ora, a questão suscitada no recurso, e na qual decaiu, é de mediana complexidade, embora a solução aqui perfilhada não seja inédita, decorrendo já de jurisprudência dos tribunais superiores do século passado (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16-02-1993, in Coletânea de Jurisprudência, Ano XVIII, Tomo I, pág. 45), pelo que se julga adequado fixar a taxa de justiça devida em 3 UC.
Julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo “AA” e, em consequência:
- Mantém-se, ainda que com distinto fundamento, a rejeição liminar dos embargos de terceiro deduzidos (cfr. II.4.A.); e
- Determina-se a convolação da oposição mediante embargos de terceiro deduzida para o requerimento a alude o art.º 178.º, n.º 7, do C.P.P., devendo, em 1.ª instância, seguir-se os termos processuais adequados (cfr. art.º 178.º, n.º 8, do C.P.P.) (cfr. II.4.B.).
Condeno o recorrente no pagamento da taxa de justiça que se fixa em 3 UC.
Lisboa, 06-05-2025
Pedro José Esteves de Brito
Ana Cristina Cardoso
João Grilo Amaral
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1. https://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/021-037-Recurso-mat%C3%A9ria-de-facto.pdf
3. https://files.dre.pt/1s/1995/12/298a00/82118213.pdf
6. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/9a4ee7b96ab5ee78802584a900400a31
7. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080294.html
8. https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0042
10. https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=40914