CRIME DE FALSAS DECLARAÇÕES
IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO ALARGADA DA MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE DA SENTENÇA
FALTA DE EXAME CRÍTICO DA PROVA
MEIO PROVA PROIBIDO
DECLARAÇÕES PRESTADAS PELA ARGUIDA
COMO TESTEMUNHA
NA FASE DE INQUÉRITO
Sumário

1 - O Tribunal a quo estava obrigado a discretear acerca da validade e valor das declarações prestadas pela arguida, no decurso do processo, quando o levou a preceito na qualidade de testemunha, no confronto com as que prestou em sede de audiência de julgamento, na qualidade de arguida.
2 - O que omitiu, pois imitou-se a retirar valor às declarações da arguida, prestadas em sede de julgamento, face às declarações testemunhais e a aludir às declarações que havia prestado em sede de inquérito, na qualidade de testemunha, apenas adiantando que estas não valem como confissão.
3 - Configura valoração de prova proibida, a valoração em julgamento de declarações do arguido fora do quadro da previsão dos artºs 355º, 356º e 357º do CPP.
4 - As provas contidas nos actos processuais cuja leitura, visualização ou audição são permitidos à luz dos artigos 356º e 357º do Código do Processo Penal não incluem as declarações prestadas pelo arguido, numa outra qualidade, nomeadamente de testemunha, no âmbito do processo.
5 - Assim, nunca as declarações que a arguida prestou no inquérito, na qualidade de testemunha, poderiam ser atendidas pelo Julgador recorrido para a formação da sua convicção, por convalidarem um meio proibido de prova.

6 - A omissão de explicitação dos fundamentos, tanto quanto a análise crítica dos meios probatórios assinalados mancha a sentença recorrida com o vício da nulidade prescrito no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código do Processo Penal por omissão do cumprimento da exigência imposta no nº 2 do artigo 374º do mesmo diploma legal.

Texto Integral

Acordam os Juízes, em Conferência, na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

. RELATÓRIO

Nos presentes autos de Processo Comum Singular que seguem termos sob o nº 36/22.0GTGRD no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda/Juízo Local Criminal da Guarda/Juiz 2, o Ministério Publico requereu o julgamento da arguida

AA, economista, nascida a ../../1978, filha de BB e de CC, residente em ..., ..., ..., ...,

Imputando-lhe a prática, em autoria material, com dolo directo e na forma consumada, de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348º-A nºs 1 e 2 do Código Penal

A arguida apresentou contestação escrita e juntou requerimento probatório.

           

            Findo o julgamento veio a ser proferida sentença, na qual foi decidido:

            . Condenar a arguida AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 348º-A, nºs 1 e 2 do Código Penal, na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de €8,00 (oito euros), o que perfaz a quantia global de € 1.920,00 (mil e novecentos e vinte euros);

            . Condenar a arguida AA a pagar as custas do processo, tendo sido fixada a taxa de justiça em 2 (duas) UC, nos termos dos artigos 344º, nº 2, alínea c), 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 5 do Regulamento das Custas Processuais por referência à Tabela III do mesmo diploma).

           

Inconformada com tal decisão condenatória, a arguida AA interpôs recurso, que se apresenta motivado e com as seguintes conclusões:

1. A arguida não pode concordar com a douta sentença recorrida que a condena pela prática de um crime de falsas declarações, nos termos do disposto no n.º 1 e 2 do artigo 348-A do CP.

2. Não foram ouvidas testemunhas que confirmassem que foi a arguida quem preencheu e entregou na PSP ... o formulário com a indicação do condutor, motivo pelo qual a arguida apenas identifica os factos que visa ver alterados, mas não identifica os concretos trechos dos depoimentos que deveriam levar a essa alteração.

3. Não existe prova documental nos presentes autos que demonstre quem procedeu ao preenchimento do formulário com a indicação do condutor, nem de quem o entregou na PSP ....

4. Não pode a arguida concordar com a douta sentença proferida quanto aos pontos 4, 5 “facto que era do conhecimento da arguida.”, 6 e 7 da matéria de facto dada como provada, que entende que deveriam ser dados como não provados.

5. Quanto ao ponto 4 da matéria de facto dar como provada é totalmente falso que a arguida tenha remetido, pelo correio, para o Departamento de Trânsito da GNR da Guarda, a identificação do cidadão DD.

6. Conforme resulta do auto de notícia junto aos presentes autos, na sua página 2: “Em 08-02-2022 deu entrada (n.º ...48) neste Departamento de Trânsito por correio, ofício da Polícia de Segurança Pública de ..., com um formulário de identificação do condutor apenso;”.

7. Junto aos presentes autos encontra-se o ofício remetido pela PSP ... para o Destacamento de Trânsito da Guarda, em que remetem o formulário de identificação de condutor referente ao NP ...76/2021, que como refere, foi entregue naquele comando policial de ... a 27/01/2022.

8. Não se identifica, quer por documentos quer por prova testemunhal, quem entregou naquele comando policial de ... o formulário de identificação do condutor.

9. As declarações prestadas pela arguida na qualidade de testemunha no dia 06/07/2022 são nulas, nulidade que se invoca para os devidos e legais efeitos, nos termos do disposto no artigo 120º, nº 2, al. d), do CPP.

10. A arguida, no dia 06/07/2022 foi ouvida na qualidade de testemunha, e no mesmo dia e perante a mesma autoridade policial, mas em ato distinto, foi constituída arguida nos presentes autos- fls. 27 e ss, e fls. 49 e ss.

11. Os atos praticados (inquirição na qualidade de testemunha) são nulos, pois a arguida apenas podia ser ouvida nos presentes autos na qualidade de arguida, por ter sido constituída arguida naquele dia, e porque já existiam suspeitas fundadas de ter sido a autora da prática do crime de falsas declarações, conforme o disposto no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a 13-04-2023, processo n.º 182/09.6TAAGH.L1-9.

12. O Auto de declarações prestadas pela arguida na qualidade de testemunha, junta aos autos a fls. 27, é uma prova ilegal/proibida por lei, pelo que, não deve ser valorada.

13. Face ao exposto, deve ser dado como não provado o ponto 4. da matéria de facto dada como provada.

14. Relativamente ao ponto 5., última parte “facto que era do conhecimento da arguida.”, também não resultou como provado por falta de prova documental e testemunhal.

15. Não existe prova documental junta aos presentes autos que demonstrem que a arguida conhecia o cidadão DD, nem tampouco prova testemunhal.

16. Assim como não é mencionado na sentença proferida que prova foi produzida, ou em que prova fundou a sua convicção o tribunal, para ser dado como provado que era do conhecimento da arguida que aquele cidadão DD não possuía registos de entrada e saída no território português desde 01/01/2019 a 23/02/2022.

17. Consequentemente, por falta de prova documental e testemunhal, devem ser dados como não provados os pontos 6. e 7. da matéria de facto dada como provado.

18. Não resultou provado que a arguida remetesse por correio para o Destacamento de Trânsito da GNR da Guarda o formulário com a identificação do cidadão DD, como sendo o condutor do veículo de matrícula ..-JE-..,

19. Não resultou provado que a arguida declarou falsamente a autoridade pública, identidade pertencente a outra pessoa, pretendendo dessa forma não ser correctamente identificado o verdadeiro autor da prática da contraordenação por excesso de velocidade praticada por veículo pertença da entidade comercial sob a firma “AA, Unipessoal, Ld.ª”, de que é legal representante.

20. Nem tampouco resultou provado que a arguida tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida criminalmente, porque não ficou demonstrado e provado que a arguida tivesse levado a cabo uma conduta proibida e punida por lei.

21. A sentença proferida padece de nulidade, nos termos do disposto no artigo 379º do CPP, porque não fundamenta a decisão proferida com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, violando o disposto no artigo 374º, n.º 2 do CPP.

22. A sentença não refere que prova válida foi produzida para dar como provado que foi a arguida que remeteu para o Destacamento de Trânsito da Guarda o formulário com a identificação do cidadão DD.

23. A sentença proferida padece de deficiências na construção e estruturação da decisão, e dos seus fundamentos, e como tal, padece de vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, pois da decisão proferida não cabe, e não se ajusta aos factos dados como provados.

24. Ocorre assim um vício de lógica jurídica ao nível da matéria de facto que torna impossível uma decisão logicamente correta justa e conforme à lei, pois a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa.

25. A sentença proferida padece de prova para sustentar a matéria de facto e padece de erro notório na apreciação da prova, e face ao exposto, devem ser dados como não provados os pontos 4, 5 última parte, 6 e 7 da matéria de facto dada como provada.

26. A arguida vem acusada pela prática do crime de falsas declarações nos termos do artigo 348-A, n.º 1 e 2 do Código Penal.

27. O formulário para identificação de condutor não se trata de um documento autêntico, nos termos do artigo 363º e 369º do Código Civil.

28. A sentença proferida não justifica porque entende que a arguida deve ser condenada nos termos do n.º 2 do artigo 348-A do Código Penal, nem justifica porque entende que o formulário com a identificação do condutor se trata de um documento autêntico.

29. A admitir-se que a arguida cometeu o crime de falsas declarações, o que apenas se equaciona por mera questão de patrocínio, apenas pode ser acusada pela prática do crime de falsas declarações nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 348ºA do Código Penal.

30. O crime de falsas declarações, nos termos do disposto no artigo 348-A, n.º 1 tem uma moldura penal de pena de prisão até um ano ou pena de multa.

31. O formulário de identificação de condutor foi entregue na PSP ... no dia 27/01/2022, pelo que, o crime pelo qual a arguida vem acusada encontra-se prescrito, nos termos do disposto no artigo 118, n.º 1, al. d) do Código Penal.

32. Face ao exposto, deve a arguida ser absolvida da prática do crime de falsas declarações pelo qual vem acusada.

33. Caso assim não se entenda, o que se equaciona por uma questão de patrocínio, entende-se que a pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 8 (oito) euros é injustificada e exagerada.

34. Em primeiro lugar porque a ser condenada pelo crime de falsas declarações, não deve a arguida ser acusada nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 348-A do Código Penal, pois como se referiu, não se trata de um documento autêntico o formulário de identificação de condutor.

35. Em segundo lugar, porque a medida da pena não foi encontrada de forma ponderada e em face da prova produzida em audiência.

36. A medida da pena é excessiva, desproporcional e desadequada às concretas circunstâncias.

37. A arguida não tem registo criminal.

38. A arguida encontra-se inserida socialmente, trabalha e vive com o seu marido e os seus filhos que contam 9 e 14 anos de idade, pelo que, tem um enquadramento familiar é estável ao nível da relação marital e materno-filial.

39. Aufere a arguida um rendimento mensal de cerca de mil euros, e o seu marido cerca de mil e duzentos euros, mas para além dos encargos e despesas com a gestão do dia a dia, tem um empréstimo bancário para a aquisição da casa de morada de família no valor mensal de 600 euros.

40. São diminutas as necessidades de prevenção especial - dado que a arguida se encontra bem integrada socialmente e financeira e não tem antecedentes criminais.

41. Tudo ponderado, afigura-se-nos necessária, adequada e proporcional que a pena aplicada de 240 dias de multa seja reduzida para 30 dias de multa.

42. E ainda, que seja reduzida a taxa diária para a quantia de 6€, ao invés da quantia de €8,00, atenta a situação económica e financeira da arguida, e dos seus encargos pessoais.

Nestes termos deve ser concedido provimento ao recurso interposto e, em consequência, deve a arguida ser absolvida da prática do crime de falsas declarações pelo qual vem acusada, com as demais consequências legais, revogando-se a douta decisão recorrida.

         Notificado o MINISTÉRIO PÚBLICO, nos termos do disposto no artigo 411º do Código do Processo, veio o mesmo pronunciar-se, no uso da faculdade a que alude o artigo 413º do mesmo diploma legal, no sentido da improcedência do recurso interposto apresentando as seguintes conclusões:

. Com relevância para a decisão em causa, afere-se que o Tribunal a quo formou a sua convicção na conjugação dos factos trazidos a juízo pela acusação, alicerçada, designadamente, no teor dos depoimentos e declarações prestadas, na prova documental carreada nos autos, assim como, nas próprias regras da experiência.

. A prova produzida foi devidamente ponderada, apreciada e corretamente valorada para efeitos de motivação dos factos dados como provados, porquanto é manifesto que o Tribunal a quo tomou em consideração todos os meios de prova produzidos, apreciando-os sensatamente, sopesando e valorando os mesmos para efeitos de fixação da matéria de facto.

. Critérios que foram assertivamente ponderados e fundamentados na sentença recorrida, o qual se afigura, assim, perfeitamente ajustada, devendo, em consequência, o recurso interposto ser declarado totalmente improcedente, por infundado, mantendo-se aquela integralmente.

            Termos em que deverá ser mantido a douta sentença recorrida.

         O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Coimbra emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso apresentado.

         Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código do Processo Penal.

         Procedeu-se a exame preliminar.

         Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir do recurso apresentado.

         Na sentença recorrida, com relevância para a decisão da matéria recursal, foi feito constar o seguinte:

II – Fundamentação de Facto

2.1. Factos provados:

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão:

1. No dia 14 de Abril de 2021, pelas 11, 19 horas, na A25, km 159, 100, freguesia ..., área deste Tribunal, o veículo de matrícula ..-JE-.., de marca Volkswagen, modelo 1KM, pertença da entidade comercial sob a firma “AA, Unipessoal, Ld.ª”, com sede na Rua ..., ..., ..., ..., ..., de que é legal representante a arguida, circulava à velocidade de 144 km/h, correspondente à velocidade registada de 152 km/h, sendo que o limite máximo imposto por sinalização para o local é de 100 km/hora.

2. Tal velocidade foi detectada pelo radar Multiradar C, nº 504-330/61165, não tendo tal veículo automóvel sido então interceptado por patrulha da GNR.

3. Em face do veículo em causa se encontrar registado em nome da entidade comercial sob a firma acima indicada, foi esta notificada, em 27 de Dezembro de 2021, para proceder à identificação do condutor, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 171º nº 5 do C. Estrada.

4. Sucede, assim, que a arguida, enquanto legal representante da aludida entidade comercial, no dia 27 de Janeiro de 2022 e em cumprimento de tal notificação, remeteu, pelo correio, para o Destacamento de Trânsito da GNR da Guarda, a identificação do cidadão DD, de nacionalidade Argentina, residente na Avenida ..., em ..., Argentina, titular da carta de condução nº ...69... e do documento de identificação nº ...69, como sendo o condutor de tal veículo, na data prática da contra ordenação em causa, tendo sido levantado auto de contra ordenação em nome do cidadão identificado pela arguida. (vide fls. 9)

5. Porém, consultado o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, informou esta entidade que o cidadão argentino em causa, não possuía registos de entrada e saída no nosso país, na data dos factos e desde 1-1-2019 a 23-3-2022, facto que era do conhecimento da arguida.

6. Agiu a arguida de forma deliberada, livre e conscientemente, querendo e sabendo que, da forma sobredita, declarava falsamente a autoridade pública, identidade pertencente a outra pessoa, pretendendo dessa forma não ser correctamente identificado o verdadeiro autor da prática da contraordenação por excesso de velocidade praticada por veículo pertença da entidade comercial sob a firma “AA, Unipessoal, Ld.ª”, de que é legal representante, o que logrou alcançar.

7. Tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.

Mais se provou que:

8. A arguida é casada, disse ganhar 1.000,00 euros mensais, o seu marido ganhar 1.200,00€, pagam um empréstimo bancário para aquisição da casa de 600,00€ e tem dois filhos, com idade de 9 e 14 anos.

9. Do CRC da arguida nada consta.

                                                                                                    *

2.2. Factos não provados:

(da contestação).

Que no dia 17/4/2021, o veículo de matrícula ..-JE-.. era conduzido por EE.

Que a arguida, quando foi notificada para proceder à identificação do condutor, entrou em contacto com EE e que este lhe solicitou o formulário.

Que a arguida entregou a EE o formulário suprarreferido para que este o preenchesse com os seus dados.

                                                                                                    *

2.3. Motivação da decisão da matéria de facto:

Funda-se a convicção do Tribunal, quer positiva, quer negativa, no conjunto da prova que se produziu em audiência de julgamento, e no teor da prova documental junta aos autos, analisada de forma crítica e com o auxílio de juízos de experiência comum, nos termos do art. 127.º e ainda nos termos do art. 163.º, ambos do Código de Processo Penal.

Pelo que foi tomado em consideração, quanto à prova documental, o teor:

 Do auto de notícia, junto a folhas 4 a 6.

 Do formulário, junto a folhas 9 e correspondência, junta afolhas 11 a 13.

 Prova fotográfica, junta a folhas 14.

 Do teor das declarações, prestadas pela arguida, ainda na qualidade de testemunha, a folhas 27, onde nessa qualidade confessa os factos.

 Do CRC da arguida, junto a folhas 49.

 Dos autos de contraordenação, junto a folhas 99 a 151, bom como da informação/análise junta a folhas 155 a 164, de onde se extrai, que em nome de DD existem 41 autos de contraordenação registados e que o mesmo nunca esteve em Portugal.

 Da certidão, junta a folhas 299 a 300.

Quanto à restante prova analisada em sede de audiência:

Prestando declarações veio a arguida referir que no dia referido na acusação, veio a Viseu, para uma reunião de trabalho, por causa da negociação da venda de uma farmácia, a qual não sabe onde era e que essa reunião foi realizada nas instalações da empresa da testemunha FF.

Depois da reunião foram almoçar e seguiram viagem para a Guarda.

Recordou que era o Sr. EE quem conduzia o seu veículo, o JE, que no banco da frente, no lugar do pendura seguia o Sr. FF e no banco de trás, seguia ela e a testemunha GG (esposa do Sr. EE).

Quando recebeu a notificação para identificar o condutor, da viatura em causa, naquele dia, recordou-se que era o Sr. EE quem a conduziu, foi falar com ele e ele disse-lhe para lhe entregar a notificação da GNR que ela a preencheria e a enviava.

Assinou a mesma, entregou-a ao Sr. EE e depois foi ele quem a enviou.

Ela não a preencheu.

Após todas as testemunhas terem prestado declarações, e depois de ter ouvido as declarações da testemunha GG a referir que cortou relações com a arguida no inicio de Janeiro de 2022, a mesma veio referir que foi no meio do ano.

Foi ainda solicitado à arguida que, em folha branca escrevesse os dizeres constates da notificação, enviada à GNR, a qual foi junta aos autos.

Por fim. Prestou declarações quanto às suas condições socioeconómicas.

Foi ouvida a testemunha FF, a qual em depoimento isento, sério, calmo e com conhecimento direto aos factos que depôs, e por isso credível, veio contar tudo idêntico à anterior testemunha, não sabendo sequer referir em que mês terá acorrido a reunião (logo, não poderemos referir que no dia constantes dos factos era o Sr. EE quem conduzia a referida viatura).

No restante - no que concerne à reunião, ao almoço, à viagem para a Guarda e bem assim quem ia no carro e em que lugares e o terem passado por um radar, teve um depoimento decalcado da arguida.

Quanto ao resto nada sabe, com excepção do que lhe contou a arguida, ou seja, o cerne da questão (quem preencheu o formulário).

Foi ouvida a testemunha EE, ex-amigo da arguida, a qual em depoimento isento, sério, calmo contou a este tribunal que algumas vezes veio com a sua esposa e arguida a várias reuniões, que pode ser possível que também tenha vindo a Viseu no dia constante da acusação, mas que não se lembra, nem se lembra se, no dia em que vieram a Viseu (sem saber que dia foi), podia ser provável que fosse ele quem conduzia, contudo não tem a certeza e não o pode afirmar, com certeza que tenha sido nesse dia.

Algumas vezes era ele quem conduzia, tanto o seu carro, como o carro da arguida quando iam para reuniões foram de ....

Quanto ao resto, negou que alguma vez a arguida lhe tenha dado qualquer notificação da GNR para identificação do condutor.

Contou ainda que as relações entre ele a arguida não são as melhores.

Foi ouvida a testemunha GG, ex-amiga da arguida, a qual em depoimento isento, sério, calmo teve, em tudo, declarações idênticas à anterior testemunha, seu marido, e ainda que este nunca lhe disse nada sobre a notificação da GNR para identificar o condutor, e que a arguida nunca lhe disse nada sobre isso.

Por fim referiu que em inícios de Janeiro de 2022 as relações entre ela e a arguida foram cortadas (ou seja, que se chatearam).

Ora, concatenado as declarações da arguida, as quais, desde já não nos mereceram qualquer tipo de credibilidade, com as das testemunhas inquirida, o tribunal deu os factos suprarreferidos como provados, atendendo a que, quer a testemunha EE, quer a sua esposa, referiram que nunca a arguida lhes disse nada e nem sequer sabem quem seria o condutor do veículo, no dia em causa.

A testemunha FF, também, não consegui identificar, o dia em causa, sabendo só que numa viagem de Viseu à Guarda, foi o Sr. EE quem conduziu o veículo da arguida (o que pode, muito bem, ter acontecido em qualquer dia do ano).

Mais, estranha-se o fato de a aqui arguida, enquanto testemunha, confessou os factos (o que não poderá ser considerado como confissão), mas depois apresenta outra versão e ainda o facto de ter surgido esta versão, onde aponta como autor dos fatos, alguém com o qual se encontra de relações cortadas.

Quanto aos factos não provados, o tribunal assim os deu, atento à falta de prova convincente sobre a sua verificação.

                                                                                                    *

III – Enquadramento jurídico-penal

Atenta a matéria de facto dada como provada, importa, agora, subsumi-la ao nosso ordenamento jurídico-penal.

Vem a arguida acusada da prática de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo artº 348º-A nºs 1 e 2, do CPenal.

Estipula tal normativo legal que:

«1 - Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

2- Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa».

São assim seus elementos típicos objectivos:

a) A declaração ou o atestar falso;

b) Acerca da identidade, estado ou outra qualidade a que a Lei atribua efeitos

jurídicos, próprios ou alheios,

c) Perante autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções.

No n.º 2 desta norma, acrescenta-se um outro elemento típico objectivo que conduz a que a pena de prisão se agrave no caso de tal declaração ou atestar falso:

d)- Se destinar a ser exarada em documentos autênticos.

A Exposição de motivos da PL 75/XII refere-se ao novo crime de falsas declarações, nos seguintes termos:

«Aproveita-se para clarificar o tipo do crime de falsas declarações, que deixa de se confinar às declarações recebidas como meio de prova em processo judiciário, ou equivalente, passando a constituir ilícito criminal igualmente as falsas declarações que sejam prestadas perante autoridade pública ou funcionário público no exercício das suas funções e se destinem a produzir efeitos jurídicos.

Protege-se desta forma a autonomia intencional do Estado e dá-se conteúdo normativo às múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crime».

Esta previsão legal surge no seguimento de diversos acórdãos que vinham declarando a inconstitucionalidade da condenação de um arguido por falsas declarações prestadas, nomeadamente perante notário em sede de escrituras (de justificação ou de habilitação), nos termos do artigo 97º do Código do Notariado, pretendendo esta punição abranger igualmente as falsas declarações prestadas à Autoridade Tributária.

António Latas em artigo publicado na Revista do CEJ 2014-I doutrina:

«Tal como resulta deste último parágrafo da exposição de motivos, o novo tipo penal, sistematicamente integrado entre os crimes contra a autoridade pública, visa a tutela da autonomia intencional do Estado e encontra a sua principal razão de ser na necessidade de pôr termo ao vazio legal criado com a revogação do art. 22º do Dec-lei 33725 de 21.06.1944 que previa o crime genérico de falsas declarações perante autoridade pública, revogação esta que foi inequivocamente operada pelo art. 53.º, al. a) da Lei n.º 33/99, de 18 de Maio que revogou expressamente os artigos 22º a 24º daquele Dec-lei, embora se discutisse na jurisprudência a revogação tácita daquele art. 22º em face da redação originária do art. 402º do C.Penal de 1982.

(…)

É a esta situação que a Exposição de motivos se reporta ao mencionar que com o novo crime de falsas declarações do art. 348º-A vem dar-se conteúdo normativo às múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crime.

Todavia, entre os contributos prestados no período de discussão que antecedeu a aprovação da Lei 19/2013, podem encontrar-se algumas preocupações e reservas suscitadas, essencialmente, por alguma amplitude da ação típica e alguma indeterminação da descrição típica suscitar dúvidas sobre o respetivo âmbito de aplicação.

F. Palma (Parecer citado), pronuncia-se nestes termos:” A nova incriminação tem óbvios problemas de tipicidade pois recorre a conceitos normativos pouco explícitos e pouco acessíveis a uma valoração paralela na esfera dos leigos, para utilizar a linguagem de Figueiredo Dias. Com efeito, a norma é excessivamente ampla quanto à ação e ao seu significado.

Qualquer falsa declaração quanto a uma qualquer qualidade a que a lei atribua quaisquer efeitos jurídicos preenche o tipo. Mas de que qualidades e de que efeitos jurídicos se trata? Que bens jurídicos são tutelados pela incriminação? A mentira ou o exagero sobre o estado de saúde (que, aliás, encerra um elevado grau de subjetividade) é já um crime de falsas declarações? A desculpa falsa de que se está doente ou se teve um problema familiar apresentada a um professor para justificar a falta a um teste é um crime de falsas declarações? [e conclui que] As qualidades deveriam ser explicitadas e os efeitos jurídicos deveriam ser tipificados como consequências que atingem outros direitos, alteram condições de igualdade de oportunidades ou põem em causa bens de valor social.

Tal como está prevista, a norma abrange condutas irrelevantes e torna imprevisível e dependente da atuação da autoridade pública ou do funcionário a concretização do crime».

Também no Parecer da ASJP, apresentado em abril de 2012 sobre versão anterior do que viria a ser a Proposta de lei 75/XII, procurava chamar-se a atenção para o risco de em alguns casos abrangidos pela nova norma penal, a punição se revelar desadequada, desnecessária ou desproporcional, sugerindo-se mesmo a inclusão da advertência da prática de crime de falsas declarações, a exigência de dolo direto, senão mesmo o aditamento de um elemento subjetivo especifico do género do previsto no art. 256.º do Código Penal, para além da consagração da subsidiariedade, por entendermos que, tal como se encontra formulada, a norma poderá abarcar condutas insignificantes ou que não atinjam de forma intolerável o bem jurídico em causa, não justificando uma reação penal.

No quadro parlamentar, o PCP apresentou em 15.11. 2012 Proposta de alteração à PL 75/XII que incidia sobre o que veio a ser o novo art. 348º-A do C.Penal, em que o agente apenas era punido se agisse com intenção de intenção de obter vantagem patrimonial para si ou para terceiro e se tivesse sido advertido das consequências criminais da sua conduta, proposta que foi rejeitada.

Também o art. 23º Dec-lei 33 725 de 21.06.1944 previa um crime de resultado danoso, para as hipóteses em que o agente induzisse “... alguém em erro, atribuindo falsamente a si ou a terceiro nome, estado ou qualidade que por lei produz[isse] efeitos jurídicos, para obter vantagem em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem».

O legislador, porém, não optou por atribuir relevância típica a qualquer dos elementos que restringiriam o âmbito de aplicação do preceito que, assim, apresenta a configuração ampla que lhe deu a Lei 19/2013, cabendo à doutrina e jurisprudência um papel importante na definição precisa dos respetivos elementos típicos, nomeadamente em função das situações que nos diversos domínios da atividade administrativa do Estado possam a convocar a aplicação do novo tipo penal».

Este novo delito integra um crime de perigo abstracto, pois a efectiva lesão do bem jurídico protegido ou a sua concreta colocação em perigo não integram o tipo legal, não obstante o risco que a conduta típica encerra, em regra, para esse mesmo bem jurídico, ou seja, a autonomia intencional do Estado, a integridade das suas funções, constituir a motivação legislativa, como resulta da colocação sistemática do preceito e é assumido na Exposição de motivos da Proposta de lei que deu origem à Lei n.º 19/2013.

De facto, estamos perante um crime de mera actividade, no qual o comportamento punível dá-se logo na efectivação da conduta proibida – a prestação de declaração/atestar falso, não exigindo o tipo a produção de qualquer resultado decorrente dessa conduta.

Trata-se de um crime específico próprio, isto é, o ilícito exige uma especial qualidade do agente – a qualidade de declarante ou pessoa que atesta sobre algum dos elementos referidos no tipo legal.

No que respeita ao elemento objectivo do tipo, qualquer pessoa que emita declaração ou ateste sobre algum dos factos referidos no tipo pode ser seu agente, mas o legislador limita os respectivos destinatários às categorias de intervenientes passivos referidos no art. 348º-A, ou seja, autoridade pública ou funcionário no exercício das suas funções, circunstância esta que gera uma especial força probatória para a declaração.

Para a definição do sentido e alcance dos conceitos de «autoridade pública e funcionário no exercício das suas funções», é determinante a consideração do bem jurídico protegido que, como aludido, corresponde à autonomia intencional do Estado, constituindo o novo artigo 348º-A o tipo genérico que enfim faltava para a punição, v.g., das falsas declarações a entidades estatais no quadro de procedimentos administrativos.

Está em causa, pois, desde logo, a tutela da integridade da função administrativa nas suas diversas manifestações e da capacidade funcional da administração, exercida em conformidade com as exigências de legalidade e objectividade que num Estado de Direito devem presidir às funções públicas.

António Latas no artigo acima identificado explicita a quem a norma se dirige:

«No novo artigo 348º-A pune-se uma conduta dirigida contra a função pública administrativa, com os órgãos e pessoas que a exercem a operar como meio, instrumento ou ambiente onde tem lugar a conduta típica.

Sem prejuízo de análise mais ponderada, parece-me que valerá também nesta sede o conceito de administração pública no seu sentido mais compreensivo, a que se reporta o Prof. Costa Andrade em comentário ao art. 365º “Denúncia caluniosa”, ainda que por razões não totalmente coincidentes dado ser diferente o bem jurídico tutelado (cfr Comentário Conimbricense III citado p p. 522-29 e 546-7).

Como diz o autor, abrange-se tanto a administração estadual, como regional ou local e tanto a administração direta como indireta (através de institutos públicos, as universidades, etc), onde se incluem as associações profissionais de natureza pública, designadamente as ordens (v.g. médicos, advogados ou engenheiros)».

E continua a dar outros exemplos de «autoridade pública ou funcionário no exercício das suas funções» perante quem são proferidas ou atestadas determinadas falsas declarações e que constituem o exclusivo âmbito típico da norma em apreço.

Nesses exemplos não cabem as falsas declarações prestadas perante um juiz, no exercício da sua função jurisdicional.

O autor acima citado conclui muito justamente a este propósito:

«Já no que respeita a declarações prestadas no âmbito de processo judicial parece-me justificar-se a interpretação restritiva do art. 348º-A em atenção a razões de ordem teleológica-sistemática e mesmo aos antecedentes próximos do preceito assumidos na exposição de motivos, ditando a não consideração das autoridades judiciárias entre a autoridade pública a que se refere o preceito, dada a previsão e enquadramento sistemático dos artigos 359º e 360º, como crimes de falsas declarações contra a realização da justiça».

Ora, conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/06/2019, disponível em www.dgsi.pt, “Resulta da norma em causa que o crime será sempre praticado por quem, de forma determinada, livre e consciente, independentemente das circunstâncias em que o faça, designadamente, enquanto arguida, ou não, declarar ou atestar falsamente, estado ou qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios”.

O crime previsto no citado art. 348º-A, do CP, impõe a prova do dolo, em qualquer das suas vertentes (art. 14.º do CP).

Ainda no sumário do citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/06/2019, pode ler-se “Comete o crime de falsas declarações p. e p. pelo art. 348.º-A do CP, e não o crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo art. 360.º do mesmo diploma legal, quem presta declarações falsas à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções, fora de um processo judicial, verificados os restantes elementos do tipo legal”.

Também com pertinência para o caso concreto citamos aqui o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/06/2015, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode ler que “Os arguidas, ao mentirem ao militar da GNR a respeito da identidade da pessoa que vinha a conduzir a viatura e que interveio em acidente de viação, afirmando que era o JR, quando afinal o condutor fora JJ, incorreram na prática do crime de falsas declarações, já que declararam falsamente a uma autoridade pública a identidade do condutor que conduzia a viatura automóvel e visto que a lei atribui efeitos jurídicos a tal declaração”.

Pode também ler-se no citado Acórdão da Relação de Évora de 16/06/2015, e que aqui seguimos bem de perto “Atentando na factualidade que vem descrita no requerimento do MP, temos que os arguidos não prestaram ao militar da GNR que estava a tomar conta da ocorrência declarações inverídicas acerca da identidade da pessoa que afirmaram/confirmaram ser o condutor da viatura interveniente no acidente de viação. Mas afirmaram/confirmaram que se tratava de pessoa diferente daquela que estava a conduzir tal viatura antes do acidente. Ou seja, produziram afirmações falsas acerca de uma qualidade – a de condutor da viatura, à qual a lei atribui efeitos jurídicos, nomeadamente quanto à necessidade de habilitação legal para o exercício da condução, à obrigação de sujeição a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas e eventual responsabilidade criminal pela prática de crimes no exercício da condução – atribuindo-a a um deles, quando sabiam perfeitamente que não era esse, mas sim um outro, o condutor da viatura. Tudo de forma concertada e com o claro propósito de levar aquele militar a elaborar o auto de notícia e a participação de acidente com dados falsos sobre a identidade da pessoa, não da pessoa que ali ficou a constar como sendo o condutor da viatura, mas sim acerca de quem exercia realmente a condução, e evitar, como veio a suceder, que esta viesse a ser submetida a fiscalização legal e a sofrer eventuais consequências advenientes da prática de alguma infracção/crime em que pudesse ter incorrido.”

Também neste mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/05/2020, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler “Para efeitos da previsão do crime de falsas declarações (art. 348.º-A, CP), alguém intitular-se falsamente como condutor de um veículo integra a previsão do referido crime. 2 - Com efeito, a referida condição integra-se no conceito de qualidade do agente, a que a lei atribui efeitos jurídicos”

Nos termos do artigo 255.º, alínea a) do Código Penal, documento é “a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar o facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.”

Trata-se assim de uma noção bastante mais ampla do que a inscrita no âmbito do direito civil e que permite desde logo considerar como documento qualquer meio técnico que integre uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante. Segundo HELENA MONIZ “(…) aquilo que constitui a falsificação de documento é, não a falsificação do documento enquanto objeto que incorpora uma declaração, mas a falsificação da declaração enquanto documento” – in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, página 676.

Na falsidade em documento, integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso, juridicamente relevante, trata-se pois de uma narração de facto falso, sendo que a relevância jurídica desenha-se sempre que o facto inserto no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é que abra ensejo à obtenção de um benefício (neste sentido vide, Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 667 e Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-05-2009, Processo: 457/07.9TASCD.C1 (JusNet 2903/2009), Relator: DR. JORGE DIAS e de 07-02-2007,Nº 1540/05.0TAAVR.C1 (JusNet 300/2007), Relator: DR. ESTEVES MARQUES, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-11-2009, Processo: 1289/06.7TAVCT.G1 (JusNet 7567/2009), Relator: TERESA BALTAZAR, in www.dgsi.pt).

Consequentemente, “a mentira" inserida no documento deve apresentar-se como relevante, sem o que não haverá falsificação, ou seja, é necessário que "a declaração corporizada em escrito...", seja "... idónea para provar facto juridicamente relevante", como resulta do teor dos artigos 255º, al. a) e 256, nº 1 al. e) do C.Penal. (Acórdão Rel Coimbra, de 2 Mar. 2011, Processo 909/09.6TALRA.C1 - Relator: CALVÁRIO ANTUNES.)

No caso que nos ocupa temos assente que no dia 14 de Abril de 2021, pelas 11, 19 horas, na A25, km 159, 100, freguesia ..., área deste Tribunal, o veículo de matrícula ..-JE-.., de marca Volkswagen, modelo 1KM, pertença da entidade comercial sob a firma “AA, Unipessoal, Ldª”, com sede na Rua ..., ..., ..., ..., ..., de que é legal representante a arguida, circulava à velocidade de 144 km/h, correspondente à velocidade registada de 152 km/h, sendo que o limite máximo imposto por sinalização para o local é de 100 km/hora.

Tal velocidade foi detectada pelo radar Multiradar C, nº 504-330/61165, não tendo tal veículo automóvel sido então interceptado por patrulha da GNR.

Em face do veículo em causa se encontrar registado em nome da entidade comercial sob a firma acima indicada, foi esta notificada, em 27 de Dezembro de 2021, para proceder à identificação do condutor, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 171º nº 5 do C. Estrada.

Sucede, assim, que a arguida, enquanto legal representante da aludida entidade comercial, no dia 27 de Janeiro de 2022 e em cumprimento de tal notificação, remeteu, pelo correio, para o Destacamento de Trânsito da GNR da Guarda, a identificação do cidadão DD, de nacionalidade Argentina, residente na Avenida ..., em ..., Argentina, titular da carta de condução nº ...69... e do documento de identificação nº ...69, como sendo o condutor de tal veículo, na data prática da contra ordenação em causa, tendo sido levantado auto de contra ordenação em nome do cidadão identificado pela arguida. (vide fls. 9)

Porém, consultado o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, informou esta entidade que o cidadão argentino em causa, não possuía registos de entrada e saída no nosso país, na data dos factos e desde 1-1-2019 a 23-3-2022, facto que era do conhecimento da arguida.

Agiu a arguida de forma deliberada, livre e conscientemente, querendo e sabendo que, da forma sobredita, declarava falsamente a autoridade pública, identidade pertencente a outra pessoa, pretendendo dessa forma não ser correctamente identificado o verdadeiro autor da prática da contraordenação por excesso de velocidade praticada por veículo pertença da entidade comercial sob a firma “AA, Unipessoal, Ld.ª”, de que é legal representante, o que logrou alcançar.

Tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.

Para o preenchimento deste ilícito é indispensável que a falsidade do documento se apresente, nas circunstâncias concretas e segundo as regras da experiência comum, idóneo à produção do perigo, ou seja, tem de ser idóneo a iludir a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental.

Assim, tendo a arguida, após ter recebidos as notificações da GNR, preenchido a mesma, ou solicitado a alguém, a seu mando que a preenchesse e a ter remetido aos serviços da GNR, onde identifica como condutor, um cidadão estrangeiro que nessa data não estava em Portugal, e em consequência disso, foi lavrado pela GNR Auto de Contraordenação, no qual se imputou ao cidadão estrageiro a prática de uma contraordenação estradal por condução da viatura em excesso de velocidade, não restam dúvidas de que tais factos integram os elementos objetivos do crime de falsas declarações, na modalidade de fazer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante (o referir que era outra pessoa a conduzir o veículo, no dia, hora e local em questão e o não ser a condutora do veículo, ou a empresa sancionadas com as consequências da contraordenação).

No tocante ao elemento subjetivo, sempre teremos que referir que a arguida, sabia muito bem o que estava a fazer e assim o quis fazer, tendo perfeito conhecimento que o referido DD não conduzia o carro no dia em questão, mas mesmo assim quis atestar tal no formulário da GRN (por si ou a seu mando), tendo agido com dolo direto

A arguida agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, pelo que se impõe concluir pelo preenchimento da tipicidade subjectiva do crime aqui em causa, a título de dolo directo.

Em sede de culpa, a arguida é imputável, agiu com liberdade de decisão, pois apesar de saber que a sua conduta era punida criminalmente, poder e dever adoptar conduta conforme ao Direito, não o fez, pelo que incorreu na prática do crime por que veio acusada.

Não se verifica nos presentes autos qualquer causa de justificação ou de exclusão da culpa.

                                                                                       *

V. Escolha e medida concreta da pena

O crime de falsas declarações, p. e p. pelo artº 348º-A nºs 1 e 2, do CPenal, no caso concreto o seu número 2 (porque foi declarado em documento autêntico) é punível com pena de prisão até dois anos, ou com pena de multa.

Pelo exposto, a pena concreta terá como limites a seguinte moldura penal: prisão entre um mês (artigo 41º, nº, 1 do Código Penal) e dois anos, ou pena de multa entre 10 (dez) e 360 (trezentos e sessenta) dias (cfr. artigo 47º, nº 1 do Código Penal).

Em face da alternatividade entre a pena de prisão e a pena de multa, cumpre nesta sede proceder à escolha da pena abstratamente aplicável.

O sistema jurídico-penal português explana uma preferência pelas reacções criminais não privativas da liberdade, pelo que deve dar-se prevalência à pena não privativa da liberdade, desde que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade), nos termos do estabelecido nos artigos 40.º e 70.º do Código Penal e na esteira do princípio da necessidade consagrado no artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

No entendimento de Figueiredo Dias1 a circunstância de, no teor literal da lei, a pena de multa vir mencionada em segundo lugar depois da pena de prisão, não deve, em nada, prejudicar o reconhecimento de que a pena de multa é, em todos estes casos, legalmente preferida.

Prescreve o artigo 70º do Código Penal que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, e segundo o preceituado no art. 40º n.º 1 do mesmo diploma legal, garanta (...) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, pelo que o Tribunal nesta escolha deve atender unicamente às considerações de prevenção geral e de prevenção especial.

Estas disposições legais são a expressão da filosofia subjacente do sistema punitivo do nosso Código Penal, que apesar de aceitar a pena de prisão como pena principal para os crimes de maior gravidade, (...) afirma claramente que o recurso às penas privativas da liberdade só será legítimo quando, dadas as circunstâncias, se não mostrem adequadas as sanções não detentivas2.

Conforme refere Figueiredo Dias, são as necessidades de prevenção especial de socialização que prevalecem sobre a escolha do tipo de pena aplicar e que justificam, numa perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra as penas privativas da liberdade3.

A prevenção geral apenas actuará sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico. Ou seja, apenas se deve optar pela pena privativa de liberdade se a aplicação da pena não privativa resultar insuportável para a comunidade, pondo irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

No presente caso, as exigências de prevenção geral são elevadas, atendendo ao facto de que este tipo de condutas já se começar a encontrar generalizado e bem assim, levar a que pessoas que nada têm a ver com a questão sejam incomodadas e mesmo paguem a coima e cumpram a pena acessória.

No que concerne às exigências de prevenção especial, as mesmas são diminutas, dado a ausência de carência de socialização da arguida em termos de pena privativa da liberdade, pois será esta a sua primeira condenação,

Assim sendo, in casu, o Tribunal opta pela aplicação da pena de multa, considerando que esta realiza de forma suficiente as necessidades de prevenção especial.

                                                                                       *

Após a escolha da pena, importará procurar determinar a sua medida dentro dos limites estabelecidos pela moldura penal aplicável em causa, que, tem como limite mínimo de 10 dias e máximo 360 dias para o crime de falsificação de documento – cfr. artigo 256.º n.º 1, als. a) e e), do Código Penal.

Prescreve o artigo 71º, n.º 1 do Código Penal, que a determinação da medida da pena (...) é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

O limite mínimo é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor. O limite máximo da pena é a culpa pessoal do agente, limite inultrapassável das finalidades preventivas, como consta do n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal. Dentro destes limites actua a socialização da arguida – prevenção especial positiva – como forma eficaz de responsabilização e ressocialização da arguida/condenada na sociedade.

De harmonia com o disposto no artigo 71º n.º 2 do Código Penal na determinação da medida concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (...).

Importará, neste momento, procurar determinar agora a sua medida dentro dos limites estabelecidos pela moldura penal aplicável em causa

Assim, no caso sub judice, importará ponderar as seguintes circunstâncias:

- A ilicitude é elevada, atendendo a que a arguida quis eximir-se do pagamento de uma coima e sanção acessória e implicou, primeiramente (em sede de contra-ordenação) uma terceira pessoa, que nunca esteve em Portugal e em sede de julgamento, implicou, a autoria dos factos outra pessoa com a qual se encontra de relações cortadas.

- A intensidade do dolo, que é directo;

- A favor da arguida temos o facto de não ter antecedentes criminais e se encontra inserida social e profissionalmente.

- A arguida não mostrou arrependimento, pelos factos cometidos.

Quanto às necessidades de prevenção geral e especial, atender-se-á ao que supra se referiu quanto à escolha da pena.

Tudo ponderado, tendo em conta a moldura abstracta da pena, a culpa do agente, a ilicitude do facto e as necessidades de prevenção, entende o Tribunal adequado fixar à arguida uma pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa.

                                                                                       *

Em relação ao quantitativo diário, dispõe o n.º 2 do artigo 47.º do C.P., que cada dia de multa corresponde a uma quantia entre €5 (cinco euros) e €500 (quinhentos euros), que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

O critério a adoptar, não podendo obedecer única e simplesmente a uma visão economicista, deve também ter em conta critérios de razoabilidade e exigibilidade. Assim, se é certo que a pena de multa terá de representar uma censura do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada, igualmente é exacto que deverá ser sempre assegurado ao condenado o nível existencial mínimo adequado às suas condições socioeconómicas.

No caso em apreço, dados os valores declarados pela arguida quanto ao seu vencimento e do seu marido e das despesas fixas constantes, o tribunal julga justo e adequado a fixação do quantitativo diário de € 8,00 (oito euros).

                                                                               *

DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Fazendo presente a norma do artigo 412º, nº 1 do Código do Processo Penal o objecto da lide recursal é fixado na motivação, onde são ancorados os seus fundamentos específicos e delimitado pelas conclusões, como síntese da respectiva fundamentação, sem prejuízo das questões que ao Tribunal ad quem incumba conhecer oficiosamente (como sejam os vícios enunciados no nº 2 do artigo 410º do Código do Processo Penal, as nulidades da sentença gizadas no artigo 379º, nº 1 e 2 do Código do Processo Penal e as nulidades que não devam ser consideradas sanadas face aos consignado nas disposições conjugadas dos artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1 do Código do Processo Penal)[1] [2]

Analisadas que sejam as conclusões apresentadas pela recorrente AA, as questões que se apresentam a decidir são, pois, as seguintes:

. Impugnação da sentença, por erro de direito, face à violação do disposto no artigo 374º, nº 2 do Código do Processo Penal, por falta de exame crítico da prova;

. Impugnação da sentença, por erro de julgamento da matéria de facto dada como provada nos pontos 4, 5, 6 e 7, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3 e 4 do Código do Processo Penal;

. Impugnação da sentença, por erro de direito, face ao vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, nos termos previstos no artigo 410º, alínea a) do Código do Processo Penal;

. Impugnação da sentença, por erro de direito, face ao vício do erro notório da apreciação da prova, nos termos previstos no artigo 410º, nº 2, alínea c) do Código do Processo Penal;

. impugnação da sentença, por erro de direito, face à nulidade das declarações prestadas pela arguida, na qualidade de testemunha, nos termos do artigo 120º, nº 2, alínea d) do Código do Processo Penal;

. Impugnação da sentença, por erro de direito, na interpretação e aplicação do tipo legal do artigo 348º, nº1 e 2 do Código Penal;

. Impugnação da sentença, por erro de direito, na interpretação e aplicação dos artigos 40º, 47º e 71º do Código Penal, sendo excessiva a pena aplicada.

                                                                       *

            . DECISÃO

Considerando o que é disposto no artigo 428º do Código de Processo Penal aos Tribunais da Relação estão conferidos poderes de cognição de facto e de direito.

Como sabemos o recurso é “o meio processual destinado a sujeitar a decisão a um novo juízo de apreciação, agora por parte de um tribunal hierarquicamente superior, imposto pela necessidade de garantir a principal via de reapreciação das decisões em processo penal, ante o auto-esgotamento do poder jurisdicional, em cada instância; é o principal caminho legal para corrigir os erros cometidos na decisão judicial.”[3]

Direito este que constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal e em que se afirma o princípio do direito a um duplo grau de jurisdição.

Volvendo ao caso em análise e apreciada a lide recursiva apresentada pela recorrente AA damos conta que a mesma começa por pugnar a existência de nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379º da lei adjectiva penal, na medida em que ali não é feita a indicação dos fundamentos nem o exame crítico das provas que serviram para a formação da convicção do Tribunal, assim violando a exigência da norma vertida no artigo 374º, nº 2 do citado diploma legal.

Concretamente a ora recorrente alude a que “a sentença proferida padece de nulidade, pois não refere que prova valida foi produzida para dar como provado que foi a arguida que remeteu para o Destacamento de Trânsito ... o formulário com a identificação do cidadão DD.”

Adiantando, ademais, que apenas é mencionado na motivação da decisão da matéria de facto que:

“(…) “concatenado as declarações da arguida, as quais, desde já não nos mereceram qualquer tipo de credibilidade, com as das testemunhas inquiridas, o tribunal deu os factos suprarreferidos como provados, atendendo a que, quer a testemunha EE, quer a sua esposa, referiram que nunca a arguida lhes disse nada e nem sequer sabem quem seria o condutor do veículo, no dia em causa.

A testemunha FF, também, não conseguiu identificar, o dia em causa, sabendo só que numa viagem de Viseu à Guarda, foi o Sr. EE quem conduziu o veículo da arguida (o que pode, muito bem, ter acontecido em qualquer dia do ano).

Mais, estranha-se o fato de a aqui arguida, enquanto testemunha, confessou os factos (o que não poderá ser considerado como confissão), mas depois apresenta outra versão e ainda o facto de ter surgido esta versão, onde aponta como autor dos fatos, alguém com o qual se encontra de relações cortadas.”

Conheçamos

            Dispõe o artigo 374º do Código do Processo Penal, sob epigrafe “Requisitos da sentença” que:

1 - A sentença começa por um relatório, que contém:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;
c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;
d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.

2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

3 - A sentença termina pelo dispositivo que contém:
a) As disposições legais aplicáveis;
b) A decisão condenatória ou absolutória;
c) A indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas;
d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal;
e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal.

4 - A sentença observa o disposto neste Código e no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas.

            Preambular a esta norma legal acha-se, como pedra angular da independência do poder judicial, o princípio da livre apreciação da prova.

Principio este que, nos termos estipulados no artigo 127º da disciplina processual penal, estatui que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” e segundo o qual, por um lado, firma a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova e, por outra banda, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.

Principio que, como defende o Professor Germano Marques da Silva[4], (…)”não deve ser entendido como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.

Ou como descrevem as judiciosas palavras do Professor Castanheira Neves[5], que a nosso ver, melhor traduzem a liberdade concedida ao juiz como sendo “a liberdade para a objetividade, não é uma liberdade meramente intuitiva, mas aquela que se concede e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros”.

Na medida em que todos os poderes concedidos ao juiz são poderes-deveres que se acham vinculados ao cumprimento do desiderato legal.

Como adianta o Professor Gomes Canotilho, na sua definição geral de procedimento[6], a concretização do direito penal material, a averiguação da existência de um crime e a determinação das consequências jurídicas deste se alcançam através de um procedimento – o processo penal – que podemos definir como um complexo de actos juridicamente ordenado de tratamento e obtenção de informação, que se estrutura e desenvolve sob a responsabilidade de titulares de poderes públicos e serve para a preparação da tomada de decisões, com a particularidade de aqui se tratar de uma decisão jurisdicional, sendo que os procedimentos constituem sistemas de interação entre os poderes públicos e os cidadãos.

Volvendo ao caso dos autos e concentrando-nos no segmento da Fundamentação da decisão recorrida é mister concluir que o Tribunal a quo, no seguimento da assentada do manancial probatório que julgou provado e não provado, adiantou o material probatório que entendeu idóneo para firmar a sua convicção.

Começou para enumerar o espólio de documentos:

 Do auto de notícia, junto a folhas 4 a 6.

 Do formulário, junto a folhas 9 e correspondência, junta afolhas 11 a 13.

 Prova fotográfica, junta a folhas 14.

 Do teor das declarações, prestadas pela arguida, ainda na qualidade de testemunha, a folhas 27, onde nessa qualidade confessa os factos.

 Do CRC da arguida, junto a folhas 49.

 Dos autos de contraordenação, junto a folhas 99 a 151, bom como da informação/análise junta a folhas 155 a 164, de onde se extrai, que em nome de DD existem 41 autos de contraordenação registados e que o mesmo nunca esteve em Portugal.

 Da certidão, junta a folhas 299 a 300.

E quanto ao seu teor e conteúdo nada mais adiantou!

Não explicitou, em que medida, qualquer deles se mostrou de relevo para a formação da respectiva convicção e no que atende a que segmento factual.

Isto é, os destinatários daquela decisão não logram decifrar os fundamentos e critérios pelos quais o decisor elegeu tais meios de prova, por um lado, e qual o respectivo conteúdo contundente e adequado para a respectiva eleição como meio probatório adequado.

O julgador recorrido não deixou patente como apreciou e valorou a prova documental, em cada um dos seus sedimentos, nem na sua globalidade.

Outrossim, como se lhe impunha, não estabeleceu uma leitura daquele espólio documental com os demais meios de prova.

Concretamente, o Tribunal a quo estava obrigado a discretear acerca da validade e valor das declarações prestadas pela arguida, no decurso do processo, quando o levou a preceito na qualidade de testemunha, no confronto com as que prestou em sede de audiência de julgamento, na qualidade de arguida, o que omitiu!

Limitou-se a retirar valor às declarações da arguida prestadas em sede de julgamento face às declarações testemunhais e aludir às declarações que a mesma havia prestado em sede de inquérito, na qualidade de testemunha, apenas adiantando que as mesmas não valem como confissão.

Nada adiantou, na essência, quanto ao valor probatório daquelas primeiras declarações prestadas em sede de inquérito e qual a sua valia objectiva para a formação da convicção no arranjo do segmento probatório.

Da análise dos autos ressuma que, na sequência de envio de auto de notícia em que é visada a empresa AA Unipessoal, Lda. foi ordenada a abertura de inquérito que deu origem aos presentes autos, pelos factos que vieram a ser reconduzidos ao despacho acusatório.

No âmbito do inquérito vieram a ser levadas a preceito as diligências tendentes à identificação de quem preencheu e assinou a notificação para a identificação do condutor, referente à infracção praticada no dia 14/04/2021, pelas 15.19 horas, na A25, km 159,100 – ..., sentido Oeste/Este, com o veiculo de matricula ..-JE-.., tendo a ora recorrente, arguida nos autos, sido no dia 06/07/2022 ouvida acerca de tal matéria factual, na qualidade de testemunha.

Sendo certo, também, que acto continua à prestação de tal depoimento testemunhal, a mesma foi constituída arguida e interrogada nessa nova qualidade.

Determina o artigo 59º da lei adjectiva penal, sob a epígrafe “Outros casos de constituição de arguido” que:

1 - Se, durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de crime por ela cometido, a entidade que procede ao acto suspende-o imediatamente e procede à comunicação e à indicação referidas no n.º 2 do artigo anterior.

2 - A pessoa sobre quem recair suspeita de ter cometido um crime tem direito a ser constituída, a seu pedido, como arguido sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem.

3 - Os números anteriores são aplicáveis logo que, durante a inquirição de um seu representante como arguido ou testemunha, surja a fundada suspeita da prática de um crime pela pessoa coletiva ou entidade equiparada que ainda não seja arguida.

Como ensina Maria João Antunes[7] “segundo o Código de Processo Penal português o arguido é aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal.

A lei distingue o arguido do suspeito – pessoa relativamente à qual existe indício de que cometeu um crime ou de que nele participou.

A constituição de arguido permite que o “suspeito” passe a gozar de direitos processuais autónomos, legalmente definidos: direito de defesa, de presença, de audiência, de silencia, de assistência por defensor, de oferecer e requerer provas, de recorrer e, finalmente, de ser informado dos direitos que lhe assistem.”

            Para num passo adiante afirmar que “ao distinguir o arguido do suspeito, a lei processual penal supõe que à constituição de arguido se liga o reconhecimento do estatuto do sujeito processual (arts. 58º, nº 2 e 3, 60º e 61º do Código de Processo Penal) por contraposição ao mero participante processual.”

            Não sem que deixe de alinhar que “pela mesma razão se justificando que os arts. 58º, nº 1 e 59º, nº 1 do Código do Processo Penal prevejam casos de constituição obrigatória de arguido (…)”

Ao ter sido obliterado este dever processual que incumbia ao órgão de policial criminal, e a concomitante garantia daquela AA, esta interveniente processual viu colocado em crise, desde logo, o seu direito à não auto-incriminação.

Trazendo à liça um aresto deste Tribunal da Relação de Coimbra[8] verificamos que “O direito do arguido à não auto-incriminação, entendido como o direito de não contribuir para a sua própria incriminação, conhecido pelo brocardo latino nemo tenetur se ipsum accusare, está intimamente ligado ao direito ao silêncio, na medida em que, não sendo reconhecido ao arguido o direito a manter-se em silêncio, este seria obrigado a pronunciar-se e a revelar informações que poderiam contribuir para a sua condenação.”

Posto que “Segundo o princípio nemo tenetur se ipsum accusare ninguém é obrigado a auto incriminar-se ou a contribuir para a sua própria condenação, o que, no essencial, corresponde ao direito de não testemunhar contra si próprio, de não produzir prova contra si mesmo ou de fornecer coactivamente qualquer tipo de declaração ou informação que o possa incriminar, apresentando elementos que provem a sua culpabilidade.”

Ademais tal atitude processual redunda numa violação grosseira do artigo 20º da nossa Lei Fundamental, do artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos do Homem tal conta do artigo 47º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, posto que coloca em crise o principio do processo equitativo.

O princípio do processo equitativo, que é uma das marcas do estado de Direito, e acha consagração do artigo 20º, bº 4 da nossa Lei Fundamental vem estabelecer um limite na escolha da concreta estruturação do processo.

J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira[9] salientam que “o significado básico da exigência de um processo equitativo é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva.”

Na densificação do conceito de processo justo a jurisprudência do Tribunal Constitucional também utilizando os parâmetros vertidos na Lei Fundamental, nomeadamente quanto à organização e disciplina do processo, têm vindo a pronunciar-se, de modo profícuo acerca das diversas dimensões deste conceito.

O acórdão nº 260/17 do Tribunal Constitucional[10] é escorreito quando à dimensão do processo equitativo a que, ora nos atemos.

Fica ali consignado que “a garantia do processo equitativo comporta também uma dimensão de segurança e previsibilidade dos comportamentos processuais, tutelando adequadamente a possibilidade de conhecimento das normas com base nas quais são praticados os actos e formalidades processuais, assim como as expectativas em que as partes fazem assentar a sua estratégia processual. Com efeito, o processo surge como imperativo segurança jurídica ligado a duas exigências: a determinabilidade da lei e da previsibilidade do direito. O processo justo e equitativo é também aquele cuja regulação prevê que a sequência dos actos que formam o processo esteja pré-destinada ao pormenor pelo legislador, em termos de ser possível assegurar com, previsibilidade, que as partes são titulares de poderes, deveres, ónus e faculdades processuais e que o processo é destinado a finalizar com certo tipo de decisão final. Os dois elementos são indissociáveis: a previsibilidade das consequências da prática dos actos processuais pressupõe que as normas processuais sejam claras e suficientemente densas, atributos sem os quais ficará violado o princípio da segurança jurídica.

Assim, um processo equitativo é também um processo previsível. Uma forma processual só é justa quando o conjunto ordenado de actos a praticar, bem como as formalidades a cumprir, tanto na propositura, como especialmente no desenvolvimento da acção, seja expresso por meio de normas cujos resultados sejam previsíveis e cuja aplicação potencie essa previsibilidade. Para que haja previsibilidade são, porem, necessárias duas condições: que o esquema processual fixado na lei seja capaz de permitir aos sujeitos do processo conhecer os poderes e deveres que conformam a relação processual; e que haja univocidade de interpretação das normas processuais.

É que se os sujeitos do processo não se encontram em condições de compreender e calcular previamente as consequências das suas acções, o processo é inidóneo à realização da tutela jurídica. A idoneidade funcional do processo implica, pois, que ele seja construído em termos de possibilitar aos sujeitos processuais o conhecimento das normas com base nas quais calculam o seu modo de agir.”

            Nesta medida nunca as declarações que a ora recorrente, arguida nos autos, prestou no inquérito, na qualidade de testemunha, poderiam ser atendidas pelo Julgador recorrido para a formação da sua convicção por convalidarem um meio proibido de prova.

Ademais nunca aquele Julgador recorrido poderia alinhar tal meio de prova para fundar a sua convicção em face do disposto no artigo 355º da lei adjectiva penal.

Com efeito estabelece tal norma, sob a epigrafe de “Proibição de valoração de provas”, que:

1 - Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.

2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.

O princípio geral é, pois, a da proibição de valoração relativamente a todas as provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência de julgamento, visando o cumprimento dos princípios da imediação e contraditório, princípios basilares do processo penal português.

As excepções são taxativas e reconduzem-se às provas contidas nos actos processuais cuja leitura, visualização ou audição sejam permitidos à luz dos artigos 356º e 357º do Código do Processo Penal.

Reconduzindo-nos àquela última norma, com a epigrafe “Reprodução ou leitura permitida das declarações do arguido”, vimos que fica estabelecido que:

1 - A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida:

a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou

b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º

2 - As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º

3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 7 a 9 do artigo anterior.

Da exegese da norma é cristalino que não estão incluídas as declarações prestadas pelo arguido, numa outra qualidade, nomeadamente de testemunha, no âmbito do processo!

A este propósito já se debruçou o Tribunal da Relação do Porto[11] tendo decidido que “A leitura das anteriores declarações do arguido (prestadas em inquérito), fora do âmbito do artigo 357 do Código de Processo Penal, não é permitida, bem como os órgãos de polícia criminal que as receberam ou tenham participado na sua recolha não podem ser inquiridos sobre o seu conteúdo, correspondendo tal situação a análise de meio de prova proibido, a consequenciar nulidade da respectiva decisão e do julgamento, que deverá ser repetido.”

Ademais, ainda que hipoteticamente ali estivessem incluídas, o Julgador recorrido, não foi desencadeado o mecanismo aludido na norma do artigo 357º da lei adjectiva penal, nada constando da acta a esse propósito.

Vale tudo por dizer, pois, que a sentença recorrida não assimila, de forma escorreita e com apuro, o dever de fundamentação, razão por que não é percetível pelos seus directos destinatários, tanto quanto pela comunidade em geral, os fundamentos da decisão de facto.

A omissão de explicitação dos fundamentos, tanto quanto a análise crítica dos meios probatórios assinalados mancha a decisão recorrida com o vício da nulidade prescrito no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código do Processo Penal por omissão do cumprimento da exigência imposta no nº 2 do artigo 374º do mesmo diploma legal.

            Como enuncia Oliveira Mendes[12] “Da letra do nº 2 (do artigo 374º do Código do Processo Penal) resulta que a fundamentação deve conter a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. A lei impõe, pois, que o tribunal não só dê a conhecer os factos provados e os não provados, para o que os deve enumerar, ou seja indicar um a um, mas também que explicite expressamente o porquê da opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção (..)”

            É forçoso trazermos aqui, também, a lição de Michelle Taruffo[13] sobre “Narrativas Processuais”, pelo sua analise exaustiva acerca da natureza de facto e prova, onde aquele autor faz menção que “          Em todo o caso é claro que as narrativas processuais têm que ver também com os aspectos jurídicos da controvérsia, mas isso não significa que não seja possível pensar naquelas que dizem respeito a factos. Não haja dúvida de que — para citar ainda William Twining — que os factos devem “ser levados a sério”[14]. Muitas causas se ganham e perdem por causa dos factos, conforme o autor tenha ou não sucesso na prova dos factos que fundamentam a demanda; muitos hard cases são hard porque os factos são muito complexos e difíceis de subsumir a uma regra clara de direito; ademais, no processo os factos são o ponto de referência de todo o mecanismo da prova e da sua admissibilidade. Por isso, excluir a possibilidade de falar especificamente de “narrativas de factos” não tem qualquer sentido para quem tenha um mínimo de experiência da prática dos procedimentos judiciais. Pode, por isso, presumir-se razoavelmente que os factos do caso podem distinguir-se dos aspectos jurídicos da controvérsia, ainda que seja claro que as duas dimensões se encontram estreitamente ligadas. Por outro lado, facto e direito, para poderem estar ligados, devem conceber-se como sendo distintos, ou, pelo menos, distinguíveis. Na realidade, os factos do caso podem ser isolados como tal, ou seja, separados da dimensão jurídica da controvérsia.[15] Obviamente que não se referem os factos na sua existência material e empírica: as narrativas podem incluir apenas “enunciados de facto”. Um enunciado de facto é aquele em que um evento é descrito como tendo acontecido “assim e assim”, no mundo real (que, obviamente, se pressupõe existente e não apenas imaginado ou sonhado).[16] Na medida em que descreve algo que se diz ter acontecido na realidade, este enunciado é apofântico: tanto pode ser verdadeiro como falso.[17] Então há pelo menos um sentido em que a distinção entre facto e direito é necessária, e logo é também possível. Esta distinção é inevitável quando se trata de estabelecer aquilo que pode e deve ser provado num processo. O princípio geral comummente aceite é que o direito não pode ser “provado” no sentido próprio e específico do termo: jura novit curia, e cabe ao juiz conhecer o direito que deve aplicar para decidir a controvérsia. Por isso, apenas os factos (ou seja: os enunciados sobre factos) são objecto de prova. Os enunciados relativos aos aspectos jurídicos da controvérsia podem ser objecto de escolha, de interpretação, de argumentação e de justificação, mas não podem ser provados. Também os enunciados relativos aos factos podem ser objecto de escolha, de interpretação, de argumentação e de justificação, mas acima de tudo pode provar-se que eles são verdadeiros ou falsos. A relevância da prova, ou seja, a condição fundamental para a sua admissão no processo, resulta delimitada por referência aos enunciados que dizem respeito aos factos principais da controvérsia, e não por referência aos argumentos de direito apresentados pelas partes para definir os aspectos jurídicos dessa mesma controvérsia. Esta distinção entre facto e direito não carece de análise mais aprofundada: os princípios que regem a admissibilidade e a valoração das provas fornecem uma base suficiente para perceber aquilo que se deve considerar “facto” numa controvérsia. Quando se pensa nos factos de que se trata num processo, não há necessidade de mergulhar numa espiral de questões filosóficas e epistemológicas.[18] Na verdade, os factos que são relevantes na administração da justiça são tranches de vie, ou seja, acontecimentos ou conjuntos de acontecimentos que dizem respeito à vida das pessoas. Isto significa que por regra eles vêm determinados num nível “macro”: mesmo quando se envolvem a microfísica ou a genética, a finalidade última é ainda a de provar um “facto da vida” e normalmente estes factos vêm definidos de um modo muito específico, fazendo referência às situações jurídicas dos sujeitos interessados. Há, todavia, na definição de “factos da causa”, alguns aspectos que merecem ser tidos em consideração. Antes de mais, os factos são seleccionados e determinados com base na sua relevância para a controvérsia. As circunstâncias irrelevantes não são tidas em consideração quando se trata de estabelecer que factos devem ser provados. O critério para avaliar a relevância encerra duas vertentes. Numa vertente, o facto é juridicamente relevante (no jargão norte-americano: material), quando corresponde ao tipo de facto definido pela norma jurídica (escrita ou baseada em precedentes) que é tida em consideração como possível critério jurídico de decisão. As normas definem factos-tipo, e os factos concretos são relevantes (como fact-tokens) quando correspondem a estes factos-tipo.[19] Deste modo, os factos relevantes definem-se por referência à norma de aplicação hipotética como critério para a decisão final: estes factos são os facts probanda fundamentais, ou seja o principal objecto de prova, e representam o conteúdo dos enunciados de facto mais importantes.[20] Noutra vertente, o facto é logicamente relevante se, não sendo principal, pode ainda assim ser usado como uma premissa, como um ponto de partida para inferências que possam conduzir a conclusões relativas à verdade ou falsidade de um enunciado relativo a um facto principal. Um facto logicamente relevante pode, então, ser provado quando o seu conhecimento é útil para estabelecer, através de inferências, a verdade ou falsidade de um facto principal.[21]

            Ademais, o Julgador recorrido alinhou para a formação da sua convicção um meio de prova proibido, que lhe importa descartar.

Consequentemente, importa declarar o provimento ao recurso da arguida AA, ditando a nulidade da sentença recorrida e a remessa dos autos ao Tribunal recorrido com vista à repetição do acto expurgado e sem o vício aludido.

           

                                                                       *

DISPOSITIVO

Por todo o exposto, e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

- Julgar nula a sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca da Guarda/Juízo Local Criminal da Guarda/Juiz 2;

- Ordenar a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca da Guarda/Juízo Local Criminal da Guarda/Juiz 2 para a elaboração de nova sentença.

- Sem custas.

O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela sua relatora, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal.

Coimbra, 09 de Abril de 2025

Maria José dos Santos de Matos

Maria de Fátima Calvo

Rosa Pinto (com declaração de voto)

           Voto a decisão, com a seguinte declaração:

Não acompanho as considerações tecidas acerca do processado em sede de inquérito.

                                   

  


[1] Vejam-se, a propósito, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 19/10/1995, publicado no D.R. I-A Série de 28/12/1995 e o do mesmo Tribunal de 03/02/1999, publicado no BMJ, 484, 271.
[2] Recursos em Processo Penal, Simas Santos e Leal-Henriques, Rei dos Livros, 7ª edição, 71 a 82.
[3] Manuel Simas Santos, Intervenção em Sessão subordinada ao tema: «Do processo penal interno ao processo penal internacional: alguns aspectos críticos», integrada no Simpósio de Direito Processual Penal, organizada pela Escola de Direito da Universidade do Minho, Publicado em Que futuro para o direito processual penal? simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português/coordenação Mário Ferreira Monte [et al.], Coimbra Editora, 2009.
[4] Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 111.
[5] Sumários de Processo Criminal, 1967 – 1968, edição policopiada, 1968.

[6]   Tópicos de um Curso de Mestrado sobre Direitos Fundamentais, Procedimento, Processo e Organização, Boletim da Faculdade de Direito, Volume LXVI, Coimbra, 1990.
[7] Janus 2004, disponível em www.janusonline.pt

[8] Acórdão proferido a 24/05/2023 no Processo nº 221/18.0GAMIR.C1 publicado em www.dgsi.pt

[9] Constituição da Republica Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, página 415.
[10] Acórdão contemplado no e-book consultável em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/content/reserved/ebook_html5/tc_acordaos_0099/256/

[11] Acórdão datado de 19/01/2000 e prolatado no Processo nº 106/98, disponível em www.dgsi.pt

[12] Código de Processo Penal Comentado de António da Silva Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2016, 2ª edição, 1120 e seguintes.
[13] Revista Julgar, nº 13, 2011.
[14] Para esta clara alusão a Dworkin cfr. W. Twining, op. cit., p. 14, 41
[15] Para uma análise mais aprofundada deste problema, cfr. M. Taruffo, op. cit., p. 67, 71.
[16] Este pressuposto assenta numa série de condições filosóficas, epistemológicas e até éticas, que não podem ser discutidas aqui. Em termos gerais, cfr. A. Goldman, Knowledge in a Social World, Oxford 1999, p. 3, 41, 69. Sobre o regresso a uma concepção “correspondentista” da verdade, v. infra, Cap. III, par. 1.
[17] Sobre esta característica dos enunciados factuais, v. também infra, par. 5
[18] Sobre algumas destas questões, cfr. M. Taruffo, op. cit., p. 67, 71.
[19] Esta ligação representa um ponto bem notado e largamente analisado na teoria do direito, assim que referência bibliográficas seriam impossíveis. Veja-se, porém, pelo menos o texto clássico na matéria, ou seja K. Engisch, Logiche Studien zur Gesetzesanwendung, 2. Aufl., Heidelberg 1960, p. 19, 37, 83. Para mais indicações v. também M. Taruffo, op. cit., p. 74.
[20] Mais desenvolvidamente quantos aos problemas que respeitam à determinação dos factos que são objecto da decisão final, v. infra, Cap. V, par. 2
[21] A relevância lógica é o critério fundamental para decidir se um meio de prova deve ser admitido ou recusado, tendo por base a regra pela qual frustra probatur quod probatum non relevat. Sobre este princípio geral cfr., também para mais indicações, M. Taruffo, op. cit., p. 338; Id., Studi sulla rilevanza della prova, Padova 1970. V. ainda infra, Cap. IV, par. 2. 1.