ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
NULIDADE
SIMULAÇÃO
PEDIDO
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
CADUCIDADE
Sumário


I – Não obstante o disposto no artigo 120º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), onde se consagra um regime simplificado e expedito de recuperação das atribuições patrimoniais correspondentes a actos praticados pelo devedor no período suspeito anterior à declaração de insolvência, nada impede que o administrador da insolvência intente uma acção de declaração de nulidade de negócios celebrados pelo insolvente.
II – Essa acção não está sujeita aos prazos previstos no artigo 123º, n.º 1 do CIRE para o exercício da resolução a favor da massa insolvente.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

A massa insolvente de AA intentou ação declarativa de condenação contra “EMP01..., Lda”, pedindo que:

- Se declare nulo e de nenhum efeito o contrato celebrado em ../../2016, formalizado por documento particular autenticado por BB, advogada, portadora da CP ...72..., com domicílio profissional no Largo ..., ..., mediante o qual a insolvente, declarada como tal em 27 de Maio de 2022, declarou vender à ré EMP01..., Lda., que, por sua vez, declarou comprar àquela, pelo montante de €85.000,00, o prédio identificado no artigo 16º da petição inicial sob o n.º 1;
- Se declare nulo e de nenhum efeito, o contrato celebrado em ../../2016, formalizado por documento particular autenticado por BB, advogada, portadora da CP ...72..., com domicílio profissional em Largo ..., ..., mediante o qual a insolvente declarou vender a CC, que, por sua vez, declarou comprar àquela, pelo montante de €181.000,00, o prédio identificado no artigo 16º da petição inicial sob o n.º 2, comprador esse que, posteriormente, em 11 de Setembro de 2020, por contrato formalizado por documento particular autenticado por DD, advogado, portador da CP ...64..., com domicílio profissional em Largo ..., ..., declarou vendê-lo à ré EMP01..., Lda., pelo montante de €185.000,00;
- Se ordene o cancelamento dos registos efectuados com base nos aludidos actos e a apreensão dos prédios em causa para a massa insolvente de AA.
A ré “EMP01..., Lda”, contestou, pugnando pela improcedência da ação.
Correspondendo ao convite que lhe foi dirigido pelo tribunal, a autora suscitou a intervenção principal, como associado da ré, de CC.
Admitido o incidente e citado o chamado, este contestou, deduzindo, além do mais, a excepção de ilegitimidade da autora, bem como a caducidade do direito à resolução dos negócios.
Foi proferido despacho saneador, no qual as excepções de ilegitimidade e caducidade foram decididas nos seguintes termos:
Legitimidade da Autora:
Conforme, a título exemplificativo, diz o acórdão de Coimbra de 16-06-2015, em que é relatora Catarina Gonçalves, a massa insolvente através da Administradora de Insolvência tem legitimidade ao abrigo do disposto no artigo 286º do Código Civil para pedir em juízo a declaração de nulidade por simulação do contrato de compra e venda entre a insolvente e a ré.
Assim, julga-se improcedente a exceção deduzida.
Da caducidade do direito da ação:
Entende-se que a presente ação não foi intentada ao abrigo das normas do CIRE, nomeadamente do artigo 120º ou 121º, pelo que os prazos ali previstos para a resolução do negócio não têm aplicação no âmbito desta ação.
Por outro lado, aplicam-se os artigos 240º e 286º ambos do Código Civil, pelo que improcede a caducidade deduzida.

Inconformado com a decisão, o interveniente principal interpõe o presente recuso de apelação, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:
1. A Senhora Administradora Judicial solicitou à Assembleia de Credores mandato para resolver os contratos de compra e venda dos autos, que não lhe foi concedido.
2. Ao intentar a presente ação está a Senhora Administradora a agir para além dos interesses da Massa e dos credores, contra os poderes que lhe foram concedidos.
3. O CIRE, no seu artigo 80º, delimita os poderes do Administrador, limitando-o a apenas poder implementar atos de gestão determinados pela assembleia de credores e sendo fiscalizado pela comissão de credores.
4. É manifesta a falta de poderes da Senhora Administradora da Insolvência para intentar a presente ação, o que acarreta a sua ilegitimidade.
5. Da leitura da petição inicial resulta que apenas formalmente se apela à simulação, já que resulta claro, da matéria de facto alegada e dos pedidos formulados, que a A. pugna pela resolução em beneficio da massa insolvente dos contratos de compra e venda descritos nos autos.
6. O nosso legislador - artigos 120° a 126° do CIRE- optou claramente por consagrar um regime específico de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente: o instituto da resolução de negócios em benefício da massa insolvente.
7. A resolução em causa, como dispõe o artº 123, nº 1 do CIRE pode ser efetuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de receção (admitindo-se que o pedido de resolução possa ser concretizado por meios judiciais) nos seis meses seguintes ao conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.
8. A Srª. Administradora da Insolvência, no seu relatório elaborado nos termos do artº 155º do CIRE, a 19 de julho de 2022 já mencionava os negócios aqui em causa.
9. Nesse relatório juntou certidões prediais datadas de 06/07/2022.
10. Tendo a presente ação dado entrada em juízo a 23 de maio de 2023, é manifesto ter caducado o direito a resolver estes negócios.
11. A caducidade é uma exceção perentória, que implica a absolvição do pedido (artigo 576º nº 3 do C. P. Civil.)
12. O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
13. A factualidade alegada na petição inicial e os pedidos nela formulados não podem dissociar-se do regime específico consagrado na lei para a conservação da garantia patrimonial da massa insolvente, ou seja, o instituto da resolução de negócios em benefício da massa insolvente.
14. A pretensão da autora está, in casu, necessariamente sujeita àquele enquadramento legal e ao seu regime específico. Ex adverso, estaria descoberto o procedimento adequado nomeadamente para obstaculizar os efeitos do decurso do prazo de caducidade.
15. Não faria sentido estabelecer-se um prazo de caducidade tão limitado no artigo 125º, do CIRE, se o administrador tivesse a via alternativa de reação através de ação de simulação.
16. A Senhora Administradora não resolveu os negócios por negligência ou porque se conformou com o facto de não haver autorização da assembleia de credores, tendo deixado decorrer o prazo de caducidade e agora pretende contornar as consequências, apelando a um mecanismo que pode ser invocado a todo o tempo.
17. O legislador quis restringir os meios de que a Massa pudesse lançar mão com a contrapartida de lhe dar um instrumento fortíssimo para acautelar os credores no âmbito do que houvesse para acautelar: a resolução em benefício da Massa.
18. Esta resolução goza ainda por cima de várias presunções legais previstas no CIRE.
19. A urgência na resolução das questões insolvenciais consagrada no artº 9º do CIRE é pedra angular de toda a política legislativa insolvencial e não é compaginável com o regime da nulidade, invocável a todo o tempo.
20. Nos termos do artigo 120º do CIRE, só são impugnáveis os negócios praticados dentro de dois anos anteriores à data do inicio da insolvência.
21. Os negócios que por esta via se tentam impugnar foram praticados em ../../2016 e ../../2016, respetivamente, ou seja, fora do período temporal de dois anos anteriores à data do início da insolvência, que ocorreu a 27/05/2022.
22. Este prazo de dois anos é um prazo prescricional, tal como definido no artigo 298º do C. Civil.
23. Ao decidir que a A. tem legitimidade para intentar a presente ação, o recorrido despacho saneador violou o disposto no artigo 80º do CIRE, que delimita os poderes do Administrador da Insolvência, condicionando-o à prevalência das decisões das Assembleias de Credores.
24. Ao decidir que não caducou o direito de resolução a favor da massa insolvente, porque a ação foi intentada ao abrigo das normas gerais do Código Civil, quanto à simulação, o despacho saneador violou o princípio jurídico que dispõe que a lei especial revoga a lei geral.
25. Violou ainda essa mesma lei especial, o CIRE, que no seu artigo 123º estabelece um prazo de caducidade de seis meses para a instauração da ação, contado a partir do conhecimento do ato impugnável.
26. Ao não decretar a prescrição do direito, desconsiderou o douto saneador o disposto no artigo 120º do CIRE.
A autora apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
No caso vertente, as questões a decidir que relevam das conclusões recursórias consistem em aferir da procedência das excepções de ilegitimidade da autora e de caducidade do direito de acção.
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III. FUNDAMENTOS:

Os factos
As incidências fáctico-processuais com relevo para a apreciação do recurso são as que constam do relatório e ainda a seguinte, resultante da consulta do processo e que se adita:
- Por mail de 19 de Julho de 2022, a Senhora Administradora da Insolvência solicitou aos credores, assim como à devedora, que se pronunciassem sobre a eventual resolução dos negócios impugnados em benefício da massa insolvente.
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O direito

São duas as questões suscitadas pelo recorrente.
A primeira prende-se com a invocada ilegitimidade da Senhora Administradora da Insolvência para instaurar a acção, por não lhe ter sido concedida autorização para o efeito por parte dos credores.
Todavia, não lhe assiste razão.
Desde logo, porque, não estando em causa a prática de um acto de especial relevo, dependente de prévio consentimento da comissão de credores ou, se esta não existir, da assembleia de credores, nos termos do artigo 161º do Código da Insolvência ou da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), o administrador da insolvência goza de ampla autonomia na defesa dos interesses dos credores, no quadro dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 55º do mesmo diploma legal.
Como referem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[1], o novo regime legal reforçou “(…) a competência do administrador, eximindo-o à necessidade permanente de obter a aquiescência de outros órgãos para a concretização dos actos de administração e, sobretudo, de liquidação da massa insolvente, por contrapartida da expressa responsabilização pessoal perante os credores”.
Depois, porque, definindo, nas palavras dos mesmos Autores[2], o “verdadeiro quadro de competência” do administrador, enquanto órgão da insolvência, “insuficientemente desenhado” no citado artigo 55º, o artigo 82º do CIRE, no seu n.º 3, alínea b), estabelece que “Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir (…) As ações destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência”.
Finalmente, porque, contrariamente ao que o recorrente sustenta, a Senhora Administradora da Insolvência solicitou aos credores, assim como à devedora, que se pronunciassem sobre a eventual “resolução” dos ajuizados negócios a favor da massa insolvente. E, se é certo que os credores não se pronunciaram, também o é que nenhum deles se opôs à propositura da acção, sendo consabido que o silêncio só assume valor declarativo quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção, nos termos do artigo 218º do Código Civil, o que não acontece no caso vertente.
Importa ainda salientar que a eventual procedência da acção implicaria um incremento patrimonial da massa insolvente, razão pela qual não estamos perante qualquer actuação para além dos interesses da massa.
Improcede, por conseguinte, este fundamento do recurso.
Sustenta ainda o recorrente que o direito de resolução em benefício da massa insolvente caducou, porquanto a presente acção foi intentada volvidos mais de seis meses sobre a data em que a Senhora Administradora da Insolvência teve conhecimento dos negócios impugnados.
E, efectivamente, sob a epígrafe “Forma de resolução e prescrição do direito” [3], estabelece o artigo 123º do CIRE, no seu n.º 1, que “A resolução pode ser efectuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de recepção nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência”.
Sucede, porém, que a presente acção, tal como foi configurada na petição inicial, não visa a resolução em benefício da massa insolvente[4], mas antes a declaração de nulidade dos actos a que se reporta com base em simulação absoluta.
Ora, de acordo com a posição que saiu vencedora, nada impede que, apesar do disposto no artigo 120º e seguintes do CIRE, onde se prevê um regime simplificado e expedito de recuperação das atribuições patrimoniais correspondentes a actos praticados pelo devedor no período suspeito anterior à declaração de insolvência, o administrador da insolvência intente uma acção de declaração de nulidade de negócios celebrados pelo insolvente.
Pressupondo, tal como a impugnação pauliana, a validade do negócio impugnado[5], a resolução em benefício da massa insolvente, mesmo nos casos de resolução incondicional contemplados no artigo 121º do CIRE, é, evidentemente, menos vantajosa do que uma acção em que se peça a declaração de nulidade desse negócio por simulação absoluta.
Com efeito, esta, a proceder, implica a restituição do bem transmitido sem qualquer contrapartida a cargo da massa insolvente, enquanto que os efeitos daquela são muito mais limitados, implicando a restituição do objecto prestado pelo terceiro, se puder ser identificado e separado dos que pertencem à parte restante da massa, ou a obrigação de restituir o valor correspondente, nos termos previstos nos números 4 e 5 do artigo 126º do CIRE.
Acresce que, não sendo proibida pelo CIRE, a acção concretamente intentada pela Senhora Administradora da Insolvência, definida pelo pedido e pela causa de pedir, é a adequada a fazer reconhecer em juízo o direito à declaração de nulidade dos negócios celebrados pela insolvente, pelo que é de admitir ao abrigo do artigo 2º, n.º 2 do Código de Processo Civil, segundo o qual “A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo (…)”.
Importa ainda de salientar que o administrador da insolvência é interessado para efeitos do artigo 286º do Código Civil, pelo que tem legitimidade para invocar a nulidade e pode fazê-lo a todo o tempo, sem sujeição aos prazos apertados previstos no artigo 123º do CIRE.
É esse o entendimento maioritário da jurisprudência, sufragado, entre outros, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/11/2023 (proc. n.º 174/20.0T8STS-F.P1.S1), relatado por António Barateiro Martins, e no acórdão desta Relação de 17/10/2019 (proc. n.º 2124/17.6T8VCT.G1), relatado por Ana Cristina Duarte, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Como, impressivamente, se afirmou no primeiro “(…) não resulta de quaisquer disposições introduzidas pelo CIRE que o AI não possa invocar e pedir que negócios nulos praticados pelo devedor/insolvente sejam assim declarados com todas as consequências legais.
O CIRE dá, muito claramente, prevalência à resolução declarada pelo AI, mas tal não significa, pese embora tal prevalência, que um negócio do insolvente infetado com vícios geradores de nulidade não possa ser atacado pelo AI.
Um negócio nulo – nulidade que, todos o sabemos, é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e que pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (cfr. 286.º do C. Civil) – não deixa de o ser por um dos contraentes ter sido declarado insolvente.
Sendo o AI a pessoa incumbida da gestão e liquidação da Massa Insolvente no âmbito do processo de insolvência, cabe-lhe o dever de apreender e fazer ingressar na Massa todos os bens que dela possam/devam fazer parte, pelo que, sabendo da existência de negócios nulos praticados pelo devedor/insolvente, é um “interessado”, para efeitos do art. 286.º do C. Civil, que pode invocar/pedir tal nulidade (tendo em vista fazer ingressar os objetos mediatos de tais negócios jurídicos na Massa Insolvente)”.
Por sua vez, pode ler-se no segundo que “(…) o administrador tem exclusiva legitimidade, em nome da massa, para propor e fazer seguir ações destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente – artigo 82.º, n.º 3, alínea b) do CIRE.
Aliás, a nulidade, além de poder ser declarada oficiosamente pelo tribunal, pode ser invocada por qualquer interessado. É isso que se dispõe no art. 286º do CC e interessado para esse efeito será – como referem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., revista e actualizada, pág. 261. - o “…o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica como prática, seja afectada pelo negócio”.
O artigo 605º do Código Civil, ao dispor que “os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, quer estes sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração da nulidade, não sendo necessário que o acto produza ou agrave a insolvência do devedor”, veio apenas tornar expresso – esclarecendo algumas dúvidas que até então se suscitavam e de que nos dão conta Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, págs.589 e 590 - que os credores são titulares de um interesse relevante para efeitos de invocação da nulidade de actos praticados pelo devedor e que tal interesse não depende da anterioridade do crédito relativamente ao acto cuja nulidade se pretende invocar e não depende da circunstância de este acto ter produzido ou agravado a situação de insolvência do devedor.
 Mas, se é verdade que os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, nos termos da citada disposição legal, já não é verdade que tal faculdade lhes esteja reservada em exclusivo, já que, de acordo com o disposto no art. 286º do citado diploma, tal faculdade pertence a qualquer pessoa que demonstre ter interesse na declaração de nulidade.
Seguindo, aqui, de perto, o Acórdão da Relação de Coimbra de 16/06/2015, processo n.º 529/10.2TBRMR-S.C1 (Catarina Gonçalves), in www.dgsi.pt, podemos dizer que “a massa insolvente e, como tal, o administrador de insolvência, no âmbito das funções que lhe estão atribuídas, tem interesse na declaração de nulidade de um contrato de compra e venda celebrado pelo devedor insolvente (como é o caso do acto em causa nos autos), providenciando, dessa forma, pela restituição à massa insolvente dos bens que nela se deveriam encontrar por ser nulo o acto em que assentou a transferência da respectiva propriedade.
Importa notar, aliás, que a nulidade desse contrato – por alegada simulação – poderia ser invocada pelos próprios simuladores entre si, como determina o art. 242º, nº 1, do CC, e, portanto, ela poderia ser invocada, contra a aqui Ré, pela devedora insolvente.
Ora, assumindo o administrador da insolvência a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (art. 81º, nº 4, do CIRE) e porque a declaração de nulidade de um negócio de compra e venda celebrado pelo insolvente tem evidente interesse para a insolvência – possibilitando a recuperação de bens que pertencem à massa insolvente – parece que, também por essa via, estaria assegurada a legitimidade do administrador da insolvência na invocação da nulidade desse negócio.
E nada encontramos no CIRE que seja susceptível de ser interpretado no sentido de estar vedado ao administrador da insolvência a propositura de acção com vista à declaração de tal nulidade e no sentido de lhe retirar a legitimidade que, por efeito da aplicação da regra geral consagrada no art. 286º do CC, lhe deverá ser reconhecida”.
Assim, estando a invocação da nulidade de actos praticados pelo devedor na disponibilidade de qualquer pessoa que demonstre ter interesse na respectiva declaração (cfr. art. 286º do CC), “a circunstância de o CIRE não o prever expressamente não tem idoneidade para concluir que o administrador da insolvência não tem legitimidade para invocar a nulidade dos actos, porquanto esta legitimidade encontra apoio no Código Civil por se dever considerar – como consideramos – que a massa insolvente, através do administrador da insolvência, é interessada para esse efeito”.
Improcede, pois, a apelação.
Resta acrescentar que o recorrente, como parte vencida, suportará as custas do recurso, nos termos do artigo 527º do CPC.
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IV – DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, por maioria, em julgar improcedente o recurso e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.
Guimarães, 24 de Abril de 2025

João Peres Coelho
Relator por vencimento
Gonçalo Oliveira Magalhães
2º Adjunto
Fernando Manuel Barroso Cabanelas
Relator vencido

Voto de vencido:

Teria revogado a sentença.
Abreviando as razões que oportunamente expus no projeto que não obteve vencimento:
No seu relatório de 19 de julho de 2022 a senhora administradora judicial mencionava já os negócios que pretende ver declarados nulos.
Por força do artigo 549º, nº 1, do CPC, aplicável ex vi artº 17º do CIRE, “Os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum.”
Prevendo o CIRE um procedimento especial, a resolução em benefício da massa insolvente, nos seus artigos 120º a 126º, é este o procedimento a utilizar quando esteja em causa a recuperação de bens que saíram do património do devedor.
Permitir uma “legal action shopping”, admitindo-se a opção alternativa por uma ação de resolução em benefício da massa ou por uma ação comum, traduzir-se-ia num esvaziamento do efeito útil da primeira, designadamente por força dos pressupostos da mesma. Bastaria, para tanto, inverificados estes, designadamente por força do decurso do prazo de prescrição (ou caducidade, na interpretação corretiva de alguma doutrina e jurisprudência) do direito, previsto no artº 123º do CIRE, lançar mão da ação comum. E, arguida que fosse a nulidade do negócio, passível de o ser a todo o tempo, nos termos do artº 286º do Código Civil, estaríamos colocados perante uma fragilidade funâmbula dos negócios, incompatível com o caráter de celeridade e o fim do processo de insolvência, designadamente podendo tornar este tendencialmente perpétuo, numa espiral de litigância sem fim à vista.
Em consequência, teria considerado procedente o recurso.



[1] Em “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, páginas 532 e 533.
[2] Obra citada, página 345.
[3] Anotando-se que essa epígrafe, no segmento em que qualifica como prescrição do direito a situação de ultrapassagem do prazo em causa, tem merecido a reprovação generalizada da doutrina, que reconduz a situação a um caso de caducidade do direito potestativo à resolução – nesse sentido Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, em obra citada, página 438, e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, em “Direito da Insolvência”, 6ª edição, páginas 207 e 208.
[4] Sendo de salientar que, podendo ser feita por carta registada com aviso de recepção, a resolução pode igualmente ser concretizada, como constitui entendimento largamente maioritário, por via de acção intentada pelo administrador da insolvência.
[5] Prevendo o CIRE, no n.º 2 do artigo 127º, como se compatibiliza a resolução operada pelo administrador da insolvência com as acções de impugnação pauliana pendentes à data da declaração de insolvência ou propostas entre essa data e a resolução.