CRIME DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS AGRAVADO
CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
FALTA DE EXAME CRÍTICO DAS PROVAS;
REJEIÇÃO DA IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO ALARGADA DA MATÉRIA DE FACTO
CONDENAÇÃO POR FACTOS DIVERSOS DOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO
SEM PRÉVIA COMUNICAÇÃO;
ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS
Sumário

1 - A diferença entre o que constava na acusação e o que passou a constar da factualidade provada, traduziu-se em modificar a perturbação que resultou do comportamento do arguido para o livre desenvolvimento da sexualidade da vítima narrado na acusação, passando a afirmar-se que o comportamento do arguido perturbou a liberdade e autodeterminação sexual da vítima e o desenvolvimento da respetiva personalidade no domínio sexual.
2 - Trata-se de uma modificação apenas semântica relativamente ao comportamento do arguido no contexto fático que lhe vem imputado na acusação, pois a expressão perturbar e impedir o livre desenvolvimento da sexualidade da vítima/ofendida, comporta, por mais ampla, a liberdade e autodeterminação sexual da mesma e o desenvolvimento da respetiva personalidade no domínio sexual, como consta da factualidade provada, sem qualquer relevância para efeitos do elemento subjetivo do crime de abuso sexual de crianças imputado na acusação ao arguido, inferido do comportamento deste que nela se descreve.
3 - O que não contempla qualquer alteração em relação à acusação, substancial ou não substancial, que carecesse de prévia comunicação ao arguido.
4 - Também as restantes alegadas e contestadas alterações de facto levadas a cabo pelo Tribunal a quo não podem ser tidas como substanciais – por não levarem a imputação ao arguido de um crime diverso ou à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (artºs. 1º f) e 359º do CPP) – nem como não substanciais, por não terem (o) relevo (pretendido) para a decisão da causa (artº. 358º nº 1 do CP).”
5 - A atuação do arguido visando a menor que, à data, tinha 12 anos de idade e integrava o agregado do arguido, dependendo este, do ponto de vista económico, essencialmente do arguido, traduzida em aproximar-se da mesma, quando se encontravam apenas os dois e sem qualquer pessoa nas proximidades, apalpando-lhe os seios por cima da roupa, não poderá deixar de consubstanciar um ato sexual de relevo.
6 - A atuação do arguido, traduzida no envio de mensagens escritas à visada, à data já com 16 anos de idade, cujo conteúdo “ logo posso tocar uma a pensar em ti, se deixares ganhas € 10” e “ não ficas chateada comigo se eu tocar a pensar em ti?”, integra-se na tipificação legal prevista no art. 170º do C. Penal.
7 - Para o preenchimento do crime de importunação sexual não se exige, o envolvimento da vítima na execução corporal de um ato sexual, ao contrário do que se passa com outros crimes de natureza sexual, bastando-se o mesmo com a receção, por parte desta, de atos comunicativos de teor sexual, com ressonância ético-social censurável com aptidão para importunar a vítima.
8 - A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.
9 - Na fase do recurso, a demonstração da sua violação passa pela respetiva notoriedade, aferida pelo texto da decisão, isto é, em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença, ou seja, tem que resultar da fundamentação desta, de forma clara, que o juiz, pese embora tenha permanecido na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou que, sendo favorável ao agente, o considerou não provado.
10 - Porém, a dúvida relevante para este efeito, não é a dúvida que qualquer recorrente entenda que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.

Texto Integral

            Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

      I- Relatório

            1. No Processo Comum Coletivo Nº 102/19.0JACBR, que corre termos no Juízo Central Criminal de Coimbra- Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, na sequência da acusação contra o mesmo deduzida, foi sujeito a julgamento o arguido AA, e, após realização da respetiva audiência, veio o a ser proferido acórdão em 29.10.2024, depositado na mesma data, do dispositivo do qual ficou a constar:

            “- Condena-se o arguido AA, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, p. e p. nos arts. 171º/n.º 1 e 177º/n.º 1-b), ambos C.P., na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão;

                - Condena-se o mesmo arguido AA, como autor material de um crime de importunação sexual, na forma consumada, p. e p. no art. 170º C.P., na pena de 9 (nove) meses de prisão;

                - Operando-se o cúmulo jurídico pertinente, de acordo com os critérios dos arts. 30º/n.º 1 e 77º/n.os 1 e 2 C.P. (tomando-se em conta, em conjunto, os factos e a personalidade revelada pelo mesmo), condena-se o arguido AA na pena única de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;

                - Absolve-se o arguido AA do demais por que vinha acusado nos presentes autos;

                - Condena-se o arguido nas custas do processo (presente parte crime), com 4 U.C. de taxa de justiça (e sem prejuízo do apoio judiciário existente nos autos).


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                Nos termos dos arts. 50º, 51º/n.º 1-b), 52º/n.º 1-b) e c) e 53º, todos C.P., esperando-se (pelos fundamentos acima enunciados) que a ameaça de prisão o afaste da prática de novos ilícitos criminais, decide-se suspender a execução da pena única de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão definida ao arguido AA pelo período de 3 (três) anos, acompanhada de um regime de prova assente em plano individual de reinserção social, com especial incidência na potenciação e preservação de hábitos de respeito pelo desenvolvimento sexual em geral e dos menores em particular, para o que deverá frequentar um curso especializado de sensibilização na matéria [e nos moldes a definir oportunamente mediante plano a elaborar pelos serviços de reinserção social e a aprovar pelo Tribunal; para tais efeitos, deve ainda o arguido apresentar-se e(ou) responder a todas as convocatórias que lhe venham a ser dirigidas pelo Tribunal e pelos técnicos de reinserção social, e sem prejuízo de o plano de reinserção poder vir a ser completado posteriormente pelos referidos serviços]; mais fica a suspensão dependente da condição de o arguido AA, no termo do prazo de cada período de (três) meses, até perfazer o fim dos 3 (três) anos do período de suspensão, contados do trânsito em julgado da presente decisão, comprovar nos autos o depósito da quantia de 200 (duzentos euros) sendo as últimas duas tranches, todavia, de 250 (duzentos e cinquenta euros) cada –, até ser atingido o montante total de 2.500 (dois mil e quinhentos euros) abaixo fixado como compensação pecuniária a favor vítima BB (e que o Tribunal fará chegar à respectiva disponibilidade); por outro lado, fica igualmente a suspensão dependente da condição de o arguido AA cumprir a regra de conduta de guardar entre si e a aludida BB a distância mínima de 100 (cem) metros e de em relação a ela não estabelecer qualquer espécie de contacto (seja por que meio for).”

               

                Nele foi ainda decidido:

            “- Fixa-se, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 82º-A C.P.P., a favor da ofendida BB a quantia compensatória de 2.500 (dois mil e quinhentos euros), a pagar pelo arguido AA.”


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      2. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, extraindo da motivação do recurso as conclusões que se transcrevem:

            “A.Verifica-se nulidade por ausência de prova e fundamentação decisória dos pontos 4 e 7 2ª parte, tendo o Tribunal consciência disso mesmo pois tão-pouco oferece fundamentação decisória face aos mesmos, havendo nulidade ex vi art. 379º n.º 1 a) CPP, não ressaltando, da fundamentação de fls. 7 a 11, qualquer justificação para tal factualidade ter sido dada por provada, havendo omissão de pronúncia/demissão ajuizativa face a tal circunstancialismo ou provas que o sustentem, dúvidas inexistindo face à sua pertinência pois é com base nele que se mostra agravado o crime de abuso sexual mas nenhuma prova foi feita nesse sentido nem pode ser valorado tal circunstancialismo contra o arguido, em violação do princípio in dubio pro reo, devendo os mesmos serem julgados não provados e eliminada a agravação face ao alegado crime de abuso sexual, na eventualidade de ser mantida tal subsunção jurídica;

                B.Existe nulidade em razão da inovação ao nível do ponto 7, sendo notórias as diferenças face à douta acusação pública pois de uma relação familiar passou-se para “para-familiar” e de progenitor da irmã passou-se para “progenitor da meia-irmã”, com acréscimo do trecho “do mesmo modo lhe incutindo temor a circunstância de não ter mais ninguém próximo com quem viver”, tendo sido dado por provado algo pelo qual o arguido não estava acusado nem alguma vez lhe foi comunicado para efeitos de alteração substancial ou não dos factos, com vício de nulidade ao abrigo do art. 379º n.º 1 b) CPP, deveras essencial para a agravação do crime;

    C.Atentando no teor do ponto de facto 8 julgado provado, por contraposição ao que lhe correspondia na douta acusação pública, constata-se que a primeira parte é inovatória pois não constava nem da douta acusação pública deduzida nem foi comunicada ao abrigo de qualquer alteração substancial ou não de factos, tendo sido dado por provado algo pelo qual o arguido não estava acusado nem alguma vez lhe foi comunicado para efeitos de alteração substancial ou não dos factos, com vício de nulidade ao abrigo do art. 379º n.º 1 b) CPP;

     D.Por referência ao ponto julgado provado 9, por contraposição ao que lhe correspondia na douta acusação pública, são gritantes as diferenças pois foi dado como provado algo pelo qual o arguido não estava acusado nem alguma vez lhe foi comunicado para efeitos de alteração substancial ou não dos factos pois era a douta acusação totalmente omissa a qualquer dolo face à perturbação de liberdade e autodeterminação sexual, cingindo-se unicamente ao “livre desenvolvimento da sua sexualidade”, ou seja, a liberdade sexual plasmada na Secção I (e não II) do capítulo V, que apenas havia feito consagrar o dolo face ao crime de importunação sexual e não já face ao crime de abuso sexual;

                E. O Tribunal a quo, de forma encapotada e sub-reptícia, não precedida de comunicação alguma, tratou de sanar esse vício, de forma ilegal e ofensiva dos mais elementares direitos e garantias de defesa do arguido, julgando-se que tal vício tão-pouco poderá ser sanado com comunicação de alteração não substancial de factos, tendo de impor a absolvição do arguido face a tal crime de abuso sexual, pela inexistência imputativa do dolo específico, com vício de nulidade ao abrigo do art. 379º n.º 1 b) CPP;

            F. Julga-se existente contradição por preterição da presunção e inocência/in dubio pro reo por a dúvida não deixar de perpassar o espírito do Tribunal como decorre do teor de comunicação de alteração não substancial de factos que teve lugar em 11 de Julho de 2024, vertida na respectiva acta, pois aquilo que o Tribunal julgava que teria ocorrido e se preparava para dar por provado, o certo é que, pela produção de prova efectuada pelo arguido após tal comunicação, veio a expressamente resultar não provado (segundo facto não provado) pelo que nem a versão da douta acusação pública nem a versão da ofendida em julgamento, que havia motivado tal comunicação de alteração, resultaram provadas;

                G.Tal permite concluir pela ausência de uniformidade dos depoimentos e versões da ofendida e consequente falta de credibilidade da mesma, devendo ser dada por não provada também a factualidade de 2019, na senda até do vertido no relatório de perícia médico-legal onde a fls. 6, e reafirmado em sede de declarações para memória futura, tinha a ofendida dito que o arguido nunca lhe tinha feito nada, pelo que com multiplicidade de versões, ausência de coerência e mesmo da parte do Tribunal que se viu embarcado numa alteração não substancial de factos que depois julgou não provados, julga-se que se imporá decisão absolutória face ao circunstancialismo alegadamente ocorrido em 2019, com absolvição o arguido face ao crime de abuso sexual.

                H.Importará definir o que seja contacto de natureza sexual como a acção com conotação sexual tal contacto incluir o toque (com objectos ou partes do corpo) da nuca, do pescoço dos ombros, dos braços, das mãos, do ventre, das costas, das pernas e dos pés da vítima e mesmo nos seios, quando por cima da roupa e sem qualquer acariciar;

                I. Acariciar já co-envolve um contacto mais duradouro e repetido, que não meramente momentâneo e sem reiteração, o que não aconteceu in casu por se tratar de apalpão único e sem duração significativa pois apalpar é meramente tocar, o que não co-envolve tal douto acórdão convocado pelo Tribunal a quo a fls. 22 servir de critério para a punição do recorrente pelo crime de abuso sexual de menores dado que para se tratar de contacto de natureza sexual o mesmo terá de representar um ataque à liberdade sexual da vítima que assuma certa gravidade (sem traduzir a prática de acto sexual de relevo, objecto de incriminação distinta e mais gravosa);

                J. Teremos por existentes os seguintes actos sexuais: cópula (acto pelo qual o pénis de um homem é introduzido na vagina de uma mulher, haja ou não emissio seminis (cfr. Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 5/2003)]; coito oral (introdução, total ou parcial, do pénis de um homem na boca de outra pessoa, com ou sem erecção e com ou sem emissio seminis); coito anal (introdução, total ou parcial, do pénis de um homem no ânus de outra pessoa, com ou sem emissio seminis); introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou de objectos [as partes do corpo podem ser a mão, o dedo da mão, o dedo do pé, a língua e o nariz. Quanto aos objectos, podem estar em estado sólido (por exemplo vibradores, pénis artificiais, próteses, paus, garrafas, ou cabos de vassouras) ou líquido (por exemplo, sémen ou urina), podendo também consistir em partes de cadáveres ou animais]; cópula vulvar ou vestibular; beijo lingual; excitação do clitóris (pense-se no caso de uma paciente na ocasião de um exame ginecológico); passar as mãos ou o orgão sexual masculino pelas coxas, seios, órgãos sexuais, todas as formas de manipulação (v.g. masturbação), com ou sem ejaculação (no caso da masturbação de um pénis); apalpação dos seis e vagina, por cima, por baixo ou sem roupa; apalpação com força nas nádegas, tocando com os dedos na região anal;

            K.A serem todos estes actos sexuais de relevo importa questionar quais sejam os actos sexuais que não de relevo, ou seja, os simples pois tendo de haver necessariamente mais actos sexuais do que actos sexuais de relevo (que serão uma espécie mais diminuta e de maior ilicitude/relevância!), e se é certo que regra geral existirá uma motivação sexual (a qual não é exigida para consumação do crime, bastando a susceptibilidade de ser reconhecido por um observador como possuindo conotação sexual!), acaba por ser um pouco como a história dos carros dos táxis de antigamente (todos os táxis eram carros mas nem todos os carros eram táxis) dado que todos os actos sexuais de relevo são actos sexuais mas nem todos os actos sexuais serão de relevo, pois terão de haver os sem relevo;

                        L. De entre todos os actos sexuais o simples apalpar de seios com as mãos e por cima da roupa serão dos de menor densidade pois os seios também não são dos órgãos de maior conotação sexual, pelo que terão de cair no âmbito dos actos sexuais simples, que não de relevo, ficando estes unicamente para aqueles toques e actos a contender com a zona peniana, vaginal e anal, quer na vertente activa ou passiva (diferente seria se o toque nos seios tivesse sido com o órgão sexual masculino, com a língua ou fosse por debaixo da roupa ou com o corpo nú);

                        M.Tendo-se tratado de algo que ocorreu uma única vez, sem acariciar e por cima da roupa, a indiciar duração não significativa, salvo o devido respeito, para não ser tomada a árvore pela floresta, não pode o acto ilícito imputado ao recorrente ser tipificado como acto sexual de relevo, devendo ele ser absolvido do crime de abuso sexual do n.º 1 do art. 171º CP e condenado pelo do n.º 3 a) de tal norma legal;

                        N.É a douta perícia médico-legal clara ao afirmar que não resultaram visíveis quaisquer consequências para a ofendida (fls. 12 da mesma) e a valoração do relatório de perícia médico-legal de fls. 127 a 133, indicado como prova pelo Ministério Público, permite afastar a culpabilidade e consequências nefastas da actuação do arguido mas o Tribunal, ao invés de atentar no real, optou pelo ficcionado filme “Marnie”, de 1964 (em que os tempos eram muitíssimo outros!) como ressalta de fls. 27, não deixando tal perícia de retratar a alegada vítima como tendo uma personalidade “com níveis elevados de psicoticismo, assumindo a existência de comportamentos antissociais” e “grande dificuldade em estabelecer relações empáticas”;

                        O Decorre do relatório de perícia médico-legal, a fs. 12, que “a BB não apresenta qualquer sintomatologia indicadora de perturbação/sofrimento emocional” … “assim como não existiram cometários relacionados com sensações físicas peculiares relativamente aos comportamentos do AA para consigo”, a comprovar claramente que nada de ilícito sucedeu, não se vislumbrando dos factos imputados gravidade tamanha que permita ter por efectivamente praticados actos sexuais de relevo, quando se terá limitado a uma única apalpadela e por cima da roupa que, não obstante ser inapropriada e ilícita, não foi deveras gravosa nem aparentemente deixou danos emocionais ou outros e, tal diferença específica de ter inexistido desnudamento ou prática de tais factos a possibilitar toque e apalpadela directa, havendo pelo menos algo entre as mãos do agente e o corpo da alegada vítima, não permitirá tratamento semelhante caso o não houvesse, sob pena de violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso;

                        P. Julga-se mais conforme, em caso de eventual julgamento da douta acusação como provada, a sua subsunção em “contactos de natureza sexual” (e não actos sexuais de relevo!) e consequente subsunção jurídica na figura da importunação sexual nos termos e para efeitos do art. 171º n.º 3 a) CP;

                        Q. Mostra-se inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade, tipicidade, culpa, (des)igualdade, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso, o entendimento e dimensão normativa do art. 171º n.º 1 CP no sentido de “Constitui acto sexual de relevo apto a permitir a condenação do agente pela prática do crime de abuso sexual de menor a mera apalpação dos seios, por cima da roupa, sem reiteração nem acariciar, traduzindo-se num comportamento instantâneo, ocasional e por uma única vez”;

                        R. No tocante ao crime de importunação sexual, por referência ao envio das mensagens, impor--se-á sempre aquilatar do preenchimento da chamada bagatela penal, como limite mínimo, que, por desmerecer a tutela de tal ramo do direito, violaria o princípio da intervenção mínima pois há que atentar que conjuntamente com tal crime foi ainda criada a figura do “contacto sexual”, havendo que procurar desmistificar tal figura e conceito pois não será sinónimo de acto sexual (em nome da presunção vertida no n.º 3 do art. 9º CC), faltando agora aferir se serão todos os contactos a ser também actos ou o inverso dado que como a palavra “sexual” aparece em ambas as expressões, não será esta a fazer a diferença, haver que, isso sim, interpretar “acto” e “contacto”;

 S. Nos termos do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, I volume, da academia de Ciências de Lisboa, a fls. 943, “contacto” significa, no que ora interessa, “estado relativo, situação de dois ou mais corpos que se tocam”, indicando assim contiguidade e toque pelo que só isso justifica que o art. 171º n.º 3 nas suas alíneas a) e b) consagre na primeira o acto previsto no art. 170º e na segunda a conversa, escrito, etc., a significar que o art. 170º CP não engloba escritos e conversas de cariz sexual, tratando-se de um ponto decisivo, uma vez que além do argumento literal, junta-se o sistemático na defesa da tese ora explanada, sendo perfeitamente inócuo para o preenchimento do tipo de crime as mensagens como alusão a “tocar uma”, concluindo-se que não havendo contacto presencial não haverá crime de importunação sexual;

                T. É tido por pacífico que o Direito Penal, neste particular, não deve nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências (neste sentido veja-se Cardenal Murillo, Proteccion Penal Del Honor [1993], 66), devendo tal limiar mínimo de relevância corresponder, grosso modo, à linha demarcativa, a esse Equador (ou na visão perpendicular ou vertical “Meridiano”!), impondo-se a convocação do Direito Penal sempre que se mostre o mesmo ultrapassado, não sendo tal linha estanque e imutável, tendo vindo a sofrer a erosão dos tempos, tal como a própria questão da sexualidade, como comprova a não prova de inexperiência ou imaturidade da menor em causa;

                U.Dúvidas não haverão que o facto em si (o envio de tais mensagens) será censurável e não se enquadra no normal acontecer, fugindo à desejabilidade comportamental mas a questão que se coloca é saber se atingem o minus de relevância penal a ponto de exigir a intervenção de tal ramo do Direito, não bastando qualquer contacto sexual, havendo de aferir da sua relevância penal, tendo por parâmetro a sociedade bem como as consequências, pelo que de fora ficam desde logo, os actos bagatelares ou considerados insignificantes bem como todos aqueles que, ainda que de algum significado e impróprios, atenta a sua instantaneidade, ocasionalidade e reduzida ocorrência não sejam obstáculo de forma significativa à livre autodeterminação sexual da vítima dado que, constituindo a mais intensa das restrições que – neste âmbito – o Estado tem ao seu dispor, a reacção penal deverá pautar-se por critérios de estrita necessidade e proporcionalidade, sob pena de se desincentivar o cabal exercício de tais liberdades fundamentais;

                        V. Temos por violados os princípios da igualdade, proporcionalidade bem como do carácter de ultima ratio do Direito Penal que assim se vê convocado quando a litigiosidade e danosidade material se mostra secundária e a “justiça restauradora” uma realidade ao alcance de formas alternativas de resolução dado que impor-se-á sempre aquilatar do preenchimento da chamada bagatela penal, como limite mínimo, que, por desmerecer a tutela de tal ramo do direito, violaria o princípio da intervenção mínima, tendo-se por pacífico que não se poderão criminalizar situações, embora desagradáveis, que não tenham o mínimo de dignidade penal, dada a não identidade perfeita entre acto social ou moralmente inaceitável e criminalmente punível, alegando-se a questão da inconstitucionalidade derivada da preocupação que parece radicar em tal preceito legal de confundir necessidade de intervenção do Direito Penal de ultima ratio com moral e bons costumes, entendendo-se que os factos dados por provados face ao circunstancialismo de 2023 não atingem o patamar mínimo de dignidade penal do que seja “importunação sexual”;

                        W. Não se percebe muito bem o sentido das alegadas mensagens pois questiona-se quem é que, no seu juízo perfeito juízo, iria prometer pagar a alguém para levar a cabo um acto que dependeria unicamente da sua vontade e não co-envolveria qualquer acção desse terceiro pois ninguém iria pagar ou prometer pagar a terceiro por algo face ao qual nenhuma acção seria necessária desse mesmo terceiro nem se tratariam de actos que necessariamente se teriam de mostrar precedidos de autorização do(a) destinatário(a) como se pretende fazer crer por estarem em causa dois actos a levar a cabo única e exclusivamente pelo alegado emissor de tais mensagens, sem necessidade de qualquer ajuda suplementar de ninguém (pensar e executar), não estando preenchido o tipo legal do crime de importunação sexual, que deve ter sempre subjacente uma proposta sexual na qual o/a destinatário(a) tenha intervenção e seja parte, sob pena de ser apenas brejeirice não punível, como se julga in casu;

                        X. É inconstitucional, por violação dos princípio da legalidade, tipicidade, natureza de ultima ratio do Direito penal, culpa, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso a interpretação e dimensão normativa do art. 170º CP no sentido de “Comete o crime de importunação sexual quem envia mensagens escritas com conotação a auto-masturbação a levar a cabo por si próprio e sem qualquer participação da destinatária, que apenas teria de autorizar, ainda que com alusão a pagamento por isso”.

            Y. Ao nível da dosimetria penal haverá especial e maior importância no caso de alteração de subsunção jurídica, seja pela convolação em crime ao abrigo da alínea a) o n.º 3 do art. 171º CP seja pela não verificação da circunstância agravante do aproveitamento da coabitação e dependência económica plasmada na alínea a) do n.º 1 do art. 177º CP, julgando-se adequada pena não superior a seis meses de prisão no primeiro caso ou pena não superior a um ano e quatro meses de prisão no segundo caso;

                Z. A manter-se inalterada a subsunção jurídica julga-se que haverá margem para atenuação da pena única aplicada pois o Tribunal a quo errou nos fundamentos para a dosimetria penal, ao considerar, indevidamente, as possíveis consequências dos factos para a menor, das quais não há uma única prova pois a perícia afasta-as (todavia, o Tribunal a quo optou por valorar um filme de 1964, olvidando o relatório de perícia médico-legal, trocando o real pelo irreal!) mostrando-se o pecado capital ao nível da dosimetria da pena única com convocação, a fls. 29º 2º parágrafo, de “período temporal alargado” mas esquecendo que entre Janeiro de 2019 a Janeiro de 2023 não houve qualquer ilícito, não se tratando de ilicitude contínua nem duradoura, mas unicamente dois episódios isolados, e sem que se possa falar de “in-sensibilidade ao efeito dissuasor da prática de crimes” por se tratar de apenas dois episódios!

                AA. Por força de tais considerandos o Tribunal a quo fixou a pena única em medida superior ao equador da moldura do concurso, tendo adicionado 2/3 (seis meses!) da segunda pena à parcelar a mais elevada, julgando-se flagrante o excesso, não se vislumbrando justeza em punição superior a dois anos e um mês, já a representar acréscimo de quase metade da pena, defendendo-se atenuação da pena única;

            BB. Inexistem razões para arbitramento de indemnização pois, tal qual decorre de tal relatório de perícia médico-legal, datada de 18 de Outubro de 2019, a versar sobre os alegados factos de 2019 (que serão os mais gravosos, diga-se até!) não houveram quaisquer danos dignos de registo nem se verificavam repercussões negativas na esfera da alegada vítima, conforme ressalta do trecho de tal douta perícia a fls. 12, não tendo a suspensão provisória do processo, que foi anteriormente decretada, ficado subordinada ao pagamento de qualquer indemnização e foi a alegada vítima notificada (desde logo após a prolação acusatória!) expressamente para a possibilidade de deduzir pedido de indemnização cível e não o fez!

                CC. A ser arbitrada alguma quantia sempre € 2.500,00 se mostra deveras excessivo e para além da culpa e singeleza dos concretos factos julgados provados, devendo haver atenuação substancial;

            DD. Normas jurídicas violadas: maxime arts. 71º n.os 1 e 2 a), b),c) e d), 170º, 171º n.os 1 e 3 a) e 177º n.º 1 b) CP; arts. 82º-A, 127º e 379º n.º 1 a), b) e c) CPP; arts. 13º n.º 1, 18º n.os 1 e 2, 27º n.os 1 e 4, 32º n.os 1, 2 e 5, 110º n.º 1, 202º n.os 1, 2 e 3, 204º e 205º CRP; arts. 9º, 483º, e 496º n.os 1 e 3 CC; art. 412º n.º 1 CPC; Princípios violados e erroneamente aplicados: maxime da livre apreciação da prova, da presunção de inocência (in dubio pro reo), da proibição da dupla valoração, da culpa, da legalidade, da tipicidade, da subsidiariedade e ultima ratio do Direito penal, da igualdade, da proporcionalidade, da adequação e da proibição do excesso bem como das finalidades da punição.

                                                                                                                                                                             Sic,

contando sempre com o mui douto suprimento de V/ Exas., atento o supra exposto, entende o recorrente que em obediência aos mais elementares princípios constitucionais e comandos interpretativos que presidem a um Direito penal que se queira materialmente justo e processualmente conforme, não poderá deixar de ser dado provimento ao presente recurso, maxime em razão dos vícios de que padece o douto acórdão recorrido e dos quais deverá ser expurgado: I) nulidade por ausência e insuficiência de prova, conjugada com ausência de fundamentação decisória dos pontos de facto 4 e 7 2ª parte; II) nulidade por inovação condenatória, não precedida de qualquer comunicação, face aos pontos de facto 7, 8 primeira parte e 9; III) nulidade por contradição insanável, com preterição da presunção de inocência/in dubio pro reo; IV) errónea subsunção jurídica face aos crimes de abuso sexual de menores e importunação sexual; V) majoração da dosimetria penal ao nível das penas parcelares e pena única cujas atenuações se peticiona; e ad cautelam VI) indevida condenação em indemnização, ademais com majoração indevida do seu quantum e excesso;

V/ Exas., seres humanos sábios, pensarão e decidirão necessariamente de forma justa, alcançando a costumada e almejada Justiça, catalogada por François René Chateubriand como o pão da nação, a qual dele sempre se encontra esfomeada, bem como, nas doutas palavras de António Cánovas del Castillo, se afigura a alma do juiz e, citando Marco Túlio Cícero, invencível quando bem dita… Todavia, nunca esquecendo que, citando Piero Calamandrei, O Juiz é o Direito tornado homem…

Aguardando anuência de V/ Exas.,”

           


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      3. Admitido o recurso, a ele respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, extraindo da resposta apresentada as seguintes conclusões:

        “1- Não há ofensa ao princípio do in dubio pro reo, porquanto e na apreciação dos factos que vieram assentes, não se colocou, ao tribunal, qualquer situação de dúvida que, para além do razoável, se tornasse irremovível.

        2- O douto acórdão recorrido mostra-se fundamentado e evidencia o substracto racional que levou à formação da convicção do Colectivo de Juízes, não enfermando, por isso, de qualquer vício processual e, concretamente, da nulidade prevista no artigo 379º, n.º 1, al. a), com referência ao artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

        3- Igualmente carece de fundamento, a nulidade invocada decorrente da alínea c), do artigo 379.º , n.º 1, do Código de Processo Penal, por o douto colectivo se ter limitado a dar aos factos descritos na acusação uma redacção ligeiramente diferente da originária, de modo a tornar compreensiva e explicar melhor a própria narrativa, mas sem alterar na substância, a matéria assente como provada.

        4- Assim e perante a prova produzida e decorrente da factualidade estabelecida, concluiu, o Tribunal, como se impunha, pela verificação de todos os elementos constitutivos dos crimes censurados ao arguido.

        5- Tendo presente as finalidades da punição, a culpa do arguido e as exigências de prevenção, sem haver deixado de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depunham a favor ou contra aquele, o Tribunal determinou, com critério, quer as penas parcelares concretamente a aplicar, quer, decorrente do cúmulo jurídico operado, a respectiva pena única.

        6- O douto acórdão recorrido fez correcta interpretação dos precitos legais que havia a aplicar , não se mostrando ofendido qualquer normativo.

        Nestes termos e pelo mais que, Vossas Excelências, Senhores Juízes Desembargadores, segura e sabiamente não deixarão de suprir, negando-se provimento ao recurso interposto e, consequentemente, confirmando-se o acórdão condenatório proferido, far-se-á Justiça.”


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      4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, rebatendo a argumentação do recorrente subjacente a cada um dos segmentos recursivos.

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      5. Cumprido o disposto no art. 417º nº2 do CPP, o arguido respondeu ao parecer reiterando o alegado no requerimento de interposição do recurso.

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      6. Colhidos vistos legais, os autos foram a conferência.

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      II- Fundamentação

      A) Delimitação do objeto do recurso

      Dispõe o art. 412º, nº1, do Código de Processo Penal, que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

      Decorre de tal preceito legal que o objeto do processo se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º, 403º e 412º- naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág. 340, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009, pág. 1027 a 1122, Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 2008, pág.103).

      Como expressamente afirma o Professor Germano Marques da Silva, in obra citada, “São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem que apreciar”.

      Assim sendo, estando a apreciação do recurso balizada pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

      - A nulidade do acórdão por falta de fundamentação decorrente da falta de exame crítico das provas;

      - A nulidade do acórdão decorrente da condenação por factos diversos dos descritos na acusação, sem prévia comunicação;

      - A incorreta decisão da matéria de facto e suas consequências;

      - A incorreta ponderação do enquadramento jurídico-penal dos factos;

            - A incorreta ponderação da pena parcelar fixada para o crime de abuso sexual de crianças e da pena única;

      - A excessividade da quantia indemnizatória arbitrada à ofendida.


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B) Da decisão recorrida

Para a apreciação das questões que se suscitam no presente recurso, importa ter presente, para já, o que deflui do acórdão recorrido respeitante à decisão da matéria de facto e à respetiva motivação.

a. Dela consta a seguinte factualidade provada:

“1 – BB nasceu em ../../2006;

2 – a aludida BB, à data dos factos a seguir descritos (dado ter o seu pai já falecido e encontrar-se a sua progenitora impossibilitada de, à época, dela tomar conta, por haver sofrido um acidente vascular cerebral), vivia com a sua meia-irmã CC e com dois sobrinhos menores, filhos desta, em casa do arguido, na Rua ..., em ..., ...;

3 – o arguido é pai da referida CC;

4 – este agregado dependia então essencialmente, do ponto de vista económico, do arguido;

5 – em data não concretamente apurada de Janeiro de 2019, na residência acima aludida, quando se encontravam apenas os dois e sem qualquer outra pessoa nas proximidades, o arguido, pelo menos por uma vez, aproximou-se da BB e apalpou-lhe os seios, por cima da roupa;

6 – em Janeiro de 2023, e não vivendo já a BB na sua casa nem estando dele economicamente dependente, o arguido enviou as seguintes mensagens escritas, através de telefone móvel, para o telefone móvel daquela menor: “logo posso tocar uma a pensar em ti, se deixares ganhas € 10” e “não ficas chateada comigo de eu tocar a pensar em ti?”;

7 – o arguido conhecia a idade da BB quando praticou o facto descrito no ponto 5 (desta factualidade provada) e sabia que, à época, tinha sobre ela ascendente económico e para-familiar (por ser o progenitor da meia-irmã com quem a menor coabitava), do mesmo modo lhe incutindo temor a circunstância de não ter mais ninguém próximo com quem viver, circunstâncias de que aquele se aproveitou;

8 – por outro lado, a BB sentiu-se incomodada e envergonhada ao ser apalpada nos seios pelo arguido, assim como, posteriormente, ao ler as mensagens de teor sexual referidas no ponto 6 (da presente matéria assente);

9 – agiu sempre o arguido de modo livre, voluntário e consciente, pretendendo e conseguindo satisfazer os seus instintos sexuais à custa da BB, bem sabendo que desta forma perturbava, como perturbou, a liberdade e autodeterminação sexual da mesma e o desenvolvimento da respectiva personalidade no domínio sexual;

10 – mais actuou o arguido ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal;

11 – o arguido é o filho mais novo da primeira relação conjugal da progenitora, que veio a divorciar-se do pai do arguido quando contava este último um ano de idade;

12 – do segundo vínculo conjugal da mãe resultaram três irmãos mais novos do arguido, com os quais cresceu na zona de ..., bem como com os mais velhos, em um conjunto de dez irmãos;

13 – o arguido frequentou o ensino primário, na ..., abandonando os estudos no 4º ano de escolaridade, com 13 anos de idade;14 – começou, seguidamente, a laborar na exploração e no corte de madeira nos pinhais e em actividades agrícolas, sempre por conta de outrem;

15 – actualmente, e desde há cerca de 20 anos a esta parte, trabalha em uma empresa de metalomecânica, auferindo um salário líquido mensal variável, mas entre os € 882,18 e os € 1.022,98;

16 – no presente, vive sozinho, embora faça as refeições em casa da acima identificada CC, sua filha, que entretanto se autonomizou do arguido, não obstante continuarem a manter uma relação de proximidade e entreajuda constante, distando as duas residências cerca de 6 quilómetros entre si;

17 – é também a CC que cuida da roupa do arguido;

18 – o arguido tem, em despesas fixas mensais, um mínimo de cerca de € 300, decorrentes do consumo de energia eléctrica, gaz, água canalizada e utilização de telefone móvel, contribuindo também com valores variáveis para a aquisição, pela filha CC, de géneros alimentares para a confecção das refeições das quais o arguido igualmente aproveita;

19 – quando contava 16 anos de idade, o arguido iniciou uma relação marital com aquela que viria a ser sua mulher até 2005, data do respectivo divórcio, e de cuja união nasceria a referida CC, que se manteve a viver com o arguido mesmo após o mencionado divórcio;

20 – o arguido não conta antecedentes criminais;

21 – do novo vínculo conjugal da ex-mulher do arguido nasceria, por seu turno, a acima identificada BB;

22 – ao abrigo de um processo de promoção e protecção que corre termos no Juízo de Família e Menores ... (processo n.º 1127/19....), a BB acabou por ficar aos cuidados de uma instituição de apoio a jovens (Casa de Formação

23 – em Abril do corrente ano de 2024, passou a estar integrada no núcleo familiar da madrinha, composto pela própria, o marido e duas filhas menores do casal, após a aproximação afectiva que, no decurso da institucionalização da BB, aconteceu entre todos eles;

24 – no actual contexto onde encontra inserida, são assegurados à BB os cuidados e os estímulos educativos adequados, participando esta nas actividades domésticas e adaptando-se, sem problemas de maior, às regras e aos horários familiares;

25 – mesmo após atingir a maioridade (o que acontecerá em 6 de Dezembro de 2024), pretende a BB permanecer integrada no actual agregado familiar, sendo tal intuito partilhado pela respectiva madrinha;

26 – a BB frequenta o 11º ano de escolaridade, no curso técnico-profissional de técnico de restaurante e bar, na Escola Secundária ..., em Coimbra, pretendendo posteriormente concluir o 12º ano e ingressar no mercado de trabalho da mencionada área;

27 – o seu relacionamento com a meia-irmã CC, sobretudo na sequência dos factos acima narrados e objecto dos presentes autos, passou a ser distante e quase sem comunicação entre ambas;

28 – no mais, apesar de não manter actualmente o arguido contacto consigo, receia e tem a BB medo, devido à factualidade acima descrita e objecto deste processo, de uma nova eventual aproximação por parte daquele.”

b. Dela consta a seguinte factualidade não provada:

“- em data não apurada de Janeiro de 2019, na residência acima aludida no ponto 2 (da factualidade assente), quando se encontravam reunidos à lareira e sem que mais ninguém se apercebesse, o arguido aproximou-se da BB e, enquanto a elogiava, dizendo-lhe que a achava muito bonita e que gostava de a levar a passear, apalpou-lhe as nádegas, por cima das calças que a menor então trajava;

- em Janeiro de 2023, em dia não concretamente apurado, estando a BB a tomar banho na morada acima identificada no ponto 2 (da matéria provada), o arguido abriu a porta da casa de banho, sabendo que aquela ali se encontrava, e viu a menor nua.”

c. Dela consta a seguinte motivação:

“O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica, ponderada e maturada do conjunto dos elementos probatórios produzidos, “peneirados”, nos termos do art. 127º C.P.P., à luz das regras normais da experiência da vida [ou seja, das «(…) definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judicio, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade» – Prof. Manuel Cavaleiro de Ferreira, “Curso de processo penal”, volume II, Lisboa, 1988, pág. 30].

            Posto isto, o que temos nós in casu?

                Da parte do arguido, uma negação dos factos a si assestados na acusação pública, com excepção dos que se referem às mensagens escritas por ele enviadas por telefone móvel à BB, factualidade que disse nem conseguir explicar, pois “não sabia onde estava com a cabeça” para adoptar semelhante comportamento… Mais acabando por acrescentar, a dado momento do seu discurso em audiência, admitir poder ter eventualmente tocado, “sem querer”, no corpo da menor, mas sem que tal hipotético “toque” houvesse consubstanciado um qualquer apalpão…

                Bom, é certo que, em sede de depoimento para memória futura, prestado em 7 de Março de 2019 (auto de fls. 69), a menor BB nada veiculou quanto a qualquer um dos factos descritos na acusação pública, designadamente no tocante aos “avanços” protagonizados pelo arguido em relação ao seu corpo (cfr. transcrição de fls. 287 a 292). Mas importa também notar que, tratando-se de um depoimento produzido em um momento bastante próximo à ocorrência do apalpar dos seios de que fora vítima e, sobretudo, de um depoimento prestado em uma altura em que se encontrava (praticamente “de favor”) em casa do arguido, a par da sua meia irmã CC, não se mostrou aos olhos do Colectivo absolutamente inusitado ou “estranho” que uma jovem de 12 anos de idade, em uma situação de desprotecção vivencial como a que então experimentava, acabasse por, nessa primeira diligência de depoimento (para memória futura), revelar uma atitude de receio (rectius, medo) perante as eventuais consequências que desse seu depoimento pudessem advir para o dominus do local onde residia e de quem, ao cabo e ao resto (e estando a sua mãe a lutar contra os sérios efeitos de um acidente vascular cerebral), a própria subsistência da depoente dependia. Isto mesmo resultou, para o Tribunal, credível, quando em sede de audiência de julgamento – e após o dado objectivo das mensagens escritas a ela enviadas pelo arguido (cfr. documentos de fls. 275 a 277) cerca de três anos após a primeira “vaga” de actuação do mesmo –, a menor, já a viver no agregado familiar da sua madrinha, explicou os apontados dramas passados, acabando por esclarecer haver sido claramente apalpada nos seios, por cima da roupa que trazia vestida, mas de um modo (evidentemente) propositado por banda do arguido, em casa deste, aquando daquela primeira “vaga” de investidas, e em momento(s) no(s) qual(ais) ninguém se apresentava nas proximidades de ambos. Cabe dizer, em abono da verdade, que o modo de exposição e expressão da menor, não sendo propriamente o mais cristalino, deixou junto do Colectivo, não obstante a sua convicção de que o “cerco” do arguido em relação à depoente existiu, algumas dúvidas sobre se teria ou não incluído igualmente apalpões ao rabo; tal como se, já em 2023, haveria ou não o arguido conseguido observar o corpo nu da menor, quando a mesma tomava banho (tanto mais que acabou por ser a própria menor a admitir em audiência que, contrariamente ao que parecia ter sustentado primeiramente, ela se encontrava, nessa altura, a residir, não em casa do arguido, mas da sua meia-irmã CC, local por onde, não obstante, era mais ou menos habitual o arguido deambular). Ou seja, resumindo e concluindo, pareceu ao Tribunal que (não estando propriamente em causa uma capacidade diminuída de a mesma prestar um testemunho coerente e lógico – vide, neste sentido, o relatório pericial de fls. 127 a 133), a “descompressão” e a falta de condicionamento da BB em audiência de julgamento nada teve que ver com o contexto no qual começou ela, em Março de 2019, por prestar o seu depoimento para memória futura. Mas, dito isto, importa perceber, com efeito, esta dúplice questão: por um lado, a circunstância de ser ela (menor) enfática e absolutamente veemente e circunstanciada quanto à circunstância de haver sofrido apalpões nos seios (quantos, ao certo, não o sabemos, tendo por isso o Colectivo dado como assente a versão menos prejudicial ao arguido, ou seja, uma situação), mas já não relativamente ao seu rabo; por outro lado, o dado objectivo de, mesmo que pudesse haver sido “espiada” pelo arguido quando tomava banho, não o ter constatado – ela própria –, antes afirmando ser ele, mais tarde, a contar-lhe semelhante facto, o que, perante a absoluta negação da matéria em audiência pelo arguido, e nada mais nos inculcando uma certeza mínima acerca da sua efectiva verificação, não poder deixar de aqui intervir o basilar princípio in dubio pro reo.

            A acolitar, por fim, a convicção do Tribunal temos ainda alguns outros elementos relevantes, a saber, a circunstância de, logo nos inícios de 2019, e como ambas o relataram em audiência de julgamento, haver a menor confidenciado à sua então (inícios de 2019) colega de escola DD que o arguido “lhe apalpava as mamas” quando se encontravam em casa, acabando esta última por, preocupada com o que ouvira, relatar o sucedido à professora de português de ambas que, por seu turno, fez chegar tal matéria a EE, à época directora de turma.

                E nada de substancialmente muito diferente decorreu do depoimento de FF, primo direito da menor, que igualmente ouviu desta, conforme trouxe a juízo, semelhante queixa quanto às “investidas” do arguido.

                Já GG foi importante, na óptica do Tribunal, na medida em que terá sido a pessoa a quem, em uma altura na qual já não se encontrava em casa do arguido, a menor mostrou os prints das mensagens escritas a ela enviadas pouco antes pelo mesmo arguido (ficando até o Colectivo com a convicção de que, diferentemente do sustentado pela testemunha, tal “amostragem” deverá ter ocorrido, não em 2022, mas sim nos inícios de 2023, pois que a data das mesmas se situa, desde logo, em Janeiro, ocorrendo depois a pronta intervenção da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, a tal propósito, em 7 de Março de 2023 – cfr. comunicação de fls. 273 e 274, efectuada pela dita Comissão ao Ministério Público, e os aludidos prints de fls. 275 a 277).

            Por fim, HH é o elemento policial que prestou alguns esclarecimentos sobre o andamento investigatório e as démarches que o mesmo comportou até chegar a juízo.

                Ora, tudo ponderado, não pudemos deixar de atribuir credibilidade, nos moldes já aludidos, à luz das normais (que não das “anormais”…) regras da experiência da vida, à concatenação do conjunto de elementos que vimos referindo, e só na estrita medida em que tais elementos se apresentaram idóneos a sustentar a convicção judicativo-decisória do Colectivo, nos exactos moldes constantes da súmula de factos provados.

                E tudo o que fomos expondo permite-nos também avançar para o animus com que o arguido actuou. É que o dolo constitui, as mais das vezes, um bom exemplo de escola do que, por revelar uma índole anímica, ligada ao espírito e à vontade do agente, tem de assentar, para a inerente demonstração, naquilo que amiúde se chama de “prova indirecta”. Dito de outro modo, raramente os actos interiores ou factos internos, que respeitam à vida psíquica da pessoa, se provam directamente, pelo que tê-los-emos de surpreender e captar nos factos exteriores, no comportamento externo e visível do agente que realiza um tipo objectivo de crime, devendo o julgador, por isso, resolver a questão factual decidindo se o agente agiu internamente (na sua voluntas) da forma como foi por si revelada externamente. De acordo com o Ac. Rel. Coimbra de 8/11/2017, em casos como os que acabamos de aludir, a prova do dolo terá que ser levada a cabo por inferência, isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – particularmente, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum (onde a premissa maior é composta pela ou pelas regras da experiência comum convocadas e a premissa menor é composta pelo facto ou pelos factos objectivos provados) (no mesmo sentido, cfr. igualmente Ac. S.T.J. de 12/3/2009, ambos os arestos disponíveis em www.dgsi.pt).

            Portanto, a factualidade perpetrada pelo arguido sobre a menor BB em momento algum seria idónea a dar como boa – como o arguido pretendeu fazer crer – uma suposta “involuntariedade” no apalpar dos seios à vítima, ou um não “saber onde andava com a cabeça” quando escreveu o que escreveu e enviou ao telefone móvel da sua destinatária…

                Quanto à situação pessoal do arguido, sua personalidade e modus vivendi essencial, para além de tudo o que ressuma do já exposto, tomaram-se em conta as declarações do próprio, a cópia do recibo de vencimento de fls. 369, assim como o teor do relatório social junto de fls. 354 a 356 (sendo muito “conveniente” – e por isso rechaçada pelo Colectivo – a afirmação do arguido aí mencionada de que teria vendido a sua casa ao cunhado e a este pagaria uma renda mensal de cerca de € 200, embora “sem recibos”…), estando a ausência de antecedentes criminais atestada no certificado de fls. 347.

                Já relativamente aos deletérios efeitos dos comportamentos do arguido sobre si, tomou-se não só em conta, uma vez mais, o depoimento prestado pela menor BB em audiência, mas também o conteúdo do recente relatório trazido aos autos pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais acerca da evolução vivencial da mesma menor (fls. 387 a 389).

                Por fim, relevou ainda o teor da certidão dos assentos de fls. 257 a 260.

                No tocante à factualidade dada por não assente, e como deflui de tudo o já exposto, decorre a mesma da não produção de elementos credíveis o bastante para a respectiva demonstração.”


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         C) Apreciação do recurso

      - Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação decorrente da falta de exame crítico das provas

            Vem o arguido e ora recorrente assacar ao acórdão recorrido a nulidade prevista no art. 379º, nº1 al. a) do CPP, com a fundamentação que sintetiza na conclusão A., da seguinte forma:

            “Verifica-se nulidade por ausência de prova e fundamentação decisória dos pontos 4 e 7 2ª parte, tendo o Tribunal consciência disso mesmo pois tão-pouco oferece fundamentação decisória face aos mesmos, havendo nulidade ex vi art. 379º n.º 1 a) CPP, não ressaltando, da fundamentação de fls. 7 a 11, qualquer justificação para tal factualidade ter sido dada por provada, havendo omissão de pronúncia/demissão ajuizativa face a tal circunstancialismo ou provas que o sustentem, dúvidas inexistindo face à sua pertinência pois é com base nele que se mostra agravado o crime de abuso sexual mas nenhuma prova foi feita nesse sentido nem pode ser valorado tal circunstancialismo contra o arguido, em violação do princípio in dubio pro reo, devendo os mesmos serem julgados não provados e eliminada a agravação face ao alegado crime de abuso sexual, na eventualidade de ser mantida tal subsunção jurídica”.

            A abordagem da questão assim suscitada pelo arguido e ora recorrente remete-nos para o regime das nulidades da sentença estatuído no art. 379º do Código de Processo Penal doravante CPP, cujo elenco consta do seu nº1, que por este vem invocado.

            A nulidade prevista no citado art. 379º, nº1, a), por remissão para o normativo contido no art. 374º nº2 do mesmo diploma legal pressupõe que a decisão em causa não contenha fundamentação, da qual deverá constar: a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, fundamental à decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

            Em conformidade com o disposto no n.º 2 do art.º 374.º, sob a epígrafe Requisitos da sentença “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”

            A fundamentação da sentença é uma exigência constitucional prevista no art.º 205º da CRP, que prevê que, “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

            Como defende Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, pag. 290, “A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite o controlo da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autocontrolo.”

            Densificando o conteúdo do preceito legal contido no citado Art. 374º, nº 2, normativo legal este em que os recorrentes se ancoras para sustentar a falta de fundamentação que assacam ao acórdão recorrido, apenas e só na vertente de falta de exame crítico das provas, diremos, seguindo de perto o Ac. do STJ, de 16-03-2005, disponível in www.dgsi.pt,  que:

            “A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão;

            (… ) A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão.

            (.. ) O tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico contido numa decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.

            (…) O ‘’exame crítico" das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular a fundamentação em matéria de facto - mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência.

            (…) A noção de "exame crítico" apresenta-se como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.          

            (…) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

            (…) A integração das noções de ‘’exame crítico" e de "fundamentação envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.”.

            A nulidade elencada no citado art. 379º nº1 a) pressupõe, assim, que a decisão (sentença ou acórdão) não contenha fundamentação com a abrangência imposta por aquele citado Art. 374º nº2.

             Em causa está saber se o acórdão recorrido padece da nulidade prevista na alínea a) do nº1 do citado art. 379º por falta de exame crítico das provas.

            Alcança-se da argumentação recursiva, feita quer no corpo da motivação do recurso, quer na aludida conclusão A., que o recorrente sustenta a invocada nulidade na “ausência de prova e fundamentação decisória” relativamente à factualidade dada como provada no acórdão recorrido nos pontos 4. e 7. 2ª parte, argumentando, para tanto, que não ressalta da fundamentação qualquer justificação para tal factualidade ter sido dada por provada, densificando tal argumentação no corpo da motivação adiantando apenas que “da fundamentação de fls. 7 a 11 não ressalta qualquer justificação para tal factualidade ter sido dada por provada, havendo omissão de pronúncia/demissão ajuizativa face a tal circunstancialismo ou provas que o sustentem.
                E dúvidas inexistirão face à sua pertinência pois é com base nele que se mostra agravado o crime de abuso sexual!
                De facto, para que fosse verdade, a filha do arguido, Sra. CC teria de não trabalhar e de viver unicamente a expensas deste.
                Ora, nenhuma prova foi feita nesse sentido nem pode ser valorado tal circunstancialismo contra o arguido, em violação do princípio in dubio pro reo.
                Pelo que em função disso deverão os mesmos ser julgados não provados e eliminada a agravação face ao alegado crime de abuso sexual, na eventualidade de ser mantida tal subsunção jurídica.”

            Bastará atentar nesta argumentação para, com meridiana clareza, se perceber que o arguido e ora recorrente confunde a falta de análise crítica das provas produzidas com a incorreta valoração das mesmas, quando, como é certo, só a primeira constitui fundamento da nulidade prevista no invocado art. 379º, nº1, a).

            Isto porque.

            O acórdão recorrido contém a enumeração dos factos provados e não provados.

            Quanto à indicação das provas que serviram de base à convicção do Tribunal recorrido para decisão dos factos provados e não provados, mostra-se exarado na motivação a esse propósito expendida nele espraiada quais as concretas provas que serviram para o tribunal a quo alcançar a convicção que firmou quanto aos factos que nele considerou provados e não provados, nele se indicando os elementos probatórios de índole documental e pericial e os que, por terem sido produzidas oralmente – em resultado das declarações prestadas em audiência de julgamento pelo arguido e dos depoimentos das testemunhas que nela foram inquiridas e também nas declarações prestadas pela ofendida para memória futura – contribuíram, conjugadamente e analisados à luz das regras da experiência comum, para firmar a convicção do tribunal relativamente a essa factualidade provada e não provada.

            A fundamentação referente à indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal abrangida pela densificação normativa que o nº2 do art. 374º comporta, não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o ato de decidir numa tarefa impossível.

            No que concretamente diz respeito à factualidade dada como provada no acórdão recorrido em relação à qual o recorrente assaca a falta de fundamentação (pontos 4. e 7., 2ª parte), resulta da motivação exarada no acórdão recorrido que o tribunal a quo formou a sua convicção a respeito da mesma nas declarações da ofendida - quer as prestadas para memória futura, quer as prestadas em audiência de julgamento – a cuja análise crítica procedeu, concatenando-a com a análise crítica que, igualmente, fez dos demais elementos probatórios.

            E, para tanto, aduziu em relação às declarações que foram prestadas para memória futura pela testemunha ofendida menor que “tratando-se de um depoimento produzido em um momento bastante próximo à ocorrência do apalpar dos seios de que fora vítima e, sobretudo, de um depoimento prestado em uma altura em que se encontrava (praticamente “de favor”) em casa do arguido, a par da sua meia irmã CC, não se mostrou aos olhos do Colectivo absolutamente inusitado ou “estranho” que uma jovem de 12 anos de idade, em uma situação de desprotecção vivencial como a que então experimentava, acabasse por, nessa primeira diligência de depoimento (para memória futura), revelar uma atitude de receio (rectius, medo) perante as eventuais consequências que desse seu depoimento pudessem advir para o dominus do local onde residia e de quem, ao cabo e ao resto (e estando a sua mãe a lutar contra os sérios efeitos de um acidente vascular cerebral), a própria subsistência da depoente dependia. Isto mesmo resultou, para o Tribunal, credível, quando em sede de audiência de julgamento – e após o dado objectivo das mensagens escritas a ela enviadas pelo arguido (cfr. documentos de fls. 275 a 277) cerca de três anos após a primeira “vaga” de actuação do mesmo –, a menor, já a viver no agregado familiar da sua madrinha, explicou os apontados dramas passados, acabando por esclarecer haver sido claramente apalpada nos seios, por cima da roupa que trazia vestida, mas de um modo (evidentemente) propositado por banda do arguido, em casa deste, aquando daquela primeira “vaga” de investidas, e em momento(s) no(s) qual(ais) ninguém se apresentava nas proximidades de ambos. Cabe dizer, em abono da verdade, que o modo de exposição e expressão da menor, não sendo propriamente o mais cristalino, deixou junto do Colectivo, não obstante a sua convicção de que o “cerco” do arguido em relação à depoente existiu, algumas dúvidas sobre se teria ou não incluído igualmente apalpões ao rabo; tal como se, já em 2023, haveria ou não o arguido conseguido observar o corpo nu da menor, quando a mesma tomava banho (tanto mais que acabou por ser a própria menor a admitir em audiência que, contrariamente ao que parecia ter sustentado primeiramente, ela se encontrava, nessa altura, a residir, não em casa do arguido, mas da sua meia-irmã CC, local por onde, não obstante, era mais ou menos habitual o arguido deambular). Ou seja, resumindo e concluindo, pareceu ao Tribunal que (não estando propriamente em causa uma capacidade diminuída de a mesma prestar um testemunho coerente e lógico – vide, neste sentido, o relatório pericial de fls. 127 a 133), a “descompressão” e a falta de condicionamento da BB em audiência de julgamento nada teve que ver com o contexto no qual começou ela, em Março de 2019, por prestar o seu depoimento para memória futura. Mas, dito isto, importa perceber, com efeito, esta dúplice questão: por um lado, a circunstância de ser ela (menor) enfática e absolutamente veemente e circunstanciada quanto à circunstância de haver sofrido apalpões nos seios (quantos, ao certo, não o sabemos, tendo por isso o Colectivo dado como assente a versão menos prejudicial ao arguido, ou seja, uma situação), mas já não relativamente ao seu rabo; por outro lado, o dado objectivo de, mesmo que pudesse haver sido “espiada” pelo arguido quando tomava banho, não o ter constatado – ela própria –, antes afirmando ser ele, mais tarde, a contar-lhe semelhante facto, o que, perante a absoluta negação da matéria em audiência pelo arguido, e nada mais nos inculcando uma certeza mínima acerca da sua efectiva verificação, não poder deixar de aqui intervir o basilar princípio in dubio pro reo.” (sublinhado nosso).

                 Daqui se inferindo que, pelas razões sobejamente adiantadas na aludida motivação, deu credibilidade às declarações prestadas pela testemunha ofendida BB, nos termos que explicitou, das quais extraiu que à data dos factos ocorridos em Janeiro de 2019 esta e também a sua meia-irmã CC viviam “praticamente “de favor” na casa do arguido, o que conjugou, ainda, com o teor do relatório social junto a fls. 354 a 356, do qual extraiu a situação pessoal do arguido e o seu modus vivendi essencial, neste se referindo, ainda que na motivação, a tal expressamente se não aluda, “ Á data dos factos, a filha do arguido, ainda não se tinha autonomizado e integrava o seu agregado familiar “.

                Assim se percebendo o raciocínio logico-dedutivo feito pelo tribunal recorrido em relação a tais meios de prova que conduziu à prova de que o agregado familiar que a menor integrava em Janeiro de 2019, dependia essencialmente, do ponto de vista económico, do arguido, vertida no ponto 4. no que tange

            Já quanto à factualidade provada vertida na 2ª parte do ponto 7., respeitante ao elemento subjetivo do crime de abuso sexual que lhe vem imputado, esclareceu o tribunal recorrido nessa mesma motivação, no seguimento da análise crítica que fez dos meios de prova carreados para os autos, que “tudo o que fomos expondo permite-nos também avançar para o animus com que o arguido actuou. É que o dolo constitui, as mais das vezes, um bom exemplo de escola do que, por revelar uma índole anímica, ligada ao espírito e à vontade do agente, tem de assentar, para a inerente demonstração, naquilo que amiúde se chama de “prova indirecta”. Dito de outro modo, raramente os actos interiores ou factos internos, que respeitam à vida psíquica da pessoa, se provam directamente, pelo que tê-los-emos de surpreender e captar nos factos exteriores, no comportamento externo e visível do agente que realiza um tipo objectivo de crime, devendo o julgador, por isso, resolver a questão factual decidindo se o agente agiu internamente (na sua voluntas) da forma como foi por si revelada externamente …a prova do dolo terá que ser levada a cabo por inferência, isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – particularmente, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum (onde a premissa maior é composta pela ou pelas regras da experiência comum convocadas e a premissa menor é composta pelo facto ou pelos factos objectivos provados)”.

                Do que vem de dizer-se, resulta, pois, que, ao contrário do que propende o recorrente AA, o tribunal a quo, destacando o conteúdo probatório que extraiu da prova produzida, adiantando a razão de ciência das testemunhas cujos depoimentos valorou, explicando, não só, a credibilidade que lhes conferiu, como, igualmente, a forma como concatenou o conteúdo probatório desses depoimentos com a demais prova de índole documental e pericial carreada para os autos,  explicitou de forma que facilmente se percebe quais os meios de prova que contribuíram, direta ou indiretamente, isolada ou conjuntamente, para dar como provada a factualidade vertida naqueles pontos 4. e 7. 2ª parte  

            Tudo isto, assim feito, relativamente aos meios de prova que sustentam a convicção alcançada pelo Tribunal a quo a respeito da matéria de facto fixada, de forma que permite a efetiva compreensão do raciocínio lógico-dedutivo que o conduziu à decisão sobre a mesma nos termos consignados no elenco factual provado constante do acórdão recorrido atinente à atuação que vem imputada ao arguido na acusação, com base nas regras da experiência comum, que outorgam a esses elementos probatórios a capacidade de convicção. 

            Não existe um ‘padrão’ e também não existem ‘fórmulas’ para o cumprimento da fundamentação da decisão (sentença ou acórdão), a qual, como é evidente, variará em função de fatores tão diversos como a complexidade do thema probandum, a extensão dos meios de prova produzidos, a sua relevância ou irrelevância, a maior ou menor capacidade de síntese e de expressão do julgador. Porém, o que, em qualquer caso, é imprescindível é a sua aptidão para assegurar a função primordial supra referida, a plena compreensão da decisão, a total compreensão do que se decidiu e por que razão assim se decidiu, que no caso concreto se mostram, sobejamente, alcançados.

            Poderá concordar-se ou discordar-se, e o arguido e ora recorrente parece discordar da valoração feita pelo tribunal recorrido relativamente aos meios de prova em que este se ancorou para sufragar a sua convicção em relação à referida factualidade que considerou provada nos aludidos pontos 4. e 7., razão pela qual vem o mesmo pôr em causa a convicção que com base nesses meios de prova se mostra espelhada no acórdão recorrido – pretendendo inverter o sentido dessa decisão - mas, esta divergência de perspetiva não significa que não seja apreensível quais os meios probatórios levados em conta e o juízo de valoração que sobre eles incidiu. 

            Donde, sem necessidade de maiores considerações, se conclui que o acórdão recorrido não padece da nulidade que lhe vem assacada, prevista na alínea a) do nº 1 do art. 379º do mesmo diploma.

            Soçobrando, assim, neste segmento o recurso interposto pelos arguidos recorrentes.


*

      - Da nulidade do acórdão decorrente da condenação por factos diversos dos descritos na acusação, sem prévia comunicação

      Nas conclusões B. a E. resume o recorrente a argumentação em que sustenta a nulidade que assaca do acórdão recorrido por referência ao disposto no art. 379º, nº1, al. b) do CPP, aduzindo que:

      - quanto à factualidade dada como provada vertida no ponto 7., são notórias as diferenças desta face à que constava da acusação pública “ pois de uma relação familiar passou-se para “para-familiar” e de progenitor da irmã passou-se para “progenitor da meia-irmã”, com acréscimo do trecho “do mesmo modo lhe incutindo temor a circunstância de não ter mais ninguém próximo com quem viver”, considerando, por isso, que foi dada como provada factualidade da qual o mesmo não estava acusado que lhe não foi comunicada que se mostra essencial para a agravação do crime que lhe é imputado.

      - quanto à factualidade dada como provada vertida no ponto 8., a primeira parte da mesma é inovatória porque não constava da acusação e também lhe não foi comunicada;

      - quanto à factualidade dada como provada vertida no ponto 9., são gritantes as diferenças desta com a que constava da acusação porque esta era ”totalmente omissa a qualquer dolo face à perturbação de liberdade e autodeterminação sexual, cingindo-se unicamente ao “livre desenvolvimento da sua sexualidade”, ou seja, a liberdade sexual plasmada na Secção I (e não II) do capítulo V, que apenas havia feito consagrar o dolo face ao crime de importunação sexual e não já face ao crime de abuso sexual”, tendo sido dada como provado algo pelo qual o arguido não estava acusado nem alguma vez lhe foi comunicado para efeitos de alteração substancial ou não dos factos.

      Concluindo que “O Tribunal a quo, de forma encapotada e sub-reptícia, não precedida de comunicação alguma, tratou de sanar esse vício, de forma ilegal e ofensiva dos mais elementares direitos e garantias de defesa do arguido, julgando-se que tal vício tão-pouco poderá ser sanado com comunicação de alteração não substancial de factos, tendo de impor a absolvição do arguido face a tal crime de abuso sexual, pela inexistência imputativa do dolo específico, com vício de nulidade ao abrigo do art. 379º n.º 1 b) CPP “ conclusão E.

      A argumentação com base na qual o recorrente reputa a existência no acórdão recorrido da nulidade prevista no art. 379º, nº1 b) do CPP, concita as seguintes considerações:

A estrutura acusatória do nosso processo penal, consagrada no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, significa, desde logo, que é pela acusação que se define o objeto do processo (thema decidendum).

      Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, «O princípio acusatório (…) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).»

      Esta vinculação temática do Juiz do julgamento – à matéria constante da acusação – constitui para o arguido uma garantia de defesa, na qual se inclui claramente o princípio do contraditório, que traduz «o dever e o direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; em particular, direito do arguido de intervir no processo e de pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo; a proibição por crime diferente do da acusação, sem o arguido ter podido contraditar os respectivos fundamentos.»

      Todavia, as preocupações de justiça subjacentes ao processo penal fazem com que tal estrutura acusatória não tenha sido consagrada de forma absoluta.

      Efetivamente, como decorre do disposto no artigo 124.º e do n.º 4 do artigo 339.º do CPP, em julgamento devem ser apresentados todos os factos invocados pela acusação, pela defesa, e pelo demandante civil, quando o haja, produzidas e examinadas todas as provas e explanados todos os argumentos, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa.

      Por outro lado, relativamente ao “thema decidendum”, o legislador não colocou quem julga na total dependência dos intervenientes processuais.

      Com efeito, a configuração do nosso processo penal tem estrutura basicamente acusatória, integrada por um princípio de investigação da verdade material, sendo, pois, pela acusação ou pela pronúncia que se delimita o objeto do processo, devendo o princípio da investigação da verdade material ser exercido nos limites traçados por aquelas.

      Neste domínio, surgem as possibilidades de alteração factual – alteração não substancial e substancial – consagradas nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal.

      Mas estas questões hão-de ser resolvidas com o recurso ao conceito de identidade do facto processual (ou, do objeto do processo), dentro dos parâmetros estabelecidos pelos princípios da legalidade, da acusação (nas vertentes de garantia de independência e imparcialidade do julgador e no domínio dos direitos de defesa, impedindo que o arguido seja surpreendido com novos factos ou com novas perspetivas sobre os mesmos factos para os quais não estruturou a defesa) e do princípio da proibição da rejormatio in pejus que, deste modo, funcionam como limites inultrapassáveis de garantia da posição do arguido.» 

            Como se salienta no ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08.02.2017, proc.  196/13.1PAACB.C1, disponível in www.dgsi.pt:

            “Estaremos perante factos novos e portanto, perante uma alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quando se modifica – substitui ou adita – o concreto «pedaço de vida» que constitui o objecto do processo, dando-lhe uma outra imagem. E aqui, a primeira distinção a fazer é entre alteração substancial e alteração não substancial de factos.

                O art. 1º, f) do C. Processo Penal define «alteração substancial dos factos» como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Assim, primeiro requisito é que ocorra uma modificação dos factos, considerando-se facto o acontecimento ou ocorrência, passada ou presente, susceptível de prova. Depois, é necessário que a modificação ocorra em factos relevantes para a imputação de um crime ou para a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. 

                A alínea a) do mesmo artigo define «crime» como o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais. O crime que para este efeito releva, é o crime diverso, entendido, não como diferente tipo legal, em sentido substantivo, mas no sentido de facto diferente, situado para além dos limites do «pedaço da vida» que constitui o objecto do processo e portanto, um crime novo. A autonomia dos critérios estabelecidos no art. 1º, f) do C. Processo Penal determina que não deixa de ser crime diverso o que, face à alteração dos factos, passa a ser punido com sanção menos grave.

                A «alteração não substancial dos factos» define-se por exclusão de partes, comungando desta qualidade toda a alteração de factos que, não sendo substancial, tenha relevo para a decisão da causa (cfr. art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal).

                A disciplina da alteração substancial dos factos encontra-se fixada no art. 359º do C. Processo Penal, cujas linhas gerais podem traçar-se em torno de duas realidades: acordo dos sujeitos processuais e falta dele. Existindo acordo entre o Ministério Público, o arguido e o assistente quanto à continuação do julgamento pelos novos factos, e não determinando estes a incompetência do tribunal, prossegue o julgamento, devendo aqueles ser considerados para efeitos de condenação (nº 3 do artigo citado). Não existindo acordo, os novos factos não podem ser considerados pelo tribunal para o efeito de condenação, nem implica a extinção da instância (nº 1 do artigo citado). Quando tal sucede, quando não existe acordo, ou os novos factos são autonomizáveis em relação ao objecto do processo e a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para o respectivo procedimento (nº 2 do artigo citado) ou não são autonomizáveis, situação em que, porque não podem ser considerados para efeito de condenação, se tornam irrelevantes.

                A disciplina da alteração não substancial dos factos encontra-se fixada no art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal e consiste, basicamente, na sua comunicação ao arguido e na concessão do tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, considerada em toda a sua amplitude.”

Isto dito.

            A redação dada ao facto provado vertido no ponto 7. do acórdão recorrido, é a seguinte:

“ o arguido conhecia a idade da BB quando praticou o facto descrito no ponto 5 (desta factualidade provada) e sabia que, à época, tinha sobre ela ascendente económico e para-familiar (por ser o progenitor da meia-irmã com quem a menor coabitava), do mesmo modo lhe incutindo temor a circunstância de não ter mais ninguém próximo com quem viver, circunstâncias de que aquele se aproveitou”

            Da acusação consta:

“O arguido conhecia a idade da menor e sabia que tinha sobre a menor ascendente económico e familiar (por ser progenitor da irmã com quem coabitava) circunstâncias das quais se aproveitou”.

Pois bem.

A diferença entre o que constava na acusação e que passou a constar da factualidade provada respeitante ao ascendente familiar existente entre o arguido e a vítima, traduziu-se na modificação de ascendente familiar (constante da acusação) para ascendente para-familiar (constante da factualidade provada), e a diferença entre o que constava na acusação a respeito do parentesco entre a vítima e a pessoa com quem a mesma coabitava, traduziu-se na modificação de irmã (constante da acusação) para meia-irmã  (constante da factualidade provada).

            Ora, passar de “familiar” a “para-familiar”, mais não é do que definir com rigor a relação de proximidade existente entre o arguido e a vítima,  assim como passar de “irmã” para “meia irmã“ se traduz apenas em precisar a ligação de parentesco que ligava a vítima a CC, uma vez que, sendo o arguido apenas pai desta e não também da vítima, tendo as mesmas em comum apenas a mãe, são apenas irmãs uterinas, por isso não podendo o arguido considerar-se familiar da vítima, sendo mais rigoroso determinar o relacionamento do arguido com a vítima como para-familiar - que constitui um minus em relação ao que constava na acusação – para descrever a vivência entre o arguido e a vítima e a proximidade entre ambos, conexionada com a relação familiar que o arguido tinha com a meia irmã da vítima com quem esta vivia  em casa do arguido.

Daí que se deva entender que tal modificação empreendida pelo Tribunal a quo não saiu do mesmo pedaço de vida proveniente da acusação e do respetivo contexto – isto é, do objeto do processo que o vincula tematicamente - que o arguido já não conhecesse e que se tenham tornado para ele uma novidade, com que não contava e que lhe acarretasse um prejuízo relevante, não carecendo, por isso, de lhe ser comunicada ao abrigo do disposto no art. 358º do CPP.

            Igualmente quanto ao acrescento dado como provado contido no mesmo ponto 7. relativo ao segmento do mesmo modo lhe incutindo temor a circunstância de não ter mais ninguém próximo com quem viver ”, posto que este não constasse, assim descrito, na acusação, o mesmo não deixa de decorrer da demais factualidade descrita nesta que o arguido já conhecia, designadamente, quando nela se refere que a vítima vivia com a sua mencionada meia irmã, filha do arguido, em casa deste, integrando-se todos no mesmo agregado que dependia essencialmente, do ponto de vista económico,  do arguido, não constituindo, por isso, qualquer novidade para o arguido a relação de dependência, nomeadamente económica e habitacional, por parte da vítima em relação a si, fruto dessa vivência e donde emerge o temor resultante para esta por não ter mais ninguém próximo com quem viver.

            Ademais, como bem se adianta no Parecer emitido nos autos:

            “De qualquer forma, ainda que se obliterasse as alterações empreendidas pelo Tribunal a quo e se retomasse o texto vindo da acusação - «O arguido conhecia a idade da menor e sabia que tinha sobre a menor ascendente económico e familiar (por ser progenitor da irmã com quem coabitava) circunstâncias das quais se aproveitou» -, parece, e s.m.o., de meridiana clareza que tal, juntamente com a demais factualidade dada como provada, levaria, de igual forma, à condenação pelos mesmos crimes, dado que os requisitos de tipicidade, objetivos e subjetivos, estariam na mesma preenchidos, pois:

            - “Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos- artº. 171º nº 1 do CP;

- “As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:

                a)… … b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação” – artº. 177º nº 1 b) do CPP;

            - “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” – artº. 170º do CP.

            Tudo para concluir que as alegadas e contestadas alterações de facto levadas a cabo pelo Tribunal a quo não podem ser tidas como substanciais – por não levarem a imputação ao arguido de um crime diverso ou à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (artºs. 1º f) e 359º do CPP) nem como não substanciais, por não terem (o) relevo (pretendido) para a decisão da causa (artº. 358º nº 1 do CP).”

         Conclui-se, pois, que de tais alterações não resulta a nulidade que vem assacada pelo arguido ao acórdão recorrido.

            Na senda, ainda, da nulidade assacada pelo arguido ao acórdão recorrido emergente das alterações da factualidade neste introduzidas que lhe não foram comunicadas, pretende o recorrente que a mesma se patenteia em relação à factualidade provada vertida no ponto 8. do mesmo.

            Para tanto resume o mesmo, na conclusão C. – a seguinte argumentaçãoAtentando no teor do ponto de facto 8 julgado provado, por contraposição ao que lhe correspondia na douta acusação pública, constata-se que a primeira parte é inovatória pois não constava nem da douta acusação pública deduzida nem foi comunicada ao abrigo de qualquer alteração substancial ou não de factos, tendo sido dado por provado algo pelo qual o arguido não estava acusado nem alguma vez lhe foi comunicado para efeitos de alteração substancial ou não dos factos, com vício de nulidade ao abrigo do art. 379º n.º 1 b) CPP “.

                Vejamos, então, se lhe assiste razão.

            A redação dada ao facto provado vertido no ponto 8. do acórdão recorrido, é a seguinte:

            por outro lado, a BB sentiu-se incomodada e envergonhada ao ser apalpada nos seios pelo arguido, assim como, posteriormente, ao ler as mensagens de teor sexual referidas no ponto 6 (da presente matéria assente.”

                Da acusação consta:

                “A ofendida sentiu-se incomodada ao ler aquelas mensagens de teor sexual”.

A diferença entre o que constava na acusação e que passou a constar da factualidade provada, traduziu-se em estender o incómodo sentido pela vítima narrado na acusação resultante do comportamento nela descrito [em Janeiro de 2023, e não vivendo já a BB na sua casa nem estando dele economicamente dependente, o arguido enviou as seguintes mensagens escritas, através de telefone móvel, para o telefone móvel daquela menor: “logo posso tocar uma a pensar em ti, se deixares ganhas € 10” e “não ficas chateada comigo de eu tocar a pensar em ti?”] também ao comportamento do arguido nela narrado [em data não concretamente apurada de Janeiro de 2019, na residência acima aludida, quando se encontravam apenas os dois e sem qualquer outra pessoa nas proximidades, o arguido, pelo menos por uma vez, aproximou-se da BB e apalpou-lhe os seios, por cima da roupa], acrescentando-lhe, ainda, o sentimento de vergonha que deste resultou para a vítima.

Por tal se traduzir em factualidade irrelevante para o preenchimento do crime de abuso sexual de criança imputado ao arguido, dela não decorre sequer qualquer alteração não substancial em relação à que vinha descrita na acusação que impusesse prévia comunicação ao arguido.

Donde, também, por força dela não se verifica a nulidade do acórdão recorrido.

Por último, e na mesma linha argumentativa, avança o recorrente por considerar que ocorre nulidade do acórdão recorrido resultante da alteração de facto introduzida no ponto 9. do elenco factual provado, por a mesma lhe não ter sido comunicada, aduzindo, nas conclusões D. e E., que: “por contraposição ao que lhe correspondia na douta acusação pública, são gritantes as diferenças pois foi dado como provado algo pelo qual o arguido não estava acusado nem alguma vez lhe foi comunicado para efeitos de alteração substancial ou não dos factos pois era a douta acusação totalmente omissa a qualquer dolo face à perturbação de liberdade e autodeterminação sexual, cingindo-se unicamente ao “livre desenvolvimento da sua sexualidade”, ou seja, a liberdade sexual plasmada na Secção I (e não II) do capítulo V, que apenas havia feito consagrar o dolo face ao crime de importunação sexual e não já face ao crime de abuso sexual;” e “ O Tribunal a quo, de forma encapotada e sub-reptícia, não precedida de comunicação alguma, tratou de sanar esse vício, de forma ilegal e ofensiva dos mais elementares direitos e garantias de defesa do arguido, julgando-se que tal vício tão-pouco poderá ser sanado com comunicação de alteração não substancial de factos, tendo de impor a absolvição do arguido face a tal crime de abuso sexual, pela inexistência imputativa do dolo específico, com vício de nulidade ao abrigo do art. 379º n.º 1 b) CPP”.

Analisemos, então.

            A redação dada ao facto provado vertido no ponto 9. do acórdão recorrido, é a seguinte:

            “agiu sempre o arguido de modo livre, voluntário e consciente, pretendendo e conseguindo satisfazer os seus instintos sexuais à custa da BB, bem sabendo que desta forma perturbava, como perturbou, a liberdade e autodeterminação sexual da mesma e o desenvolvimento da respetiva personalidade no domínio sexual.”

                Da acusação consta:

                “Atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, pretendendo e conseguindo satisfazer os seus instintos sexuais à custa da ofendida, bem sabendo que desta forma perturbava e impedia o livre desenvolvimento da sua sexualidade.”

            A diferença entre o que constava na acusação e que passou a constar da factualidade provada, traduziu-se em modificar a perturbação que resultou do comportamento do arguido para o livre desenvolvimento da sexualidade da vítima narrado na acusação, passando a afirmar-se que o comportamento do arguido perturbou a liberdade e autodeterminação sexual da vítima e o desenvolvimento da respetiva personalidade no domínio sexual.

                Trata-se de uma modificação apenas semântica relativamente ao comportamento do arguido no contexto fático que lhe vem imputado na acusação, pois, a expressão perturbar e impedir o livre desenvolvimento da sexualidade da vítima/ofendida, comporta, por mais ampla, a liberdade e autodeterminação sexual da mesma e o desenvolvimento da respetiva personalidade no domínio sexual, como consta da factualidade provada, sem qualquer relevância para efeitos do elemento subjetivo do crime de abuso sexual de crianças imputado na acusação ao arguido, inferido do comportamento deste que nela se descreve.

            Aderindo, por isso, ao entendimento expendido no Parecer emitido nos autos, no qual, com vista a rebater a argumentação do recorrente, se adianta que: 

         “Desde logo, porque, ao contrário do que o mesmo afirma, o crime de abuso sexual de crianças, para a respetiva imputação, não exige que o agente atue com qualquer “dolo específico”6, com qualquer intenção particular, acrescida, - como resulta, aliás, à saciedade da simples literalidade no nº 1 do artº. 171º do CP -, tendo-se o legislador bastado com o designado dolo “genérico” por parte do agente.

            Isto é, para a sua punição, é suficiente que o agente atue com dolo (“genérico”) numa das suas três modalidades – direto (representando e querendo, intencionalmente, o resultado criminoso), necessário (representando o crime como consequência necessária/inevitável da sua conduta) ou eventual (representando o crime como possível consequência da sua conduta e atuar conformando com a sua realização) -, nos termos conjugados da tipicidade que resulta do nº 1 do artº. 171º do CP com o conteúdo normativo do artº. 14º do mesmo diploma.

            Daí decorre que o arguido – que atuou com dolo direto, não discutindo o mesmo sequer esse facto –, para ser punido, como o foi, teria que conhecer a idade da menor e agir de forma livre, voluntaria e consciente, com o propósito, conseguido, de satisfazer os seus instintos sexuais à custa da vítima, sabendo que a sua conduta perturbava e impedia o livre desenvolvimento da respetiva sexualidade e que a mesma conduta constituía crime.

            Ora, todos estes factos foram alegados na acusação do Ministério Público:

            «O arguido conhecia a idade da menor …

Atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, pretendendo e conseguindo satisfazer os seus instintos sexuais à custa da ofendida, bem sabendo que desta forma perturbava e impedia o livre desenvolvimento da sua sexualidade.

Conhecia a proibição e punição criminal da sua conduta».

Assim sendo, e em resultado de tudo o que acabou de se afirmar, é de concluir que Tribunal a quo, ao dar como provado o facto nº 9, pela forma como o fez, não imputou ao arguido facto novo, estranho ao objeto do processo, que tenha sido um novum para o mesmo, em prejuízo do núcleo essencial do seu direito de defesa.

E, sem conceder, resta por fim dizer que a imputação de um crime, ainda que doloso, não implica que se tenha de provar que o agente tenha conhecimento do concreto bem jurídico violado com a sua conduta – ao contrário do que parece ser a tese do recorrente -; basta que o mesmo conheça/represente os elementos típicos do crime em causa, atue com uma das modalidades de dolo acima referidas e saiba da antijuridicidade (penal) da sua conduta.”

Concluindo-se, assim, que também a factualidade provada vertida no referido ponto 9. não contempla qualquer alteração em relação à acusação, substancial ou não substancial, que carecesse de prévia comunicação ao arguido.

Donde, também, por força dela não se verifica a nulidade do acórdão recorrido.

Soçobrando, também, neste segmento a pretensão recursiva.


*

      - Da incorreta decisão da matéria de facto e suas consequências

      Nas conclusões F. e G., resume o recorrente a argumentação que, sem maior densificou no corpo da motivação do recurso, da qual se infere a sua discordância em relação à decisão da matéria de facto plasmada no acórdão recorrido, ancorada na incorreta valoração das declarações da ofendida, por entender não serem merecedoras de credibilidade, e na violação do princípio in dubio pro reo

            Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.

            A impugnação, por via de recurso, da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP.

            O sujeito processual que discorda da “decisão de facto” da decisão de primeira instância  pode, assim, optar pela invocação de um erro notório na apreciação da prova, que será o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (os vícios da sentença poderão ser sempre conhecidos oficiosamente e mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ, de 19.10.95 ) ou de um erro não notório que a sentença, por si só, não demonstre.

            Ao enveredar pela primeira hipótese, a sua discordância traduz-se na invocação de um vício da decisão recorrida e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; optando pela segunda hipótese, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar.

O recorrente manifesta a sua discordância em relação à decisão da matéria de facto considerada no acórdão recorrido, por entender que o tribunal recorrido errou na valoração que fez das declarações prestadas pela ofendida,  “pela ausência de uniformidade dos depoimentos e versões da ofendida e consequente falta de credibilidade da mesma”, por entender haver contradição entre as declarações que a mesma prestou para memória futura e as que prestou na audiência de julgamento, impondo-se, por isso, que, em obediência ao princípio in dubio pro reo, tivesse sido julgada como não provada a factualidade que lhe vem imputada na acusação, por referência aos dois contextos temporais nela descritos.

Pois bem.

            Impõe o art. 412º, nº3 do CPP que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas.

            Esta especificação deve fazer-se, quando se trate de declarações gravadas, por referência ao consignado na ata, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).

            O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.

      Pretendendo o recorrente, como se infere pretender, impugnar a matéria de facto considerada provada pelo tribunal recorrido, incumbia-lhe o cumprimento dos ónus de impugnação especificada previstos no art. 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que reputa incorretamente provados e a alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida - als. a) e b) do n.º 3 -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4).

      E, essa especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da decisão recorrida e que o recorrente considera incorretamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação.

      Diz, a propósito, o Sr. Desembargador Sérgio Gonçalves Poças, «como o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas (…) apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo (…).

      Assim, nesta especificação – as palavras valem – serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão» - in Revista Julgar, Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, n.º 10, Janeiro-Abril de 2010, págs. 31 e 32.

      Assim, se o tribunal a quo deu como provado determinados pontos da matéria de facto (provada ou não provada), se o recorrente entende que tais factos foram incorretamente julgados (porque deveriam ter sido dados como não provados ou como provados) tem, no mínimo, de dizer clara e expressamente sob o título de “pontos de facto incorretamente julgados” quais são esses pontos da matéria de facto.

            Desde logo, não deu o recorrente cumprimento a tal ónus de especificação previsto na al. a) do nº3 do art. 412º do CPP, porque não indicou quais os concretos factos que considera incorretamente julgados, limitando-se a fazer uma alusão genérica, vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende ter sido incorretamente julgada pelo tribunal da 1ª instância, por reporte apenas à data da mesma descrita na acusação.

      Já quanto ao ónus de especificação das “concretas provas” que impõem diversa decisão, previsto na alínea b) do mesmo nº3 do citado normativo legal, o qual, conforme já referido, exige a indicação do conteúdo específico do meio de prova e - tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento – a individualização das passagens da gravação em que se baseia a impugnação, nos termos do nº4 do mesmo preceito legal,  é patente e transversal a todo o seu discurso recursivo o respetivo incumprimento por parte do arguido.

      Com efeito o que o recorrente fez foi, nada mais do que, pôr em causa a valoração que o tribunal recorrido fez da prova produzida, discordando da credibilidade que este conferiu às declarações da ofendida – por considerar que as mesmas não eram merecedoras dessa credibilidade, uma vez que existem contradições entre as declarações prestadas pela ofendida para memória futura e as que a mesma prestou na audiência de julgamento - pretendendo que, com base nestas, não podia alcançar-se a convicção formada pelo tribunal recorrido a respeito da factualidade que este veio a considerar provada.

            Ora, e desde logo, em relação às convocadas declarações prestadas pela ofendida – quer em sede de declarações para memória futura, que em sede de audiência de julgamento – limitou- se o recorrente a alegar o conteúdo que delas o mesmo extraiu, sem, contudo, indicar as passagens da gravação destas em que baseia a contradição nelas existente suscetível de lhes retirar a credibilidade que o tribunal recorrido lhes conferiu.

      E, sendo esta, como efetivamente é, a forma como o recorrente apresenta as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, importa, manifestamente, concluir que, também o mesmo não cumpriu o ónus de impugnação especificada previsto no art. 412º, nº3 b) do CPP.

      É que, as menções exigidas pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

      No rigor dos termos, o que o recorrente acaba por fazer é, tão só, uma exegese crítica a tais meios de prova, esquecendo o essencial, isto é, a conexão desse juízo com determinada factualidade devidamente concretizada, por referência a um certo segmento de tais meios de prova.

      Como se escreveu no Acórdão do STJ de 24/10/2002 Processo n.º 2124/2002, in www.dgsi.pt. «(...) o labor do Tribunal da 2.ª instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida [art. 412.º, n.º 3, als. a) e b) do CPP].

      Se o recorrente não cumpre aqueles deveres não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência às provas e respectivos suportes».

      De acordo com posição constante do Supremo Tribunal de Justiça, o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto, tanto na motivação como nas conclusões desta, não justifica o convite ao aperfeiçoamento, uma vez que só se pode corrigir o que está deficientemente cumprido e não o que se tem por incumprido - v.g., acs. de 04-10-2006, proc. n.º 812/06-3.ª; 08-03-2006, proc. 185/06-3.ª; 04-01-2007, proc. n.º 4093-3.ª; e de 10-01-2007, proc. 3518/06-3.ª.. Daí que o artigo 417.º, n.º 3, do CPP, imponha o dever de convite tão só quando “a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º”.

      Se o recorrente não faz, como no presente caso acontece, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, não há lugar ao convite à correção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite - Neste sentido, Ac. do Tribunal Constitucional n.º 259/2002, de 18-06-2002 (proc. n.º 101/02) - DR, II Série de 13-12-2002.

      Assim, não pode a impugnação ampla da matéria de facto deduzida pelo recorrente suportada apenas pela prova produzida oralmente, ser conhecida.

      Anotando, ainda, que, apesar de não virem invocados, mas sendo o seu conhecimento de natureza oficiosa, face à densificação normativa contida nas alíneas a) a c) do art. 410º, nº2 do CPP, não se patenteia existência no acórdão recorrido dos vícios decisórios nestas contemplados. 


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        Importa, ainda, referir a respeito da impugnação da matéria que vem  deduzida pelo recorrente que, nada resulta da fundamentação sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida a respeito de qualquer dúvida que tenha pairado na convicção dos julgadores da primeira instância a propósito da factualidade que estes consideraram como provada e que vem por aquele posta em causa no presente recurso que justifique equacionar-se ter sido postergada pelo tribunal recorrido a aplicação do principio in dubio pro reo por este invocado.

      Com efeito, o princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.

      Trata-se de uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.

      Ou seja, se produzida a prova subsiste no espírito do julgador um estado de incerteza, objetiva, razoável e intransponível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, impõe-se proferir uma decisão favorável ao arguido.

      A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.

      Nesta fase do recurso, a demonstração da sua violação passa pela respetiva notoriedade, aferida pelo texto da decisão, isto é, em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença, ou seja, têm que resultar da fundamentação desta, de forma clara, que o juiz, pese embora tenha permanecido na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou que, sendo favorável ao agente, o considerou não provado.

      Porém, a dúvida relevante para este efeito, não é a dúvida que qualquer recorrente entenda que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas antes e apenas a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada, o que, frequentemente esquecem os recorrentes.

      Como resulta, entre outros, do acórdão do S.T.J. de 2 de maio de 1996, in C.J., ASTJ, ano IV, 1º, pág. 177, o Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo - e não os sujeitos processuais ou algum deles - chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.

      Refere Roxin, in “Derecho Processal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111, “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.

      Assim, se na fundamentação aduzida na decisão o Tribunal não invoca qualquer dúvida insanável, ou, ao invés, se a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal, inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.

      No caso vertente, o recorrente invoca o princípio in dubio pro reo essencialmente como corolário da sua apreciação da prova.

      Para o mesmo, de acordo com a sua própria apreciação/valoração, a prova produzida nos autos não permite concluir no sentido decidido quanto à factualidade provada, por entender que a prova carreada para os mesmos se mostra sem suporte para o efeito, impondo, por isso, uma dúvida razoável que deveria ter sido valorada positivamente a seu favor, em conformidade com o princípio in dubio pro reo consagrado no art. 32º, nº2, 1ª parte da CRP.

      Porém, em parte alguma da decisão recorrida resulta que, que relativamente à factualidade provada, o tribunal a quo se tenha defrontado com dúvidas que resolveu contra o recorrente ou demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, se impunha que a devesse ter tido.

      Ao invés, a opção do tribunal recorrido relativamente à factualidade posta em causa no recurso em apreciação, e em relação a toda esta, mostra-se segura, devidamente fundamentada, estando explicada de forma lógica e racional, não se vislumbrando também que tenha sido violada uma qualquer regra da experiência comum, tendo sido estritamente observado o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do C.P.P.

      De realçar, ainda, que o Tribunal a quo aplicou o in dubio pro reo quando teve de o fazer, conforme decorre de segmentos decisórios que constam a fls. 9 e 11, por ter chegado a um non liquet probatório, dando como não provada alguma da factualidade descrita na acusação e da que – por ter considerado resultar indiciada no decurso da audiência de julgamento - oportunamente lhe comunicou, ao abrigo do disposto no art. 358º, nº1 do CPP.

            Adiantando-se, ainda, não ter qualquer razão de ser a assacada contradição relativa à aplicação da presunção de inocência da qual decorre o princípio in dubio pro reo na decisão da factualidade provada e não provada, estribada na argumentação recursiva plasmada na conclusão  F., porque,  tal como se adianta no Parecer emitido nos autos, “ o uso do mecanismo processual previsto no artº. 358º do CPP, quando o Tribunal perspetiva uma possível alteração não substancial dos factos, é hoje tido - pacificamente na doutrina e na jurisprudência – como um meio cautelar a que o Tribunal deve lançar mão para, ao decidir, a final, o poder fazer sem comprimir, de forma não admissível, os direitos de defesa do arguido.

      Contudo, a sua convocação (cautelar, repetia-se), em nada vincula o Tribunal quanto à decisão final, podendo, depois, a factualidade ser dada como não provada.”

            Ou seja, o Tribunal a quo aplicou o in dubio pro reo quando entendeu ter pairado no seu espírito a dúvida, isto é, em relação à factualidade que veio a dar como não provada, por ter chegado a um non liquet probatório relativamente à mesma, outro tanto não tendo feito em relação à matéria que considerou provada porque, em relação a esta, não se lhe suscitaram dúvidas relevantes como bem evidenciou na motivação da mesma.

     E, para efeito de aferição por banda do Tribunal de recurso relativa à aplicação do princípio in dubio por reo, relevante não são as dúvidas que o recorrente, interessado, e que não é quem julga, entende que o Tribunal deveria ter tido, mas antes, as que, efetivamente, este não teve.

      Tudo para dizer, pois, que não se patenteia a violação do princípio in dubio por reo invocada pelo recorrente.

      Face ao exposto, também quanto ao segmento da impugnação da matéria de facto, naufraga a pretensão do recorrente, mantendo-se inalterada a decisão da matéria de facto constante do acórdão recorrido.


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      - Da incorreta ponderação do enquadramento jurídico-penal dos factos

      Nas conclusões H. a X. resume o recorrente a sua argumentação recursiva no tocante ao enquadramento jurídico-penal dos factos, entendendo que a ponderação deste foi incorretamente feita no acórdão recorrido.

     

      Vejamos, pois, o que a esse propósito se decidiu no acórdão recorrido:

      “ Integremos, do ponto de vista jurídico-criminal, os factos, devendo recordar-se vir o arguido acusado da prática de dois crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. nos arts. 171º/n.º 1 e 177º/n.º 1-b) e c) C.P., e um crime de importunação sexual agravado, p. e p. nos arts. 170º e 177º/n.º 1-b) C.P..

        Quer o tipo de abuso sexual de crianças, quer o de importunação sexual, se inserem, do ponto de vista sistemático, na área dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual (Livro II, Título I, Capítulo V C.P.), tratando, portanto, das condutas perpetradas contra as pessoas e a liberdade que a estas individualmente inere de se determinarem do ponto de vista sexual.

        Crê o Tribunal, neste domínio da chamada criminalidade sexual, e antes do mais, ser útil a sensibilização para três ou quatro ideias básicas.

        Desde logo, para a noção de que, no limite, as normas reguladoras da matéria sexual constituem restrições ao seu exercício, marcadas pelas preocupações e significâncias societário-culturais mais importantes de cada época histórica.

        Nas palavras do Dr. Karl Prelhaz Natscheradetz, «(…) a regulamentação da sexualidade é condicionada pelo tempo e pela cultura, e muda com eles. Determinadas normas sexuais que muito naturalmente regeram nos seus tempos, com o decurso dos séculos depararam hoje com um repúdio generalizado (…)» (“O direito penal sexual: conteúdo e limites”, Coimbra, 1985, pág. 75). Não podendo ser olvidada, pois, a forte componente cultural do direito penal sexual (como, aliás, de todo o direito penal), «(…) na sua natural e incindível ligação com o todo social de cada povo em cada época (…)» (Prof. Américo Taipa de Carvalho, “Condicionalidade sócio-cultural do direito penal”, Coimbra, 1985, pág. 13).

        No ordenamento jurídico-penal português, e desde a redacção introduzida no C.P. pelo D.L. n.º 48/95, de 15/3, é a lei dominada, na área dos crimes sexuais, pela «(…) proposição político-criminal segundo a qual em caso algum constitui crime a actividade sexual levada a cabo em privado por adultos que nela consentem (…)», apresentando-se tal proposição político-criminal, própria de um Estado de Direito democrático, laico e pluralista, «(…) como consequência de uma concepção que como função exclusiva do direito penal a protecção subsidiária de bens jurídicos (art. 40º/n.º 1 C.P. e art. 18º/n.º 2 da Constituição da República Portuguesa C.R.P.) e culmina uma complexa e intranquila evolução histórica, moral e social (…)» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, Coimbra, 1999, pág. 442).

        Daí que, tendo sido inevitável a dinâmica de uma natural evolução, se haja assistido a uma tendência geral de progressiva descriminalização e despenalização de certos comportamentos ligados à sexualidade humana antes tido por cunhados segundo uma matriz essencialmente moralista (podendo a propósito pensar-se, por exemplo, na não punição da homossexualidade enquanto tal, mas apenas quando se tratasse do “desencaminhar” de menores de 16 anos de idade – art. 175º C.P., na redacção D.L. n.º 48/95).

        Significa o acabado de expor que falamos hoje de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, depois de durante séculos (desde as Ordenações) serem observados sob o enfoque da moral sexual dominante, dos costumes ou dos fundamentos éticos da sociedade, em uma evidente circunscrição da etiologia destes crimes à tutela da chamada “moralidade sexual pública”.

        É, aliás, interessante verificar algumas diferenças diacrónicas de enfoque e perspectiva legal do mundo sexual e sua moralidade: pense-se no conceito de “pudor” inerente aos tipos dos arts. 205º, 207º e 216º-c) C.P., na redacção anterior ao D.L. n.º 48/95, e cuja razão de ser radicava nos mencionados sentimentos gerais de moralidade sexual.

        Com a revisão operada pelo D.L. n.º 48/95, o C.P. passou a adoptar a categoria conceptual de “acto sexual de relevo” (cfr., a título de exemplo, os arts. 163º, 165º e 166º C.P.), por via da qual se tornou evidente a não assunção, pela lei penal, de uma ética moral e social que não lhe competiria defender (enfatizando-se, ao invés, a relevância do acto, antes do mais, para quem o sofre e a sua própria esfera de autonomia sexual – com muito interesse, vide também, a propósito, as Actas da Comissão Revisora, 12ª Sessão, págs. 94 e 95).

        Logo – e esta é uma ideia fundamental –, desde 1995 são a liberdade e a autodeterminação sexual os valores jurídicos essencialmente protegidos, integrando os tipos que visam a repressão das violações a tais bens a categoria dos crimes contra as pessoas e não contra os fundamentos da sociedade (para uma visão crítica do direito penal sexual de cariz “moralista” – de que o positivado pela versão originária do C.P. de 1982, como já se referiu, ainda era parcialmente tributário –, enquanto complexo de crimes consagradores de bens jurídicos ligados aos fundamentos ético-sociais da vida em sociedade e seus costumes, cfr. Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Crimes contra os costumes”, in “Enciclopédia Polis”, volume I, Lisboa, 1983, págs. 1371 a 1377, Dr. Karl Prelhaz Natscheradetz, “O direito penal sexual: conteúdo e limites” citado, págs. 134 a 154, e Prof. Vera Lúcia Raposo, “Da moralidade à liberdade: o bem jurídico tutelado na criminalidade sexual”, inLiber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, Coimbra, 2003, págs. 931 a 938).

        Seja como for, este é um dos domínios onde o direito penal sempre assumirá um importante papel sancionador, constituindo uma das formas mais marcantes de prover à reconhecida necessidade de controlo ou regulação social da matéria. Desde logo, porque é de todos conhecida a insegurança biológica e a plasticidade do chamado instinto sexual humano, tantas vezes manifestadas em situações inesperadas e díspares, e geradoras de consequências de difícil apreensão e antecipação. Efectivamente (e, sobretudo, após o tratamento científico do tema, nos inícios do século XX, por Sigmund Freud), sabe-se que os instintos sexuais humanos não apresentam um ritmo periódico: na feliz expressão do Prof. José António da Silva Soares, «no homem existem necessidades e as respectivas tendências para as satisfazer» (“Sexualidade humana”, in “Enciclopédia Polis”, volume V, Lisboa, 1987, pág. 741). Contrariamente aos dos (restantes) animais, aqueles instintos (e ainda que em latência) estão continuamente presentes e podem manifestar-se das mais variadas formas, ligadas ou não ao aspecto biológico-reprodutor. Por isso mesmo, tem o homem de aprender a satisfazer as suas necessidades, em um «(…) longo processo lento e complexo que, muitas vezes, é interrompido no seu desenvolvimento (fixações) ou se orienta num sentido não desejado (desvios). É neste contexto que se põe o problema da educação sexual. Com ela, pretende-se levar o ser humano a atingir a maturidade sexual e afectiva que o torne capaz, quer de integrar a sua sexualidade no amor (…), quer de sublimar as suas tendências ao serviço de bens superiores (…)» (Prof. José António da Silva Soares, “Sexualidade humana” citado, pág. 741).

        Portanto, reconhecendo-se a indisfarçável ineficácia (e, em muitos casos, a ausência) dos mecanismos de educação, maturação e contenção, pelo ser humano, da sua própria sexualidade, caberá ao ordenamento jurídico, maxime na dimensão de ultima ratio própria do direito penal, intervir enquanto forma de tutela dos bens jurídicos mais facilmente atingíveis e postos em causa por aquela ineficácia reguladora.

        A ideia básica, no entanto, será esta: na fase de desenvolvimento em que nos encontramos, a intervenção do direito (mormente na sua feição repressiva) na vida íntima das pessoas reger-se-á por limites de certa contenção.        

        Se a lei tem em linha de conta a maior liberdade possível nos comportamentos sexuais, e se a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem (cfr. art. 4º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão), o direito penal sexual apenas surgirá como último patamar na criminalização de condutas que atentem contra a liberdade ou poder de autodeterminação da vítima, na medida em que a obriguem a praticar, sofrer ou presenciar determinados actos violadores ou contrários aos seus mais lídimos sentimentos de afirmação sexual.

        E este será, repete-se, um dos pontos essenciais: salvaguardando a evidente necessidade de obviar aos efeitos futuros verdadeiramente devastadores de um despertar sexual precoce (mesmo que não violento), protegendo-se, assim, aqueles cuja vontade ainda não é completamente autónoma – seja, pois, por inexperiência em razão de idade e se encontram em plena fase de desenvolvimento como pessoas, seja também pelas suas limitações de índole intelectivo-cognitiva, seja pela sua incapacidade de opor, no momento, qualquer tipo de resistência ao arrimo sexual relevante –, o direito penal não encontrará legitimidade para intervir no complexo de relações de índole sexual mantidas entre adultos, senhores da sua vontade, e no recesso da sua intimidade.

        No contexto acabado de expor, note-se que o nosso legislador de 1995 passou a distinguir os crimes contra a liberdade sexual (arts. 163º e ss. C.P.) dos crimes contra a autodeterminação sexual (arts. 172º – actualmente, 171º – e ss.), nos primeiros prevendo os atentados directos à liberdade sexual e nos segundos os atentados ao livre desenvolvimento sexual (sobre os exactos contornos desta nuance, cfr. Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, págs. 441 e 442).

        Ora, no domínio dos crimes contra a autodeterminação sexual, a ideia básica é a de que a eventual manifestação de “vontade” por parte do menor em termos de relacionamento sexual não tem qualquer validade ou relevância. As razões de ser desta opção são claras e prendem-se com o que há pouco se disse: o fundamental é a protecção de uma vontade ainda em desenvolvimento e, portanto, ainda não completamente autónoma.

        De que modo se protegem então, hoje, os menores neste tipo de crimes?

        Por meio da incriminação específica do abuso sexual de crianças, do abuso sexual de menores dependentes, dos actos sexuais com adolescentes, do recurso à prostituição de menores, da pornografia de menores, e ainda prevendo a idade como agravante do crime comum aos crimes que não sejam definidos em função desta (cfr. arts. 171º, 172º, 173º, 174º, 175º, 176º e 177º/n.os 5, 6, 7 e 8, todos C.P., nas redacções da Lei n.º 59/2007, de 4/9, da Lei n.º 103/2015, de 24/8, e, ainda mais recentemente, quanto a algumas destas normas, da Lei n.º 101/2019, de 6/9, Lei n.º 40/2020, de 18/8, e Lei n.º 15/2024, de 29/1). Nota abrangente de todos os tipos de crimes de carácter sexual é a que se deixa exposta no art. 178º C.P., relativa aos requisitos de procedibilidade (fazendo-se depender o procedimento criminal da vontade – queixa – da vítima, nos casos em que esta não é menor ou deles não resulta suicídio ou morte da mesma, mas permitindo-se a oficialidade, isto é, o impulso autónomo pelo Ministério Público em determinadas circunstâncias, enumeradas na norma em questão).


*

                Recorde-se, no nosso caso, vir o arguido acusado da prática de dois crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, p. e p. nos arts. 171º/n.º 1 e 177º/n.º 1-b) e c) C.P., perpetrados relativamente à pessoa da menor BB.

                Estatui, então, o n.º 1 do art. 171º C.P., na redacção conferida pela Lei n.º 103/2015, vigente quer aquando da prática dos factos sub judicio quer na actualidade, que «quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos», sendo que, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, «se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos»; depois, o n.º 3 de tal art. 171º preceitua que, «quem: a) importunar menor de 14 anos, praticando o acto previsto no art. 170º; ou b) actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversas, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos; c) aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a actividades sexuais; é punido com pena de prisão até 3 anos».

                O bem jurídico protegido pelo tipo desta figura, já o demos a entender, é a autodeterminação sexual, embora «(…) sob uma forma muito particular: não face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I citado, pág. 541).

                Já acima se fez uma alusão à categoria do acto sexual de relevo, conceito aberto cuja densificação não deve ser necessariamente procurada no carácter libidinoso do acto. Dito de outro modo: acto sexual de relevo não é definível como acto libidinoso, no sentido de que tenha sempre como finalidade motivadora (em jeito de “dolo específico”) obter-se o saciar de paixões lascivas.

                Embora se admita que importe deixar de fora da tutela penal «(…) atitudes anódinas como, por exemplo, um simples beijo, que não tem dignidade criminal» (Actas da Comissão Revisora, 12ª Sessão, págs. 94 e 95), a verdade é que a natureza sexual e de relevo do acto é algo que deve ser aferido exteriormente e não, de forma decisiva, no animus que preside à conduta do agente.

                Assim, será acto sexual de relevo aquele que, constituindo um comportamento (em regra activo), tem inequívocas refracções de natureza sexual por bulir com a «(…) liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica», considerando-se relevante, para determinar o conteúdo e significado do acto, «(…) o circunstancialismo de lugar, de tempo, de condições que o rodeia e que o faça ser reconhecível pela vítima como sexualmente significativo» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I citado, págs. 447 e 448).

                Em termos jurisprudenciais podemos encontrar esta interessante definição de acto sexual de relevo: o comportamento que, «(…) tendo uma relação objectiva com o sexo, se reveste de certa gravidade, constituindo uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito passivo, invadindo de uma maneira objectivamente significativa aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo que, no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano» (Ac. S.T.J. de 8/3/2002, e, em sentido idêntico, Ac. Rel. Coimbra de 2/2/2011, e Ac. Rel. Porto de 14/7/2021, todos os arestos disponíveis in www.dgsi.pt).

                Acresce poder o acto sexual de relevo traduzir-se em modos “tarifados” da prática sexual, como a cópula (introdução do pénis na vagina), o coito anal (introdução do pénis no ânus), o coito oral (introdução do pénis na boca), ou a introdução vaginal ou anal de (outras) partes do corpo ou objectos (n.º 2 do art. 171º C.P.).

                Recorde-se agora que o tipo em questão não carece, para o seu preenchimento, do emprego de violência (de uma vis compulsiva) ou coacção sobre a vítima (ao contrário do que sucede, por exemplo, com os crimes de coacção sexual e de violação – arts. 163º e 164º C.P.), porque no abuso sexual de crianças a liberdade de vontade da vítima até pode, bem vistas as coisas, não ser atingida. Talvez por isto mesmo haja quem entenda que o essencial a defender no abuso sexual é (ou pode ser), diversamente da liberdade, o desenvolvimento gradual e a descoberta espontânea da sexualidade, sem experiências traumáticas ou intromissões de adultos em uma esfera tão íntima (Prof. Orts Berenguer, “Comentarios al Código Penal de 1995”, volume I, Valência, 1996, pág. 937).

            Daí a total irrelevância de qualquer consentimento do menor de 14 anos para a prática do acto sexual de relevo: tudo se passa como se a lei presumisse que, ainda que consentido, o relacionamento sexual com menor de 14 anos constitui um perigo para o desenvolvimento livre (físico e psíquico) do menor, e ainda que (admita-se por razões académicas…) tal perigo não ocorra em concreto.

                Esta simples nota faz-nos também enquadrar o crime de abuso sexual de crianças na categoria dos crimes de perigo abstracto (em tese geral, sobre os crimes de perigo abstracto, vide Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral”, Coimbra, 2004, pág. 170).

                O n.º 3 do art. 171º C.P. pretende, também ele, proteger a autodeterminação sexual da criança, mas, desta feita, não perante algo de tão “invasivo” e “drástico” para a corporalidade ou presença física do menor de 14 anos quanto o será o acto sexual de relevo, mas perante outras realidades, que podem ir desde a importunação sexual, a actuação sobre o menor através de uma conversa, um escrito, um espectáculo ou um objecto pornográficos, até ao aliciamento do menor a assistir a abusos sexuais ou a actividades sexuais.

                Ora, a importunação sexual – para que remete a alínea a) do n.º 3 do art. 171º C.P. – goza de previsão específica no art. 170º C.P., de acordo com a qual, na sua redacção actual, introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5/8, «quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».

                Temos, portanto, nesta última construção típica, contida no art. 170º C.P., por um lado, a possibilidade do constrangimento da vítima a um contacto de natureza sexual (embora não de relevo), no sentido de que «o contacto de natureza sexual traduz-se na prática no corpo da vítima o agente tem de tocar o corpo da vítima de um acto de natureza sexual» (Profs. Anabela Miranda Rodrigues e Sónia Fidalgo, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, 2ª edição, Coimbra, 2012, pág. 828); por outro lado, no entanto, poderá verificar-se o anúncio, pelo agente, de uma ou várias propostas de natureza sexual, ou a prática de actos exibicionistas perante a vítima, ou seja, a prática, neste último caso, de actos – que não meras palavras – relacionados com o sexo (sobre estes conceitos, Profs. Anabela Miranda Rodrigues e Sónia Fidalgo, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I e 2ª edição citados, págs. 816 e 817).

            Por seu turno, na alínea b) do citado n.º 3 do art. 171º C.P., o abuso dá-se por via da actuação do agente sobre menor de 14 anos – e para o que aqui mais releva – por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos, isto é de um quid imbuído de um conteúdo objectivo «(…) idóneo, segundo as características concretas da sua utilização, a excitar sexualmente a vítima, violando por isso os limites exigidos por um desenvolvimento livre e sem entraves da personalidade do menor na esfera sexual» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I e 2ª edição citados, pág. 838). Ainda em termos objectivos, a “conversa” aqui pensada pela lei «(…) abrangerá seguramente qualquer forma de comunicação coloquial, seja levada a cabo directamente ou por qualquer outra forma, v.g., telefonicamente ou por meio informático, em suma, neste sentido, seja qual for o seu “suporte”» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I e 2ª edição citados, pág. 837).

                Finalmente, a alínea c) do mencionado n.º 3 do mesmo art. 171º C.P. faz apelo ao aliciamento (ou “enleamento”) do menor a assistir a abusos sexuais ou a actividades sexuais que lhe serão a ele (menor) alheias.

                Na dimensão subjectiva do crime de abuso sexual de crianças, o dolo não prescinde, em todos estes casos, de recair sobre a totalidade dos elementos do tipo objectivo de ilícito, onde avulta, como se percebe, a consciência, pelo agente, da idade (menor de 14 anos) da(s) vítima(s).


*

                Segundo a acusação pública, os crimes de abuso sexual de crianças imputados ao arguido deverão ser agravados nas respectivas molduras penais, em um terço no limite mínimo e no limite máximo, nos termos do art. 177º/n.º 1-b) e c) C.P., norma que pressupõe encontrar-se a vítima em «(…) uma relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente (…)», sendo «(…) o crime (…) praticado com aproveitamento desta relação» [alínea b)], e tratar-se a vítima de «(…) pessoa particularmente vulnerável, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez» [alínea c)].

                Já relativamente ao crime de importunação sexual, perspectivou a acusação a agravação do ilícito apenas em função da hipótese contida na alínea b) do n.º 1 do art. 177º C.P..

                Pois bem, cremos perceber-se o sentido da agravação advinda do aproveitamento, pelo agente, de uma situação marcada por matizes de proximidade existencial e-ou vivencial (exemplos da coabitação, tutela ou curatela) ou até de subordinação ou dependência hierárquico-funcional, económica ou laboral, obviamente diminuidoras da capacidade de “autoprotecção” e reacção da vítima perante as “arremetidas” do primeiro [alínea b) do n.º 1 do art. 177º C.P.].

                No entanto, já relativamente à agravação pensada pela alínea c) do n.º 1 do art. 177º C.P., teremos de notar o seguinte: se, em tese, se compreende a especial e agravada ilicitude do facto praticado pelo agente, tratando-se a vítima de uma pessoa particularmente vulnerável, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, importará, todavia, perceber também que, como se sustentou no Ac. Rel. Lisboa de 9/3/2023, estando em causa a prática de um(ns) crime(s) de abuso sexual de crianças, p. e p. no art. 171º C.P., não poderá aplicar-se a referida agravação, no que à questão da idade atina, porquanto, sendo a idade do menor elemento do tipo, a agravação redundaria em uma inadmissível dupla incriminação ou valoração negativa do comportamento do agente (aresto disponível in www.dgsi.pt).


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            Posto tudo isto, o que dizer?

                Que a matéria assente permite a conclusão (quanto a nós, mais ou menos meridiana) de que os comportamentos do arguido acima descritos exigem o seu enquadramento típico na prática de um crime de abuso sexual de crianças e um crime de importunação sexual, ainda assim, não exactamente nos mesmos termos pressupostos pela acusação pública.

                Vejamos, então.

                Desde logo, parece ao Tribunal particularmente patente a circunstância de o apalpar dos seios, pelo arguido à menor BB, nos moldes e no contexto em que ocorreu, consubstancia a prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado.

                Com efeito, negar a categoria de acto sexual de relevo à actuação do arguido acabado de aludir, no quadro contextual em que a mesma aconteceu – e sobre quem aconteceu, ou seja, uma menor à época com 12 anos de idade –, seria, na opinião do Colectivo, um exercício de entendimento excessivamente “libertário” e, por outro lado, de “capitulação” com a insídia comportamental do arguido na sua aproximação à menor (em momento no qual ninguém mais se encontrava perto deles), pouco compatível com a protecção do desenvolvimento da personalidade (também a nível sexual) que se pretende conatural a quem se encontra ainda em pleno desenvolvimento psicofísico (não sendo suposto que uma jovem de 12 anos tenha, sem mais, de ser tocada e apalpada nos seios…). Porque o ponto é este: tratando-se o corpo de cada um de nós (também) de um campo e de um reduto existencial com evidente projecção sexual, não traduzirá o apalpar dos seios, ainda para mais de uma jovem do sexo feminino – e mesmo por cima da roupa –, uma abordagem do mais sexualmente explícito que possa imaginar-se, atenta a zona corporal (de inequívoco cariz erógeno) que abarca?

                Estamos, por isso, absolutamente de acordo com a afirmação do Ac. Rel. Lisboa de 15/5/2014, segundo a qual o apalpar e o acariciar dos seios e mamas comporta uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, ou seja, normalmente praticado no domínio da sexualidade entre pessoas, pelo que, «tendo o arguido acariciado com a sua mão, exercendo pressão sobre uma das mamas de uma menor do sexo feminino de 11 anos de idade, quer tendo em outra ocasião colocado uma das suas mãos sobre uma das mamas de outra menor do sexo feminino de 10 anos de idade, apalpando-a, tais actos integram e perfectibilizam o conceito legal de acto sexual de relevo, ínsito no n.º 1 do art. 171º C.P. (…)» (podendo ver-se, ainda, quanto à ideia de que o acto de apalpar a mama de uma menor, mesmo por fora da blusa que a mesma traz vestida, consubstancia um acto sexual de relevo, o Ac. Rel. Lisboa de 5/3/2024, ambos os arestos contidos em www.dgsi.pt).

                Como óbvio se afigura, também, o dolo (directo) com que o arguido levou a cabo o seu comportamento agora aludido.

                Por outro lado, temos igualmente como clara a verificação da fonte de agravação do crime de abuso sexual de crianças em causa, a saber, o contexto de coabitação (e de dependência económica) à época existente, no qual o arguido, no seu “reduto”, levou a cabo o comportamento criminoso a que nos vimos reportando [n.º 1-b) do art. 177º C.P., sendo inoperante, como acima já dissemos, e sob pena de uma ilegal dupla valoração, a circunstância pensada, em abstracto, do aproveitamento de uma suposta especial vulnerabilidade em razão da idade da vítima – n.º 1-c) do mesmo art. 177º].

                Depois, relativamente às mensagens escritas enviadas pelo arguido para o telefone móvel da BB, o cariz das mesmas não admite duas interpretações quanto às propostas de natureza sexual por aquele veiculadas (dispensando-se, pois, o Tribunal, e a bem da inteligência de todos, de dissecar o significado de propor-se o arguido a “tocar uma” a pensar na menor…).

                Traduzindo-se o dolo do mesmo arguido, once again, em dolo directo.

                Estando-se, nesta última hipótese factual – e em uma altura na qual a BB contava já 16 anos de idade –, perante um caso de importunação sexual [simples, dado não se verificar qualquer causa de agravação, designadamente a da alínea b) do n.º 1 do art. 177º C.P., pensada pela acusação pública], p. e p. no art. 170º C.P..

                A terminar, e em complemento de todo o ora delineado, dirá o Tribunal, sem qualquer hesitação, defrontarmo-nos com dois crimes distintos, a merecerem juízos de culpa e ilicitude distintos e perfeitamente autonomizáveis entre si.

                De facto, não lidamos in casu com uma eventual hipótese de crime continuado, pois que não se surpreende qualquer significativa diminuição da culpa do arguido a partir da verificação de um conjunto de circunstâncias que de fora, e de maneira considerável, hajam facilitado a repetição da actividade delituosa e feito enfraquecer a capacidade de o mesmo se determinar pelos contra-motivos inibitórios da prática de um crime (a propósito, cfr. Profs. Francisco Muñoz Conde e Mercedes García Arán, “Derecho Penal, Parte General”, Valência, 1993, págs. 492 e ss.).

                O que temos é, ao cabo e ao resto, uma culpa maior – e não menor – do arguido ao lesar, de modo ostensivo, um bem jurídico (globalmente) comum radicado na mesma vítima (a propósito, e em tese, cfr. Prof. Helena Moniz, “Violação e coacção sexual?”, R.P.C.C. Ano 15, fascículo 2º, pág. 313, e Dr. Nuno Vinagre, “Da reforma dogmática do concurso de crimes. O repensar à luz do complexo sistema dialéctico entre o crime de coacção sexual e o crime de violação”, Coimbra, 2011, págs. 125 e 126).

                Ou seja, tudo nos fazendo inculcar a ideia de haver o arguido praticado, em concurso efectivo, um crime de abuso sexual de crianças agravado e um crime de importunação sexual pelos quais terá (justamente) de ser condenado (art. 30º/n.º 1 C.P.), no mais devendo ser ele absolvido.

                Integremos, do ponto de vista jurídico-criminal, os factos, devendo recordar-se vir o arguido acusado da prática de dois crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. nos arts. 171º/n.º 1 e 177º/n.º 1-b) e c) C.P., e um crime de importunação sexual agravado, p. e p. nos arts. 170º e 177º/n.º 1-b) C.P..

                Quer o tipo de abuso sexual de crianças, quer o de importunação sexual, se inserem, do ponto de vista sistemático, na área dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual (Livro II, Título I, Capítulo V C.P.), tratando, portanto, das condutas perpetradas contra as pessoas e a liberdade que a estas individualmente inere de se determinarem do ponto de vista sexual.

                Crê o Tribunal, neste domínio da chamada criminalidade sexual, e antes do mais, ser útil a sensibilização para três ou quatro ideias básicas.

                Desde logo, para a noção de que, no limite, as normas reguladoras da matéria sexual constituem restrições ao seu exercício, marcadas pelas preocupações e significâncias societário-culturais mais importantes de cada época histórica.

                Nas palavras do Dr. Karl Prelhaz Natscheradetz, «(…) a regulamentação da sexualidade é condicionada pelo tempo e pela cultura, e muda com eles. Determinadas normas sexuais que muito naturalmente regeram nos seus tempos, com o decurso dos séculos depararam hoje com um repúdio generalizado (…)» (“O direito penal sexual: conteúdo e limites”, Coimbra, 1985, pág. 75). Não podendo ser olvidada, pois, a forte componente cultural do direito penal sexual (como, aliás, de todo o direito penal), «(…) na sua natural e incindível ligação com o todo social de cada povo em cada época (…)» (Prof. Américo Taipa de Carvalho, “Condicionalidade sócio-cultural do direito penal”, Coimbra, 1985, pág. 13).

                No ordenamento jurídico-penal português, e desde a redacção introduzida no C.P. pelo D.L. n.º 48/95, de 15/3, é a lei dominada, na área dos crimes sexuais, pela «(…) proposição político-criminal segundo a qual em caso algum constitui crime a actividade sexual levada a cabo em privado por adultos que nela consentem (…)», apresentando-se tal proposição político-criminal, própria de um Estado de Direito democrático, laico e pluralista, «(…) como consequência de uma concepção que como função exclusiva do direito penal a protecção subsidiária de bens jurídicos (art. 40º/n.º 1 C.P. e art. 18º/n.º 2 da Constituição da República Portuguesa C.R.P.) e culmina uma complexa e intranquila evolução histórica, moral e social (…)» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, Coimbra, 1999, pág. 442).

                Daí que, tendo sido inevitável a dinâmica de uma natural evolução, se haja assistido a uma tendência geral de progressiva descriminalização e despenalização de certos comportamentos ligados à sexualidade humana antes tido por cunhados segundo uma matriz essencialmente moralista (podendo a propósito pensar-se, por exemplo, na não punição da homossexualidade enquanto tal, mas apenas quando se tratasse do “desencaminhar” de menores de 16 anos de idade – art. 175º C.P., na redacção D.L. n.º 48/95).

                Significa o acabado de expor que falamos hoje de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, depois de durante séculos (desde as Ordenações) serem observados sob o enfoque da moral sexual dominante, dos costumes ou dos fundamentos éticos da sociedade, em uma evidente circunscrição da etiologia destes crimes à tutela da chamada “moralidade sexual pública”.

                É, aliás, interessante verificar algumas diferenças diacrónicas de enfoque e perspectiva legal do mundo sexual e sua moralidade: pense-se no conceito de “pudor” inerente aos tipos dos arts. 205º, 207º e 216º-c) C.P., na redacção anterior ao D.L. n.º 48/95, e cuja razão de ser radicava nos mencionados sentimentos gerais de moralidade sexual.

                Com a revisão operada pelo D.L. n.º 48/95, o C.P. passou a adoptar a categoria conceptual de “acto sexual de relevo” (cfr., a título de exemplo, os arts. 163º, 165º e 166º C.P.), por via da qual se tornou evidente a não assunção, pela lei penal, de uma ética moral e social que não lhe competiria defender (enfatizando-se, ao invés, a relevância do acto, antes do mais, para quem o sofre e a sua própria esfera de autonomia sexual – com muito interesse, vide também, a propósito, as Actas da Comissão Revisora, 12ª Sessão, págs. 94 e 95).

            Logo – e esta é uma ideia fundamental –, desde 1995 são a liberdade e a autodeterminação sexual os valores jurídicos essencialmente protegidos, integrando os tipos que visam a repressão das violações a tais bens a categoria dos crimes contra as pessoas e não contra os fundamentos da sociedade (para uma visão crítica do direito penal sexual de cariz “moralista” – de que o positivado pela versão originária do C.P. de 1982, como já se referiu, ainda era parcialmente tributário –, enquanto complexo de crimes consagradores de bens jurídicos ligados aos fundamentos ético-sociais da vida em sociedade e seus costumes, cfr. Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Crimes contra os costumes”, in “Enciclopédia Polis”, volume I, Lisboa, 1983, págs. 1371 a 1377, Dr. Karl Prelhaz Natscheradetz, “O direito penal sexual: conteúdo e limites” citado, págs. 134 a 154, e Prof. Vera Lúcia Raposo, “Da moralidade à liberdade: o bem jurídico tutelado na criminalidade sexual”, inLiber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, Coimbra, 2003, págs. 931 a 938).

                Seja como for, este é um dos domínios onde o direito penal sempre assumirá um importante papel sancionador, constituindo uma das formas mais marcantes de prover à reconhecida necessidade de controlo ou regulação social da matéria. Desde logo, porque é de todos conhecida a insegurança biológica e a plasticidade do chamado instinto sexual humano, tantas vezes manifestadas em situações inesperadas e díspares, e geradoras de consequências de difícil apreensão e antecipação. Efectivamente (e, sobretudo, após o tratamento científico do tema, nos inícios do século XX, por Sigmund Freud), sabe-se que os instintos sexuais humanos não apresentam um ritmo periódico: na feliz expressão do Prof. José António da Silva Soares, «no homem existem necessidades e as respectivas tendências para as satisfazer» (“Sexualidade humana”, in “Enciclopédia Polis”, volume V, Lisboa, 1987, pág. 741). Contrariamente aos dos (restantes) animais, aqueles instintos (e ainda que em latência) estão continuamente presentes e podem manifestar-se das mais variadas formas, ligadas ou não ao aspecto biológico-reprodutor. Por isso mesmo, tem o homem de aprender a satisfazer as suas necessidades, em um «(…) longo processo lento e complexo que, muitas vezes, é interrompido no seu desenvolvimento (fixações) ou se orienta num sentido não desejado (desvios). É neste contexto que se põe o problema da educação sexual. Com ela, pretende-se levar o ser humano a atingir a maturidade sexual e afectiva que o torne capaz, quer de integrar a sua sexualidade no amor (…), quer de sublimar as suas tendências ao serviço de bens superiores (…)» (Prof. José António da Silva Soares, “Sexualidade humana” citado, pág. 741).

                Portanto, reconhecendo-se a indisfarçável ineficácia (e, em muitos casos, a ausência) dos mecanismos de educação, maturação e contenção, pelo ser humano, da sua própria sexualidade, caberá ao ordenamento jurídico, maxime na dimensão de ultima ratio própria do direito penal, intervir enquanto forma de tutela dos bens jurídicos mais facilmente atingíveis e postos em causa por aquela ineficácia reguladora.

                A ideia básica, no entanto, será esta: na fase de desenvolvimento em que nos encontramos, a intervenção do direito (mormente na sua feição repressiva) na vida íntima das pessoas reger-se-á por limites de certa contenção.

                Se a lei tem em linha de conta a maior liberdade possível nos comportamentos sexuais, e se a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem (cfr. art. 4º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão), o direito penal sexual apenas surgirá como último patamar na criminalização de condutas que atentem contra a liberdade ou poder de autodeterminação da vítima, na medida em que a obriguem a praticar, sofrer ou presenciar determinados actos violadores ou contrários aos seus mais lídimos sentimentos de afirmação sexual.

                E este será, repete-se, um dos pontos essenciais: salvaguardando a evidente necessidade de obviar aos efeitos futuros verdadeiramente devastadores de um despertar sexual precoce (mesmo que não violento), protegendo-se, assim, aqueles cuja vontade ainda não é completamente autónoma – seja, pois, por inexperiência em razão de idade e se encontram em plena fase de desenvolvimento como pessoas, seja também pelas suas limitações de índole intelectivo-cognitiva, seja pela sua incapacidade de opor, no momento, qualquer tipo de resistência ao arrimo sexual relevante –, o direito penal não encontrará legitimidade para intervir no complexo de relações de índole sexual mantidas entre adultos, senhores da sua vontade, e no recesso da sua intimidade.

                No contexto acabado de expor, note-se que o nosso legislador de 1995 passou a distinguir os crimes contra a liberdade sexual (arts. 163º e ss. C.P.) dos crimes contra a autodeterminação sexual (arts. 172º – actualmente, 171º – e ss.), nos primeiros prevendo os atentados directos à liberdade sexual e nos segundos os atentados ao livre desenvolvimento sexual (sobre os exactos contornos desta nuance, cfr. Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, págs. 441 e 442).

                Ora, no domínio dos crimes contra a autodeterminação sexual, a ideia básica é a de que a eventual manifestação de “vontade” por parte do menor em termos de relacionamento sexual não tem qualquer validade ou relevância. As razões de ser desta opção são claras e prendem-se com o que há pouco se disse: o fundamental é a protecção de uma vontade ainda em desenvolvimento e, portanto, ainda não completamente autónoma.

                De que modo se protegem então, hoje, os menores neste tipo de crimes?

                Por meio da incriminação específica do abuso sexual de crianças, do abuso sexual de menores dependentes, dos actos sexuais com adolescentes, do recurso à prostituição de menores, da pornografia de menores, e ainda prevendo a idade como agravante do crime comum aos crimes que não sejam definidos em função desta (cfr. arts. 171º, 172º, 173º, 174º, 175º, 176º e 177º/n.os 5, 6, 7 e 8, todos C.P., nas redacções da Lei n.º 59/2007, de 4/9, da Lei n.º 103/2015, de 24/8, e, ainda mais recentemente, quanto a algumas destas normas, da Lei n.º 101/2019, de 6/9, Lei n.º 40/2020, de 18/8, e Lei n.º 15/2024, de 29/1). Nota abrangente de todos os tipos de crimes de carácter sexual é a que se deixa exposta no art. 178º C.P., relativa aos requisitos de procedibilidade (fazendo-se depender o procedimento criminal da vontade – queixa – da vítima, nos casos em que esta não é menor ou deles não resulta suicídio ou morte da mesma, mas permitindo-se a oficialidade, isto é, o impulso autónomo pelo Ministério Público em determinadas circunstâncias, enumeradas na norma em questão).


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                Recorde-se, no nosso caso, vir o arguido acusado da prática de dois crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, p. e p. nos arts. 171º/n.º 1 e 177º/n.º 1-b) e c) C.P., perpetrados relativamente à pessoa da menor BB.

                Estatui, então, o n.º 1 do art. 171º C.P., na redacção conferida pela Lei n.º 103/2015, vigente quer aquando da prática dos factos sub judicio quer na actualidade, que «quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos», sendo que, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, «se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos»; depois, o n.º 3 de tal art. 171º preceitua que, «quem: a) importunar menor de 14 anos, praticando o acto previsto no art. 170º; ou b) actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversas, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos; c) aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a actividades sexuais; é punido com pena de prisão até 3 anos».

                        O bem jurídico protegido pelo tipo desta figura, já o demos a entender, é a autodeterminação sexual, embora «(…) sob uma forma muito particular: não face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I citado, pág. 541).

                        Já acima se fez uma alusão à categoria do acto sexual de relevo, conceito aberto cuja densificação não deve ser necessariamente procurada no carácter libidinoso do acto. Dito de outro modo: acto sexual de relevo não é definível como acto libidinoso, no sentido de que tenha sempre como finalidade motivadora (em jeito de “dolo específico”) obter-se o saciar de paixões lascivas.

                        Embora se admita que importe deixar de fora da tutela penal «(…) atitudes anódinas como, por exemplo, um simples beijo, que não tem dignidade criminal» (Actas da Comissão Revisora, 12ª Sessão, págs. 94 e 95), a verdade é que a natureza sexual e de relevo do acto é algo que deve ser aferido exteriormente e não, de forma decisiva, no animus que preside à conduta do agente.

            Assim, será acto sexual de relevo aquele que, constituindo um comportamento (em regra activo), tem inequívocas refracções de natureza sexual por bulir com a «(…) liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica», considerando-se relevante, para determinar o conteúdo e significado do acto, «(…) o circunstancialismo de lugar, de tempo, de condições que o rodeia e que o faça ser reconhecível pela vítima como sexualmente significativo» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I citado, págs. 447 e 448).

                Em termos jurisprudenciais podemos encontrar esta interessante definição de acto sexual de relevo: o comportamento que, «(…) tendo uma relação objectiva com o sexo, se reveste de certa gravidade, constituindo uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito passivo, invadindo de uma maneira objectivamente significativa aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo que, no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano» (Ac. S.T.J. de 8/3/2002, e, em sentido idêntico, Ac. Rel. Coimbra de 2/2/2011, e Ac. Rel. Porto de 14/7/2021, todos os arestos disponíveis in www.dgsi.pt).

                Acresce poder o acto sexual de relevo traduzir-se em modos “tarifados” da prática sexual, como a cópula (introdução do pénis na vagina), o coito anal (introdução do pénis no ânus), o coito oral (introdução do pénis na boca), ou a introdução vaginal ou anal de (outras) partes do corpo ou objectos (n.º 2 do art. 171º C.P.).

                Recorde-se agora que o tipo em questão não carece, para o seu preenchimento, do emprego de violência (de uma vis compulsiva) ou coacção sobre a vítima (ao contrário do que sucede, por exemplo, com os crimes de coacção sexual e de violação – arts. 163º e 164º C.P.), porque no abuso sexual de crianças a liberdade de vontade da vítima até pode, bem vistas as coisas, não ser atingida. Talvez por isto mesmo haja quem entenda que o essencial a defender no abuso sexual é (ou pode ser), diversamente da liberdade, o desenvolvimento gradual e a descoberta espontânea da sexualidade, sem experiências traumáticas ou intromissões de adultos em uma esfera tão íntima (Prof. Orts Berenguer, “Comentarios al Código Penal de 1995”, volume I, Valência, 1996, pág. 937).

                Daí a total irrelevância de qualquer consentimento do menor de 14 anos para a prática do acto sexual de relevo: tudo se passa como se a lei presumisse que, ainda que consentido, o relacionamento sexual com menor de 14 anos constitui um perigo para o desenvolvimento livre (físico e psíquico) do menor, e ainda que (admita-se por razões académicas…) tal perigo não ocorra em concreto.

                Esta simples nota faz-nos também enquadrar o crime de abuso sexual de crianças na categoria dos crimes de perigo abstracto (em tese geral, sobre os crimes de perigo abstracto, vide Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral”, Coimbra, 2004, pág. 170).

                O n.º 3 do art. 171º C.P. pretende, também ele, proteger a autodeterminação sexual da criança, mas, desta feita, não perante algo de tão “invasivo” e “drástico” para a corporalidade ou presença física do menor de 14 anos quanto o será o acto sexual de relevo, mas perante outras realidades, que podem ir desde a importunação sexual, a actuação sobre o menor através de uma conversa, um escrito, um espectáculo ou um objecto pornográficos, até ao aliciamento do menor a assistir a abusos sexuais ou a actividades sexuais.

                Ora, a importunação sexual – para que remete a alínea a) do n.º 3 do art. 171º C.P. – goza de previsão específica no art. 170º C.P., de acordo com a qual, na sua redacção actual, introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5/8, «quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal»

                Temos, portanto, nesta última construção típica, contida no art. 170º C.P., por um lado, a possibilidade do constrangimento da vítima a um contacto de natureza sexual (embora não de relevo), no sentido de que «o contacto de natureza sexual traduz-se na prática no corpo da vítima o agente tem de tocar o corpo da vítima de um acto de natureza sexual» (Profs. Anabela Miranda Rodrigues e Sónia Fidalgo, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, 2ª edição, Coimbra, 2012, pág. 828); por outro lado, no entanto, poderá verificar-se o anúncio, pelo agente, de uma ou várias propostas de natureza sexual, ou a prática de actos exibicionistas perante a vítima, ou seja, a prática, neste último caso, de actos – que não meras palavras – relacionados com o sexo (sobre estes conceitos, Profs. Anabela Miranda Rodrigues e Sónia Fidalgo, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I e 2ª edição citados, págs. 816 e 817).

                Por seu turno, na alínea b) do citado n.º 3 do art. 171º C.P., o abuso dá-se por via da actuação do agente sobre menor de 14 anos – e para o que aqui mais releva – por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos, isto é de um quid imbuído de um conteúdo objectivo «(…) idóneo, segundo as características concretas da sua utilização, a excitar sexualmente a vítima, violando por isso os limites exigidos por um desenvolvimento livre e sem entraves da personalidade do menor na esfera sexual» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I e 2ª edição citados, pág. 838). Ainda em termos objectivos, a “conversa” aqui pensada pela lei «(…) abrangerá seguramente qualquer forma de comunicação coloquial, seja levada a cabo directamente ou por qualquer outra forma, v.g., telefonicamente ou por meio informático, em suma, neste sentido, seja qual for o seu “suporte”» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I e 2ª edição citados, pág. 837).

                Finalmente, a alínea c) do mencionado n.º 3 do mesmo art. 171º C.P. faz apelo ao aliciamento (ou “enleamento”) do menor a assistir a abusos sexuais ou a actividades sexuais que lhe serão a ele (menor) alheias.

                Na dimensão subjectiva do crime de abuso sexual de crianças, o dolo não prescinde, em todos estes casos, de recair sobre a totalidade dos elementos do tipo objectivo de ilícito, onde avulta, como se percebe, a consciência, pelo agente, da idade (menor de 14 anos) da(s) vítima(s).


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                Segundo a acusação pública, os crimes de abuso sexual de crianças imputados ao arguido deverão ser agravados nas respectivas molduras penais, em um terço no limite mínimo e no limite máximo, nos termos do art. 177º/n.º 1-b) e c) C.P., norma que pressupõe encontrar-se a vítima em «(…) uma relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente (…)», sendo «(…) o crime (…) praticado com aproveitamento desta relação» [alínea b)], e tratar-se a vítima de «(…) pessoa particularmente vulnerável, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez» [alínea c)].

                Já relativamente ao crime de importunação sexual, perspectivou a acusação a agravação do ilícito apenas em função da hipótese contida na alínea b) do n.º 1 do art. 177º C.P..

                Pois bem, cremos perceber-se o sentido da agravação advinda do aproveitamento, pelo agente, de uma situação marcada por matizes de proximidade existencial e-ou vivencial (exemplos da coabitação, tutela ou curatela) ou até de subordinação ou dependência hierárquico-funcional, económica ou laboral, obviamente diminuidoras da capacidade de “autoprotecção” e reacção da vítima perante as “arremetidas” do primeiro [alínea b) do n.º 1 do art. 177º C.P.].

                No entanto, já relativamente à agravação pensada pela alínea c) do n.º 1 do art. 177º C.P., teremos de notar o seguinte: se, em tese, se compreende a especial e agravada ilicitude do facto praticado pelo agente, tratando-se a vítima de uma pessoa particularmente vulnerável, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, importará, todavia, perceber também que, como se sustentou no Ac. Rel. Lisboa de 9/3/2023, estando em causa a prática de um(ns) crime(s) de abuso sexual de crianças, p. e p. no art. 171º C.P., não poderá aplicar-se a referida agravação, no que à questão da idade atina, porquanto, sendo a idade do menor elemento do tipo, a agravação redundaria em uma inadmissível dupla incriminação ou valoração negativa do comportamento do agente (aresto disponível in www.dgsi.pt).


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                Posto tudo isto, o que dizer?

            Que a matéria assente permite a conclusão (quanto a nós, mais ou menos meridiana) de que os comportamentos do arguido acima descritos exigem o seu enquadramento típico na prática de um crime de abuso sexual de crianças e um crime de importunação sexual, ainda assim, não exactamente nos mesmos termos pressupostos pela acusação pública.

                Vejamos, então.

                Desde logo, parece ao Tribunal particularmente patente a circunstância de o apalpar dos seios, pelo arguido à menor BB, nos moldes e no contexto em que ocorreu, consubstancia a prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado.

                Com efeito, negar a categoria de acto sexual de relevo à actuação do arguido acabado de aludir, no quadro contextual em que a mesma aconteceu – e sobre quem aconteceu, ou seja, uma menor à época com 12 anos de idade –, seria, na opinião do Colectivo, um exercício de entendimento excessivamente “libertário” e, por outro lado, de “capitulação” com a insídia comportamental do arguido na sua aproximação à menor (em momento no qual ninguém mais se encontrava perto deles), pouco compatível com a protecção do desenvolvimento da personalidade (também a nível sexual) que se pretende conatural a quem se encontra ainda em pleno desenvolvimento psicofísico (não sendo suposto que uma jovem de 12 anos tenha, sem mais, de ser tocada e apalpada nos seios…). Porque o ponto é este: tratando-se o corpo de cada um de nós (também) de um campo e de um reduto existencial com evidente projecção sexual, não traduzirá o apalpar dos seios, ainda para mais de uma jovem do sexo feminino – e mesmo por cima da roupa –, uma abordagem do mais sexualmente explícito que possa imaginar-se, atenta a zona corporal (de inequívoco cariz erógeno) que abarca?

                Estamos, por isso, absolutamente de acordo com a afirmação do Ac. Rel. Lisboa de 15/5/2014, segundo a qual o apalpar e o acariciar dos seios e mamas comporta uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, ou seja, normalmente praticado no domínio da sexualidade entre pessoas, pelo que, «tendo o arguido acariciado com a sua mão, exercendo pressão sobre uma das mamas de uma menor do sexo feminino de 11 anos de idade, quer tendo em outra ocasião colocado uma das suas mãos sobre uma das mamas de outra menor do sexo feminino de 10 anos de idade, apalpando-a, tais actos integram e perfectibilizam o conceito legal de acto sexual de relevo, ínsito no n.º 1 do art. 171º C.P. (…)» (podendo ver-se, ainda, quanto à ideia de que o acto de apalpar a mama de uma menor, mesmo por fora da blusa que a mesma traz vestida, consubstancia um acto sexual de relevo, o Ac. Rel. Lisboa de 5/3/2024, ambos os arestos contidos em www.dgsi.pt).

                Como óbvio se afigura, também, o dolo (directo) com que o arguido levou a cabo o seu comportamento agora aludido.

                Por outro lado, temos igualmente como clara a verificação da fonte de agravação do crime de abuso sexual de crianças em causa, a saber, o contexto de coabitação (e de dependência económica) à época existente, no qual o arguido, no seu “reduto”, levou a cabo o comportamento criminoso a que nos vimos reportando [n.º 1-b) do art. 177º C.P., sendo inoperante, como acima já dissemos, e sob pena de uma ilegal dupla valoração, a circunstância pensada, em abstracto, do aproveitamento de uma suposta especial vulnerabilidade em razão da idade da vítima – n.º 1-c) do mesmo art. 177º].

                Depois, relativamente às mensagens escritas enviadas pelo arguido para o telefone móvel da BB, o cariz das mesmas não admite duas interpretações quanto às propostas de natureza sexual por aquele veiculadas (dispensando-se, pois, o Tribunal, e a bem da inteligência de todos, de dissecar o significado de propor-se o arguido a “tocar uma” a pensar na menor…).

                Traduzindo-se o dolo do mesmo arguido, once again, em dolo directo.

                Estando-se, nesta última hipótese factual – e em uma altura na qual a BB contava já 16 anos de idade –, perante um caso de importunação sexual [simples, dado não se verificar qualquer causa de agravação, designadamente a da alínea b) do n.º 1 do art. 177º C.P., pensada pela acusação pública], p. e p. no art. 170º C.P..

                A terminar, e em complemento de todo o ora delineado, dirá o Tribunal, sem qualquer hesitação, defrontarmo-nos com dois crimes distintos, a merecerem juízos de culpa e ilicitude distintos e perfeitamente autonomizáveis entre si.

                De facto, não lidamos in casu com uma eventual hipótese de crime continuado, pois que não se surpreende qualquer significativa diminuição da culpa do arguido a partir da verificação de um conjunto de circunstâncias que de fora, e de maneira considerável, hajam facilitado a repetição da actividade delituosa e feito enfraquecer a capacidade de o mesmo se determinar pelos contra-motivos inibitórios da prática de um crime (a propósito, cfr. Profs. Francisco Muñoz Conde e Mercedes García Arán, “Derecho Penal, Parte General”, Valência, 1993, págs. 492 e ss.).

                O que temos é, ao cabo e ao resto, uma culpa maior – e não menor – do arguido ao lesar, de modo ostensivo, um bem jurídico (globalmente) comum radicado na mesma vítima (a propósito, e em tese, cfr. Prof. Helena Moniz, “Violação e coacção sexual?”, R.P.C.C. Ano 15, fascículo 2º, pág. 313, e Dr. Nuno Vinagre, “Da reforma dogmática do concurso de crimes. O repensar à luz do complexo sistema dialéctico entre o crime de coacção sexual e o crime de violação”, Coimbra, 2011, págs. 125 e 126).

                Ou seja, tudo nos fazendo inculcar a ideia de haver o arguido praticado, em concurso efectivo, um crime de abuso sexual de crianças agravado e um crime de importunação sexual pelos quais terá (justamente) de ser condenado (art. 30º/n.º 1 C.P.), no mais devendo ser ele absolvido.”

            A dissensão do recorrente quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos assim ponderado no acórdão recorrido gravita em torno da tipificação como ato sexual de relevo da conduta exercida sobre a menor BB – apalpar-lhe os seios, por cima da roupa – para efeito de preenchimento do tipo legal do crime de abuso sexual de crianças, e, também, da tipificação como formulação de proposta de teor sexual dirigida à mesma menor pelo arguido – mensagens escritas com o conteúdo a “ logo posso tocar uma a pensar em ti, se deixares ganhas € 10” e “ não ficas chateada comigo se eu tocar a pensar em ti?” para efeito de preenchimento do tipo legal do crime de importunação sexual.

            Não cremos, porém, que lhe assista razão.

            A abordagem exaustiva, e, a todos os níveis, completa, que o tribunal a quo deixou plasmada no acórdão recorrido a esse respeito merece, sem qualquer reparo, a nossa concordância e dispensaria, até, acrescidas considerações.

            Todavia, sempre diremos o seguinte:

            Ao contrário do que pretende o arguido e ora recorrente, revendo-nos no entendimento sufragado pelo tribunal recorrido, haverá que entender que a atuação do arguido visando a menor BB - que, à data, tinha 12 anos de idade e integrava  o agregado do arguido, dependendo este, do ponto de vista económico, essencialmente do arguido – traduzida em aproximar-se da mesma, quando se encontravam apenas os dois e sem qualquer pessoa nas proximidades, apalpando-lhe os seios por cima da roupa, não poderá deixar de consubstanciar um ato sexual de relevo, por se  revelar   constrangedor para a menor, perturbador da sua esfera íntima e privada – fazendo-a sentir-se incomodada e envergonhada – suscetível de afetar, a nível psicológico, o normal desenvolvimento da sua personalidade e dos seus relacionamentos afetivos futuros, espelhando uma ofensa, de forma significativa e indubitável, da consciência jurídico-axiológica da sociedade em que vivemos, sendo essa atuação do arguido censurável, quer numa perspetiva objetiva, quer subjetiva, significativamente violadora dos valores defendidos através das normas penais, integrando e perfectibilizando o conceito legal de ato sexual de relevo, ínsito no n.º 1 do art. 171º C.P.

            Nada, por isso, havendo a censurar à decisão recorrida que ponderou a condenação do arguido e ora recorrente à luz de tal disposição legal, e, ainda, da agravação resultante do art. 177º, nº1, al. b) do mesmo diploma legal, em face do contexto de coabitação (e de dependência económica) em que à época a vítima se encontrava em relação aquele. 

            Da mesma forma, contrariamente ao que defende o arguido e ora recorrente em sede recursiva, não poderemos deixar de perfilhar o entendimento do tribunal recorrido no sentido de que a atuação do arguido, traduzida no envio de mensagens escritas à visada BB, à data já com 16 anos de idade, cujo conteúdo – “ logo posso tocar uma a pensar em ti, se deixares ganhas € 10” e “ não ficas chateada comigo se eu tocar a pensar em ti?”-  se integra na tipificação legal prevista no art. 170º do C. Penal.

            Como defendem Mouraz Lopes e Caiado Milheiro, in CRIMES SEXUAIS – Análise Substantiva e Processual. 1.ª Edição, Coimbra Editora, pag. 158, a formulação de proposta sexual “pode assumir a forma verbal, gestual, escrita ou qualquer outra forma de comunicação que não implique contacto físico”, impondo-se, pois, que essa comunicação deva conter a formulação de um convite, uma sugestão de prática de ato sexual.

            Segundo os mesmos autores, in ob. cit. pag. 153 “a importunação não se centra apenas numa perspectiva subjetivista da vítima, pois que para além de se ter importunado em concreto aquela pessoa terá que avaliar-se o contexto e circunstâncias de modo a não punir situação sem relevo em termos de tutela penal, pelo facto da conduta não ter ressonância ético-social censurável, ou pelo menos ao ponto de exigir o exercício do ius puniendi estadual”.

            Defendendo, ainda, tais autores que “A configuração típica do acto deve, por isso sustentar-se na utilização de um tipo de linguagem (ou outra forma de expressão) baixa, ostensivamente sexual, rude, com aptidão para ferir a liberdade da vítima em termos sexuais, no sentido de que se sente invadida na sua privacidade sexual sem ter possibilidade ou capacidade de rejeitar um comportamento que lhe é imposto por terceiro. Terá que ser assim uma linguagem ou expressão gráfica com aptidão para a importunar, e que conduza a essa efectiva importunação sexual (crime de resultado).

            Ao contrário do que parece propugnar o recorrente, para o preenchimento do crime de importunação sexual não se exige, o envolvimento da vítima na execução corporal de um ato sexual, ao contrário do que se passa com outros crimes de natureza sexual, basta-se o mesmo com a receção, por parte desta, de atos comunicativos de teor sexual.

            Mandar mensagens escritas a alguém, como fez o arguido, enviando-as à ofendida BB, perguntando-lhe se podia masturbar-se a pensar nela e se ela não ficava chateada que se masturbasse a pensar nela – porque outro significado não poderão assumir as mensagens que o arguido enviadas à ofendida - traduz uma linguagem que assume ressonância ético-social censurável com aptidão para importunar a vítima e que conduziu a uma efetiva importunação sexual da mesma, porque foram causa da perturbação do seu estado psíquico e por ela sentidas como negativas e / ou indesejadas, sentindo-se incomodada e envergonhada com a receção das mesmas.

            Em suma, a subsunção dos factos feita no acórdão recorrido à luz dos preceitos incriminadores dos crimes de abuso sexual de crianças e de importunação sexual, mostra-se irrepreensível, não padecendo de inconstitucionalidade a interpretação feita pelo tribunal recorrido da dimensão normativa que os preceitos legais que os tipificam comportam.

            Face ao exposto, improcede também neste segmento recursivo a pretensão do recorrente.


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            - Da incorreta ponderação da pena parcelar fixada para o crime de abuso sexual de crianças e da pena única

            Insurge-se o recorrente ainda quanto à dosimetria da pena parcelar que lhe foi aplicada pela prática do crime de abuso sexual, p. e p. pelo arts, 171º e 177º, nº1 b), ambos do C. Penal, fixada em 1 ano e 9 meses de prisão, sustentando a sua discordância nesse particular na conclusão Y , e, também, quando á pena única – fixada em 2 anos e 3 meses de prisão -  que lhe foi aplicada em resultado do cúmulo jurídico daquela pena parcelar com a pena parcelar que lhe foi aplicada pela prática do crime de importunação sexual, p. e p. pelo art. 170º do C. Penal, fixada em  9 meses de prisão, sustentando a sua discordância quanto a esta na argumentação que resume nas conclusões Z. a AA.

            A argumentação aduzida pelo arguido que sustenta a redução da pena parcelar que lhe foi aplicada decorrente da prática pelo mesmo do crime de abuso sexual, p. e p. pelo arts, 171º e 177º, nº1 b), ambos do C. Penal, radica no diferente entendimento que o mesmo sufraga a respeito do enquadramento jurídico-penal dos factos que lhe estão imanentes, entendimento esse que soçobrou na apreciação do respetivo segmento recursivo.

            Daí que, estribando-se agora a pretendida redução dessa pena parcelar fixada pelo tribunal recorrido unicamente em tal argumentação recursiva, e não também, em diferente entendimento dos critérios legais valorados para a respetiva fixação, terá de naufragar a pretensão do recorrente, sendo de manter a pena de 1 ano e 9 meses de prisão decidida para o aludido crime de abuso sexual de crianças.

            Vejamos, agora, se padece de incorreção a decisão do tribunal recorrido no que tange à dosimetria da apena única.

            Na ponderação das penas a aplicar ao arguido, adiantou-se no acórdão recorrido, com pertinência para o que agora cumpre decidir, o seguinte:

                “Em sede de medida concreta das penas a aplicar, tomar-se-á em conta o princípio contido no n.º 1 do art. 71º C.P.: a análise da culpa do agente e das exigências de prevenção suscitadas pelo caso.         

                Sabemos que na aplicação de penas a defesa da ordem jurídico-penal é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre um mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e um máximo consentido pela culpa do agente. Entre esses limites, satisfazem-se as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (cfr., a este propósito, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Lisboa, 1993, págs. 227 e ss.).

                A culpa funciona como fundamento e, sobretudo, como limite de pena a não ultrapassar em caso algum (n.º 2 do art. 40º C.P.); as exigências de prevenção geral – de integração (as expectativas comunitárias na validade e vigência das normas violadas) – e especial – de ressocialização – farão com que se encontre o quantum concreto de pena a aplicar. O que nos leva a admitir a possibilidade de uma sanção inferior à que seria dada apenas pela culpa (cfr., por todos, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime” citado, págs. 257 e ss., 298 e 299). Portanto, poderemos dizer – e é conveniente repetir esta ideia – que, dentro do limite consentido pela culpa, a medida da pena dependerá, ao cabo e ao resto, das necessidades preventivas: por um lado, das de ressocialização e reinserção social, e, por outro lado, das de prevenção geral de integração (como já foi dito, as que se ligam à manutenção e ao reforço da confiança comunitária na validade “fáctica” das normas violadas).

                Ora, falar-se, nesta fase, da cada vez maior consciencialização comunitária da gravidade e delicadeza da matéria dos crimes sexuais que vitimam menores é algo que, hoje em dia, se revela quase um truísmo, atento aquilo que as condutas criminosas em causa são susceptíveis de revelar do “atropelamento” de uma posterior sã descoberta do importante mundo da sexualidade por parte das vítimas (neste exacto sentido, cfr. o Preâmbulo da Convenção do Conselho da Europa para a Protecção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, dita Convenção de Lanzarote, de 25 de Outubro de 2007, e que, como se sabe, há muito vincula o Estado Português).

                Nos termos do n.º 2 do art. 71º C.P. citado, considerar-se-ão os seguintes elementos que, não fazendo parte dos tipos, depõem contra ou a favor do arguido:

                - o razoável grau da ilicitude dos factos (que apela ao número e sentido de violação dos interesses ofendidos, aspecto em que importará realçar o tipo de actos praticados, de modo desabrido, sobre a vítima, devendo nós notar também, nesta sede – e salvaguardando sempre a regra da proibição da dupla valoração –, o evidente aproveitamento da desprotecção de alguém cuja capacidade de defesa perante as investidas do arguido se mostrou, maxime na primeira situação, de um modo compreensível, manifestamente diminuída, ainda por cima porquanto levadas a cabo por uma pessoa na altura tão próxima e presente na vida da menor);

                - o modo de actuação (sempre estudado na escolha das oportunidades) e a concreta configuração dos factos do arguido (factos envolvendo o apalpar corporal de uma zona feminina particularmente erógena e, por outro lado, a “brejeirice” dos termos empregues nas propostas de teor sexual endereçadas à BB);

            - as mais do que possíveis consequências dos factos para a menor, isto é, as previsíveis sequelas de índole psicológica, mormente em um domínio tão importante e delicado como o sexual, com tudo o que isso pode implicar ao longo da vida [assim, e a acrescer aos considerandos há pouco por nós expendidos a propósito da denominada Convenção de Lanzarote, chamar-se-á também a atenção – e sem que se pretenda entrar em uma qualquer espiral de “catastrofismo” irrealista – para o que, a curto e a longo prazo, sempre poderá surgir em casos do jaez que ora nos ocupa: segundo a Prof. Isabel Marques Alberto, estudos indicam que é habitual ocorrer, a curto prazo, todo um conjunto de perturbações do sono e fome, medo e fobias, depressão, culpabilidade, vergonha e comportamento sexual desapropriado e, a mais longo prazo, depressão, ansiedade, pesadelos, dificuldade em dormir, sentimentos de isolamento, disfunções sexuais, estigmatização e baixa auto-estima (“Maltrato e trauma na infância”, reimpressão, Coimbra, 2006, págs. 73 e 74; com muito interesse, e a título de exemplo, aprecie-se também a excelente obra cinematográfica intitulada “Marnie”, realizada em 1964 por Sir Alfred Hitchcock, porventura bem elucidativa de tudo aquilo que acaba de ser exposto)];

                - o dolo revelado no caso (que se perspectiva como directo, pois provado ficou ter actuado o arguido de modo consciente, determinado e lúcido, orientado por uma evidente voluntas de preenchimento dos tipos de ilícito em questão);

                - a personalidade do arguido (que parece apontar para uma falta de consciencialização ética do sentido deletério dos seus factos e o que eles impedem de um são desenvolvimento da vítima, a par de um indisfarçado ardil no impor da sua vontade quando o entendeu necessário), mas também as suas condições de vida, com (aqui, em jeito de nota positiva) a interactiva integração no meio social em que se movimenta;

                - a ausência de antecedentes criminais.

                Ponderando todos os critérios e elementos referidos, entende o Tribunal adequada a fixação das seguintes penas parcelares, dentro das respectivas molduras penais abstractas:

                - uma pena de 1 ano e 9 meses de prisão para o crime de abuso sexual de crianças agravado;

                - uma pena de 9 meses de prisão quanto ao crime de importunação sexual.

                Depois, e em conformidade com as regras contidas nos arts. 77º e 78º C.P., percebemos que a pena (única) a aplicar quando se efectua o cúmulo jurídico deve situar-se entre um mínimo representado pela pena parcelar mais elevada e um máximo dado pela soma material de todas as penas (cfr. também o n.º 2 do art. 77º há pouco citado).          

                In casu, e considerando os tópicos acabados de expor, mover-nos-emos, pois, em termos de moldura do concurso, entre o limite mínimo de 1 ano e 9 meses de prisão e o limite máximo de 2 anos e 6 meses de prisão para o arguido.

                Sem embargo, sabemos igualmente que, após ser encontrada a moldura penal abstracta do cúmulo, a determinação concreta da medida da pena única deve efectuar-se considerando, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido (n.º 1, in fine, do referido art. 77º C.P.), e isto no sentido de que, como ensinou o Prof. Eduardo Correia (“Direito Criminal”, volume II, reimpressão, Coimbra, 1993, pág. 215), «(...) a soma jurídica das penas dos diversos factos tem de funcionar sempre, apenas, como moldura dentro da qual esses factos e a personalidade do respectivo agente devem ser avaliados como um todo».

                Os factores gerais do art. 71º/n.º 2 C.P. devem também ser tomados em linha de conta nesta determinação da medida da pena, mas apenas referidos ao conspecto global dos crimes e à personalidade do arguido e não em relação a cada um dos ilícitos individualmente considerados pelos quais o mesmo foi já condenado, sob pena de violação do princípio non bis in idem.

                Há, pois, que ponderar, no caso dos autos, a circunstância de o arguido haver praticado os crimes ora em concurso em um período temporal alargado, tendo como pano de fundo, como já salientámos, a lubricidade que moldou, de modo claro, a sua actuação, e em termos tais que o parece ter dotado de uma certa insensibilidade ao efeito dissuasor da prática de crimes que se supõe associado à cominação de penas. Não havendo, portanto, como negar uma inequívoca necessidade de prevenção especial no que à situação do arguido tange.

                Mas igualmente as exigências gerais de prevenção (maxime as que se ligam à ideia de reforço da validade “fáctica” das normas violadas pelos comportamentos do arguido) são relevantes in casu, nos moldes acima já apresentados.

                Concluindo, considerando todo o exposto (e especialmente a regra contida no art. 77º/n.º 2 C.P.), por tal se nos afigurar equitativo, equilibrado e justo, decide-se proceder à fixação, em cúmulo jurídico, da pena única de 2 anos e 3 meses de prisão para o arguido.”

     

            Nos termos do artigo 77º, nº 1, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.

            A punição do concurso de crimes é, pois, feita pela aplicação de uma pena única, a extrair de uma nova moldura penal que tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa –, havendo que ponderar na determinação respetiva medida concreta, conjuntamente, os factos e a personalidade do agente (cfr. art. 77º. nºs 1 e 2 do C. Penal).

            Assim, estando em causa nos autos a prática pelo arguido de um crime de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada, p. e p. nos arts. 171º/n.º 1 e 177º/n.º 1-b), ambos C.P., para o qual foi fixada a pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, e a prática de um crime de importunação sexual, na forma consumada, p. e p. no art. 170º C.P., para o qual foi fixada a pena de 9 (nove) meses de prisão, a moldura abstrata a considerar para efeitos de cúmulo tem como limite mínimo o de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão e como limite máximo o de  2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão – art. 77º, nº 2 do CP.

            O elemento aglutinador dos crimes em concurso, determinante da pena única, é a personalidade do agente.

            Para tanto, impõe-se relacionar todos os factos entre si, de forma a obter-se a gravidade do ilícito global, e depois, relacionar cada um deles, e todos, com a personalidade do agente, a fim de concluir se estamos perante uma tendência criminosa, caso em que a acumulação de crimes deve constitui uma agravante dentro da moldura proposta ou se, pelo contrário, tal acumulação é uma mera ocasionalidade que não radica na personalidade do agente. E aqui, nota Figueiredo Dias, cuja lição vimos seguindo (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 291 e seguintes), de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização). 

            Existe homogeneidade de conduta no que respeita aos crimes praticados pelo arguido sobre a mesma e única vítima, pela sua natureza.

            Já no que tange ao período temporal abrangido pela conduta do arguido, importa dizer que entre a prática do primeiro crime (em Janeiro de 2019) e a prática do último (em janeiro de 2023 ) decorreram 4 anos, ou seja, um período temporal alargado que poderia ter sido, mas não foi, dissuasor da nova investida de cariz sexual do arguido perante a mesma vítima – que à data já não vivia na casa do arguido - o que, evidenciando a propensão do arguido em atentar contra a liberdade e autodeterminação sexual da mesma, não deixa de demandar exigências ao nível da prevenção especial quanto a crimes desta natureza tendo como visada a mesma vítima, ainda que não tendo o arguido antecedentes por estes crimes por referência a outras vítimas ou por crimes de diferente natureza.

            Também quanto à ilicitude dos factos, esta terá de ponderar-se como de grau mediano em relação à globalidade da atuação do arguido, revelado pelo modo de execução dos crimes, que não atinge um patamar de maior gravidade face às condutas abarcadas pelos tipos legais incriminadores, pese embora, a menoridade da vítima (com a idade de 16 anos) aquando da prática do crime de importunação sexual traduza uma acrescida ilicitude por nele ser visada uma vítima ainda não adulta.

            Quanto à personalidade do arguido, este revela ausência de autocrítica e de empatia para com a vítima, o que aponta para uma falta de consciencialização ética do efeito pernicioso que as suas investidas sexuais perante a vítima acarretaram, ao nível do seu desenvolvimento e da sua autodeterminação e liberdade sexuais, o que, por não ter o arguido assumindo os seus comportamentos e/ou desvalorizando-os, é demonstrativo de que não interiorizou a sua culpa.

            Para além disso, apesar da sua inserção social, familiar e profissional, que dever ser ponderada, assim como a ausência de passado criminal, tais circunstâncias, ainda que de pendor favorável, pouco relevam, tendo em conta a natureza dos crimes em causa.

            E, não sendo embora possível concluir pela existência de uma carreira criminosa, a imagem global dos factos e as necessidades de prevenção a nível geral relativamente a crimes desta natureza, impõem uma resposta enérgica do sistema de justiça que, a nosso ver, se coaduna com o quantum da pena única decidida no acórdão recorrido.

            Como vem sendo entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, a intervenção do Tribunal superior tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, considerando-se, de forma uniforme e reiterada, que no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de fatores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efetuada - neste sentido, citam-se apenas alguns dos arestos da vastidão jurisprudencial que emana do STJ respeito de tal questão processo - processo n.º 8523/06.1TDLSB-3.ª; de 1-10-2009, processo n.º 185/06.2SULSB.L1.S1-3.ª; de 25-11-2009, processo n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1-3.ª; de 03-12-2009, processo n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1-3.ª; de 28-04-2010, processo n.º 126/07.0PCPRT.S1-3.ª; de 29-06-2011.

            No caso em vertente, cremos que os parâmetros legais considerados no acórdão recorrido, não são merecedores de reparo, e, considerando, a jurisprudência dos nossos tribunais em casos semelhantes, não se justifica a intervenção corretiva deste Tribunal da Relação, pelo que, considerando as mencionadas exigências de prevenção geral e especial, as circunstâncias atenuantes e agravantes verificadas, perante a moldura penal abstrata em causa para efeitos de cúmulo jurídico, a pena única aplicada ao arguido e ora recorrente – de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão – mostra-se adequada, proporcional e justa à culpa do mesmo e às prementes exigências de retenção, de defesa do ordenamento jurídico e da paz social que se fazem sentir nesta sorte de crimes, sem deixar de lado as necessidades de ressocialização do mesmo, pelo que é de manter.

            Assim, também, soçobrando neste segmento a pretensão recursiva.


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            - Da excessividade da quantia indemnizatória arbitrada à ofendida

            Restaria, por fim, a apreciação do segmento recursivo que se prende com o quantum indemnizatório arbitrado à vítima no acórdão recorrido, ao abrigo do disposto no art. 82º A., nº1 do CPP, cuja argumentação a ele subjacente se mostra resumida nas conclusões BB. e CC.         

  Todavia, conforme dispõe o artigo 400.º, n.º 2 do CPP, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

Para que o recurso seja admissível é necessário, pois, que se mostrem preenchidos dois pressupostos cumulativos: 1) o valor do pedido deve ser superior à alçada do tribunal recorrido e 2) a sucumbência do recorrente há-de ser superior a metade do valor daquela alçada.

            No caso em análise, o montante decidido a título de indemnização devido à vítima não decorre de qualquer pedido de indemnização civil por esta deduzido nos autos, antes tendo sido oficiosamente arbitrado, ao abrigo das disposições legais contidas nos arts. 82º-A do Código de Processo Penal e artigo 21º, nºs 1 e 2, da Lei nº 112/2009, de 16.09, não estando, pois, em causa o primeiro dos referidos pressupostos (ser o valor do pedido superior à alçada do tribunal recorrido).

Por outro lado, para aferir do referido segundo pressuposto (ser a decisão impugnada desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada), haverá que considerar que o valor da alçada a atender corresponde a 5.000,00 € (cf. artigo 44.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto – Lei da Organização do Sistema Judiciário), e que o montante de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) fixado no acórdão recorrido, não é superior a metade do valor dessa alçada.

Não sendo, pois, de aplicar, no presente caso a primeira regra da dupla sucumbência prevista no citado art. 400º, nº2 do CPP, e verificando a existência da segunda – o quantum desfavorável não ser superior a metade da alçada do tribunal recorrido – forçoso se torna concluir que, face ao que dispõe no citado normativo legal, o presente recurso relativo ao montante indemnizatório arbitrado oficiosamente à vítima é inadmissível.

Neste sentido, vide, entre muitos outros, o Ac. do Tribunal da Relação e Lisboa, de 16.03.2023, Proc. 743/21.5SXLSB.L1-9, in www.dgsi.pt.

Por outro lado, a decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior, pelo que nada obsta a que esta instância conheça e aprecie os pressupostos de admissibilidade da impugnação nessa parte do acórdão recorrido, nos termos previstos no artigo 414.º, n.º 3 do CPP.

Assim, face ao que ficou dito, deve o presente recurso ser rejeitado, em conformidade com o disposto nos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), segunda parte, e 414.º, n.º 2, ambos do CPP, na parte do mesmo respeitante ao montante indemnizatório fixado no acórdão recorrido.


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            III- Decisão

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

            1. Rejeitar o recurso do arguido AA na parte referente à indemnização arbitrada à vítima, ao abrigo do disposto nos artigos 82º-A do Código de Processo Penal e 21º, nºs 1 e 2, da Lei nº 112/2009, de 16.09.

            2. Julgar, no mais, improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo, na íntegra, o acórdão recorrido.

            3. Custas relativas ao recurso, quer na parte criminal, quer na parte cível, a cargo do arguido recorrente, fixando-se quanto às primeiras a taxa de justiça em 5 UC (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


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Coimbra, 9 de abril de 2025

                (Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP)

(Maria José Guerra – relatora)

(Maria Fátima Sanches Calvo Rosa Pinto – 1ª adjunta)

(Isabel Gaio Ferreira de Castro – 2ª adjunta)