CRIME DE ABUSO SEXUAL DE PESSOA INCAPAZ DE RESISTÊNCIA
NA FORMA AGRAVADA
IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO
ENQUADRAMENTO JURÍDICO PENAL DOS FACTOS
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO.
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
INJUSTIFICAÇÃO DA APLICAÇÃO DAS PENAS ACESSÓRIAS
Sumário

1 - Em consonância com o estabelecido no artigo 355º do Código de Processo Penal, apenas pode ser valorada a prova produzida em audiência de julgamento, com exceção da reprodução de declarações e depoimentos antes prestados no processo nos casos admissíveis, expressamente previstos nos artigos 356º e 357º do mesmo diploma, que não contemplam os autos de queixa.
2 - Assim, são irrelevantes as menções do recorrente às contradições em que a mãe do assistente terá incorrido aquando da apresentação de queixa e aditamento, bem como quando foi inquirida em fase anterior ao julgamento.
3 - Para o preenchimento do tipo objetivo do crime de abuso de pessoa incapaz de resistência não é suficiente que a pessoa seja portadora de uma qualquer doença psíquica ou deficit cognitivo, de maior ou menor grau, sendo indispensável que a tornem incapaz de compreender o significado e o alcance do ato sexual em causa e de expressar a sua vontade no sentido de se opor à prática do mesmo.
4 - O tipo objetivo do ilícito não se esgota com os elementos do ato sexual e da incapacidade da vítima de opor resistência, exigindo, ainda, que o agente se aproveite dessa incapacidade.
5 - Para que exista aproveitamento não é necessário que o agente se deixe motivar pelo estado ou incapacidade da vítima. Mas também não é suficiente que o conheça. O que já é necessário e suficiente é que o estado ou incapacidade torne possível ao agente o abuso sexual ou o facilite significativamente.
6 - Daí que, sempre que a vítima seja capaz de formar e expressar a sua vontade no sentido de anuir ao ato sexual, ou inclusivamente de tomar a iniciativa dele, não há aproveitamento. E também não existirá quando, por exemplo, o ato sexual se enquadre no âmbito de uma relação de amor.
7 - É inquestionável que não se pode atender à mesma circunstância como elemento indispensável ao preenchimento do crime e, simultaneamente, como fator de agravação da pena, sob pena de violação do princípio basilar da proibição da dupla valoração.
8 - No caso presente não há identidade pura ou sobreposição entre o fundamento da incriminação e a agravação – as doenças e deficiência de que padece o assistente e que o tornam pessoa particularmente vulnerável vão muito além da anomalia psíquica e disfasia que o tornam incapaz para efeito de preenchimento do tipo incriminador do artigo 165º do Código Penal.
9 - Não se verifica, assim, qualquer violação do princípio da proibição da dupla valoração.

Texto Integral

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Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. - RELATÓRIO

1. – Decisão recorrida

Nestes autos de processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, que, sob o n.º 975/22.9JALRA, corre termos no Juízo Central Criminal de Leiria – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, foi proferido acórdão que culminou com o seguinte dispositivo:

«1- O Tribunal julga totalmente procedente a acusação deduzida contra o arguido AA e, em consequência:

a) Condena o arguido, pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de 1 (um) crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 165.º, nºs. 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão;

b) Condena o arguido nas sanções acessórias previstas nos artigos 69.º-B, n.º 1 69.º-C, n.os 1 e 4, do Código Penal, pelo período de 5 (cinco) anos.

c) Condena o arguido nas custas, em 3 U. C. de taxa de justiça.

2- O Tribunal julga totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por BB contra o arguido AA e, em consequência:

a) Condena o arguido e demandado no pagamento da quantia de 20.000,00 € (vinte mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros moratórios, à taxa anual de 4 %, desde a data da notificação para contestar, até efectivo e integral pagamento.

b) Condena o demandado nas custas, sem prejuízo de benefício de apoio judiciário de que beneficiar- art. 446.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, ex vi do art. 523.º do Código de Processo Penal.»

 2. – Recurso

Inconformado, o arguido, AA, interpôs recurso, tendo, no termo da motivação, formulado as seguintes conclusões e petitório [transcrição[1]]:

«1. Este processo, como se demonstrará, foi todo ele “construído” no sentido de condenar o arguido, facto que o Tribunal não podia ter ignorado. Bastava ter analisado os autos com isenção e sem preconceitos. Se o tivesse feito não lhe teriam escapado as contradições existentes e que passaremos a referir.
Assim, a. Da queixa apresentada por CC:
2. A mãe do BB (CC apresentou queixa ao Inspetor DD, no dia 17 de Setembro de 2022 às 16H19, tendo indicado como data dos factos o dia 11 de Setembro de 2022.
3. Nesta queixa os factos são assim descritos:
“- A denunciante constatou que o seu filho (vítima acima referida) andava com comportamentos estranhos esta semana, pelo que o confrontou e este afirmou que o primo AA “foi-me ao cu”.
Segundo a denunciante estes factos terão ocorrido na noite do passado Domingo dia 11.09.2022, altura em que o suspeito levou a vitima de carro para dar uma volta. A mãe desconfia que estes factos terão eventualmente ocorrido na viatura do suspeito acima identificado “.

4. Nesse mesmo dia a aludida CC apresenta às 17:06h um auto de denuncia ao autuante EE, tendo prestado as seguintes informações complementares que se deixaram transcritas a fls. 3 das presentes alegações.

5. NOTA: Na denuncia a mãe situa osfactosno dia 11 de Setembrode 2022, referindo que nesse dia o BB terá ido passear de carro com o AA sendo que, uma hora depois, continua a situá-los no mesmo dia mas já se refere à Mata dos ... e até à própria casa!
6. No relatório de perícia de natureza sexual (exame efectuado em 19.09.2022) constante a fls. 4 das presentes alegações e que, por uma questão de economia processual, aqui se dão por reproduzidas, nas declarações da mãe do BB prestada ao Sr. Perito esta situa os factos na última quinzena de Agosto!

7. Só que, as declarações prestadas em julgamento são completamente contraditórias com a denúncia feita.
Senão vejamos:
8. Depoimento da testemunha CC, gravada na aplicação H@billus Média Studio em uso no Tribunal de Leiria, com início às 15:10h e termo às 15:25h, minuto 00.02.09 a 00.05.10 e minuto 00.13.20 a 00.15.05 que se deixaram transcritos no corpo destas alegações e que aqui se dão como reproduzidos.

9. NOTA: deste depoimento resulta que os factos ocorreram na Mata dos ..., no dia 17 de Setembro, mas que a mãe só teve conhecimento três semanas depois através da irmã, o que contradiz completamente a denúncia feita bem como as declarações prestadas no exame médico de 19 de Setembro de 2022!
10. Depoimento da testemunha FF – Depoimento gravado através da aplicação H@bilus Medioa Studio do programa citius, com início pelas 16:09:01 horas e o seu termo pelas 16:08:02 horas, minuto 00.03.17 a 00.07.10 que se deixaram transcritos no corpo destas alegações e que aqui se dão como reproduzidos.
11. Do depoimento da testemunha GG gravado através da aplicação H@bilus Media Studio do programa citius, com início pelas 16:32:10h e o seu termo pelas 16:49:24h, minuto 00.01.51 a 00.08.32 e 00.09.57 a 00.11.03 que se deixaram transcritos no corpo destas alegações e que aqui se dão como reproduzidos.
12. Depoimento a testemunha HH, depoimento gravado através da aplicação H@bilus Media Studio do programa citius, com início pelas 16:09:01h e o seu termo pelas 16:41:47h.
13. Esta testemunha que mora no 2º Esquerdodoprédioonde reside BB referiu o seguinte:

“Eu estava em casa e o meu filho chegou mais outros meninos disseram que o AA tinha ido, tinha ido buscar o BB e tinha levado ele para a mata “ [ minuto 00:02:43 ]

14. Não soube precisar o dia nem o ano em que tal aconteceu [minuto 00:04:09] referindo que foi “no ano passado”.
15. Mas referiu depois que o BB lhe contou o que se tinha passado “dois dias depois” [minuto 00:05:50] e que,

16. “Tinha contado primeiro à família, à tia depois contou (…)“ [minuto 00:05:52] e que a primeira pessoa a quem contara fora à tia FF [minuto 00:05:59 a 00:06:02].

17. Só que, pelo depoimento da mãe do BB sabemos que os factos referidos por esta testemunha ocorreram no dia 17 de Setembro de 2022 e resulta deste depoimentoque BB lhe contou oque acontecera passados doisdias,depois de ter contado à tia FF.
18. Só que esta testemunha referiu no seu depoimento “muito tempo depois” e a mãe do BB testemunhou que este contara à tia 3 semanas depois dos factos!
19. Desta “confusão” não pode resultar a matéria dada como provada na sentença e que levou à condenação do arguido.

20. Sabe-se apenas que o AA, no dia 17 de Setembro de 2022, foi dar um passeio com o BB sendo que, nessa data, já ele se apresentava nervoso e alterado pelo que, se alguma coisa se passou, terá sido antes dessa data e não com o AA.
21. Aliás, como refere a testemunha HH, o AA continuou a frequentar o prédio onde vive o BB o que seria incompreensível se algo menos correcto se tivesse passado.

Acresce que,
22. A mãe do BB estaria preocupada quando soube que o filho havia saído de casa, no entanto referiu em Tribunal que viu chegar o seu filho na companhia do BB sem qualquer problema.
23. Mas mais: quando deu banho ao BB este não tinha qualquer vestígio de abuso – não estava sujo, não tinha sangue, não tinha esperma.
24. Saliente-se ainda que a mãe do BB refere que o seu filho estava nervoso desde o dia 12 de Setembro, ou seja, uma semana antes.

25. Será queo factode tervistoo AA na Companhia do BB e dadasas quezílias existentes a levou a imputar-lhe a prática do crime que ela sabe que ele não praticou??

26. Face a tudo o que se deixou referido e lendoo que na sentença consta, que osfactos ocorreram entre 27 de Agosto e 17 de Setembro de 2022, não podemos deixar de ficar, no mínimo, surpreendidos. E,
27. É inequívoco que em Tribunal a mãe do BB situa os factos no dia 17 de Setembro tendo referido que foi nesse dia que o AA levou o BB à mata dos ... e que desde esse dia o filho “ficou muito diferente, não comia, não dormia” [minuto00:05:39]“andavasempre muitoagitadoe euachei estranho”[minuto00:05:40], sendo que o BB só contou à FF o que se tinha passado 3 (três) semanas (!) depois e que só depois foi fazer queixa [minuto 00:06:45].
28. que a queixa foi feita no dia 17 de Setembro e não é feita qualquer referência à ida à mata dos ..., sendo referido que o BB foi abusado pelo AA no dia 12 de Setembro quando foi passear com ele de carro!
29. Mas quando acompanha o BB à perícia médico legal, no dia 19 de Setembro, a mãe já refere queos factos ocorreram na última quinzena de Agosto e os situa de novo na Mata dos ....
30. Também no dia 18 ou 19 de Setembro a mãe do BB diz à professora GG, que ele está vários dias com insónias e perda de apetite.
31. No que concerne às declarações para memória futura, que foram reproduzidas em audiência o Sr. Juiz “a quo” refere expressamente que estas “foram limitadas a pouso mais que monossílabos, sendo-lhe feitas perguntas directas que induziam uma resposta sim ou não, respondendo aquele por repetição ao não ou sim”

32. E assim as declarações para memória futura, não foram consideradas na sentença, apesar de nessas declarações se ter exprimido como sempre faz, como resulta do relatório de perícia médico legal de 21.03.2023 onde apenas consegue proferir uma palavra.
33. O Sr. Juiz, perante a insistência da I. Patrona do ofendido aceitou a possibilidade de o arguido “poder transmitir o que sucedeu mediante linguagem gestual”, o que veio a acontecer.
34. Só que o Sr. Juiz não considerou que a linguagem gestual é uma linguagem que tem de ser estudada e aprendida. E uma coisa é alguém tentar exprimir-se através de alguns gestos – que podem até significar o contrário do que quer dizer – outra coisa é exprimir-se através de língua gestual sendo que é impossível que o assistente tivesse conhecimento dessa língua de forma adequada a poder exprimir-se.

35. De qualquer forma, e como se demonstrará não há grande diferença entre os dois depoimentos como se demonstrará.
Assim,
36. Declarações para memória futura prestadas por BB em 11.10.23 e que se encontram gravadas através da aplicação H@bilus Media Studio com o seu início pelas 16:09:01h e o seu termo pelas 16:41:47h e que se encontram transcritas no corpo destas alegações, minuto 00.00.34 a 00.06.57.
37. Consideramos perfeitamente sensato que o Sr. Juiz não tenha valorado tais declarações onde o BB responde por monossílabos, respondendo sim ou não à mesma pergunta, falando na mão muitas vezes, respondendo sim ou não às perguntas feitas que induzem as respostas que se pretendem.
38. Só que o mesmo aconteceu nas declarações do BB em “linguagem gestual”, gravado através da aplicação H@bilus Media Studio do programa citius, com início pelas 11:27:40h e o seu termo pelas 11:45:54h que se deixaram transcritas no corpo das alegações nos minutos 00.00.00 a 00.18.12 e que aqui se dão como reproduzidas.

39. Nesta inquirição começa por responder que o AA é muito mau, e repetiu várias vezes “ me bateu” e que bateu muitas vezes na cara [minuto 00:00:06 a 00:01:51 ]
40. Segundo a intérprete, o BB terá dito em linguagem gestual “puxou-me as calças para baixo, agarrou-me no rabo” [minuto 00:02:18].
41. Mas, curiosamente, e sempre segundo a interprete [minuto 00:03:03] quando o BB refere pau quer referir-se mesmo a pau (de madeira) e não a pénis uma vez que, para explicar o que quer dizer, agarra um pau do chão.
42. De sublinhar que o BB se limita a responder sim às perguntas que lhe são feitas em linguagem gestual [minuto 00:04:26)
43. Quando a interprete refere que ele disse “Puxou-me as calças” e “Obrigou-me a baixar as calças” e “agarrou-me o rabo” na verdade este limita-se a responder que sim a perguntas feitas em linguagem gestual.
44. Mais não foram do que respostas por monossílabos às perguntas colocadas.
45. Também ao minuto 00:05:16 foi-lhe perguntado (linguagem gestual) se ele tinha chorado, se ele tinha ficado furioso, se ele tinha ficado incomodado ao que ele terá apenas respondido com um sim, sem nada explicitar.
46. Daqui resulta que ficamos sem saber se o BB entendeu as perguntas que lhe foramfeitasou se se limitoua dizer sim, sim, como fez na inquirição para memória futura.
47. Aliás,aominuto00:06:01, quandooSr. Procuradorpede para a interprete formular a seguinte pergunta:

48. “E, e se, nessa ocasião, ele viu o pénis do AA, o BB terá respondido em linguagem gestual Pénis. Sim” (Gostaríamos de saber como é possível a uma pessoa com as características do BB ensinar-lhe a dizer pénis em língua gestual …)
49. Por outro lado, a Srª intérprete parece “interpretar” o que pensa que o BB terá dito quando refere “Ok. Ok. Ok. Portanto, não baixou as calças dele também, como obrigou o BB a ajoelhar-se e portanto a tocar com a sua boca no seu pénis, o pénis, do, do, do AA
50. Estas são palavras da intérprete que nunca poderiam ter sido ditas em linguagem gestual pelo BB!
51. Mas para se aferir da falta de sentido que tem este depoimento passamos a transcrever o seguinte extrato:
[00:07:44]    Procurador:         Se,          depois    de,          disso       acontecer             para       onde       foram?
[00:07:50] Intérprete: [Linguagem gestual] Ok. Então, o BB diz que foi, lhe foi mandada uma bolada, portanto, que recebeu uma bolada que o acertou na cara. [00:08:30] Procurador: Pronto, foi essa a resposta, não é? Ok. Se ele contou a alguém esta situação?
[00:08:30] Intérprete: [Linguagem gestual]
[00:08:40] BB: [Linguagem gestual]
[00:08:41] Intérprete: Não. O menino da bola?
52. A falta de sentido das respostas é também patente quando o BB refere que têm muito, muito sangue [minuto 00:17:02] quando se sabe pela mãe do BB que quando este chegou com o AA não havia sangue nenhum e trazia a roupa limpa...
Por outro lado,
53. O exame de perícia de natureza sexual em direito penal efectuado em 19/09/22 é efectuado dois dias após o BB se ter deslocado com o AA à Mata dos ... e dois dias depois da mãe ter apresentado queixa na Polícia Judiciária onde referiu que o BB havia sido abusado em 12 de Setembro, referindo durante este exame que o abuso “terá sido na última quinzena de Agosto de 2022 (portanto mais de 3 semanas) o Examinando estaria em casa com a avó materna, sendo que o seu primo, da mesma idade e sem ocupação, terá ido buscá-lo, tendo-o levado para a mata perto de casa “.

Acresce que,
54. Do exame resultou não existirem vestígios físicos de agressão física nem sexual, nem foram observados vestígios biológicos ou não biológicos dessa agressão.
55. No relatório de perícia médico-legal (psiquiatria) realizada em 21/03/2023 foi referido, alem do mais, ser difícil estabelecer contacto adequado com o BB e que o “seu discurso é muito pobre, apenas em resposta, geralmente respondendo apenas a uma palavra. Apresenta disfasia (alteração da linguagem) que dificulta a compreensão, sendo notórios os graves défices cognitivos”
56. Neste exame, refere ter oito anos de idade e após lhe serem explicados os motivos que motivaram a avaliação, o BB não sabe descrever o que ocorreu, limitando-se a apontar com a mão direita para as suas nádegas e a proferir a a palavra “cu”, sendo incapaz de elaborar outro discurso acerca do tema.
57. No que concerne ao relatório de perícia médico-legal de 25-07-2023 é dito no exame direto que o BB tem um discurso pobre e que responde apenas com uma palavra, que apresenta disfasia, o que dificulta a compreensão e que têm graves défices cognitivos.

58. Não se compreende que se refira depois que uma pessoa que não consegue articular frases completas, respondendo apenas sim/não ao que lhe é perguntado, se possa exprimir de forma coerente, como é feito no aludido relatório.
59. Sublinhe-se que, inexplicavelmente, o relatório refere que, o examinando não se mostra permeável a manipulações externas, sendo que não se consegue compreender – nem o relatório explica – como foi possível chegar a essa conclusão uma vez que o BB, quando em Tribunal tentaram que ele contasse uma história que culpabilizasse o arguido, ele acaba por referir que o AA lhe bateu muito, referindo com apanhou boladas, muitas boladas, que apanhou com um pau, que ficou com muito sangue, o que demonstra claramente que alguém o pretendeu “convencer” de uma história que efectivamente não aconteceu!
Por outro lado,
60. Lendo a d. sentença recorrida, constata-se que, para além de tudo o mais, foram dados como provados factos de que ninguém falou em Tribunal, o que não pode deixar de ser surpreendente!
61. Poder-se-á entender que o Tribunal formou - sem o menor suporte factual e apesar de todas as contradições de que está eivado o processo – uma convicção, mas não pode ter formado a convicção sobre factos de que não há a mínima prova.

     Senão vejamos:
62. É efectivamente verdade que o AA e o BB foram passear à Mata dos ... no dia 17 de Setembro de 2022, como aliás está profusamente demonstrado nos autos.
63. Só que a Mata dos ... é um local de recreio, onde existe campo de jogos e é habitualmente utilizada para recreio ou pratica de actividades físicas não fazendo qualquer sentido que se o AA pretendesse abusar do BB saísse de casa – onde estava sozinho com ele – e fosse para um local público !

64. Nesse mesmo dia a mãe viu chegar o BB e o AA – os dois – da Mata, sem qualquer problema sendo que a mãe deu banho ao BB nesse dia e a roupa não estava molhada/suja, não havia sinal de sangue ou esperma, o que teria de suceder se tivesse sido praticado sexoanal de que aliásnão houve qualquer indicio no exame físico efectuado.
65. No que se refere às perturbações de sono e ansiedade do BB a mãe quando apresenta queixa na PSP diz que estes se iniciaram no dia 12 de Setembro e não no dia 17 de Setembro, sendo que tais perturbações são uma constante no BB.

66. Não se ignora o retratoque é dado do AA na d. sentença, retrato que aliásresulta do relatório social. Nem toda a gente nasce em “berço de ouro “.
67. E, pior ainda, há quem nasça e cresça numa família em que existe “fraca envolvência afectivo entre os seus membros “ (cfr. Relatório Social), com um pai alcoólico e onde a mãe tenta colmatar as faltas de afecto.
68. O AA foi uma criança e depois um jovem que teria necessitado de apoio psicológico que a sua mãe não lhe podia dar. É um jovem reservado, sem perspectivas de vida como muito jovens que vivem e crescem nos bairros sociais. Mas esta sua vivência nada tem a ver com o crime que lhe querem imputar.
69. Mandar para a cadeia – por um crime que não cometeu – durante 6 (seis) anos, um jovem de 25 anos é destruir-lhe completamente a vida para dar uma satisfação à sociedade e, eventualmente, vir mais uma notícia no Correio da Manhã !
70. Entende o recorrente que outra deveria ter sido a decisão da matéria de facto razão pela qual se irá impugnar.
71. Mas, importa antes analisar a motivação de decisão de facto constante na d. sentença recorrida sendo que a matéria provada provém exclusivamente do depoimento do ofendido, uma vez que nenhuma testemunha assistiu ao facto.
72. Sobre o depoimento do BB já nos pronunciamos sendo que não se compreende como é possível o Tribunal referir que “o ofendido até relatou com algum pormenor (atenta as limitações próprias da sua condição) os acontecimentos de que foi involuntário protagonista” quando basta para tal ler os aludidos depoimentos e a análise que fizemos para constatar que nada se pode extrair desses depoimentos.

Aliás,
73. No caso sub judice o Sr. Juiz “a quo” não fundamentou a sua decisão de forma lógica e racional.
74. Limitou-se a aceitar o depoimento do assistente, sem o analisar de forma racional.

Da impugnação da matéria de facto:

75. Foi julgado provado o seguinte:
Emdia não concretamente apurado, mascompreendido entre osdias27 de Agosto de 2022 e 17 de Setembro de 2022 o arguido deslocou-se até à residência de BB.
76. Deveria ter sido julgado provado o seguinte:
No dia 17 de Setembro de 2022 o arguido deslocou-se até à residência de BB.

77. Meios de prova que impõe decisão diversa:
Depoimento da testemunha CC, gravada na aplicação H@billus Média Studio em uso no Tribunal de Leiria, com inicio às 15:10h e termo às 15:25h, que se deixaram transcritos no corpo das alegações nos minutos 00.02.03 a 00.01.20
78. Foi julgado provado o seguinte:
Aproveitando-se o facto deste se encontrar sozinho o arguido levou-o até uma zona de floresta próxima, conhecida por Mata dos ....

79. Deveria ter sido julgado provado o seguinte:
O arguido e o AA deslocaram-se à Mata dos ....
80. E isto porque não existe qualquer prova nos autos para além do que supra se deixou referido. Nenhuma testemunha referiu que “o AA conduziu o BB” nem que este “se aproveitou do facto de ele estar sozinho”.

81. Foi julgado provado o seguinte:
Ali, o arguido disse ao BB para se virar de costas e colocar as mãos em cima de um apoio, o que este fez.

82. Este facto deveria ser julgado não provado.

83. Meios de prova que impõem esta resposta:
Depoimento da testemunha FF – Depoimento gravado atravésda aplicação H@bilusMedia Studio do programa citius, cominício pelas 15:05:07h e o seu termo pelas 16:08:02h que se deixou transcrito no corpo das alegaçõesno minuto 00.04.14 a 00.04.41 e que aqui se dão como reproduzidas, uma vez que é impossível que o BB se tenha exprimido pela forma referida pela testemunha, uma vez que como resulta dos autos o discurso do BB “é muito pobre, apenas em resposta, geralmente respondendo apenas a uma palavra (…).
Quer isto dizer que apenas responde como monossílabos às perguntas que lhe são feitas.

84. Foi dado como provado o seguinte
Seguidamente, o arguido baixou as calças e as cuecas que o BB tinha vestidas.

85. Este facto deveria ser julgado não provado.

86. Meios de prova que impõem esta resposta:

Declarações da testemunha FF – Depoimento gravado atravésda aplicação H@bilusMedia Studio do programa citius, com início pelas15:45:57h e oseu termo pelas16:08:02h., que se deixaramtranscritosnocorpo das alegações (minuto 00.04.14 a 00.04.41) e que aqui se dão como reproduzidas.
87. Nota: é esta a única prova indicada pelo Sr. Juiz sendo impossível que o BB que se exprime por “uma palavra” tenha dado esta versão à testemunha.

88. Foi dado como provado o seguinte:
Acto contínuo, o arguido introduziu o seu pénis erecto no ânus de BB, onde o friccionou, fazendo movimentos com a anca para trás e para a frente.
89. Tal facto devia ser dado como não provado.
90. Meios de prova que impõem essa resposta:

i.              O Tribunal deu como provado a forma como ocorre um acto sexual, apesar de ninguém o ter descrito nos autos.
ii.             Ninguém falou em “pénis erecto” em “friccionar” nem em “movimentos com a anca para a frente e para trás”.
iii.            O relatório pericial de fls- demonstra que o BB não havia sido objecto de abuso sexual com introdução contra a sua vontade de um pénis erecto no ânus.
iv.            As declarações da mãe do assistente CC, gravada na aplicação H@billus Média Studio em uso no Tribunal de Leiria, com início às 15:10h e termo às 15:25h que se deixaram transcritas no corpo destas alegações (minuto 00.04.31 a 00.05.23) e que aqui se dão como reproduzidas demonstram que não ocorreu este facto, uma vez que, se tal tivesse acontecido, haveria sinais na roupa do BB.
91. Foi dado como provado o seguinte:
Depois de satisfazer o seu desejo sexual, o arguido levou o BB a casa.
92. Deveria ter sido provado o seguinte:
O BB e o AA regressaram ao Bairro ....

93. Meios de prova que impõem essa resposta:
Depoimento da testemunha CC, gravada na aplicação H@billus Médioa Studio em uso no Tribunal de Leiria, com início às 15:10h e termo às 15:25h que se deixaram transcritos no corpo destas alegações, minuto 00.04.31 a 00.05.28 e que aqui se dão como reproduzidas.
94. De onde resulta não haverqualquersinal de sangue ou esperma naroupa ou corpo do BB.

95. Foi dado como provado o seguinte:
Em consequência directa e necessária do acto sexual a que o arguido o sujeitou, BB sentiu dar, passou a apresentar perturbação do sono, maior ansiedade e maior agitação psicomotora.
96. Tal facto deveria ser julgado não provado.
97. Meios de prova que impõem essa resposta
Depoimento da testemunha GG - Depoimento gravado através da aplicação H@bilus Medioa Studio do programa citius, com início pelas 16:32:10h e o seu termo pelas 16:49:24h que se deixaram transcritos no corpo destas alegações, minuto 00.01.51 a 00.11.03 e que aqui se dão como reproduzidas.

98. Nota: É óbvio que não tendo ocorrido qualquer acto sexual, o BB não pode ter sentido qualquer consequência do que não existiu. Mas resulta do depoimento que se deixou transcrito que o BB tinha muitas vezes crises de perturbação de sono, maior ansiedade e maior agitação motora. Aliás, deste depoimento resulta que o BB só conseguia permanecer no ... na parte da manhã, que era muito instável, rejeitava as pessoas, tinha muita dificuldade de comunicação e se alterava com facilidade, tinha baixa tolerância à frustração e, por vezes, era necessário os funcionários “colocarem-se à frente dele” para o controlarem. É relatado também um episodio em Outubro em que o BB “não estava bem, outra vez instável, outra vez a perturbação do apetite, não querer comer, agitado …”

99. Foram dados como provados os seguintes factos :
- O arguido agiu com o propósito concretizado de compelir BB à prática do acto sexual acima descrito, incluindointroduçãodoseu pénis noânus deste, sabendo que este padece de um atraso cognitivo grave, que o impede de se defender, aproveitando-se de tal debilidade.
- Mas sabia o arguido que BB não tinha capacidade para querer e entender o significado do acto a que o sijeitou, nem tinha capacidade para se opor e resistir à sua acção, querendo, ainda assim, agir conforme agiu, satisfazendo o seus instintos sexuais e paixões lascívas, à custa daquele, o que conseguiu.
100. Tais factos deveriam ter sido julgados não provados.
101. Só que, que não tendo sido provados, como resulta do que se deixou referido, nenhum dos factos constantes na sentença, é óbvio que não se pode sequer falar de dolo directo como não se pode imputar-lhe a prática de qualquer crime.
DO DIREITO:
102. O arguido foi condenado pela prática de crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 165.º, nºs. 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão.
103. Estipula o artº 165 do Código Penal que:
1 - Quem praticar acto sexual de relevo com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, é punido com pena de prisão de seis meses a oito anos.
2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos.

104. No caso sub judice foi considerado que o BB era incapaz de opor resistência e que o arguido se havia aproveitado dessa incapacidade por ser uma pessoa particularmente vulnerável, em razão de deficiência e doença.
105. Quer isto dizer que se o arguido tivesse praticado os factos de que vem acusado – e não praticou – estes só constituíram crime pelo facto do BB ser uma pessoa particularmente vulnerável em razão da sua doença psíquica, uma vez que é essa a única causa da sua incapacidade.
106. Só que, apesar disto, entendeu o d. acórdão recorrido que o crime deveria ser agravado nos termos do artº 127, alínea c) do C. Penal por o BB ser “pessoas particularmente vulnerável em razão da doença “.
107. Só que o mesmo facto não pode ser parte integrante do tipo legal de crime e, ao mesmo tempo, constituir também uma agravante da pena aplicada pela prática desse crime pelo que, o arguido a ser condenado – o que não se concede – apenas poderá ser pela prática do crime previsto no artº 165 do C. Penal, sem agravação de pena.

108. Mas – repete-se – o arguido não praticou o crime, não existindo prova do mesmo, sendo que, “Na operação de valoração da prova, vigora o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artº 127 do C.P. Penal e, dele resulta que a apreciação da prova é tarefa da esfera exclusiva do juiz mas a livre convicção que o fundamento não tem o sentido de a poder valorar movido por um convencimento exclusivamente subjectivo, pois ela não significa arbítrio ou decisão irracional.
A valoração da prova impõe ao juiz uma apreciação critica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência e na percepção [ no que respeita à prova por declarações ] da personalidade dos depoentes, tendo, em qualquer caso, como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dúbio pro reo ( cfr. Acórdão supra citado )
109. No caso sub judice o Tribunal não procedeu a uma apreciação critica e racional da prova, prova que, aliás, foi inexistente, uma vez que ninguém presenciou os factos.
110. Resulta do depoimento dos familiares do assistente que existiu uma manobra montada para incriminar o AA, sendo que a sentença nem sequer se pronunciou sobre as contradições entre os depoimentos prestados pela mãe do BB ao longo de todo o processo.
111. E a livre apreciação da prova não pode ser feita contra os factos constantes nos autos.
112. Aliás não podemos também deixar de estranhar o facto de o Tribunal não ter analisado sequer o depoimento do BB prestado ad perpetuan rei memorian onde é patente que, tal como é referido no exame pericial, o BB não tem um discurso fluente e apenas responde por monossílabos às perguntas que lhe são feitas. E esse facto, que é inquestionável, deveria também levado a Tribunal a analisar o depoimento prestado em “língua gestual” em que é patente que a Senhora interprete se substitui ao BB nas respostas dadas.

113. Ora, podemos concluir que, em todo o processo não existem sequer indícios suficientes que o ora recorrente cometeu o crime de que foi acusado e posteriormente condenado.

114. Estamos pois, diante uma clara violação do princípio do in dubio pro reo. É que, o princípio “in dúbio pro reo” “pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos dofacto típicoe ilícitoque a suporta, assim comodo dolo ou danegligencia doautor” (Cristina Líbano Monteiro –“Perigosidade de inimputáveise “indúbioproreo”, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p.11”

115. Em suma, nos presentes autos não só ficou cabalmente provado que o arguido não praticou o crime em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais o arguido vem acusado e quanto à culpa deste, pelo que “a sua absolvição aparece como a única atitude legitima a adoptar” (Alexandra Vilela in “Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal, Coimbra Editora, 2000, p. 121).
116. Pelo exposto o tribunal a quo violou, o disposto no nº 2, do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.

-Da determinação da medida da pena:

117. A ser o arguido condenado pela prática de um crime – o que não se concede – nunca poderá ser a 6 anos de prisão efectiva.

118. Desde logo só poderá ser condenado pela prática do crime prevista pelo artº 165, sem agravação de pena.
119. Na determinação da medida da pena o d. acórdão recorrido refere-se ao facto de o arguido ter optado por não prestar declarações “pelo que não deu a si próprio a oportunidade de admitir aprática dos factos nem de manifestar arrependimento” parecendo retirar deste facto consequências na determinação da medida da pena.

120. Só que não prestar declarações em Tribunal é um direito do arguido, que não pode ser prejudicado por esse facto.
121. Acresce que o arguido não podia demonstrar arrependimento pelo simples facto de que não praticou qualquer crime !
122. Não pode por isso dizer-se, como refere o d. acórdão recorrido que por não mostrar arrependimento não pode o Tribunal fazer um juízo de prognose futura favorável nomeadamente ao nível de prevenção especial, sendo que,
123. Nunca foi imputado ao arguido qualquer conduta menos correcta de carácter sexual pelo que, no que a este aspecto concerne, não existe qualquer perigo da prática de crimes.
124. Quanto à prevenção geral é certo que estes crimes causam grande censura social, o que é compreensível. Mas são também este tipo de crimes que são aproveitados por uma certa imprensa que tentam por todas as formas pressionar os tribunais. E é certo que os criminosos devem ser condenados mas é criminoso condenar um inocente!
125. De qualquerforma oarguidotem apenas24 anos de idade, cresceu numbairrosocial, com um pai alcoólico e numa família sem afecto.
126. Foi “desprezado” pelos próprios irmãos. Tudo isto moldou o seu carácter, tornando-o introvertido e triste, com oscilações de humor e isolando-se socialmente conforme resulta do relatório social.
127. Aliás deste relatório resulta que o arguido necessitaria desde cedo de apoio psicológico / psiquiátrico a que nunca teve acesso.

128. Enviar um jovem com estas características para a prisão é destruí-lo e tirar-lhe qualquer possibilidade de um dia poder refazer a sua vida.
129. Assim, a ser-lhe aplicada alguma pena de prisão – o que não se concede – a mesma terá de ser suspensa na sua execução, não se justificando também a aplicação das sanções acessórias previstas nos artºs 69-B nº 1, 69-C nº 1 e 4 do C. Penal, sendo que, relativamente a estas sanções nem sequer se poderiam aplicar por não estarem preenchidos os respectivos pressupostos ( conexão com a função exercida pelo agente )

- Da reparação ao ofendido dos prejuízos causados e do pedido de indemnização cível

130. Entendeu o d. Acórdão recorrido arbitrar ao BB a titulo de indemnização pelo dano patrimonial que entendeu ele ter sofrido a quantia de 20.000 euros acrescido dos juros à taxa de 4% desde a data da notificação para contestar até efectivo pagamento.

140. Só que, como resulta de tudo o que já se referiu o arguido não praticou o crime de que vem acusado, pelo que não causou qualquer dano ao BB.
141. Não se verificam assim os pressupostos da obrigação de indemnizar ( artº 483, nº 1 do C. Civil) razão pela qual o arguido deverá também ser absolvido do pedido de indemnização cível.
142.Em suma, nos presentes autos não só ficou cabalmente provado que o arguido não praticou o crime em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais o arguido vem acusado e quanto à culpa deste, pelo que “a sua absolvição aparece como a única atitude legitima a adoptar” (Alexandra Vilela in “Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal, Coimbra Editora, 2000, p. 121).


Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao recurso, e em consequência ser o arguido absolvido do crime em foi condenado, fazendo-se, assim, a habitual e necessária

JUSTIÇA!


3. – Respostas ao recurso.

3.1 - O assistente, BB, apresentou resposta, formulando, a final, as seguintes conclusões:

I- O objeto do recurso

1) O presente recurso foi interposto pelo arguido AA e tem por objeto o douto acórdão de fls. que o condenou pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de 1 (um) crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 165.º, nºs. 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea c), do C. P., na pena de 6 (seis) anos de prisão; nas sanções acessórias previstas nos artigos 69.º-B, n.º 1 69.º-C, nºs 1 e 4, do C. P., pelo período de 5 (cinco) anos; e no pagamento da quantia de 20.000,00 € (vinte mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros moratórios, à taxa anual de 4 %, desde a data da notificação para contestar, até efetivo e integral pagamento;

2) Do teor das alegações de recurso não resultam cumpridos os ónus recursórios legalmente previstos -artigo 412º C.P.P-, não se enunciando especificamente (todos) os pontos em que se encontra fundamentado o recurso-. no que concerne aos concretos vícios da sentença que o arguido alega existirem e que pretende ver reapreciados pelo tribunal ad quem;

3) Balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso (muito pouco claras, diga-se de passagem), da sua leitura depreende-se que terá sido intenção do recorrente escrutinar as seguintes questões:

i) Falta de fundamentação da Sentença;

ii) Vício da insuficiência da matéria de facto;

iii) Erro notório na apreciação da prova;

iv) Violação do princípio “in dúbio pro reo”;

4) Visa o arguido impugnar a decisão sobre a matéria de facto e de direito, que considera incorretamente tratada, devendo aquele, ad summam, ser absolvido do crime em que foi condenado e, consequentemente, do pedido cível;

5) Pugna pela revogação do douto acórdão; II Advogada Responsabilidade Lda.

II- Legitimidade do ofendido/demandante

6) O ofendido/demandante tem legitimidade para apresentar a presente peça processual, ao abrigo do artigo 401º, n.º 1.al. c) do CPP;

III- Da posição do Recorrente

7) Em súmula, são estas as questões levantadas pelo recorrente nas suas conclusões:

8) No que se reporta à data em que os factos terão alegadamente ocorrido, começa o recorrente por dizer que existe nos autos uma discrepância;

9) Da queixa apresentada pela mãe do ofendido, a 17/09/2022-, resulta que os factos terão ocorrido a 11/09/2022; que do relatório de perícia de natureza sexual -de 19/09/2022-, se extrai que os mesmos ocorreram na última quinzena de agosto; e que, ainda, em sede de audiência de discussão e julgamento, a mãe do Ofendido terá identificado o dia 17/09/2022, como data da ocorrência dos factos;

10) Concluindo o recorrente, existirem nos presentes autos contradições entre as declarações prestadas em julgamento e as que foram prestadas em data anterior, -na queixa e no exame médico-;

11) Acrescenta que a mãe do ofendido declarou, em julgamento, que só teve conhecimento dos factos três semanas após a sua ocorrência, e que os mesmos ocorreram a 17/09/2022, na Mata dos ..., o que coloca in crise as declarações prestadas anteriormente;

12) Alega que a versão dos factos descritos pela testemunha FF não é credível, pois esta declarou que a irmã (mãe do Ofendido) apenas foi apresentar queixa quando aquela lhe contou o sucedido, -sendo que emerge dos autos que aquela foi apresentada a 17/09/2022-; e que, quando contou os factos à sua irmã, os situou em data muito posterior àquela em que os mesmos terão alegadamente ocorrido;

13) Das declarações prestadas pelas testemunhas CC e FF-, em audiência de julgamento, concatenadas com a restante prova junta aos autos, conclui o recorrente que existem contradições, no que respeite à data da ocorrência dos factos, pelo que, o Tribunal a quo não poderia ter dado como provada esta matéria;

14) Acrescenta que é impossível que o Ofendido tenha relatado aquela “estória” à testemunha FF, tendo em consideração as declarações prestadas pelo Ofendido, em sede de julgamento, atendendo ao facto de o mesmo se limitar a responder verbalmente por monossílabos;

15) Faz ainda alusão à linguagem gestual no sentido de que uma coisa é tentar exprimir-se através de alguns gestos e outra é exprimir-se através da linguagem gestual, sendo que “é impossível que o Assistente tivesse conhecimento dessa língua de forma adequada a poder exprimir-se”:

16) Entende, ainda, que o Tribunal a quo valorou as declarações prestadas pelo Ofendido em audiência de julgamento, -baseando-se apenas nas mesmas, para formação da sua convicção da prática dos factos pelo arguido-, declarações essas que entende resumirem-se a responder sim ou não às perguntas, colocando, em causa se este as terá entendido, insurgindo-se até quanto à falta de sentido das respostas;

17) Vai ainda mais longe, colocando em causa se a própria intérprete terá interpretado corretamente aquilo que o ofendido lhe transmitiu através de linguagem gestual, questionando até se a mesma não terá tentado colmatar alguma falha de capacidade de expressão do assistente;

18) Chegando mesmo a dizer que: “a Sra. intérprete parece “interpretar” o que pensa que o BB terá dito quando refere “Ok, Ok, Ok. Portanto, não só baixou as calças dele também, como obrigou o BB a ajoelhar-se e portanto a tocar com a sua boca no seu pénis, o pénis, do, do do AA”;

19) Mais alega que “Estas são as palavras da intérprete que nunca poderiam ter sido ditas em linguagem gestual pelo BB!”;

20) No que concerne aos relatórios juntos aos autos a fls. diz o recorrente que não resultou prova de que o arguido tenha praticado os factos de que vem acusado;

21) Resultando do teor do exame efetuado ao ofendido que não foram encontrados vestígios biológicos ou não biológicos de agressão física nem sexual;

22) Quanto aos relatórios de perícia médico-legal psiquiátrica, conclui que do exame efetuado bem como da avalização psicológico-forense, não se pode retirar a conclusão de que a comunicação verbal e não verbal do assistente é coerente;

23) Ademais, não entende ainda como foi possível, nesses relatórios, chegar à conclusão de que o ofendido “não se mostra permeável a manipulações externas”;

24) Alegando que apesar de os familiares do ofendido terem tentado que este transmitisse uma história que culpabilizasse o arguido, -“numa manobra montada para incriminar o AA”-, certo é que não o conseguiram fazer, pois não resulta do seu depoimento a alegação de factos que consubstanciem a prática de agressão sexual pelo arguido;

25) Entende o recorrente que o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 374º, n.º 2 do C.P.P., aduzindo que quanto ao exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção foram dados como provados factos que não encontram suporte na prova produzida, pelo que não poderia ter formado a convicção sobre factos de que não há a mínima prova;

26) Por outro lado, o recorrente entende que os factos dados como provados não encontram suporte na prova, assinalando que o Tribunal apenas terá formado a sua convicção quanto à prática do crime, nas declarações prestadas pelo BB, atento o facto de nenhuma das testemunhas ter presenciado os factos;

27) No que concerne à impugnação da matéria de direito, começa o recorrente por dizer que: “o mesmo facto não pode ser integrante do tipo legal de crime e, ao mesmo tempo, constituir também uma agravante da pena aplicada pela prática desse crime”;

28) Argumenta que o Tribunal a quo violou o principio in dúbio pro reo, pois, e de forma sumária, diz que não ficou cabalmente provado nos autos que o arguido tivesse praticado o crime em que foi condenado, tendo sido, aliás, criada “uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais o arguido vem acusado e quanto à culpa deste, pelo que, «a sua absolvição aparece como a única a atitude legítima a adoptar».

29) Quanto à determinação da medida da pena constante do douto Acórdão recorrido, o recorrente entende que o Tribunal não poderia ter valorado o facto de o mesmo ter optado por não prestar declarações, e que, por via disso, o Tribunal a quo pareceu “retirar deste facto consequências na determinação da medida da pena.”

30) Por último, e quanto à reparação do ofendido dos prejuízos causados e do pedido de indemnização cível, o recorrente põe em crise a verificação dos pressupostos de indemnizar “in casu” pois o arguido não praticou o crime em apr

IV- Questão Prévia: Do ónus da impugnação da matéria de facto

31) O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, -sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso-, devendo estas ser um resumo do exposto nas motivações e não podendo o Tribunal “ad quem” conhecer de questão que delas não conste;

32) A impugnação da decisão da matéria de facto deve ser rejeitada quando o recorrente não deu cumprimento, nas conclusões, aos requisitos previstos nas alíneas a) a c) do nº 3 do artigo 412º do C.P.P.;

33) O recorrente, ao explanar e desenvolver os fundamentos do seu recurso, impugna a decisão proferida na 1ª instância em matéria de facto, quanto aos pontos da decisão da matéria de facto que entende que deveriam ter sido dados como não provados, indicando as provas que entende imporem decisão diversa, pugnando pela sua alteração/modificação, sem contudo especificar, em que medida tais meios de prova impunham decisão diversa da recorrida, como impunha o n.º 3 do artigo 412º do C.P.P.;

34) Não tendo sido cumpridos os ónus recursórios, pelo Recorrente, com maior enfoque em sede de conclusões, a impugnação da decisão da matéria de facto deve ser rejeitada - Atente-se no teor do Acórdão do TRC, Processo: 982/20.6PBFIG.C1, de 12-07-2023, relator: Luís Teixeira, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf, donde consta, em súmula:

O requisito da especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida traduz-se numa exigência maior que a mera negação dos factos ou considerações e afirmações genéricas e de jaez como as que constam quer na motivação quer nas conclusões de recurso sobre a discordância da apreciação e valoração da prova produzida em audiência pelo tribunal recorrido.

O pressuposto legal de indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida só se encontra preenchido ou observado se, para além da especificação das provas, o recorrente explicitar os motivos e em que termos essas provas indicadas impõem decisão diversa da decisão do tribunal. Ou seja, importa fundamentar e tornar convincente que tais provas impõem decisão diferente. Esta exigência corresponde, de algum modo, àquela que é exigida ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados. Pois, do mesmo modo que o julgador tem o dever de fundamentar as decisões, esse dever de fundamentação é igualmente exigido ao recorrente. Só deste modo se perceberá ou entenderá qual o raciocínio do recorrente para, em seu entender, dizer ou afirmar que determinado depoimento impõe decisão diversa da recorrida – neste sentido v. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal, “o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação”. V. também ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de maio de 2010, proferido no processo nº 696/05.7TAVCD.S1, “(…) não se pode deixar de ter presente que o legislador, quando se refere à especificação das provas, as restringe àquelas que imponham decisão diversa. A utilização do verbo impor, com o sentido de «obrigar a», não é anódina”;

Não basta, pois, a mera discordância do recorrente quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, contrapondo apenas os seus argumentos, críticas, a negação dos factos, suscitando dúvidas – próprias que não do julgador - e não analisando o teor dos depoimentos das indicados nas respetivas passagens da gravação, indicando por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados – quando, como se verá, dessas passagens indicadas não resulta que a prova imponha decisão diferente.” – sublinhado e negrito nosso;

35) Assim, e porque o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões, a falta de cumprimento dos ónus recursórios, impostos pelo n.º 3 do artigo 412º do C.P.P., por banda do Recorrente, terá de conduzir à rejeição do presente recurso em matéria de facto, o que desde já se requer, tudo com as legais consequências;

36) No entanto, caso assim se não entenda, sem prescindir nem conceder:

V) A posição do ofendido/demandante

37) O ofendido/demandante discorda da posição assumida pelo recorrente;

38) Não pode o recorrente vir agora, em sede recursória, levantar a questão de que a sentença “nem sequer se pronunciou sobre as contradições entre os depoimentos prestados pela mãe do BB ao longo de todo o processo”, pretendendo referir-se às alegadas contradições entre às declarações prestadas em julgamento e às que foram prestadas em data anterior, no que concerne à data da ocorrência dos factos;

39) O princípio da imediação, -artigo 355.º do CPP-, determina que: “1-Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.”;

40) Ou seja, na formação da convicção do tribunal não valem outras provas que não as que hajam sido produzidas em julgamento;

41) O legislador contemplou ressalvas a este regime, nomeadamente na alínea b) do n.º 3 do artigo 356º, onde consta: “3 - É também permitida a reprodução ou leitura de declarações anteriormente prestadas perante autoridade judiciária:

(…)b) Quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias.

42) Razão pela qual, se assim o tivesse entendido, caberia ao recorrente ter solicitado a leitura das mencionadas declarações, em sede de audiência de julgamento, por forma ao Tribunal a quo estar em condições de valorar as alegadas contradições/discrepâncias entre as declarações anteriormente prestadas em sede de inquérito, e as prestadas em audiência, quanto à data em que concretamente terão ocorrido os factos. O que não fez!;

43) Caso assim se não entenda, na nossa opinião, a data concreta da prática dos factos não constitui elemento essencial para a prolação de sentença condenatória ou absolutória do agente pela prática de um crime;

44) O facto de não se ter apurado o dia concreto em que os factos foram praticados, não significa que estes não tenham ocorrido, até porque se tivermos em consideração os elementos essenciais que devem constar da acusação, sob pena de nulidade, as circunstâncias de tempo não fazem parte desse acervo;

45) Deflui do Acórdão Tribunal Relação de Évora, Processo 3451/09.1TBSTB-A.E1, 03-06-2014, relator João Amaro, disponível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf

A acusação (e a sentença - artigo 374º do C. P. Penal) tem de conter, sob pena de nulidade, o tempo e o lugar da prática dos factos, se possível.

A indicação das circunstâncias de tempo e de lugar não é, pois, obrigatória (tem de ser feita apenas se for possível), admitindo-se que, caso não seja possível mencionar o lugar e o tempo dos factos com inteira precisão, se refira, por exemplo, “em lugar desconhecido” ou “em local cuja localização exata não foi possível apurar”, e, quanto ao tempo, por exemplo, “em datas que, em concreto, não foi possível apurar”.

46) No que concerne ao depoimento prestado pelo ofendido, em sede de audiência de julgamento, resulta claro das declarações prestadas pela Mãe do Ofendido que aquele tanto se exprime por linguagem verbal como por linguagem gestual - Depoimento da testemunha CC, gravado na aplicação H@billus Média Studio, do programa citius, com início às 15:10h e termo às 15:25h:

[00:10:25] “Advogada: Ele explica-se só por linguagem verbal ou…

Test. CC: Ele também sabe linguagem gestual.

Advogada: E explica-se mais por uma ou por outra?

Test. CC: É assim… por ambas.

Advogada: Por ambas… uma complementa a outra é isso?

Test. CC: Sim, sim.”

47) Sem conceder, mesmo que se entenda, como alega o recorrente, que o Ofendido não tem conhecimento de linguagem gestual de forma adequada a poder exprimir-se, por meio de gestos, o Ofendido foi capaz de transmitir ao Tribunal, de forma mais do que suficiente, o que lhe sucedeu, conforme fundamentação da matéria de facto do douto Acórdão:“No caso concreto, o ofendido até relatou com algum pormenor (atentas as limitações próprias da sua condição), os acontecimentos de que foi involuntário protagonista.” (…)

o BB declarou conhecer o AA, sendo ele vizinho e que é mau, já lhe tendo batido muitas vezes e na cara. Puxou-lhe as calças para baixo e magoou-o no rabo com um pau. Foi perto de casa, perto de ..., onde há árvores. Obrigou-o a baixar-se, há muito tempo e também lhe manchou as calças. Ficou furioso, incomodado e magoado. O AA baixou as calças dele e forçou-o a “metê-lo” na boca e também meteu o pénis no seu ânus. Tentou afastar o AA, mas ele continuou. Teve dores e apanhou uma bolada na cara. Contou à tia FF. Conhece a Mata dos ... e foi lá com o AA, foi lá que aconteceu. O AA foi-se embora e ele foi sozinho para casa. Doeu muito, muito sangue”;

48) Aliás, o depoimento do ofendido foi corroborado, pela conjugação dos depoimentos da testemunha FF que, como relatado, soube do ocorrido pelo próprio assistente, de HH, cujo marido disse ter o BB saído com o AA para a Mata dos ... e que este por vezes o visitava, bem como da mãe do assistente CC que, nesse dia, o viu chegar com o arguido;

49) No que concerne à questão levantada pelo recorrente quanto à capacidade técnica da intérprete de linguagem gestual, cabe-nos relembrar, antes de mais, que foi o Tribunal a quo, por despacho de fls. que requisitou à Federação Portuguesa das Associações de Surdos, a indicação de um Intérprete de Língua Gestual, tendo aquela sido designada para o efeito;

50) Aliás, o ofendido é surdo, como resulta dos relatórios médicos juntos aos autos e das declarações prestadas pela testemunha GG, gravadas através da aplicação H@bilus Media Studio do programa citius, com início pelas16:32:10h e o seu termo pelas 16:49:24h que:

“[00:03:40] GG: Sim. O, o BB, ele tem uma surdez neuro sensorial e necessita de um implante coclear, ou seja, é um implante que está diretamente ligado ao cérebro dele, para nos conseguir ouvir.”;

51) E, também por força de tal circunstância, o Tribunal a quo teria, aquando da prestação de declarações em Tribunal [por surdo, de deficiente auditivo ou de mudo] de designar Intérprete, o que foi cumprido, como preceituado no artigo 93º, n.º 1, al. a) do CPP: “Ao surdo ou deficiente auditivo é nomeado intérprete idóneo de língua gestual, leitura labial ou expressão escrita, conforme mais adequado à situação do interessado”;

52) Ademais, em sede de audiência de julgamento, o recorrente também não levantou a questão da competência técnica da intérprete designada e/ou a sua isenção e imparcialidade e nem sequer requereu a sua substituição junto do Tribunal a quo, momento processualmente adequado para o efeito, precludindo assim o seu direito;

53) Pelo que, também não colhe assim esta tentativa de “denegrir” o trabalho realizado pela Sra. intérprete de linguagem gestual que se limitou a fazer o trabalho para o qual foi designada pelo Tribunal a quo, de forma isenta e imparcial, de acordo com as suas competências técnicas;

54) Mais: a referida competência técnica da intérprete só poderia ter sido posta em crise por alguém com igual ou superior qualificação técnica para o efeito, -alguém versado em linguagem gestual, o que, com o devido respeito, não nos parece ser o caso do recorrente;

55) Quanto à questão dos relatórios juntos aos autos a fls., é consabido e, também resulta expressamente do relatório de perícia de natureza sexual de fls. 27 a 29 dos autos, -bem como do teor do próprio Acórdão-, que o facto de não existirem vestígios físicos e/ou biológicos não significa que o abuso sexual não tenha ocorrido, já que, neste tipo de ilícito, na maioria da vezes, não resultam quaisquer vestígios;

56) Neste tipo de crime é difícil produzir provas, já que os crimes sexuais são crimes silenciosos, sem testemunhas, pelo que as declarações da vítima são sempre cruciais para a descoberta da verdade material, tal como é consabido, na jurisprudência maioritária dos nossos Tribunais;

57) Deflui do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo: 42/06.2TAMLG.G1, de 12/04/2010, Relator: Cruz Bucho, disponível em www.dgsi.pt que: Em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais.”;

58) No mesmo sentido vai o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo 3090/21.9T9VNG.P1, de 28-02-2024, relatora: Liliana de Páris Dias, -(no mesmo sentido, vai o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Proc. 156/08.4TASLV.E1, de 15/03/2011), disponíveis em www.dgsi.pt, donde consta o seguinte: A prova da verificação dos factos nos crimes de natureza sexual revela-se, normalmente, particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Por isso, normalmente sucede nestes casos que o único elemento de prova existente resume-se às declarações dos (menores) ofendidos, podendo coexistir alguns elementos instrumentais, que conjugados entre si e com as regras da experiência comum, permitem formar a convicção sobre a verdade dos factos para além da dúvida razoável.”- negrito nosso;

59) No que concerne à conclusão constante nos relatórios de perícia médico-legal psiquiátrica, de que a comunicação verbal e não verbal do assistente é coerente, sempre se dirá que, caso o recorrente não tivesse concordando com o conteúdo dos referidos relatórios, poderia, em sede e tempo próprios, ter impugnado o seu teor, o que não fez, pelo que se dão como aceites pelo mesmo;

60) Quanto à alegação pelo recorrente de que tenham tentado que o ofendido, em Tribunal, transmitisse uma história que culpabilizasse o arguido, também neste âmbito, entendemos diversamente, já que as eventuais “quezílias familiares” não resultou provada e nem sequer foi discutida em audiência de julgamento;

61) Ficou claro e resulta do douto Acórdão recorrido que, o ofendido em audiência de julgamento conseguiu exprimir-se, quer por linguagem verbal, quer através de gestos, quer ainda por recurso à linguagem gestual, demonstrando claramente os atos de cariz sexual perpetrados pelo arguido;

62) Não podemos olvidar que foi o Ofendido que, por sua livre iniciativa (sem qualquer coação nesse sentido), após os factos terem ocorrido, relatou os factos ilícitos praticados pelo Arguido, à sua tia FF, com quem tinha uma relação de grande proximidade, que, por sua vez, os relatou perante o Tribunal a quo e que foram devidamente valorados;

63) Depois, o Ofendido reiterou tais relatos à sua mãe e restante família, bem como à testemunha GG (psicóloga na Instituição ... que o Ofendido frequentava), a quem transmitiu o ocorrido, através de gestos, unindo o polegar e o indicador em forma circular e introduzindo aí o indicador da outra mão, dizendo “Hum, Hum”;

64) As versões das várias testemunhas ouvidas pelo Tribunal a quo foram todas consentâneas com o descrito pelo ofendido, em sede de audiência de julgamento;

65) Do que se conclui que, as declarações do ofendido não foram manipuladas por terceiros, com vista a condenar o arguido, conforme este defende;

66) Do relatório de perícia psiquiátrica médico-legal, na parte atinente à avaliação psicológica-forense, resulta inequívoco:

Neste âmbito foi ainda apurado que:

- Não procura simular, exagerar nem fabricar sintomas relacionados com as perturbações depressivas ou ansiosas;

- Não procura simular, exagerar nem fabrica sintomas relacionados com as perturbações psicóticas;

- Não procurar simular, exagerar nem fabricar sintomas relacionados com problemas de memória, concentração e atenção, errando itens de dificuldade reduzida;

- Não apresenta indicadores de manipulação interpessoal, nomeadamente encontro superciaial/loquacidade ou mentir patológico.

- Não procura simular nem exagerar sintomas cognitivos - Não procura simular nem exagerar sintomas psicopatológicos, nomeadamente os que estão presentes nos estados depressivos e de ansiedade e os que estão relacionados com perturbações psicóticas.”- negrito e sublinhado nosso;

67) Da parte final do mesmo relatório, no que concerne ao parecer psiquiátrico-forense, consta ainda que o ofendido é portador de um quadro de debilidade mental grave e que padece de uma disfasia grave. Sendo que, apesar de, tal quadro clínico condicionar o ofendido nos vários domínios do seu quotidiano, a comunicação verbal e não verbal são coerentes, não se mostrando o examinando permeável a manipulações externas, não se revestindo por isso de gravidade que o impeçam de relatar conforme vivenciou as situações que estão a ser alvo de julgamento.

Apesar das alterações da linguagem exibidas, que condicionam um relato fluente, se solicitarmos ao examinando que fale devagar, num ambiente que minimize a ansiedade, eventualmente dando-lhe oportunidade de repetir o seu relato, o relato apresentado é minimamente compreensível por terceiros, revestindo-se de coerência e estabilidade.

Pela gravidade da sua patologia se depreende que o examinando não é capaz de se autodeterminar sexualmente, principalmente numa ocorrência perante alguém que exerça algum ascendente sobre o examinando ou que este entenda que existe esse ascendente/poder sobre si.”- negrito nosso;

68) Mais: contrariamente ao dia designado para a prestação de declarações para memória futura, em audiência de julgamento foram criadas as condições necessárias para potenciar um ambiente acolhedor, que minimizasse a ansiedade do assistente, por forma a que este pudesse prestar um depoimento livre e esclarecido, na ausência do Arguido;

69) Aliás, por despacho de fls., do dia 09/07/2024, foi determinado pelo Coletivo de Juízes que o arguido comparecesse em hora diversa da designada para a audição do Ofendido, de molde a acautelar que os mesmos não se cruzassem à vista e fazendo menção na Portaria do Tribunal que o Arguido só poderia entrar na sua hora;

70) No que se reporta a uma eventual nulidade do douto acórdão, por alegada falta de exame crítico das provas, há que salientar que o Tribunal a quo não violou qualquer inciso legal referente a esta matéria, mormente, os artigos 379º, n.º 1 e 374º, n.º 2 do nosso C.P.P.;

71) O acórdão contém a enumeração dos factos provados e dos factos não provados, a indicação das provas, -por declarações e documental-, que serviram para fundar a convicção do Tribunal a quo, como, outrossim, a explicação da relevância probatória atribuída a cada meio de prova enunciado e das razões da sua credibilização (cujo teor, por razões de economia processual, dá-se por integralmente reproduzido para os devidos efeitos);

72) Frisa-se: o mesmo não violou qualquer norma legal. Consegue-se compreender o raciocínio lógico que o Tribunal fez para proferir aquela decisão condenatória;

73) O Tribunal a quo deu cabal cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 374º do CPP, indicando claramente os meios de prova em que fundou a sua convicção e procedendo ao exame critico daquelas provas, expondo claramente as razões da opção efetuada, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão trazida pelo ofendido, dando-se a mesma como provada, com a consequente condenação do arguido;

74) Quanto ao eventual vício da insuficiência da matéria de facto provada em sede de acórdão, também não assiste qualquer razão ao recorrente pois a matéria assente tem suporte na prova produzida na audiência de julgamento, resultando preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime, pelo que bem andou o Tribunal recorrido ao condenar o Arguido;

75) Conclui-se que o Tribunal a quo também não violou o disposto no artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP (contrariamente ao que pugna o recorrente ao alegar que: “constata-se que para além de tudo o mais foram dado como provados factos de que ninguém falou em tribunal, o que não pode deixar de ser surpreendente!”);

76) Assinala ainda o recorrente que o Tribunal apenas formou a sua convicção quanto à prática do crime, nas declarações prestadas pelo BB, atento o facto de nenhuma das testemunhas ter presenciado os factos;

77) Esquece o recorrente que o Tribunal não se baseou apenas no depoimento do ofendido mas também na restante prova produzida em audiência de julgamento, tendo sido toda ela criteriosamente sopesada pelo Tribunal a quo;

78) Alega ainda o recorrente que foi violado o principio in dúbio pro reo, pelo Tribunal recorrido. Contudo, não lhe assiste razão!

79) Cumpre assinalar que a aplicação deste princípio só seria de equacionar se o julgador tivesse dúvidas sérias, razoáveis, justificadas e fundamentadas sobre o modo como os factos se passaram e/ou quem os praticou.

80) Ressalta do Acórdão recorrido ter o Tribunal a quo, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, chegado à convicção plena, -subtraída de qualquer dúvida razoável-, no que tange à verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação, apreciando toda a prova validamente efetuada e de acordo com as regras da experiência comum;

81) A fundamentação do acórdão de fls. não evidencia qualquer dúvida sobre o decidido quanto à matéria de facto, já que a prova produzida vai no sentido da prática efetiva do crime por banda do Arguido, pelo que, também nessa parte não merece censura o teor do Acórdão recorrido;

82) Ao tribunal recorrido não se suscitou qualquer dúvida que justificasse a ponderação e eventual aplicação, ao caso, do princípio do in dubio pro reo;

83) Neste sentido vai o Acórdão do Tribunal Relação Coimbra, de 06/01/2010 (Processo 60/09.9SAGRD.C1, Relator: Jorge Dias, disponível in www.dgsi.pt): A persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido.

O principio in dúbio pro reo só é desrespeitado quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido.”- sublinhado nosso.

84) Como decidiu o STJ, a violação do princípio do in dubio pro reo só se verifica “quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido” – v. ac. do STJ de 18/03/98, proc. nº 1543/97 e ac. do STJ de 24/03/99, Col. Jurisp., Acs. do STJ, I, 247;

85) Quanto à subsunção jurídica dos factos, atenta a prova produzida, o Tribunal a quo entendeu estarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto no artigo 165º do C.P., cujo bem jurídico protegido pela referida incriminação é a tutela da liberdade e autodeterminação de pessoas inconscientes ou incapazes de formularem a sua vontade para a prática de atos com relevo sexual,- conforme Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10/04/2013, Processo 2361/09.7TALLG.P1, in www.dgsi.pt-;

86) No que concerne à questão suscitada pelo recorrente de que “o mesmo facto não pode ser integrante do tipo legal de crime e, ao mesmo tempo, constituir também uma agravante da pena aplicada pela prática desse crime”, por ser relevante no caso em apreço, não podemos deixar de transcrever, nesta sede, a motivação do Tribunal recorrido-:

“§ 1 A especificidade do conteúdo do ilícito deste preceito reside em que o agente não quebra a resistência da vítima - como sucede nos casos dos arts. 163.º e 164.º -, mas aproveita-se de uma já existente incapacidade de resistência para praticar com ela um acto sexual de relevo (nº 1), eventualmente uma cópula, um coito anal ou um coito oral (n° 2).

§2 1. O preceito começa por distinguir formalmente duas situações da vítima: a de ela se encontrar inconsciente; e a de, por outro motivo, se encontrar incapaz de opor resistência.

A esta distinção formal não corresponde porém qualquer diferença material, não existindo entre as duas situações círculos secantes, mas concêntricos: a incapacidade de opor resistência constitui o denominador de todas as situações típicas que ocorram com a vítima, sendo a inconsciência apenas uma delas; a qual todavia não ganha a nível do tipo objectivo de ilícito qualquer especificidade jurídico-penalmente relevante. O que importa considerar é antes que são típicas tanto a situação de a vítima se encontrar incapaz de formar a sua vontade, como a de se encontrar incapaz de exprimir a sua vontade; sendo indiferente que a incapacidade fique a dever-se a motivos psíquicos ou antes a motivos físicos.”

No que concerne à incapacidade por motivos psíquicos, que é o caso dos autos, “Por um lado, podem existir anomalias psíquicas que não relevem em definitivo para a inimputabilidade (mas quando muito para a imputabilidade diminuída), mas devam relevar para efeito da incapacidade de opor resistência ao acto sexual. Por outro lado e inversamente, podem existir com frequência anomalias que conduziriam à inimputabilidade, mas não constituem, em concreto e em definitivo, incapacidade para formar e exprimir a vontade da vítima no sentido da resistência ao acto sexual. E este é, como se disse, o critério que nesta sede deve ser considerado decisivo. Por isso se pode também dizer com correcção que não importa aqui a qualificação médica abstracta de uma doença ou de uma anomalia, mas sim o efeito concreto que dela resulta para a capacidade e vontade de resistência em determinadas condições de tempo e lugar.

No caso vertente, BB “é portador de um quadro de debilidade mental grave, sofrendo ainda de uma disfasia grave. Logo, estamos perante uma incapacidade para formar e exprimir a vontade da vítima no sentido da resistência ao acto sexual. Acresce ainda que, atentas as fortíssimas limitações cognitivas do BB, bem documentadas nos relatórios periciais, para cujo teor remetemos, este é uma “pessoa particularmente vulnerável, em razão de deficiência e doença”.

87) No caso em apreço, existia uma relação de familiaridade e confiança entre o arguido e o ofendido, -por serem primos, terem a mesma idade e se conhecerem desde pequenos-, o que o colocava numa posição de ascendência sobre aquele, não podendo desconhecer que este padecia de perturbação do desenvolvimento intelectual em termos graves, que o tornavam indefeso, condição essa que propiciou à consumação os seus instintos libidinosos;

88) Assim, não assiste razão ao Recorrente, pelas razões supra aduzidas;

89) Ainda que assim não se entenda, a própria lei é clara no sentido da aplicação automática da circunstância agravativa prevista no artigo 177.º, n.º 1, al. c) do CP, aos crimes estatuídos no artigo 165º do mesmo normativo, sendo que assim não fosse, teria o legislador excecionado a sua aplicação;

90) Como o fez, de forma expressa, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 177º C.P. que exceciona situações, ou seja, casos em que a agravação não será de aplicar, -nada dizendo quanto à inaplicabilidade da circunstância agravante modificativa ao crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. e. p. pelo artigo 165º CP-;

91) Bem andou o Tribunal a quo ao considerar preenchidos todos os elementos da tipicidade objetiva e subjetiva referentes ao crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto e punido pelo artigo 165.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, agravado pelo disposto no art. 177.º, n.º 1, al. c);

92) No que atine à determinação da medida da pena do douto Acórdão recorrido, o recorrente entende, antes de mais, que nunca poderia ter sido condenado na pena efetiva de 6 anos, desde logo, por não poder operar a agravação prevista no artigo 177º n,º 1 do CP., o que não lhe assiste razão, -pelo supra aduzido nos pontos 86 a 91, para cujo teor se remete e dá por integralmente reproduzido-;

93) Entende ainda que o Tribunal a quo ponderou, e mal, em sede de determinação concreta da pena, a circunstância de o mesmo ter optado por não prestar declarações em juízo;

94) Neste conspecto, voltemos ao teor do Acórdão recorrido que, atenta a sua importância, ora se transcreve:

“Em audiência de julgamento, o arguido optou por não prestar declarações, pelo que não deu a si próprio a oportunidade de admitir a prática dos factos, nem de manifestar qualquer arrependimento; pelo contrário, no final, limitou-se a afirmar que o que o BB narrara era mentira. Ora, a confissão e o arrependimento são importantes para o tribunal poder fazer um juízo de prognose futura favorável sobre se o arguido não tornará a delinquir.

Ao não admitir os factos e ao não mostrar-se arrependido, o tribunal não poderá, por aí, fazer esse juízo de prognose futura favorável, o que tem grande importância, nomeadamente ao nível da prevenção especial;

- Por fim, o arguido não adoptou qualquer conduta séria e consistente, destinada a reparar as consequências do crime que praticou, e a evitar a repetição de novos crimes, ou pelo menos tal não se demonstrou” -negrito e sublinhado nossos;

95) Veja-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 685/10.0GDTVD.L2-3, de 09-03-2022, relator: FLORBELA SANTOS A. L. S. SILVA, disponível em www.dgsi.pt;

“VII.–Tem ocorrido alguma confusão entre o direito ao silêncio e o que é configurado como uma violação desse princípio por o silêncio ter sido valorado para efeitos de determinação da pena, mormente a nível de falta de demonstração de arrependimento. O que se garante ao arguido é o direito de nada dizer perante os factos pelos quais é acusado pois, quem tem o ónus da prova é o acusador.

VIII.–Mas quando a prova é efectuada ao ponto de convencer o Tribunal da culpa do arguido, se este se mantiver em silêncio, o mesmo acaba por impedir o Tribunal de se aperceber, quer da sua versão dos factos, quer de outros elementos internos como a sua atitude após a prática do facto, a sua compreensão interior da gravidade dos factos e se está arrependido, elementos necessários para a graduação da pena e também para uma eventual suspensão da mesma.

IX.–A confissão e arrependimento sincero são os primeiros sinais de que o arguido interiorizou a gravidade da sua actuação, que compreendeu que a mesma é anti-jurídica, que violou bens jurídicos com tutela penal e que a sociedade tem o direito de exigir a reparação pelos danos causados.

Um arguido que nada diz não permite ao Tribunal apreender o seu estado psicológico interno para efeitos de saber se se trata de uma pessoa capaz de futuramente se conformar com a ordem jurídica, e assim, aquando da determinação em concreto da pena o Tribunal tem de valorar o silêncio do arguido para efeitos de avaliar se há ou não arrependimento.”- negrito e sublinhado nossos;

96) Pelo que, também por este fundamento, não assiste razão ao recorrente;

97) No que concerne à eventual aplicação da suspensão da pena de prisão mencionada pelo recorrido, e atenta a fundamentação aqui aduzida, somos a concluir que não se encontram preenchidos os pressupostos da referida suspensão, mormente no que tange ao requisito formal, tendo em conta que a medida concreta da pena aplicada ao arguido é superior a 5 anos, conforme estatui o n.º 1 do artigo 50º do C.P.;

98) Pelo que, também, não colhem os argumentos aduzidos pelo recorrente;

99) Por fim, relativamente à questão da condenação do arguido no pagamento da quantia de 20.00,00€ a título de pedido de indemnização cível, -quantia que se afigura justa e equilibrada-, bem andou o tribunal, atento o facto de o arguido ter praticado o crime p. e p. pelo art. 165º n.º 1 e 2 e 177º, n.º 3, alínea c) do CP;

100) Já que, encontram-se cabalmente preenchidos todos os pressupostos da obrigação de indemnizar previstos no artigo 483º n.º do C.C. e que são: facto, ilicitude, culpa, nexo de causalidade e dano;

101) Face a tudo o que ficou exposto precedentemente, bem andou o Tribunal a quo ao condenar o arguido pela prática de um crime de 1 (um) crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, na forma agravada, e pedido de indemnização cível, face ao danos não patrimoniais que o ofendido sofreu em virtude do predito crime;

102) Conclui-se, assim, que o acórdão recorrido não violou o disposto nos artigos 32 n.º 2 da CRP, artigos 71 °, n.ºs 1 e 2 do C.P. e 127º, 374º, n.º 2, 379º, n.º 1, 410º, n.º 2, al. a) e c), do CPP.

Termos em que, e em consequência do supra exposto, deverá o presente recurso ser julgado manifestamente improcedente, devendo ser integralmente mantida a douta Sentença a quo, por ser de LEI, DIREITO E JUSTIÇA».

 3.2 - Também o Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu ao recurso, rebatendo os argumentos aduzidos pelo recorrente, concluindo:

«1. O presente recurso reflecte uma mera discordância do recorrente relativamente à valoração que o Tribunal fez da prova submetida à sua apreciação, contestando a convicção do julgador com a sua própria versão dos factos. Daí que, não merecendo qualquer censura o decidido quanto à matéria de facto consignada como provada, resulta cristalino que, face aos elementos fornecidos pela imediação e a oralidade, a decisão tomada pelo Tribunal Colectivo se mostra fundada na sua livre convicção. Pelo que, sendo uma das soluções possíveis face às regras da experiência comum e estando suportada por prova produzida em julgamento, não deve ser alterada pelo Tribunal de recurso, devendo, pois, manter-se a decisão quanto à matéria de facto nos exactos termos em que consta da sentença recorrida.

2. O princípio da presunção da inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa não foi violado, pois a motivação de facto evidencia que o Tribunal Colectivo obteve convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados à recorrente e que motivaram a sua condenação.

3. Os factos consignados como provados integram os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, na forma agravada, previsto e punível pelos artigos 165.º, nºs. 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal, pelo qual o recorrente foi condenado.

4. A pena de 6 anos de prisão efectiva, mostra-se – tal como as penas acessórias, previstas nos artigos 69-B n.º 1, 69-C n.os 1 e 4 do Código Penal e aplicadas por um período de 5 anos – dentro da moldura penal abstracta, como uma pena justa e criteriosa, dando expressão acertada às exigências de prevenção, especial e geral, que no caso em apreço se faziam sentir.

5. Não se mostram violados, por qualquer forma, quaisquer princípios ou preceitos legais, mormente os invocados pela recorrente.

**

Face ao exposto, e ao abrigo das disposições legais supracitadas, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se, na íntegra, a decisão judicial recorrida.

*

V. Ex.as, porém, decidirão como for de JUSTIÇA.»

4. - Parecer

Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, propugnou pela improcedência do recurso, transcrevendo-se parcialmente o parecer emitido:

« Apresentando-se a fundamentação esclarecedora sobre as provas de que o tribunal se socorreu para chegar à responsabilidade do arguido e, bem assim, como as conjugou entre si, seguindo um processo lógico e racional, e revelando-se o juízo de inferência razoável, respeitando a lógica da experiência da vida, e não já arbitrário, absurdo ou infundado, não ocorre violação do princípio da livre apreciação da prova.

Limitando-se o recorrente a discutir, como aqui parece acontecer, o processo lógico usado pelo tribunal para formar a sua convicção, o recurso terá de improceder.

A condenação está assente em prova diversa, máxime testemunhal e documental/pericial, que o tribunal aceitou como credível - cf. a motivação da decisão de facto.

Não ficando o tribunal em dúvida sobre a responsabilidade criminal, é destituída de fundamento qualquer alegação da violação do in dubio pro reo.

Acresce que, considerados os princípios da oralidade e da imediação, inerentes a qualquer julgamento, ao tribunal de recurso não cabe fazer uma reavaliação da percepção que o tribunal de julgamento retirou da prova que foi produzida. Essa apreciação circunscrever-se-á aos erros de julgamento que, de modo inequívoco, forem identificados na decisão da matéria de facto perante a prova identificada.

E nada do que vem alegado quanto à pretensa má apreciação da prova está reflectido na decisão.

Diga-se, ainda, que o arguido não quais prestar declarações em julgamento.

E convém relembrar que, como vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça, o silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios: “(…) O direito ao silêncio não pode ser valorado contra o arguido. Porém, a proibição de valoração incide apenas sobre o silêncio que o arguido adoptou como estratégia processual, não podendo repercutir-se na prova produzida por qualquer meio legal, designadamente a que venha a precisar e demonstrar a responsabilidade criminal do arguido, revelando a falência daquela estratégia.”, in acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/2008, processo 08P694.

As penas - principal e acessórias - aplicadas

Consideradas as molduras penais abstractas correspondentes, as condições pessoais do arguido e os antecedentes criminais enunciados na decisão, as penas mostram-se adequadas e proporcionais à grande gravidade do crime cometido e às sentidas e elevadas exigências de prevenção geral e especial.

Foram consideradas todas as coordenadas legais previstas para a determinação das penas.

No mais, máxime quanto à cuidada análise da prova produzida no processo e em julgamento e à determinação da pena aplicada, adere-se à muito bem fundamentada resposta do Ministério Público.

O acórdão está fundamentado, isento de vícios e não viola normas legais ou princípios de Direito.

Em conclusão, aderindo à muito bem fundamentada resposta do Ministério Público na primeira instância, somos de parecer que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente

5. - Cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao predito parecer.

            6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.


*


            II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. – Delimitação do objeto do recurso

Em consonância com o disposto no artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objeto dos recursos está delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes [cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/04/2010: “É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer  oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão n.º 7/95, do Supremo Tribunal de Justiça, in DR, I Série - A, de 28/12/95).

São, assim, as conclusões da motivação que balizam o âmbito do recurso e devem, por isso, ser concisas, precisas e claras – se ficam aquém da motivação, a parte desta que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e, se vão além da motivação, também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).

Assim, no presente recurso, tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

a) - Erro de julgamento quanto aos pontos 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 19 da factualidade dada como provada;

b) - Violação do princípio in dubio pro reo;

c) - Erro de subsunção jurídico penal;

d) - Excessividade do quantum da pena;

e) - Suspensão da execução da pena de prisão;

f) - Injustificação da aplicação das penas acessórias;

g) - Ausência dos pressupostos da obrigação de indemnizar.

            2. – Decisão recorrida

            O acórdão alvo de recurso tem, no essencial, o seguinte teor [transcrição]:

«II- Fundamentação:

Da prova produzida e da discussão da causa resultou o seguinte:           

A- Factos Provados:

Da acusação:

1- BB nasceu no dia ../../1998.

2- BB padece de défice cognitivo/intelectual grave, apresentando défice ao nível do funcionamento intelectual global e das funções executivas, défice ao nível do raciocínio fluído, do processamento espacial, da atenção ao detalhe e da integração visuomotora, défice ao nível da capacidade visuo-espacial, da atenção, da concentração, da persistência nas tarefas, da sensibilidade à interferência e da flexibilidade mental, problemas de natureza psicopatológica, de surdez neurossensorial de grau profundo, epilepsia e microcefalia.

3- Por força de tais limitações, BB necessita de ajuda de terceiros para realização das suas actividades do dia-a-dia, nomeadamente da sua higiene, para comer, para se vestir, para tomar a medicação que lhe é prescrita.

4- Aquele não se consegue orientar, nem no tempo, nem no espaço, necessitando de supervisão para andar na rua.

5- BB não sabe ler, nem escrever, apenas consegue redigir o seu nome.

6- O seu comportamento adaptativo composto situa-se ao nível dos cinco anos e oito meses.

7- Estas limitações determinam a BB um grau de incapacidade de pelo menos 80%.

8- Dadas as suas debilidades, BB não é capaz de se autodeterminar sexualmente, não tendo capacidade para querer e entender o significado social dos actos de natureza sexual.

9- O arguido AA conhece BB, uma vez que ainda são de família, e é sabedor que este padece de perturbação do desenvolvimento intelectual em termos graves, que o tornam indefeso perante terceiros.

10- O arguido, desde data não apurada, mas no Verão de 2022, começou a ir mais frequentemente à casa de BB, sita na Rua ...., Bairro ..., em ..., principalmente quando este se encontrava sozinho.

11- Em dia não concretamente apurado, mas compreendido entre os dias 27 de Agosto de 2022 e 17 de Setembro de 2022, o arguido deslocou-se até à residência de BB.

12- Aproveitando o facto deste se encontrar sozinho, o arguido levou-o até uma zona de floresta próxima, conhecida por “Mata dos ...”.

13- Ali, o arguido disse a BB para se virar de costas e colocar as mãos em cima de um apoio, o que este fez.

14- Seguidamente, o arguido baixou as calças e as cuecas que BB tinha vestidas.

15- Acto contínuo, o arguido introduziu o seu pénis erecto no ânus de BB, onde o friccionou, fazendo movimentos com a anca para trás e para a frente.

16- Depois de satisfazer o seu desejo sexual, o arguido levou BB a casa.

17- Em consequência directa e necessária do acto sexual a que o arguido o sujeitou, BB sentiu dor, passou a apresentar perturbações do sono, maior ansiedade e maior agitação psicomotora.

18- O arguido agiu com o propósito concretizado de compelir BB à prática do acto sexual acima descrito, incluindo introdução do seu pénis no ânus deste, sabendo que este padece de um atraso cognitivo grave, que o impede de se defender, aproveitando-se de tal debilidade.

19- Mais sabia o arguido que BB não tinha capacidade para querer e entender o significado do acto a que o sujeitou, nem tinha capacidade para se opor e resistir à sua acção, querendo, ainda assim, agir conforme agiu, satisfazendo os seus instintos sexuais e paixões lascívas, à custa daquele, o que conseguiu.

20- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Pessoais do arguido:

                 21- AA no presente, tal como à data dos factos, reside no lugar de ..., em agregado familiar composto por si e pelo seu pai, de 59 anos de idade, operário na Câmara Municipal ... e sua mãe, 52 anos, reformada por invalidez.

22- A família reside em zona rural da periferia da cidade ..., em apartamento duplex, com três quartos, sala, cozinha e 2 WC, que satisfazem as necessidades habitacionais da família.

23- Anteriormente à actual residência, o arguido e sua família residiam no Bairro ..., lugar de residência da vítima no presente processo.

24- O ambiente familiar em que AA se desenvolveu é caracterizado, pelo arguido e pelos pais, pela fraca envolvência afectiva entre os seus membros, usufruindo o arguido maioritariamente do apoio pessoal e emocional por parte da mãe.

25- Os irmãos, respectivamente de 30 anos e 24 anos de idade, autonomizaram-se há alguns meses e residem em quartos arrendados em ..., sendo os contactos que realizam junto dos pais escassos e pontuais.

26- Com o arguido não mantêm relação, aludindo a instauração do presente processo, como a causa do afastamento.

27- O consumo abusivo de bebidas alcoólicas por parte do pai do arguido, e a postura hostil do mesmo, condicionou a dinâmica intrafamiliar e houve sempre desentendimentos entre os irmãos e o arguido, que aqueles desprezavam, em razão do seu temperamento, por vezes frio e autoritário.

28- Segundo a mãe do arguido, este é uma pessoa tendencialmente introvertida, com um temperamento inconstante, com postura distante, fria e desinteressada pela vida familiar.

29- AA frequentou o 9.º de escolaridade, sem o completar, tendo o seu percurso escolar decorrido de forma conturbada, tendo sofrido 5 retenções.

30- Para além da fraca assiduidade e empenho, assumiu atitudes de indisciplina e confrontação, ameaçando quer professores e auxiliares, quer pares.

31- Em em 2021 e 2023, ao abrigo de programa de formação do IEFP frequentou Cursos EFA (Educação e Formação de Adultos) B3.

32- No primeiro com términus previsto para 03-05-2023, desistiu a 13-06-2022.

33- Posteriormente, em 21-07-2023 iniciou a frequência de outro curso (EFA B3), que também não completou, no qual também excedeu o limite de faltas previstas e foi expulso.

34- Aos 18 anos de idade iniciou a sua integração profissional em empresas na periferia de ..., com contratos de curta duração, em funções de limpeza e indiferenciadas, através de empresas de emprego temporário que optavam pela rotatividade de pessoal, afastando a hipótese de vinculo laboral.

35- Desde os 24 anos de idade que não tem qualquer inserção laboral, nem qualquer rendimento, sendo as suas necessidades económicas supridas pelos pais, bem como as despesas domésticas e renda de casa, no valor de 800€.

36- O pai aufere 850€/mês de ordenado e a mãe está reformada por invalidez, com uma pensão no valor de 360€/mês.

37- AA desenvolve o seu quotidiano sem vínculos socais de relevo e mantinha um convívio regular com um grupo de amigos, que incluía a vítima nos autos, residentes no Bairro ..., bairro onde já vivera e onde tem vários familiares, como os avós maternos, motivo pela qual ainda se desloca aquele lugar, quando os pretende visitar.

38- A nível intimo e sexual, AA refere ter iniciado a sua vida sexual e intima com 16 anos, com uma amiga (mais velha 3 anos) e, desde então, tem vivenciado relações de namoro de curta duração, sempre com o sexo oposto, sendo a de maior duração de um ano e alguns meses, mas de forma intermitente, sem envolvimento emocional e sem objectivos comuns.

39- O arguido realizou o consumo de produtos estupefacientes combinado com medicação para as dores, prescrita à sua mãe, mas estes consumos não eram regulares tendo-os abandonado há sensivelmente 2 anos.

40- O arguido já foi condenado:

a) Por decisão proferida no âmbito do Proc. n.º 432/19...., do Juízo Local Criminal de Leiria, Juiz 1, em 20/02/2021, pela prática em 11/09/19, de um crime de condução sem habilitação legal,  p. p. pelo art.º 3º n.º 1 do Dec. lei 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de € 6,00;

b) Por decisão proferida no âmbito do Proc. n.º 120/21...., do Juízo Local Criminal de Leiria, Juiz 1, em 18/03/2022, pela prática em 15/03/21, de um crime de furto,  p. p. pelo art.º 203º, nº. 1 do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 6,00;

B- Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa, designadamente que:

1- Em consequência directa e necessária do acto sexual a que o arguido o sujeitou, BB passou a apresentar incontinência fecal, sentimentos de insegurança e de desconfiança em relação aos adultos, alterações comportamentais, comportamento regressivo e alterações psicossomáticas.

                C- Fundamentação da matéria de facto:

“Por força do art. 205.º, n.º 1, da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Por sua vez, o art. 374.º, n.º 2, do CPP, sobre os requisitos da sentença, determina que ao relatório se segue a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se, assim, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como com o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas também os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou a que este valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência (Ac. do STJ de 14-06-2007, Proc. n.º 1387/07 -5.ª).”[2] É o que se passa a fazer de imediato.

Assim, o Tribunal fundou a sua convicção sobre a matéria de facto provada, relativamente aos factos provados e constantes da acusação, da seguinte forma:

O arguido entendeu por bem prestar não prestar declarações.

O ofendido/assistente foi ouvido em declarações para memória futura, que foram reproduzidas em audiência. Porém, atentas as limitações inerentes à condição do ofendido, as suas respostas foram limitadas a pouco mais que monossílabos, sendo-lhe feitas perguntas directas, que induziam uma resposta sim ou não, respondendo aquele por repetição ao não ou sim. Atenta a manifesta escassez de conteúdo útil, dispensamo-nos de relatar tais declarações, ainda que de forma resumida, referindo-se ainda que as mesmas foram no final ainda mais prejudicadas, com a forte perturbação manifestada pelo ofendido, que terá visto o arguido no exterior. Aliás, perspectivando-se em audiência, a que não foi alheia a insistência da Il. Patrona do ofendido, a possibilidade de o arguido poder transmitir o que sucedeu, mediante linguagem gestual, foi nomeada uma competente intérprete de língua gestual, que soube estabelecer com o BB a confiança necessária para que este, em audiência de julgamento, transmitisse ao Tribunal, de forma mais do que suficiente, o que lhe sucedeu. Assim, o BB declarou conhecer o AA, sendo ele vizinho e que é mau, já lhe tendo batido muitas vezes e na cara. Puxou-lhe as calças para baixo e magoou-o no rabo com um pau. Foi perto de casa, perto de ..., onde há árvores. Obrigou-o a baixar-se, há muito tempo e também lhe manchou as calças. Ficou furioso, incomodado e magoado. O AA baixou as calças dele e forçou-o a “metê-lo” na boca e também meteu o pénis no seu ânus. Tentou afastar o AA, mas ele continuou. Teve dores e apanhou uma bolada na cara. Contou à tia FF. Conhece a Mata dos ... e foi lá com o AA, foi lá que aconteceu. O AA foi-se embora e ele foi sozinho para casa. Doeu muito, muito sangue

Quanto às testemunhas:

- FF, prima do arguido e tia do BB, não assistiu a nada, mas o seu sobrinho disse-lhe em Setembro: AA é mau, fez mal ao cu, dizendo-lhe ainda que o arguido lhe tirou as calças; contou-lhe dias depois de ter acontecido. O BB tem vindo a piorar, tornou-se agressivo e não retém as fezes; vai para a janela gritar o nome do AA e fica alterado quando o vê e tem um tique, por causa do sucedido. O BB contou-lhe ainda que o AA lhe disse para irem à mata fazerem ginástica e ficou de costas para ele, quendo ele lhe tirou as calças.

- HH, vizinha do BB, que tinha o encargo de o vigiar, enquanto a sua mãe saía para trabalhar, morando no segundo andar, enquanto aquele mora no primeiro. Estava em casa, quando o seu marido chegou e lhe disse que o BB tinha saído com o AA, para a Mata dos .... Nesse dia, a testemunha não o encontrou e enviou um SMS à mãe do BB, tendo-lhe aquele depois respondido que aquele já tinha aparecido. Viu-o no dia seguinte e ele disse-lhe o que o AA lhe tinha feito, que lhe tinha mexido no cú, que lhe tinha doído e que tinha gritado; contou-lhe dois dias depois. Esclareceu ainda que o arguido ia a casa do BB; este agora dá murros nas paredes e nas portas e ninguém consegue dormir no prédio.

- JJ, avó do assistente, explicou que a sua filha CC, mãe do BB lhe contou o sucedido, mas este nunca lhe contou nada. O seu neto agora não está estável, está mais agressivo e até lhe quis bater e diz “meninos maus”.

- GG, psicóloga, que trabalha na instituição que o BB frequenta diariamente, das 9,00 h às 16.00 h. O BB entrou em 6/07/22, mas inicialmente só conseguia ficar da parte da manhã. Ele tem um implante coclear e tem baixa tolerância à frustração e saía da instituição. Em 17 ou 18/09/22 veio muito alterado, tentando a testemunha perceber o que se havia passado, tendo então o BB feito um gesto, unindo o polegar e o indicador em forma circular e introduzindo aí o indicador da outra mão, dizendo “Hum, hum”. A psiquiatra medicou-o em SOS, tendo a mãe dele dito que houve uma situação de abuso. Na altura ele recusava a comida e voltou na última semana de Setembro, estava mais calmo, mas em Outubro estava mais instável. Um dia, ele estava a fazer uma pintura sujou-se de tinta, aborreceu-se e saiu; foi levado à urgência pela Polícia, porque estava muito alterado.

- CC, mãe do assistente, que esclareceu que o arguido não era visita de sua casa. Deixou o filho em casa em 17/09/22 de manhã, vigiado pela HH, e foi às compras. Depois, a HH ligou-lhe, dizendo que o filho tinha saído e ela foi logo para casa; andaram à procura dele, mas não o encontraram. Passado um bocado, ele apareceu, saído da mata; vinha normal, não vinha sujo e não lhe disse nada e vinha com o AA. A depoente deu-lhe banho e viu que o seu tinha fezes nos boxers.  Mas notou que ele passou a andar agitado, não dormia e não comia, mas não dizia o que se passava. A FF veio a sua casa, passadas três semanas, tendo-lhe então esta contado que o BB lhe tinha dito e, depois, ele disse-lhe que o AA lhe tinha ido ao cú. O seu filho ficava pior de dia para dia, estando mais agressivo. Agora está nos Cuidados Continuados e está estável.

O tribunal teve também em conta a seguinte prova:

Pericial:

- Relatório pericial de fls.27 a 29 e 68 a 72;

- Relatório de perícia médico-legal em Psiquiatria de fls.147 a 149 e 201 a 204;

- Relatório de perícia médico-legal em Psicologia de fls.155V a 161V.

Documental:

- Certidão do assento de nascimento de fls.31 e 32;

- Auto de diligência de fls.83;

- Certidão de fls.165 a 194;

Como se escreveu no Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 15/03/2011[3], a propósito do crime de abuso sexual de crianças, mas aplicável ao presente crime:

“Nas situações de abuso sexual de crianças, por força das circunstâncias, a prova é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova directa, e, regra geral, só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Por vezes até a prova pericial é realizada tardiamente quando já não existem vestígios dos abusos.

Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, baseada nos conhecimentos que sobre a matéria vem sendo transmitida pelas investigações psicológicas, pois só nesse caso é susceptível de formar a convicção do julgador.

As crianças que foram vítimas de abuso sexual, à semelhança do que se passa com os adultos, têm muitas vezes grande relutância em relatar acontecimentos embaraçosos, traumáticos, ou que, por motivo de ameaças, tenham receio de revelar, embora se possam lembrar muito bem deles.

É normal a vítima revelar grandes inibições e dificuldades em relatar os factos, quer pelo esforço que, certamente, fez ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foi vítima, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhe provocava, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para a sua auto-imagem.”

No caso concreto, o ofendido até relatou com algum pormenor (atentas as limitações próprias da sua condição), os acontecimentos de que foi involuntário protagonista. Acresce que, se não foram encontrados sinais sugestivos de lesões traumáticas ou seus vestígios, a ausência dos mesmos não significa que o abuso sexual não tenha ocorrido, uma vez que num grande número destas situações não resultam vestígios- cfr. relatório de perícia de natureza sexual de fls. 27 a 29 v.so, junto- cujo teor também se teve em conta.

Acresce que tal relato foi corroborado, pela conjugação dos depoimentos: da testemunha FF que, como relatado, soube do ocorrido pelo próprio assistente, de HH, cujo marido disse ter o BB saído com o AA para a Mata dos ... e que este por vezes o visitava, da mãe do assistente que, nesse dia, o viu chegar com o arguido. Relativamente às limitações inerentes à doença de que padece o BB, valoraram-se os relatórios periciais supra referidos, com a limitação, relativamente aos efeitos da actuação do arguido ao que consta de fls. 204: “em virtude dos factos que poderão ter ocorrido, foi apurada a existência de maiores níveis de ansiedade e uma maior desorganização comportamental, tratando-se, contudo, de agravamento de patologia já existente previamente e não apenas uma consequência da situação vivenciada”. E, nessa conformidade, não se deram como provados todos os efeitos da actuação do arguido que constavam da acusação.

No que concerne aos Factos Provados 21 a 39, os mesmos resultam do teor do relatório Social junto.

Quanto aos antecedentes criminais do arguido, foi relevante o CRC junto aos autos.


*

D) Fundamentação de direito:

1.- Enquadramento Jurídico-penal

a) Do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência:

De acordo com o disposto no art. 165.º, do Código Penal:

1- Quem praticar acto sexual de relevo com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, é punido com pena de prisão de seis meses a oito anos.

2- Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos.

Por sua vez, de acordo com o disposto no art. 177.º, do mesmo Código:

1- As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:

a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou

b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.

c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.

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“O crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto no art.º 165º do C. Penal, tutela a liberdade e autodeterminação de pessoas inconscientes ou incapazes de formularem a sua vontade para a prática de actos com relevo sexual.”[4]

A conduta típica consiste na prática de um acto sexual de relevo, devendo abranger tal conceito “…todo aquele (comportamento activo, só muito excepcionalmente omissivo (…) que, de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica.”[5]

Quanto ao conceito de acto sexual  de relevo:

“…não é qualquer acto de natureza, conteúdo ou significado sexual que serve ao espírito do artigo, mas apenas aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano.

Estão nesta situação, por exemplo, os actos de masturbação, os beijos procurados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo, etc., parecendo-nos que também se deve incluir no conceito de acto sexual de relevo a desnudação de uma mulher e o constrangimento a manter-se despida para satisfação dos apetites sexuais do agente”[6]

No entanto, são de excluir do conceito não apenas os actos “insignificantes ou bagatelares” como também aqueles que não representem “entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima”, como por exemplo, actos que embora “pesados” ou em si “insignificantes” por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima.[7]

No que concerne aos conceitos de coito anal e de coito oral:

“À cópula é equiparado tipicamente (…) o coito anal e o coito oral: o primeiro consiste na penetração do ânus, o segundo na penetração da boca pelo pénis. A questão que a todo este propósito pode suscitar-se é a de saber se “coito” existe apenas com a penetração do ânus ou da boca pelo pénis, ou se se verifica igualmente quando a penetração se opera por meio de um qualquer outro órgão ou mesmo por objecto ou artefacto; caso, nesta segunda hipótese, em que a nossa lei ter-se-ia deixado conduzir pelo modelo da “penetração” (supra §§ 3 e 7)...”[8] Ora, as alterações introduzidas na norma com a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro acabaram por vir fazer tal equiparação, ao contrário do que até então propugnava o Prof Figueiredo Dias.

“§ 1 A especificidade do conteúdo do ilícito deste preceito reside em que o agente não quebra a resistência da vítima - como sucede nos casos dos arts. 163.º e 164.º -, mas aproveita-se de uma já existente incapacidade de resistência para praticar com ela um acto sexual de relevo (nº 1), eventualmente uma cópula, um coito anal ou um coito oral (n° 2).

§2 1. O preceito começa por distinguir formalmente duas situações da vítima: a de ela se encontrar inconsciente; e a de, por outro motivo, se encontrar incapaz de opor resistência. A esta distinção formal não corresponde porém qualquer diferença material, não existindo entre as duas situações círculos secantes, mas concêntricos: a incapacidade de opor resistência constitui o denominador de todas as situações típicas que ocorram com a vítima, sendo a inconsciência apenas urna delas; a qual todavia não ganha a nível do tipo objectivo de ilícito qualquer especificidade jurídico-penalmente relevante. O que importa considerar é antes que são típicas tanto a situação de a vítima se encontrar incapaz de formar a sua vontade, como a de se encontrar incapaz de exprimir a sua vontade; sendo indiferente que a incapacidade fique a dever-se a motivos psíquicos ou antes a motivos físicos.”[9]

No que concerne à incapacidade por motivos psíquicos, que é o caso dos autos, “Por um lado, podem existir anomalias psíquicas que não relevem em definitivo para a inimputabilidade (mas quando muito para a imputabilidade diminuída), mas devam relevar para efeito da incapacidade de opor resistência ao acto sexual. Por outro lado e inversamente, podem existir com frequência anomalias que conduziriam à inimputabilidade, mas não constituem, em concreto e em definitivo, incapacidade para formar e exprimir a vontade da vítima no sentido da resistência ao acto sexual. E este é, como se disse, o critério que nesta sede deve ser considerado decisivo. Por isso se pode também dizer com correcção que não importa aqui a qualificação médica abstracta de uma doença ou de uma anomalia, mas sim o efeito concreto que dela resulta para a capacidade e vontade de resistência em determinadas condições de tempo e lugar.”[10]

No caso vertente, BB “é portador de um quadro de debilidade mental grave, sofrendo ainda de uma disfasia grave. Logo, estamos perante uma incapacidade para formar e exprimir a vontade da vítima no sentido da resistência ao acto sexual. Acresce ainda que, atentas as fortíssimas limitações cognitivas do BB, bem documentadas nos relatórios periciais, para cujo teor remetemos, este é uma “pessoa particularmente vulnerável, em razão de deficiência e doença”.

Assim, manifestamente estão preenchidos todos os elementos da tipicidade objectiva referentes ao crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto e punido pelo artigo 165.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, agravado pelo disposto no art. 177.º, n.º 1, al. c).

Relativamente à tipicidade subjectiva, apenas se exige o dolo. “No que concerne ao elemento subjectivo do tipo, a partir do momento em que se demonstram os pressupostos de facto que indicam a prática de actos integrantes do tipo legal imputado, a afirmação do elemento subjectivo é uma questão de dedução lógica, ou seja, e também aqui, de prova indiciária.”[11] Acresce que “o dolo tem de abranger não só o acto sexual de relevo (eventualmente a cópula ou o coito anal), como a inconsciência ou a incapacidade da vítima de opor resistência e o seu aproveitamento pelo agente. O dolo eventual é suficiente; como suficiente será que a representação ocorra segundo uma valoração paralela na esfera do leigo que é comummente exigida para efeitos normativos como os que aqui estão em questão (…).”[12]

Considerando o teor dos factos provados, logo se concluirá que o arguido actuou com dolo directo pois agiu com o propósito concretizado de compelir BB à prática do acto sexual acima descrito, incluindo introdução do seu pénis no ânus deste, sabendo que este padece de um atraso cognitivo grave, que o impede de se defender, aproveitando-se de tal debilidade. Mais sabia o arguido que BB não tinha capacidade para querer e entender o significado do acto a que o sujeitou, nem tinha capacidade para se opor e resistir à sua acção, querendo, ainda assim, agir conforme agiu, satisfazendo os seus instintos sexuais e paixões lascívias, à custa daquele, o que conseguiu. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.


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2.- Escolha e Medida da Pena:

Na escolha da pena, conforme dispõe o art. 70.º do Código Penal, deve ser dada preferência à pena não privativa de liberdade, se esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, caso a lei preveja pena privativa de liberdade e não privativa da liberdade. “O tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale logo por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação.”[13]

“Ao definir a pena, o julgador deve procurar entender a personalidade do arguido para, adequadamente, determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformidade com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformidade a medida da censura pessoal do agente, ou seja, a medida correspondente à culpa manifestada. Há que ter em atenção, porém, que aquilo que é "merecido" não é algo preciso, resultante de uma conceção metafísica da culpabilidade, mas sim o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, de uma valoração da comunidade que não pode determinar-se com uma certeza absoluta, mas antes a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que a pena adequada à culpa é aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo para a estabilização da consciência jurídica geral (…).

Limitando-se, a pena, pela medida da culpabilidade, mas visando fins de prevenção especial e geral, ela fixar-se-á abaixo do limite máximo, se assim for exigido pelas necessidades especiais e, a essa diminuição, não se opuserem as exigências mínimas preventivas gerais (…). O seu limite mínimo é, portanto, dado pelo quantum da pena que, em concreto, ainda realize eficazmente a proteção dos bens jurídicos visados. Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para dar resposta às necessidades da reintegração social do agente. Ou seja, a culpa estabelece o máximo inultrapassável de pena concreta que é possível aplicar. A moldura de prevenção, por sua vez, é definida entre o limiar mínimo - abaixo do qual não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa a sua função tutelar de bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias - e a medida máxima e ótima de tutela dos bens jurídicos e das mencionadas expectativas. Dentro desses limites, relevam as exigências de prevenção especial de socialização, visando atingir a desmotivação adequada para evitar a recidiva por parte do agente, bem como a sua ressocialização (…).

Dito de outro modo: a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo (…).

Na sub-moldura da prevenção geral pesa a importância dos bens jurídicos a proteger, desempenhando uma função pedagógica através da qual se procura dissuadir as consequências nocivas da prática de futuros crimes e conseguir o reforço da crença coletiva na validade e eficácia das normas, em ordem à defesa da ordem jurídica penal, tal como é interiorizada pela consciência coletiva. Prevenção significa proteção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (…).

Por sua vez, a prevenção especial positiva ou de socialização responde à necessidade de readaptação social do arguido.”[14]

Ora, o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado prevê uma pena de prisão de dois anos e oito meses a treze anos e quatro meses- cfr. art. 165.º, n.º 1, do Código Penal.

Dispõe ainda o art. 40.º do Código Penal que os fins das penas são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Vejamos então, em concreto, quais as necessidades de prevenção geral e especial e qual a medida da culpa do arguido.

O crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto no art.º 165º do C. Penal, tutela a liberdade e autodeterminação de pessoas inconscientes ou incapazes de formularem a sua vontade para a prática de actos com relevo sexual.

Por outro lado, não se pode considerar que a culpa do arguido se apresentasse diminuída, para o crime ora em apreço.

Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele- cfr. artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal. Ou seja:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente:

- No caso concreto, a prática do crime consumou-se através de acto sexual que consistiu em cópula anal, sendo certo que o ofendido é portador de uma incapacidade que o impede de se autodeterminar livremente- o que o arguido bem sabia, pois não só tal é notório, como o arguido já conhecia o BB há muito;

                b) A intensidade do dolo- que é directo, pelo que é maior a respectiva intensidade;

                c) Os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e os fins ou motivos que o determinaram- o arguido agiu com a intenção de satisfazer os seus próprios impulsos sexuais e instintos libidinosos, em detrimento da liberdade de autodeterminação da sua vítima;

d) A condição pessoal do arguido e a sua situação económica, vertidas nos factos provados, dos quais se pode concluir que:

- O arguido tem uma personalidade algo instável e distante, estando sem ocupação laboral há algum tempo, não tendo qualquer projecto de vida.

e) A conduta anterior aos factos e a posterior a estes, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências dos crimes:

- Quanto à sua conduta anterior e posterior, há que realçar que o arguido tem já duas condenações averbadas no seu CRC, ainda que por crimes não relacionados com os dos autos;

- Em audiência de julgamento, o arguido optou por não prestar declarações, pelo que não deu a si próprio a oportunidade de admitir a prática dos factos, nem de manifestar qualquer arrependimento; pelo contrário, no final, limitou-se a afirmar que o que o BB narrara era mentira. Ora, a confissão e o arrependimento são importantes para o tribunal poder fazer um juízo de prognose futura favorável sobre se o arguido não tornará a delinquir. Ao não admitir os factos e ao não mostrar-se arrependido, o tribunal não poderá, por aí, fazer esse juízo de prognose futura favorável, o que tem grande importância, nomeadamente ao nível da prevenção especial;

- Por fim, o arguido não adoptou qualquer conduta séria e consistente, destinada a reparar as consequências do crime que praticou, e a evitar a repetição de novos crimes, ou pelo menos tal não se demonstrou.

                Em suma, as considerações de prevenção geral são elevadas, uma vez que os crimes contra a liberdade sexual, ainda mais sobre pessoas incapazes de resistência, causam sempre grande repulsa e censura sociais.

                Quanto à prevenção especial, as penas a aplicar têm de fazer sentir convenientemente ao arguido a reprovabilidade das suas condutas, condição essencial para o arguido não tornar a delinquir.

                A culpa situa-se em níveis altos, sendo que era exigível ao arguido que não praticasse os actos que praticou, tanto mais que conhecia bem o ofendido.

Tudo ponderado, designadamente as condições pessoais do arguido, entendemos ajustada:

- uma pena de prisão de 6 (seis) anos.

Entendemos ainda, atenta a elevada gravidade dos actos praticados por ele, ser de aplicar ao arguido as sanções acessórias previstas nos artigos 69.º-B, n.º 1 69.º-C, n.os 1 e 4, do Código Penal, pelo período de 5 (cinco) anos.


*

3- Da recolha de ADN ao condenado:

(…).


*

4. Dos objectos:

(…)


*

5. Da reparação ao ofendido dos prejuízos causados e do pedido de indemnização civil:

Do disposto no art. 82.º-A, do Código de Processo Penal, resulta que em caso de condenação e não tendo sido deduzido pedido de indemnização o tribunal pode arbitrar uma quantia à vítima a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção desta o imponham. O Ministério Público fez um pedido neste sentido, mas o assistente fez um pedido autónomo, no valor de 20.000,00 €. Ora, como consta do art. 129º do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.

“Nos termos do art. 483º, nº 1 do Código Civil «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

São, pois, pressupostos da obrigação de indemnizar:

- o facto voluntário do agente;

- a ilicitude do facto;

- a imputação do facto ao lesante, a título de dolo ou mera culpa;

- a ocorrência de dano;

- a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.”[15]

No caso dos autos verificam-se os pressupostos do facto ilícito e do dolo na sua execução.

Quanto aos danos, a actuação do arguido causou ao ofendido mal estar e incomodidade, causando ainda um agravamento dos sintomas da doença de que padece.

“Nos termos do art. 496º do Código Civil, são atendíveis para efeitos indemnizatórios os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.(…)

Os danos não patrimoniais são aqueles que são insusceptíveis de expressão pecuniária, como sejam as dores físicas e morais sofridas. Por isso a sua quantificação faz-se com recurso à equidade.

A fixação da indemnização de acordo com a equidade significa que o seu valor é determinado considerando a culpa do agente, a sua situação económica e a situação económica do lesado, as especiais circunstâncias do caso, a gravidade do dano, etc., ou seja, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida: a indemnização deve ser proporcional à gravidade do dano, a avaliar objectivamente, e ser fixada de acordo com critérios de boa prudência e ponderação das realidades da vida.

E não podia deixar de ser assim porque a indemnização por danos não patrimoniais não visa pagar, nem apagar, os danos provocados pelo facto, porque sobre eles não podem incidir regras de cálculo. O que aqui se pretende é atenuar, minorar e de certo modo compensar os danos sofridos pelo lesado, atribuindo-lhe uma soma em dinheiro que lhe permita um acréscimo de bem-estar que sirva de contraponto ao sofrimento moral provocado.

Sendo essa a função a indemnização pelo dano não patrimonial, não pode ela ser meramente simbólica, a menos que seja isso que se pretenda.

Para o ressarcimento destes danos a lei, conforme resulta do art. 496.º do C. Civil, confia ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, e nesta apreciação releva não o rigor contabilístico da adição de custos, despesas, ou de ganhos mas sim o desiderato de, prudentemente, dar alguma correspondência compensatória ou satisfatória entre uma maior ou menor quantia de dinheiro a arbitrar à vítima e a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ela se viu afectada.”[16]

Considerando o exposto, temos por adequada a atribuição ao assistente da quantia de:

- 20.000,00 € (vinte mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos.

Mas, para além da aludida quantia constituiu-se também o arguido na obrigação de indemnizar o ofendido pelos danos causados pela privação daquela importância desde a aludida data. Para tal, deverá reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação- art. 562.º do Código Civil. Esta norma, postula o princípio da restauração natural, pelo qual se procura fazer uma restituição em espécie, ou seja, tem-se aqui em vista a reparação do dano real ou concreto. Impõe-se o dever de reposição das coisas no estado em que estariam, se não se tivesse produzido o dano.

Sendo este o princípio geral, para as obrigações pecuniárias, a indemnização corresponde aos juros contados a partir da constituição em mora, sendo estes os juros legais- art. 806.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Civil, cuja taxa é fixada em Portaria- art. 559.º, n.º 1 do Código Civil.

Ora, se assim é, incidem juros moratórios sobre a quantia em que vai condenado o arguido, desde a data da notificação para contestar, à taxa anual de 4 %, até efectivo e integral pagamento.»

            3. – Apreciação do recurso

3.1 - Erro de julgamento quanto aos pontos 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 19 da factualidade dada como provada

            O arguido, ora recorrente, insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, em virtude de discordar da apreciação e valoração que o tribunal a quo fez dos meios de prova – que considera errada – e da convicção que alcançou quanto aos sobreditos pontos da matéria de facto, que enuncia, pelas razões que desenvolve na motivação do recurso e que sintetiza nas respetivas conclusões.

Invoca, por conseguinte, o recorrente o erro de julgamento, o qual ocorre, em essência, quando a prova produzida, analisada e valorada pelo tribunal não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi, porquanto foi considerado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido dado como não provado ou, inversamente, quando foi tido como não provado um facto e a prova é clara e inequívoca no sentido da sua comprovação.

O mecanismo adequado para tentar reverter o erro de julgamento em sede de recurso é a denominada impugnação ampla da decisão da matéria de facto, prevista no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, visando uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos «pontos de facto» que o recorrente considera incorretamente julgados, através da (re)avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.

Contudo, cumpre sublinhar que, como vem reiteradamente assinalando a doutrina[17] e a jurisprudência[18], nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, tendo em perspetiva os concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

E é exatamente por isso que se impõe a quem recorre o ónus de proceder a uma tríplice especificação em conformidade com o estabelecido no artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que assim dispõe:

“3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas”.

A referida especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.

Por seu turno, a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado[19].

Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430º do mesmo diploma).

Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens [das gravações] em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, em consonância com o estabelecido nos nºs 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal, que assim regem:

“Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação” [n.º 4];

“O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa” [n.º 6].

De acordo com o decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2012[20], «[v]isando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações».

Significa isto, em termos práticos, que havendo declarações de arguidos, assistentes, partes civis, depoimentos de testemunhas e esclarecimentos de peritos ou consultores técnicos, o recorrente tem de individualizar, no conjunto das declarações e depoimentos prestados, quais as particulares passagens nas quais ficaram gravadas as frases que, por si só ou conjugadas com outros meios de prova, impunham decisão diversa quanto ao facto impugnado.

E, no final, é necessário que dessa indicação resulte comprovada a insustentabilidade lógica ou a arbitrariedade da decisão recorrida e que a versão probatória e factual alternativa proposta no recurso é a [única] correta.

Nesse caso, concluindo-se que o tribunal a quo não podia ter dado os concretos factos impugnados como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detetado, nos termos previstos no artigo 431º, al. b), do Código de Processo Penal.

No entanto, se a convicção do julgador for objetivável face ao princípio da livre apreciação da prova e aos critérios de apreciação da validade e do valor probatórios dos meios de prova produzidos e se a versão apresentada pelo recorrente for meramente alternativa e igualmente possível deverá manter-se a opção do julgador em 1.ª instância, por força da plenitude dos princípios da oralidade e da imediação da prova de que este beneficia.

Com efeito, importa ter presente que a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar, o princípio norteador da formação da convicção do tribunal da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º Código de Processo Penal, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, assim como a sua íntima conexão com os princípios da imediação e da oralidade, sobretudo quando tem de se analisar a valoração efetuada na 1ª instância da prova testemunhal ou declarativa [do arguido, do assistente, das partes civis].

Como decorrência de tal princípio, ressalvado o valor probatório específico de alguns meios de prova, no processo de formação da convicção do julgador, as primeiras regras a observar são, naturalmente, as da lógica – que resultam da estrutura nomológica da realidade física e emergem, fundamentalmente, da intervenção do princípio da causalidade –, seguidas pelas regras da experiência – resultantes da acumulação de experiência do homem comum ao longo dos séculos sobre o normal acontecer das coisas.

Ainda que norteada pela lógica e pelas regras da experiência comum, a apreciação que o juiz do julgamento faz da prova não pode deixar de ser «... uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais –, mas em todo o caso, também ela (deve ser) uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.»[21]

O sistema da prova livre não se abre, por assim dizer, ao arbítrio, ao subjetivismo ou à emotividade. Antes exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não se pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça[22].

Em suma, o juiz é livre no que respeita ao ato de traçar a arquitetura do raciocínio que está obrigado a construir com as provas disponíveis, incluindo as indiciárias, o qual conduzirá à aquisição de uma convicção sobre a existência, inexistência ou dúvida insuperável quanto aos factos sob julgamento[23], desde que observe o quadro normativo sobre as regras referentes à valoração e proibição de certos meios de prova e as exigências de motivação transparente e clara desse raciocínio lógico de forma a ser apreensível pelos destinatários da decisão e pelo cidadão comum.

O princípio da livre apreciação da prova não é, pois, absoluto, comportando limites e reservas, uns atinentes aos meios de prova e outros à decisão.

 Assim, em sede probatória, a livre apreciação apenas pode recair sobre as provas que tiverem sido produzidas e/ou examinadas em audiência, sem prejuízo das constituídas no processo – como os documentos e os meios de obtenção de prova –, respeitando o princípio do contraditório (artigos 327º, n.º 2, e 355º do Código de Processo Penal), com exclusão dos meios de prova [e da respetiva obtenção] proibidos (artigos 125º e 126º) e observando o valor probatório específico atribuído à prova pericial (163º), aos documentos autênticos e autenticados (artigo 169º) e à [válida] confissão integral e sem reservas (artigo 344º).

Em sede decisória, a livre apreciação da prova tem que ser, como vimos, objetivável e motivável, de modo a evidenciar o processo lógico racional de forma apreensível pelos seus destinatários diretos e pelos cidadãos em geral.

Esse exercício é particularmente difícil no que tange à explicitação da credibilidade que inspiram alguns meios de prova oral, em cuja apreciação intervêm, a par com a atividade cognitiva, os tais elementos não racionalmente explicáveis, empíricos e, até, puramente emocionais, mas que, ainda assim, têm que resultar suficientemente explicados.

É por demais consabido que, em particular nos casos de prova por declarações, depoimentos e esclarecimentos, em regra produzidos oralmente, a credibilidade dos mesmos está intimamente conexionada com o respetivo conteúdo, mas, também, com a forma como foram prestados, sendo, por isso, a imediação fundamental.

Atribuir, ou não, crédito ao que diz, ou não diz, uma pessoa convocada a prestar declarações ou depoimento é uma questão de convicção pessoal, condicionada por diversas circunstâncias.

Assim, importa, desde logo, ter em consideração que a declaração e o depoimento, quando realizados de boa fé, se traduzem no relato ao Tribunal da representação da realidade percecionada, interpretada e memorizada pelo declarante e pelo depoente, respetivamente, segundo as suas idiossincrasias. Quando o declarante e o depoente estão de má fé farão um relato adulterado do que percecionaram, interpretaram e memorizaram, em função do que é favorável aos interesses e objetivos que os movem.

Daí que, mais do que o declarante e o depoente dizem ou não dizem, importa o modo como o fazem, nomeadamente a postura corporal, os gestos e expressões fisionómicas, as hesitações nas respostas às questões que lhes são colocadas, o tom da voz, os olhares de cumplicidade trocados com um ou outro interveniente processual ou o desviar do olhar do interlocutor, enfim numa multiplicidade de pormenores que, a maioria das vezes, apenas a oralidade e a imediação permitem percecionar.

Como tal, tem de aceitar-se que existe uma impressão causada no julgador, um conhecimento de base subliminar, que só a imediação em primeira instância possibilita ao nível mais elevado e que, por isso, existirá sempre uma margem de insindicabilidade da decisão do juiz de primeira instância sobre a matéria de facto, em função de fatores que intervêm na apreciação da credibilidade de depoimentos que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto direto com os depoentes na audiência[24].

Nessa “margem de insindicabilidade” entram os elementos racionalmente não explicáveis e, até, de cariz emocional inerentes ao ser humano que constituem parte importante do processo de formação da convicção, como antes sinalizámos.

Porém, se é certo que há elementos do juízo de credibilidade das declarações e depoimentos que escapam à 2.ª instância – como são os pertencentes à linguagem não-verbal, que só a 1.ª instância está em condições de percecionar pela imediação –, outros há que podem ser retidos na gravação áudio da linguagem verbal e percecionados naquela instância de recurso – como é o caso do juízo sobre a razão de ciência, a espontaneidade, a fluência, a segurança, a verosimilhança e a plausibilidade da narrativa efetuada pelo declarante/depoente –, igualmente importantes para determinar a sua credibilidade, que não dependem da imediação, mas antes do raciocínio lógico que o julgador deve efetuar e espelhar na fundamentação da sua convicção.

Assim, se na motivação da decisão de facto o tribunal de 1.ª instância explicitou, como lhe compete, as razões pelas quais deu credibilidade a um depoimento ou a uma declaração, a margem de “insindicabilidade” desse juízo pela Relação restringe-se àqueles elementos que estejam exclusivamente dependentes da imediação, e já não àqueles que não o estejam, sob pena de esvaziamento da via de impugnação ampla da matéria de facto.

Importa, ainda, ter presente que, mesmo que não haja prova direta de determinados factos, o tribunal não está impedido de formular a sua convicção acerca dos factos em discussão, de acordo com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos, o que nos remete para o âmbito da prova indireta, indiciária, circunstancial ou por presunção, ou seja, a que se refere a factos diversos do tema da prova (prova direta), mas que permite, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto a esse tema.

Por tudo isso, se perante determinada situação as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o tribunal a quo – que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade –, fundamentada e justificadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente, ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso – que está limitado na apreciação que pode fazer nos sobreditos moldes –, que opte por ela. E se a atribuição de credibilidade ou de falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não é racional, se mostra ilógica e é inadmissível face às regras da experiência comum[25], nos termos antes sinalizados.

Aqui chegados, em jeito de síntese, importa sublinhar que, como realçou o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 12.06.2008[26], a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:

- A que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;

- A que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;

- A que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;

- A que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412º].

No caso vertente, o recorrente inicia o recurso destacando as incoerências e contradições que deteta, quer na queixa apresentada, quer nos relatórios periciais, quer nas declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, sinalizando as perplexidades que lhe suscitam e o seu inconformismo com a sua desconsideração pelo tribunal a quo, num exercício de crítica genérica à decisão sobre a matéria de facto e respetiva fundamentação.

Após este introito, o recorrente, ainda que não o refira expressamente, promove a impugnação ampla da matéria de facto, nos termos previstos no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.

Individualizadamente, enuncia os concretos pontos da matéria de facto dada como provada que entende que foram incorretamente julgados, esclarece se devem ser julgados totalmente não provados ou apenas parcialmente provados e, neste caso, em que termos, e indica as concretas provas, nomeadamente, os excertos das declarações e dos depoimentos [transcritos na motivação] que, do seu ponto de vista, assim o impõem.

É inquestionável que se mostra observado o disposto no artigo 412º, n.º 3, al. a).

Já quanto ao disposto na al. b) do mesmo preceito, importa salientar que, como supra se sinalizou, para além da especificação das concretas provas, o recorrente tem que explicitar os motivos pelos quais essas provas, ou a ausência ou insuficiência delas, impõem decisão diversa da adotada pelo tribunal a quo. Explicitando, tem que indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido, os que foram considerados quando não o podiam ser – nomeadamente, por constituírem meios de prova proibidos – ou, então, de colocar em crise a avaliação da prova efetuada pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência dos elementos probatórios – atenta, sobretudo, a sua qualidade [credibilidade e força probatória] – em que se estribaram tais conclusões e que explicitar o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado, justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o tribunal ter decidido de forma diferente.

Atentemos nos moldes em que o recorrente impugna a matéria de facto, socorrendo-nos, por ora, do vertido nas conclusões a esse respeito:
«Da impugnação da matéria de facto:

75. Foi julgado provado o seguinte:
Emdia não concretamente apurado, mascompreendido entre osdias27 de Agosto de 2022 e 17 de Setembro de 2022 o arguido deslocou-se até à residência de BB.
76. Deveria ter sido julgado provado o seguinte:
No dia 17 de Setembro de 2022 o arguido deslocou-se até à residência de BB.

77. Meios de prova que impõe decisão diversa:
Depoimento da testemunha CC, gravada na aplicação H@billus Média Studio em uso no Tribunal de Leiria, com inicio às 15:10h e termo às 15:25h, que se deixaram transcritos no corpo das alegações nos minutos 00.02.03 a 00.01.20
78. Foi julgado provado o seguinte:
Aproveitando-se o facto deste se encontrar sozinho o arguido levou-o até uma zona de floresta próxima, conhecida por Mata dos ....

79. Deveria ter sido julgado provado o seguinte:
O arguido e o AA deslocaram-se à Mata dos ....
80. E isto porque não existe qualquer prova nos autos para além do que supra se deixou referido. Nenhuma testemunha referiu que “o AA conduziu o BB” nem que este “se aproveitou do facto de ele estar sozinho”.

81. Foi julgado provado o seguinte:
Ali, o arguido disse ao BB para se virar de costas e colocar as mãos em cima de um apoio, o que este fez.

82. Este facto deveria ser julgado não provado.

83. Meios de prova que impõem esta resposta:
Depoimento da testemunha FF – Depoimento gravado atravésda aplicação H@bilusMedia Studio do programa citius, cominício pelas 15:05:07h e o seu termo pelas 16:08:02h que se deixou transcrito no corpo das alegaçõesno minuto 00.04.14 a 00.04.41 e que aqui se dão como reproduzidas, uma vez que é impossível que o BB se tenha exprimido pela forma referida pela testemunha, uma vez que como resulta dos autos o discurso do BB “é muito pobre, apenas em resposta, geralmente respondendo apenas a uma palavra (…).
Quer isto dizer que apenas responde como monossílabos às perguntas que lhe são feitas.

84. Foi dado como provado o seguinte
Seguidamente, o arguido baixou as calças e as cuecas que o BB tinha vestidas.

85. Este facto deveria ser julgado não provado.

86. Meios de prova que impõem esta resposta:

Declarações da testemunha FF – Depoimento gravado atravésda aplicação H@bilusMedia Studio do programa citius, com início pelas15:45:57h e oseu termo pelas16:08:02h., que se deixaramtranscritosnocorpo das alegações (minuto 00.04.14 a 00.04.41) e que aqui se dão como reproduzidas.
87. Nota: é esta a única prova indicada pelo Sr. Juiz sendo impossível que o BB que se exprime por “uma palavra” tenha dado esta versão à testemunha.

88. Foi dado como provado o seguinte:
Acto contínuo, o arguido introduziu o seu pénis erecto no ânus de BB, onde o friccionou, fazendo movimentos com a anca para trás e para a frente.
89. Tal facto devia ser dado como não provado.
90. Meios de prova que impõem essa resposta:

i.              O Tribunal deu como provado a forma como ocorre um acto sexual, apesar de ninguém o ter descrito nos autos.
ii.             Ninguém falou em “pénis erecto” em “friccionar” nem em “movimentos com a anca para a frente e para trás”.
iii.            O relatório pericial de fls- demonstra que o BB não havia sido objecto de abuso sexual com introdução contra a sua vontade de um pénis erecto no ânus.
iv.            As declarações da mãe do assistente CC, gravada na aplicação H@billus Média Studio em uso no Tribunal de Leiria, com início às 15:10h e termo às 15:25h que se deixaram transcritas no corpo destas alegações (minuto 00.04.31 a 00.05.23) e que aqui se dão como reproduzidas demonstram que não ocorreu este facto, uma vez que, se tal tivesse acontecido, haveria sinais na roupa do BB.
91. Foi dado como provado o seguinte:
Depois de satisfazer o seu desejo sexual, o arguido levou o BB a casa.
92. Deveria ter sido provado o seguinte:
O BB e o AA regressaram ao Bairro ....

93. Meios de prova que impõem essa resposta:
Depoimento da testemunha CC, gravada na aplicação H@billus Médioa Studio em uso no Tribunal de Leiria, com início às 15:10h e termo às 15:25h que se deixaram transcritos no corpo destas alegações, minuto 00.04.31 a 00.05.28 e que aqui se dão como reproduzidas.
94. De onde resulta não haverqualquersinal de sangue ou esperma naroupa ou corpo do BB.

95. Foi dado como provado o seguinte:
Em consequência directa e necessária do acto sexual a que o arguido o sujeitou, BB sentiu dar, passou a apresentar perturbação do sono, maior ansiedade e maior agitação psicomotora.
96. Tal facto deveria ser julgado não provado.
97. Meios de prova que impõem essa resposta
Depoimento da testemunha GG - Depoimento gravado através da aplicação H@bilus Medioa Studio do programa citius, com início pelas 16:32:10h e o seu termo pelas 16:49:24h que se deixaram transcritos no corpo destas alegações, minuto 00.01.51 a 00.11.03 e que aqui se dão como reproduzidas.

98. Nota: É óbvio que não tendo ocorrido qualquer acto sexual, o BB não pode ter sentido qualquer consequência do que não existiu. Mas resulta do depoimento que se deixou transcrito que o BB tinha muitas vezes crises de perturbação de sono, maior ansiedade e maior agitação motora. Aliás, deste depoimento resulta que o BB só conseguia permanecer no ... na parte da manhã, que era muito instável, rejeitava as pessoas, tinha muita dificuldade de comunicação e se alterava com facilidade, tinha baixa tolerância à frustração e, por vezes, era necessário os funcionários “colocarem-se à frente dele” para o controlarem. É relatado também um episodio em Outubro em que o BB “não estava bem, outra vez instável, outra vez a perturbação do apetite, não querer comer, agitado …”

99. Foram dados como provados os seguintes factos :
- O arguido agiu com o propósito concretizado de compelir BB à prática do acto sexual acima descrito, incluindointroduçãodoseu pénis noânus deste, sabendo que este padece de um atraso cognitivo grave, que o impede de se defender, aproveitando-se de tal debilidade.
- Mas sabia o arguido que BB não tinha capacidade para querer e entender o significado do acto a que o sijeitou, nem tinha capacidade para se opor e resistir à sua acção, querendo, ainda assim, agir conforme agiu, satisfazendo o seus instintos sexuais e paixões lascívas, à custa daquele, o que conseguiu.
100. Tais factos deveriam ter sido julgados não provados.
101. Só que, que não tendo sido provados, como resulta do que se deixou referido, nenhum dos factos constantes na sentença, é óbvio que não se pode sequer falar de dolo directo como não se pode imputar-lhe a prática de qualquer crime.»

Como deflui com nitidez das conclusões ora transcritas, apesar do desenvolvimento da argumentação esgrimida na motivação, o recorrente não explicitou devidamente, por referência a cada um dos factos impugnados, as razões pelas quais dissente da decisão do tribunal a quo e entende que se impunha decisão distinta, pois grande parte dessas razões foram vertidas no predito “introito”, num registo amplo e genérico, ainda que com algumas pontuais especificações, mas sem estabelecer a necessária relação com os concretos factos impugnados.

Não obstante a forma imperfeita como foi promovida a impugnação ampla da matéria de facto, que compromete indelevelmente a sua eficácia, afigura-se-nos que ainda é possível a este tribunal ad quem conhecer da mesma.

De modo a melhor apreender o sentido do teor dos extratos destacados pelo recorrente, tendo em conta o contexto em que foram produzidos, e verificar se havia outros de sentido inverso ou distinto, procedemos à reprodução integral das declarações e depoimentos, nos termos permitidos pelo n.º 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal.

Porém, a limitação decorrente da falta de imediação da prova revelou-se aqui exponenciada pela circunstância de o assistente apresentar, além do mais, surdez e graves dificuldades de expressão verbal, socorrendo-se frequentemente de gestos e, tendo sido nomeada uma interprete de língua gestual, não haver gravação em suporte visual, mas apenas áudio, que não permite captar os gestos, quer daqueles [assistente e intérprete], quer das testemunhas que também referiram e reproduziram em audiência gestos e posturas corporais que aquele terá efetuado e adotado quando lhes transmitiu o que havia sucedido, como melhor detalharemos.

Este é, pois, um daqueles casos em que o conteúdo probatório das declarações e dos depoimentos vai muito além da linguagem verbal e, como tal, em que a faculdade de escrutínio da valoração que o tribunal a quo efetuou daqueles meios de prova por este tribunal ad quem se mostra particularmente comprimida.

Não obstante, pese embora os sobreditos constrangimentos, a análise crítica e conjugada da prova pessoal, pericial e documental permite concluir pelo acerto da decisão sobre a materialidade fáctica, maxime, quanto aos pontos de facto impugnados pelo recorrente.

Com efeito, como é habitual quando estão em causa factos que envolvem atos de natureza sexual, sobretudo quando suscetíveis de constituírem ilícito criminal, não há testemunhas presenciais dos mesmos, pelo que apenas têm conhecimento do que aconteceu os intervenientes, neste caso, o assistente e o arguido.

O arguido, no uso de faculdade legal que lhe assiste, remeteu-se ao silêncio, não tendo prestado declarações sobre os factos que lhe eram imputados na acusação pública.

O assistente prestou declarações para memória futura, mas, em face das dificuldades de comunicação nestas patenteada – exponenciadas, segundo explicação avançada pela sua mãe, a testemunha CC, pela circunstância de, nessa ocasião, ter avistado o arguido, o que o deixou mais ansioso e nervoso –, entendeu o tribunal a quo, na sequência de requerimento daquele, ser conveniente que voltasse a ser inquirido em audiência de julgamento, agora com a presença de um intérprete de língua gestual e na ausência do arguido.

Para o efeito, tendo sido confirmado que o assistente tem conhecimento de língua gestual universal, foi nomeada a intérprete indicada pela Federação Portuguesa das Associações de Surdos, que, após ter prestado compromisso de honra, desempenhou tal função, tudo com observância das formalidades legais respetivas, conforme ressuma dos autos e das atas da audiência de julgamento [sessões de 03.07.2024 e 25.09.2024], sem que algum dos intervenientes processuais suscitasse qualquer irregularidade, razão pela qual surgem como descabidas as considerações efetuadas pelo recorrente, nomeadamente, quanto à fidedignidade da tradução e à possibilidade de poder ser referida em língua gestual a palavra “pénis”.

Da audição da gravação extrai-se que o assistente, além da língua gestual, verbaliza algumas palavras, reforçando aquela forma de comunicação. E, pese embora as declarações do assistente não constituam um relato espontâneo e escorreito do sucedido, porquanto, atenta a sua especial condição, foi a sua inquirição modelada pelas questões, o mais objetivas possível, colocadas pelos interveniente processuais, às quais respondeu também de forma direta e objetiva, ainda que, nalguns pontos, ininteligível, como sucede com a referência à “bolada na cara”, ou de difícil interpretação, como é o caso da referência ao “pau” – se em sentido literal, como entendeu a intérprete, ou em sentido figurado, querendo referir-se ao “pénis” do arguido, como sucedeu aquando as declarações para memória futura – permitiram perceber a dinâmica dos eventos em apreciação.

Sendo inquestionável que tais declarações apresentam fragilidades e incoerências, elas têm que ser devidamente sopesadas e enquadradas na especial condição do assistente, que apresenta um comportamento adaptativo composto  situado ao nível dos cinco anos e oito meses e que não denota capacidade para inventar alegações falsas, conforme se extrai do relatório de perícia psiquiátrica médico legal [a fls. 201 a 204).

Com efeito, refere-se no antedito relatório, na parte atinente à avaliação psicológica forense: «(…) foi ainda apurado que:

- Não procura simular, exagerar nem fabricar sintomas relacionados com as perturbações depressivas ou ansiosas;

- Não procura simular, exagerar nem fabrica sintomas relacionados com as perturbações psicóticas;

- Não procurar simular, exagerar nem fabricar sintomas relacionados com problemas de memória, concentração e atenção, errando itens de dificuldade reduzida;

- Não apresenta indicadores de manipulação interpessoal, nomeadamente encontro superciaial/loquacidade ou mentir patológico (…);

- Não procura simular nem exagerar sintomas cognitivos (…);

- Não procura simular nem exagerar sintomas psicopatológicos, nomeadamente os que estão presentes nos estados depressivos e de ansiedade (…) e os que estão relacionados com perturbações psicóticas (…)».

Mais se refere, a final, na parte referente ao parecer psiquiátrico, que o assistente é portador de um quadro de debilidade mental grave e que padece de uma disfasia grave, mas, apesar de tal quadro clínico o condicionar nos vários domínios do seu quotidiano, a comunicação verbal e não verbal são coerentes, «não se mostrando o examinando permeável a manipulações externas, não se revestindo por isso de gravidade que o impeçam de relatar conforme vivenciou as situações que estão a ser alvo de julgamento.

Apesar das alterações da linguagem exibidas, que condicionam um relato fluente, se solicitarmos ao examinando que fale devagar, num ambiente que minimize a ansiedade, eventualmente dando-lhe oportunidade de repetir o seu relato, o relato apresentado é minimamente compreensível por terceiros, revestindo-se de coerência e estabilidade.

Pela gravidade da sua patologia se depreende que o examinando não é capaz de se autodeterminar sexualmente, principalmente numa ocorrência perante alguém que exerça algum ascendente sobre o examinando ou que este entenda que existe esse ascendente/poder sobre si.»

Afigura-se-nos, pois, que a menor riqueza do conteúdo das declarações é compensada pela maior genuinidade do declarante.

E o assistente narra em audiência a essencialidade dos factos, sendo certo que avançou mais alguns pormenores a pessoas com quem tem ligação afetiva, como é o caso da sua tia FF, da sua mãe – a quem não se terá queixado em primeiro lugar muito provavelmente por constrangimento –, à sua vizinha HH e à psicóloga na instituição que frequentava, a testemunha GG.

Essa narrativa do assistente manteve-se, de forma persistente, ao longo do tempo, consistente no essencial e encontra respaldo na circunstância de ter sido visto a sair de casa e a regressar da mata na companhia do arguido, conforme foi explicado pelas testemunhas HH e CC.

Mas, acima de tudo, a narrativa do assistente é corroborada por si próprio, pelas suas reações comportamentais após o episódio em causa nos autos, relatadas de forma globalmente convergente pelas testemunhas que de perto com ele convivem e que diretamente as percecionaram [CC, FF, JJ, GG e HH] – o assistente ficou mais agitado, tornou-se mais agressivo, passou a recusar a comida e a ter dificuldades em dormir, ficava visivelmente transtornado quando via o arguido e espontaneamente expressava, de forma vívida, que este era “mau” e o que lhe tinha feito, nomeadamente por gestos.

E no relatório de perícia médico legal psicológica forense [fls. 155 vº a 161] conclui-se que «o examinado apresenta resultados compatíveis com as manifestações do impacto psicológico da vitimação [i.e., apresenta sintomas que estão presentes em casos verdadeiros de abusos, nomeadamente, ansiedade e agitação motora, sentimentos de insegurança e desconfiança relativamente aos adultos em geral, alterações comportamentais – incluindo comportamento regressivo e alterações de natureza psicossomática – i. e., perturbações do sono)…».

Assim, pese embora, tendo sido o assistente submetido a perícia de natureza sexual em 19.09.2022, não tenham sido encontrados vestígios físicos e/ou biológicos de contacto de natureza sexual, como se assinala no relatório de perícia de natureza sexual em direito penal [cfr. fls. 27 a 29 e 68 a 72], a ausência de tais vestígios «não significa que o abuso sexual não possa ter ocorrido, uma vez que num grande número destas situações não resultam vestígios».

Posto isto, debrucemo-nos, concretamente, sobre os pontos da matéria de facto impugnados:

Ponto 11 - «Emdia não concretamente apurado, mascompreendido entre osdias27 de Agosto de 2022 e 17 de Setembro de 2022 o arguido deslocou-se até à residência de BB».

Sustenta o recorrente que deveria ter sido julgado provado o seguinte: «No dia 17 de Setembro de 2022 o arguido deslocou-se até à residência de BB.», indicando, como meios de prova que impõem decisão diversa, o depoimento da testemunha CC, no segmento correspondente aos minutos 00.02.03 a 00.01.20, que transcreveu.

Tal excerto, só por si, não impõe, de modo algum, decisão diversa, revelando-se a sua globalidade muito mais abrangente, dela resultando que a testemunha viu, além do mais, o seu filho a regressar daquele local com o arguido. O próprio recorrente afirma que está profusamente demonstrado nos autos que o assistente e o arguido foram à Mata dos ... em 17.09.2022 [cfr. conclusão 62]. Pese embora a concreta data em que ocorreram os factos não seja um elemento essencial, e nenhuma das testemunhas, ou o assistente, a tenham indicado ao certo, resulta da conjugação dos depoimentos das testemunhas FF, CC, HH e GG que se situará naquele intervalo de três semanas.

Não foi, pois, indicada prova que imponha decisão distinta quanto ao ponto da matéria de facto em análise.

Ponto 12 - «Aproveitando-se o facto deste se encontrar sozinho o arguido levou-o até uma zona de floresta próxima, conhecida por Mata dos ....»

Entende o recorrente que deveria ter sido julgado provado o seguinte: «O arguido e o AA deslocaram-se à Mata dos ...», porque não existe qualquer prova nos autos para além do que antes referiu, pois, nenhuma testemunha referiu que “o AA conduziu o BB” nem que este “se aproveitou do facto de ele estar sozinho”.

Contudo, resulta dos depoimentos das testemunhas JJ, HH e CC que, à época, a primeira estava ausente em casa de outra filha em recuperação de um problema de saúde, razão pela qual a última havia pedido à segunda que tomasse conta e a avisasse se o assistente, que estava em casa sozinho, saísse, como sucedeu. E, obviamente, tendo-se o arguido dirigido a casa do assistente e atenta a especial condição deste, que não tem autonomia para tal, foi aquele que o conduziu para o referido local.

Não se impõe, assim, qualquer alteração ao sobredito ponto de facto.

Ponto 13 - «Ali, o arguido disse ao BB para se virar de costas e colocar as mãos em cima de um apoio, o que este fez».

Argumenta o recorrente que deveria ter sido julgado não provado, indicando como meios de prova que impõem esta resposta o depoimento da testemunha FF, no segmento correspondente aos minutos 00.04.14 a 00.04.41, que transcreveu. Alega que é impossível que o assistente se tenha expressado pela forma referida pela testemunha, uma vez que, como resulta dos autos, o discurso daquele “é muito pobre, apenas em resposta, geralmente respondendo apenas a uma palavra (…)”, pelo que apenas fala quando lhe são feitas perguntas e responde com uma palavra, não podendo ter elaborado o discurso referido pela testemunha.

Todavia, nas declarações que prestou em audiência, o assistente, pese embora não tenha referido que o arguido o mandou virar de costas e colocar as mãos sobre algo, como terá mencionado à sua tia FF e esta relatou, referiu que o arguido o mandou baixar-se e que lhe agarrou o rabo, pelo que, naturalmente, teve que ficar de costas voltadas para o arguido.

Nada impõe, pois, que fosse dado como não provado o ponto de facto em observação.

Ponto 14 - «Seguidamente, o arguido baixou as calças e as cuecas que o BB tinha vestidas».

Sustenta o recorrente que este facto deveria ser julgado não provado, indicando, como meios de prova que impõem esta resposta, mais uma vez, o depoimento da testemunha FF, no segmento correspondente aos minutos 00.04.14 a 00.04.41, que transcreveu. Alega que esta é a única prova indicada pelo tribunal a quo, sendo impossível que o assistente, que se exprime por “uma palavra”, tenha dado esta versão à testemunha, a que acresce que, como resulta das declarações da mãe do assistente, não havia qualquer sinal na roupa de terem existido relações sexuais, sendo que também do exame físico tal não resulta.

Não corresponde, desde logo, à verdade que o depoimento da testemunha FF tenha sido o único meio de prova atendido pelo tribunal a quo neste conspecto, pois é notório que valorizou particularmente as declarações prestadas pelo assistente em audiência, onde este refere, repetidamente – até porque foi questionado mais que uma vez –, que o arguido lhe baixou as calças, tal como baixou as suas próprias calças. Naturalmente, atenta a intenção do arguido quando baixou as calças ao assistente, pese embora este não tenha aludido a quem lhe baixou as cuecas, decorre de um juízo de normalidade que terá sido o arguido.

Não se impunha, pois, resposta distinta a este ponto da matéria de facto.

Ponto 15 – «Acto contínuo, o arguido introduziu o seu pénis erecto no ânus de BB, onde o friccionou, fazendo movimentos com a anca para trás e para a frente».

Alega o recorrente este facto devia ser dado como não provado pela seguinte ordem de razões:

«O Tribunal deu como provado a forma como ocorre um acto sexual, apesar de ninguém o ter descrito nos autos.

Ninguém falou em “pénis erecto” em “friccionar” nem em “movimentos com a anca para a frente e para trás”.

Não se aceita – porque não ocorreu –que o AA tenha abusado sexualmente do BB, sendo que se limitou a passear com ele pela Mata dos ..., que é um local onde as pessoas passeiam e praticam desporto, o que constitui facto notório

Se aconteceu alguma coisa ao BB não foi com o AA sendo que os familiares se encarregaram de convencer que o AA é “mau” e lhe tinha “feito mal”. Mas sobre esta questão nos debruçaremos mais adiante….

Mas também o relatório pericial de fls - demonstra que o BB não havia sido objecto de abuso sexual com introdução contra a sua vontade de um pénis erecto no ânus.

As declarações prestadas pela testemunha FF mais não são do que uma história que a família do BB forjou contra o AA.

Mas também as declarações da mãe do assistente CC demonstram que não ocorreu este facto, uma vez que, se tal tivesse acontecido, haveria sinais na roupa do BB.»

Como sobressai dos argumentos esgrimidos pelo recorrente que acabámos de transcrever, com exceção da referência, ainda que imprecisa, ao relatório pericial [de natureza sexual] e da transcrição do depoimento da testemunha CC, no segmento correspondente aos minutos 00.04.31 a 00.05.23 da respetiva gravação, não são indicadas concretas provas que imponham decisão diversa. O recorrente efetua um exercício livre de análise crítica daquilo que julga resultar, ou melhor não resultar, da prova produzida. É verdade que ninguém falou em “pénis erecto”, em “friccionar”, nem em “movimentos com a anca para a frente e para trás”. Todavia, em audiência, o assistente referiu claramente que o arguido meteu o pénis no seu ânus [embora usando outra terminologia], que tentou afastá-lo, mas ele continuou, e que lhe causou dor. A testemunha GG exemplificou os gestos que o assistente fez para lhe transmitir o que lhe haviam feito que o deixava tão transtornado, que, obviamente, não visionámos. Porém, precisamente pela falta de gravação vídeo, o Ex.mo Juiz presidente do tribunal coletivo, no final do depoimento daquela testemunha, questionou-a expressamente se o gesto que ela havia descrito era com o dedo polegar e o indicador da mão direita, fechando um círculo, e depois introduzindo o indicador da esquerda, em movimentos de vaivém, o que aquela confirmou.

Tais recortes da prova, analisados segundo as regras da experiência comum e do normal acontecer em contextos similares, permitem concluir que o arguido introduziu o seu pénis, necessariamente, ereto, friccionando-o, em movimentos com a anca para a frente e para trás.

Nenhuma alteração, pois, se impõe efetuar quanto ao ponto fáctico em apreciação.

Ponto 16 – «Depois de satisfazer o seu desejo sexual, o arguido levou o BB a casa».

            Sustenta o recorrente que deveria ter sido dado provado o seguinte: «O BB e o AA regressaram ao Bairro ...», indicando, como meios de prova que impõem esta resposta, o depoimento da testemunha CC, no segmento correspondente aos minutos 00.04.31 a 00.15.06, que transcreveu, salientando que deste também resulta que não havia qualquer sinal de esperma na roupa do assistente.

            Sucede, porém, que momentos antes do excerto transcrito pelo recorrente (minutos 00.04.05) a testemunha refere expressamente, em resposta a questão que lhe foi colocada, que «ele [arguido] aparece com o meu filho a sair da mata», sendo que aquela estava a aguardar a sua vinda no exterior do prédio onde residia com o assistente. Como se vem referindo, em face da especial condição o assistente e da sua falta de autonomia, é evidente que o arguido, após satisfazer o seu impulso sexual, tratou de o levar a casa, onde o fora buscar. Relativamente ao facto de a mãe não ter detetado vestígios de esperma na roupa do assistente, desconhece-se sequer se o arguido ejaculou ou se limpou o esperma, pelo que que tal circunstância é irrelevante.

            Nada impõe, assim, a alteração deste ponto da matéria de facto.

Ponto 17 – «Em consequência directa e necessária do acto sexual a que o arguido o sujeitou, BB sentiu dor, passou a apresentar perturbação do sono, maior ansiedade e maior agitação psicomotora».

            Sustenta o recorrente que tal facto deveria ser julgado não provado, indicando, como meios de prova que impõem esta resposta, o depoimento da testemunha GG, no segmento correspondente aos minutos 00.01.51 a 00.11.03, que transcreveu. Alega que, não tendo ocorrido qualquer ato sexual, o assistente não pode ter sentido qualquer consequência do que não existiu. Mas, além disso, existem também no processo dados que demonstram que o assistente tinha muitas vezes crises de perturbação de sono, maior ansiedade e maior agitação motora, como resulta do depoimento da testemunha GG, psicóloga e que exerce funções na instituição ... – aquele só conseguia ali permanecer na parte da manhã, que era muito instável, rejeitava as pessoas, tinha muita dificuldade de comunicação e se alterava com facilidade, tinha baixa tolerância à frustração e, por vezes, era necessário os funcionários “colocarem-se à frente dele” para o controlarem. Relata também a testemunha um episódio em outubro, em que o BB “não estava bem, outra vez instável, outra vez a perturbação do apetite, não querer comer, agitado …”, donde resulta que estas crises eram frequentes no assistente.

            Começando por este último argumento, o episódio relatado pela testemunha reportado a outubro é posterior ao evento em causa nos autos e, portanto, insere-se também nas repercussões que do mesmo advieram para o assistente.

O assistente afirmou, nas declarações que prestou em audiência, que sentiu dor aquando do ato sexual perpetrado pelo arguido, o que é consentâneo com as regras da experiência comum, sendo certo, ademais, que aquele, quando transmitiu a outras pessoas o sucedido – entre as quais a testemunha GG – sempre perpassou a ideia de que foi algo penoso para si, como elas confirmaram. Ademais, tais testemunhas – CC, FF, JJ, HH e GG – aludiram, de forma globalmente homogénea, à alteração do comportamento do assistente, que passou a apresentar, além do mais, perturbação do sono, maior ansiedade e maior agitação psicomotora, sintomas que, segundo o vertido no relatório de perícia médico legal psicológica forense [fls. 155 vº a 161], são compatíveis com as manifestações do impacto psicológico da vitimação e que estão presentes em casos verdadeiros de abusos,  naturalmente mais exacerbados no assistente que, devido à sua condição, já antes apresentava ansiedade e agitação psicomotora. Daí que se tenha dado como provado que passou a apresentar «maior ansiedade e maior agitação psicomotora».

Nada impõe, pois, a alteração do teor do ponto de facto em análise.

Ponto 18 – «O arguido agiu com o propósito concretizado de compelir BB à prática do acto sexual acima descrito, incluindo introdução do seu pénis no ânus deste, sabendo que este padece de um atraso cognitivo grave, que o impede de se defender, aproveitando-se de tal debilidade».

Ponto 19 – «Mas sabia o arguido que BB não tinha capacidade para querer e entender o significado do acto a que o sijeitou, nem tinha capacidade para se opor e resistir à sua acção, querendo, ainda assim, agir conforme agiu, satisfazendo o seus instintos sexuais e paixões lascívas, à custa daquele, o que conseguiu».

Sustenta o recorrente que tais factos deveriam ter sido julgados não provados porquanto, ao contrário do referido pelo tribunal a quo na motivação da decisão de facto quanto aos mesmos, não resultou provado nenhum dos factos constantes do acórdão, pelo que é óbvio que não se pode sequer falar de dolo direto.

            Efetivamente, o tribunal a quo, tendo em conta os atos objetivos praticados pelo arguido que resultaram provados, inferiu os factos subjetivos supra descritos.

Tais factos, apesar de se inscreverem no foro interior do arguido, no domínio cognitivo e volitivo, e este não os ter confessado – nem sequer prestou declarações – emergem da análise da atuação daquele conjugada com as regras de experiência comum, não resultando dos autos qualquer elemento probatório que infirme tal juízo, designadamente de índole pericial.

            O apurado comportamento objetivo do arguido, não estando demonstrada, por prova pericial, afetação das suas capacidades intelectuais e emocionais, é claramente expressivo de uma atuação livre, voluntária e consciente da ilicitude nos moldes descritos nos pontos ora em observação.

            Inexiste, pois, motivo para alterar os pontos 18 e 19 dos factos provados.

            Ante o exposto, conclui-se pela total improcedência da impugnação ampla da matéria de facto promovida pelo recorrente.

3.2 - Violação do princípio in dubio pro reo

O recorrente alega, ainda, que o tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo, porquanto, não só ficou cabalmente provado que o arguido não praticou o crime em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais vinha acusado e quanto à sua culpa, pois, em apertada síntese: o tribunal não procedeu a uma apreciação crítica e racional da prova, que, aliás, foi inexistente, uma vez que ninguém presenciou os factos; não pode deixar de estranhar o facto de o tribunal não ter analisado sequer o depoimento do BB prestado ad perpetuan rei memorian, onde é patente que, tal como é referido no exame pericial, aquele não tem um discurso fluente e apenas responde por monossílabos às perguntas que lhe são feitas, e esse facto, que é inquestionável, deveria também levado o tribunal a analisar o depoimento prestado em “língua gestual”, em que é patente que a senhora interprete se substitui ao assistente nas respostas dadas; resulta do depoimento dos familiares do assistente que existiu uma manobra montada para incriminar o arguido, sendo que o tribunal a quo nem sequer se pronunciou sobre as contradições entre os depoimentos prestados pela mãe do BB ao longo de todo o processo.

Ou seja, o recorrente não afirma que o tribunal a quo se deparou com dúvidas e que não as resolveu em seu benefício e, por isso, não invoca propriamente a violação do princípio in dubio pro reo. O que o recorrente sustenta, ainda que em termos algo dúbios, é que, em face da prova produzida, o tribunal a quo deveria ter ficado em estado de dúvida quanto à veracidade dos factos que deu como provados.

O princípio in dubio pro reo, como decorrência do princípio constitucional da presunção da inocência, consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre a veracidade dos factos, ou seja, impõe ao julgador que, quando confrontado com a dúvida, razoável e fundada, em matéria de prova, resolva tal dúvida em sentido favorável ao arguido.

Nas palavras de Figueiredo Dias[27], “[à] luz do princípio da investigação bem se compreende, efetivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo”.

Significa isto que, conexionando-se com a matéria de facto, este princípio atua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito – tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objetivo e tipo subjetivo –, quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais atualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena[28].

Ou seja, o julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência de julgamento, tiver dúvidas sobre qualquer facto.

Porém, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. A dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos atos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja motivos de dúvida[29].

Importa sinalizar que a prova judiciária visa obter unicamente uma certeza judiciária/processual – e não uma certeza ontológica; porém, é naturalmente desejável, no plano teorético, que a verdade judiciária e a verdade material se mostrem, tanto quanto possível, sincrónicas/coincidentes[30].

            Ademais, apenas está em causa a dúvida que se suscite ao julgador, e não aos sujeitos processuais, condicionados na sua análise valorativa da prova pelos respetivos interesses em jogo, dos quais não se conseguem distanciar e que lhes retiram objetividade.

Como vem sendo entendimento jurisprudencial pacificamente aceite, o tribunal de recurso apenas pode concluir pela violação do princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência se do texto da decisão recorrida resultar notoriamente – em termos idênticos aos que vigoram para os vícios da sentença, no âmbito da revista alargada – que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido, ou se, apreciando a impugnação ampla da matéria de facto, por erro de julgamento, concluir que, em face da prova produzida, essa dúvida – razoável e fundada – deveria ter-se suscitado no espírito do julgador, impondo-se que a resolvesse em sentido favorável ao arguido.

Atentando no caso dos autos, não se verifica nem uma situação nem outra.

Por um lado, do texto da decisão recorrida, maxime da motivação da decisão sobre a matéria de facto, não ressuma que o tribunal a quo se tivesse deparado com qualquer dúvida, antes pelo contrário.

Por outro lado, da apreciação da impugnação ampla da matéria de facto que antes efetuámos também não decorre que alguma dúvida, séria, fundada e intransponível devesse ter-se suscitado ao tribunal a quo. Com efeito, apesar da especificidade da situação, em virtude das patologias que afetam o assistente e das dificuldades deste de comunicação, as suas declarações, em particular as produzidas em audiência de julgamento com a intervenção de intérprete, complementadas pelos depoimentos das testemunhas a quem antes se queixara, não deixam margem para dúvidas sobre a verificação dos factos pela forma exarada como provada.

Além do que antes se aduziu, importa salientar, atenta a alegação do recorrente, que, como resulta da experiência judiciária, raramente as declarações e os depoimentos se mostram isentos de incoerências e/ou contradições, como é normal, pois cada pessoa, segundo as suas idiossincrasias, valoriza mais alguns aspetos em detrimento de outros, retendo melhor memória dos primeiros. Por outra banda, o efeito do decurso do tempo no processo erosivo da memória também varia de pessoa para pessoa. Tudo isso confere autenticidade à prova pessoal.

Igualmente cumpre esclarecer, no que tange às alegadas contradições entre os depoimentos prestados pela mãe do assistente ao longo de todo o processo, que apenas pode ser valorado, em consonância com o estabelecido no artigo 355º do Código de Processo Penal, a prova produzida em audiência de julgamento, com exceção da reprodução de declarações e depoimentos antes prestados no processo nos casos admissíveis, expressamente previstos nos artigos 356º e 357º do mesmo diploma, que não contemplam os autos de queixa.

Assim, são irrelevantes as menções do recorrente às contradições em que a mãe do assistente terá incorrido aquando da apresentação de queixa e aditamento, bem como quando foi inquirida em fase anterior ao julgamento.

De resto, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 11/07/2012 (Processo n.º 1659/10.6JAPRT.P1), «a violação de tal princípio [in dubio pro reo] apenas existe quando se comprova que o juiz tenha ficado com dúvidas sobre factos relevantes e tenha decidido desfavoravelmente ao arguido, não bastando para o efeito a constatação da existência de versões contraditórias apresentadas por arguido e testemunhas ou mesmo entre testemunhas, ou quando o tribunal utiliza provas instrumentais e as regras de experiência como coadjuvantes da convicção adquirida».

Conclui-se, assim, que nenhuma censura merece a fixação da matéria de facto efetuada pelo tribunal a quo, inexistindo qualquer fundamento para, sequer, equacionar lançar mão do princípio in dubio pro reo.

            Improcede esta questão.

            Ante o exposto, mantém-se intocada a matéria de facto fixada pela primeira instância.

 

            3.3 - Erro de subsunção jurídico penal

            O recorrente insurge-se quanto à qualificação jurídica dos factos, apenas na parte em que o tribunal a quo considerou estar verificada a circunstância agravante prevista no artigo 177º, n.º 1, al. c), do Código Penal.

            Alega que no caso sub judice foi considerado pelo tribunal a quo que o assistente era incapaz de opor resistência e que o arguido se havia aproveitado dessa incapacidade por aquele ser uma pessoa particularmente vulnerável, em razão de deficiência e doença, sendo essa a única causa da sua incapacidade, já que não se refere que ficou inconsciente. Apesar disto, entendeu o tribunal a quo que o crime deveria ser agravado nos termos do artigo 177, n.º 1, alínea c), do Código Penal por o assistente ser “pessoa particularmente vulnerável em razão da doença”.

            Conclui o recorrente que o mesmo facto não pode ser parte integrante do tipo legal de crime e, ao mesmo tempo, constituir também uma agravante da pena aplicada pela prática desse crime, pelo que, a ser condenado, apenas o poderá ser pela prática do crime previsto no artigo 165º do Código Penal, não havendo lugar à predita agravação.

            Vejamos.

            Dispõe o artigo 165º do Código Penal:

“1 - Quem praticar ato sexual de relevo com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, é punido com pena de prisão de seis meses a oito anos.

2 - Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos”.

Conforme assinala Fernando João Ferreira Ramos[31], «o direito penal não deve ser um limite da liberdade sexual, mas um garante desta mesma liberdade, que há de partir do reconhecimento da plena autonomia da livre determinação pessoal em matéria sexual entre adultos e em privado, pautando a sua intervenção pelos princípios da necessidade ou dignidade penal e conduzindo também à não incriminação de condutas meramente imorais que não ofendem bens jurídicos fundamentais da comunidade». Mas, se «não é possível nem desejável sancionar penalmente a mera atividade sexual, o que é conforme ao princípio democrático que proclama pertencer ao cidadão, e só a ele, determinar o seu próprio comportamento sexual, apenas com a limitação decorrente da liberdade das outras pessoas em matéria sexual», a verdade é que cabe precisamente ao legislador sancionar penalmente os casos em que ocorre, através de uma prática sexual, a violação da liberdade sexual de outrem.

O crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência previsto no supra enunciado preceito legal tutela especificamente a liberdade e autodeterminação de pessoas inconscientes ou incapazes de formularem a sua vontade para a prática de atos com relevo sexual.

Em síntese, são os seguintes os elementos constitutivos deste tipo legal de crime:

- A prática de ato sexual de relevo, eventualmente sob a forma de cópula ou coito anal ou oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;

- Com pessoa inconsciente ou incapaz de opor resistência;

- Aproveitando-se o agente do estado ou incapacidade da vítima;

- O dolo genérico, ou seja, o conhecimento e vontade de praticar o facto, abrangendo não só o ato sexual, mas também a inconsciência ou incapacidade da vítima de opor resistência e o seu aproveitamento pelo agente.

Quanto ao primeiro referido elemento, a doutrina e a jurisprudência têm tratado amplamente a questão, sendo entendimento predominante que, no conceito de ato sexual de relevo, se incluem atos menos graves que a cópula, mas sempre atos graves, isto é, que tenham uma relação objetiva com o sexo e que sejam considerados pela comunidade em geral como gravemente ofensivos da intimidade sexual, consubstanciando comportamentos destinados à lascívia e satisfação dos impulsos sexuais.

Relativamente aos restantes elementos objetivos, neste tipo de crime o agente não quebra a resistência da vítima – nomeadamente, mediante violência –, antes se aproveita de uma já pré existente incapacidade de resistência.

Como assinala Figueiredo Dias[32], que aqui seguiremos de perto, o preceito distingue formalmente duas situações de vítima: a de esta se encontrar inconsciente e a de, por outro motivo, se encontrar incapaz de opor resistência. A esta distinção formal não corresponde qualquer diferença material. A incapacidade de opor resistência constitui o denominador comum de todas as situações típicas que ocorram com a vítima, sendo a inconsciência apenas uma delas.

E criminaliza-se tanto a situação de a vítima se encontrar incapaz de formar a sua vontade, como a de ser incapaz de a expressar, sendo indiferente que a incapacidade fique a dever-se a motivos psíquicos ou físicos, duradouros ou transitórios.

No que respeita aos motivos psíquicos, devem reconduzir-se à existência de uma anomalia psíquica, seja uma psicose, uma oligofrenia, uma psicopatia, uma neurose grave ou estados graves de perturbação da consciência, ainda que, por si não determinem a inconsciência da vítima.

Mas, o que releva para o preenchimento do tipo objetivo é a incapacidade da vítima para formar e/ou expressar a sua vontade no sentido da resistência ao ato sexual. Por isso, «não importa aqui a qualificação médica abstracta de uma doença ou de uma anomalia, mas sim o efeito concreto que dela resulta para a capacidade e vontade de resistência em determinadas condições de tempo e lugar (…)».

Com efeito, a lei penal não esclarece o que deve entender-se por pessoa incapaz. Contudo, no artigo 20º do Código Penal, define o inimputável em razão de anomalia psíquica como “quem, por força de uma anomalia psíquica for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com esta avaliação”.

Não está aqui em causa, obviamente, a avaliação da ilicitude do ato e das suas repercussões legais pelo agente agressor, mas antes a avaliação da lesão do direito à autodeterminação sexual por parte da vítima e, por isso, «pode haver anomalias psíquicas que não relevam em definitivo para a inimputabilidade, mas devam relevar para efeito de incapacidade de opor resistência ao ato sexual»[33].

Mas, ao erigir como dignas de especial tutela, no mesmo normativo legal, a pessoa inconsciente e a pessoa incapaz, o legislador inculca a ideia de que última tem que estar privada, em razão da sua anomalia psíquica, da capacidade de se opor à prática de atos sexuais de relevo, nomeadamente, de avaliar a situação e dar o seu consentimento para o efeito[34].

Assim, para o preenchimento do tipo objetivo do crime de abuso de pessoa incapaz de resistência não é suficiente que a pessoa seja portadora de uma qualquer doença psíquica ou deficit cognitivo, de maior ou menor grau, sendo indispensável que a tornem incapaz de compreender o significado e o alcance do ato sexual em causa e de expressar a sua vontade no sentido de se opor à prática do mesmo.

Em suma, não referindo o normativo legal o que deve entender-se por pessoa incapaz [por outro motivo], foi tal conceito amplo densificado pela doutrina e pela jurisprudência, no sentido de ali se compreender doença ou anomalia psíquica. Estas têm, porém, que determinar uma diminuição da capacidade da pessoa de opor resistência ao ato sexual que assuma a expressão acima delimitada, próxima da sua inexistência. Significa isto que a deficiência e a doença que tornam a pessoa incapaz, nos termos e para os efeitos supra explanados, têm que revestir enorme gravidade, no assinalado sentido.

O tipo objetivo do ilícito não se esgota com os elementos do ato sexual e da incapacidade da vítima de opor resistência, exigindo, ainda, que o agente se aproveite dessa incapacidade.

Para que exista aproveitamento não é necessário que o agente se deixe motivar pelo estado ou incapacidade da vítima. Mas também não é suficiente que o conheça. O que já é necessário e suficiente é que o estado ou incapacidade torne possível ao agente o abuso sexual ou o facilite significativamente. Daí que, sempre que a vítima seja capaz de formar e expressar a sua vontade no sentido de anuir ao ato sexual, ou inclusivamente de tomar a iniciativa dele, não há aproveitamento. E também não existirá quando, por exemplo, o ato sexual se enquadre no âmbito de uma relação de amor[35].

Atentando no caso dos autos e na factualidade apurada, é inquestionável que se mostram preenchidos todos os elementos típicos do crime em análise que supra explicitámos, maxime, a incapacidade do assistente, em razão do défice cognitivo/intelectual grave e da disfasia que apresenta, de compreender o significado e o alcance do ato sexual e de se opor à prática do mesmo, ou seja, para formar e expressar a vontade no sentido da resistência ao ato sexual perpetrado pelo arguido, que se aproveitou de tal incapacidade.

Mas, a questão controvertida no recurso prende-se com a subsunção dos factos ao tipo agravado, concretamente, à previsão do artigo 177º, n.º 1, al. c), do Código Penal, que assim dispõe:

“1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:

(…)

c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.”

Esta alínea foi aditada pela Lei n.º 101/2019, de 06.09.

Note-se que, apesar das sucessivas alterações que tem introduzido em matéria de crimes sexuais e, em especial na agravação contemplada no artigo 177º, o legislador manteve a agravação da pena correspondente ao artigo 165º sem qualquer ressalva, nomeadamente, no sentido de se aplicar a previsão da al. c) do n.º 1 [daquele 177º] apenas quando esteja em causa pessoa inconsciente. Se quisesse excecionar a aplicação aos casos em que está em causa pessoa incapaz por doença ou deficiência, designadamente, por anomalia psíquica, tê-lo-ia feito, como fez nos casos expressamente previstos no n.º 2.

A circunstância em causa traduz um desvalor mais acentuado da ação e da conduta do agente, justificando uma agravação da pena.

Obviamente, conquanto a lei não o refira expressamente, a doença e a deficiência suscetíveis de integrarem o conceito amplo de “pessoa particularmente vulnerável” hão de assumir significativa gravidade, pois só desse modo conferem a particular vulnerabilidade da vítima que justifica a predita agravação da pena.

No caso em apreço, da descrição fáctica constante dos pontos 2 a 7 transparece com nitidez que o assistente apresenta um quadro de deficiência e de doença muito grave, onde avulta, além do já referido – nomeadamente, o défice cognitivo/intelectual grave –, surdez neurossensorial de grau profundo, epilepsia e microcefalia, de que resultam as limitações melhor descritas na factualidade provada que o fazem depender de terceiros para realização das mais elementares atividades, nomeadamente, para tratar da sua higiene, para comer, para se vestir, para tomar a medicação que lhe é prescrita, para andar na rua. O seu comportamento adaptativo composto situa-se ao nível dos cinco anos e oito meses, sendo as limitações de que padece determinantes de um grau de incapacidade de, pelo menos, 80%, bem expressiva da gravidade das doenças e deficiência que o afetam.

            Assim sendo, mostra-se plenamente preenchido o conceito de “pessoa particularmente vulnerável” em razão da doença e deficiência.

            É inquestionável que, como sustenta o recorrente, não se pode atender à mesma circunstância como elemento indispensável ao preenchimento do crime e, simultaneamente, como fator de agravação da pena, sob pena de violação do princípio basilar da proibição da dupla valoração[36].

Mas, in casu, não há identidade pura ou sobreposição entre o fundamento da incriminação e a agravação – as doenças e deficiência de que padece o assistente e que o tornam pessoa particularmente vulnerável vão muito além da anomalia psíquica e disfasia que o tornam incapaz para efeito de preenchimento do tipo incriminador do artigo 165º do Código Penal.

Não se verifica, assim, qualquer violação do princípio da proibição da dupla valoração.

Improcede, pois, esta questão.

3.4 - Excessividade do quantum da pena.

O recorrente insurge-se contra a medida da pena que lhe foi irrogada, desde logo, por entender que, não podendo operar a agravação prevista no artigo 177º, n.º 1, al. c), do Código Penal, há que ter em consideração diferente moldura abstrata.

Mais sustenta que no acórdão recorrido refere-se que não prestou declarações, “pelo que não deu a si próprio a oportunidade de admitir aprática dos factos nem de manifestar arrependimento”, mas não prestar declarações é um direito que lhe assiste pelo qual não pode ser prejudicado e que não podia demonstrar arrependimento porque não praticou qualquer crime, razão pela qual não podia o tribunal a quo afirmar que não podia fazer um juízo de prognose futura favorável, nomeadamente ao nível de prevenção especial, tanto mais que nunca lhe foi imputada qualquer conduta menos correta de carácter sexual, inexistindo, por isso, qualquer perigo da prática de crimes.

Ademais, o recorrente apela às suas condições pessoais – tem apenas24 anos de idade, cresceu numbairrosocial, com um pai alcoólico e numa família sem afecto; foi “desprezado” pelos próprios irmãos; tudo isto moldou o seu carácter, tornando-o introvertido e triste, com oscilações de humor e isolando-se socialmente, resultando do relatório social que necessitaria desde cedo de apoio psicológico / psiquiátrico a que nunca teve acesso.

E com base nessa alegação conclui que «enviar um jovem com estas características para a prisão é destruí-lo e tirar-lhe qualquer possibilidade de um dia poder refazer a sua vida», pugnando por, a ser-lhe aplicada alguma pena de prisão, que a mesma seja suspensa na sua execução.

Como sobressai de forma clara da síntese efetuada, o recorrente esgrime alguns argumentos sem precisar se relevam no domínio da determinação da medida concreta da pena, se para a suspensão da execução da prisão que também peticiona e que analisaremos na próxima questão, parecendo entender, de forma equívoca, que se refletem em ambos os domínios.

Ora, a respeito do iter a seguir para determinar a pena concreta a aplicar, esclarece Figueiredo Dias que “a determinação definitiva da pena é alcançada pelo juiz da causa através de um procedimento que decorre em três fases distintas: na primeira o juiz investiga e determina a moldura penal (dita também medida legal ou abstrata da pena) aplicável ao caso; na segunda o juiz investiga e determina, dentro da moldura penal, a medida concreta (dita também judicial ou individual) da pena que vai aplicar; na terceira – (…), não necessariamente posterior, de um ponto de vista cronológico, à segunda –, o juiz escolhe (dentre as penas postas à sua disposição no caso, através dos mecanismos das «penas alternativas» ou das «penas de substituição») a espécie de pena que efetivamente deve ser cumprida”[37].

Em muito apertada síntese, determinada a moldura penal abstrata, tendo em conta o quadro legal enformador nesta matéria, há que ter em perspetiva o princípio da necessidade, da adequação e da proporcionalidade das penas consagrado no artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, as finalidades das penas previstas no artigo 40º, n.º 1, do Código Penal, a preferência pela pena não privativa da liberdade em consonância com o comando do artigo 70º do mesmo diploma sempre que esteja prevista em alternativa à pena detentiva, os vetores determinantes do limite mínimo e do limite máximo da pena contemplados no n.º 2 do artigo 40º e no n.º 1 do artigo 71º e, ainda, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente, as exemplificativamente elencadas no n.º 2 do último preceito mencionado, sendo que as descritas nas alíneas a), b), c) e e), parte final, se referem à execução do facto, as referidas nas alíneas d) e f) à personalidade do agente e a referida na alínea e) à conduta anterior e posterior ao facto e, por fim, os critérios de ponderação das penas de substituição admissíveis consoante o caso.

No caso em observação, no que tange à moldura abstrata a atender, como decorre de forma linear da análise da questão anterior, não tem o recorrente razão.

            De resto, o recorrente não põe em causa os critérios legais de determinação da pena adotados pelo tribunal a quo, que também não nos merecem censura.

O que o recorrente questiona é se podiam, ou deviam, ser ponderadas determinadas circunstâncias que sinalizou.

Comecemos por analisar a questão da ausência de assunção dos factos e de arrependimento.

A este respeito, o tribunal a quo exarou o seguinte:

«Em audiência de julgamento, o arguido optou por não prestar declarações, pelo que não deu a si próprio a oportunidade de admitir a prática dos factos, nem de manifestar qualquer arrependimento; pelo contrário, no final, limitou-se a afirmar que o que o BB narrara era mentira. Ora, a confissão e o arrependimento são importantes para o tribunal poder fazer um juízo de prognose futura favorável sobre se o arguido não tornará a delinquir. Ao não admitir os factos e ao não mostrar-se arrependido, o tribunal não poderá, por aí, fazer esse juízo de prognose futura favorável, o que tem grande importância, nomeadamente ao nível da prevenção especial».

É inquestionável que o direito de não prestar declarações constitui um dos mais elementares direitos do arguido e que este não pode ser prejudicado por o exercer [artigos 61º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal]. Tal direito insere-se no direito de não se autoincriminar e consubstancia, no nosso ordenamento jurídico, uma estratégia legítima de defesa.

Contudo, se o arguido delineou uma estratégia defensiva de se remeter ao silêncio e se vêm a provar os factos que lhe eram imputados, haverá que determinar as consequências jurídicas de tais factos, nomeadamente, a sanção penal que concretamente lhe caberá em função da culpa, das exigências de prevenção geral e especial e outras circunstâncias que lhe sejam favoráveis ou desfavoráveis, nos termos do artigo 71º, n.º 2, do Código Penal como assinalámos supra.

Nessa tarefa de determinação concreta da pena revela-se sobremaneira importante saber se o arguido efetuou algum juízo crítico de auto censura, nomeadamente, se se arrependeu da sua atuação ilícita e danosa para terceiros e se desse exercício resultou a vontade de não repetir atos idênticos, sendo que, em regra, esse processo inclui a assunção da prática dos factos – a pessoa não pode arrepender-se de factos que não assume ter cometido –, aspetos que influem no juízo sobre as exigências de prevenção especial.

Não tendo prestado declarações, o recorrente nada transmitiu ao tribunal a esse respeito. Note-se que a mera proclamação de arrependimento também não tem relevo, pois, como decorre da nossa experiência funcional, a maior parte das vezes este não é verdadeiramente sentido e a sua verbalização visa tão somente obter a benevolência do tribunal.

Daí que apenas a manifestação de arrependimento, materializada em atos concretos, nomeadamente, a assunção da prática dos factos, deponham a favor do arguido.

Ora, o tribunal a quo limitou-se a exarar que, não tendo prestado declarações [no exercício de faculdade legal], o recorrente “não deu a si próprio a oportunidade de admitir aprática dos factos nem de manifestar arrependimento” e, como tal, de beneficiar de circunstâncias que lhe seriam favoráveis.

Significa isto que o tribunal a quo não prejudicou o recorrente pelo facto de este não ter prestado declarações, apenas consignou que este não podia beneficiar da admissão dos factos e da manifestação de arrependimento.

No fundo, foi o recorrente que se prejudicou a si próprio ao apostar numa estratégia de defesa que fracassou.

Quanto à invocada falta de consideração de circunstâncias relevantes pelo tribunal a quo também não assiste razão ao recorrente.

Na verdade, como deflui da fundamentação do acórdão, o tribunal a quo ponderou as condições pessoais do recorrente e a sua situação económica «vertidas nos factos provados», donde constam os aspetos ora sinalizados no recurso, ainda que efetuando uma interpretação distinta da do recorrente quanto aos mesmos.

Outrossim, o tribunal a quo sopesou a circunstância de o arguido ter duas condenações averbadas no seu certificado de registo criminal, mas por crimes não relacionados com o que está em causa nos autos.

De resto, o recorrente não indica que outros fatores foram desconsiderados ou erradamente ponderados, nem nós os vislumbramos.

            Ora, a doutrina mais representativa e a jurisprudência, incluindo do Supremo Tribunal de Justiça[38], têm sufragado o entendimento de que a sindicabilidade da medida da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respetivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos fatores de medida da pena, mas «não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.[39]

Assim, o tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, «apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.

A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato da pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada.»[40]

Assim, no caso dos autos, improcedendo a argumentação esgrimida pelo recorrente e não se vislumbrando qualquer erro quanto aos critérios legais observados, incorreção dos fatores atendidos ou distorção da sua ponderação, a fixação da pena de prisão em 6 (seis) mostra-se adequada e proporcionada, não reclamando qualquer intervenção corretiva por parte deste tribunal ad quem.

Improcede, pois, também esta questão.

3.5 - Suspensão da execução da pena de prisão

Como se assinalou a propósito da questão anterior, o recorrente pugna, ainda, pela suspensão da execução da pena de prisão sem avançar argumentos específicos para tanto, pois limitou-se a tecer considerações sobre as suas condições pessoais, de forma genérica, para justificar, quer a sua pretensão de a pena ser fixada em quantum inferior, quer a predita suspensão da sua execução.

Não obstante, a deficiência da alegação é irrelevante porquanto, tendo a pena de prisão sido fixada em medida superior a 5 (cinco) anos, é insuscetível de suspensão.

Com efeito, estatui o artigo 50º, n.º 1, do Código Penal que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Assim sendo, e sem necessidade de mais considerações, forçoso é concluir que se mostra prejudicada a apreciação da enunciada questão.

          

3.6 - Injustificação da aplicação das penas acessórias

            Alega o recorrente, de forma lapidar, que não se justifica a aplicação das penas acessórias previstas nos artigos 69-B, n.º 1, e 69-C, n.ºs 1 e 4, do Código Penal, «sendo que, relativamente a estas sanções nem sequer se poderiam aplicar por não estarem preenchidos os respectivos pressupostos (conexão com a função exercida pelo agente)».

            Vejamos.

          Como é apanágio de um estado de direito democrático como o nosso, o legislador tem uma ampla margem de liberdade na fixação das sanções correspondentes aos comportamentos que decidiu tipificar como crimes[41] e na escolha da pena ou penas aplicáveis aos diferentes crimes, quer na sua identidade e regime, quer na sua medida abstrata (penalidade, pena aplicável ou moldura penal), embora respeitando sempre os princípios constitucionais, entre os quais se destacam o da necessidade das penas, o da proporcionalidade e o da igualdade.

            Pese embora no artigo 30º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa se estabeleça que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos”, comando acolhido no n.º 1 do artigo 65º do Código Penal, o n.º 2 deste preceito estatui que “a lei pode fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões” [n.º 2].

A proibição de efeitos automáticos das penas tem por escopo obviar à estigmatização do delinquente condenado, promovendo a sua reinserção social[42]. Trata-se de proibir que o facto de ser punido conduza à perda de direitos cívicos, sociais ou profissionais, desligada de qualquer ponderação e de qualquer juízo de necessidade para acautelar o interesse público. Visa tal princípio estruturante obviar ao efeito estigmatizante das sanções penais e impedir a violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade das penas, impondo a ponderação, em concreto, da adequação da gravidade do ilícito à da culpa e afastando-se a possibilidade de penas fixas ou ex lege.

Mas, visando proteger determinados interesses juridicamente tutelados colocados em perigo com a prática de alguns crimes, além da pena principal podem ser impostas penas acessórias, as quais constituem instrumentos reforçados de política criminal.

Conquanto as penas acessórias constituam verdadeiras penas, pressupõem, necessariamente, que seja irrogada uma pena principal, dependendo a sua aplicação da verificação de pressupostos autónomos, em função de cada crime, da existência de uma moldura abstrata privativa e da valoração dos critérios gerais de determinação das penas criminais. Daí a pena acessória nada ter a ver com o efeito da pena, isto é, a consequência automática e necessária do crime aplicável em cumulação com a pena principal».

            Como ensina Figueiredo Dias[43], no que para o caso interessa, será imperioso, em cada situação concreta de uma condenação pela prática de um crime de natureza sexual, comprovar, no todo comportamental protagonizado pelo agente, um particular conteúdo do ilícito que justifique materialmente a aplicação da pena acessória em causa.

            O que se enquadra igualmente em indeclináveis exigências de proporcionalidade (maxime, entre os valores inerentes à aplicação da justiça penal e a compressão de direitos em que essa mesma aplicação se traduz), desde logo decorrentes da norma do artigo 18º, n.º 2, da lei fundamental.

            Somos, assim, remetidos para uma análise casuística das circunstâncias em equação.

Desta feita, no caso dos autos, tendo em conta a factualidade provada, a subsunção jurídico penal que mereceu e as considerações aduzidas no acórdão recorrido a respeito da gravidade do ilícito e da culpa do ora recorrente e outros vetores relevantes para a fixação da pena principal, resulta patente, a nosso ver, a adequação e a proporcionalidade da aplicação àquele das penas acessórias decretadas pelo tribunal a quo.

Refira-se que, ao contrário do que sustenta o recorrente, a conexão entre o facto e a função exercida pelo agente é apenas um dos vetores a sopesar, quando disso seja caso, não sendo requisito de aplicação da pena acessória prevista no artigo 69º-B, n.º 1.

No caso vertente, inexistindo tal conexão – conforme exarado no ponto 24 da factualidade provada, desde os 24 anos de idade que o arguido não tem qualquer inserção laboral –, ela não podia ser valorada, não sendo, porém, repisa-se, condição de aplicação da pena acessória em causa.

            Improcede, assim, também esta questão.

            3.7 - Ausência dos pressupostos da obrigação de indemnizar.

            Sustenta, por fim, o recorrente que, não tendo praticado o crime de que vinha acusado, não causou qualquer dano ao assistente/demandante, razão pela qual não se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar previstos no artigo 483, n.º 1, do Código Civil, devendo ser absolvido do pedido de indemnização cível.

            Sucede que, como vimos analisando, ao contrário do pretendido pelo recorrente, manteve-se inalterada a factualidade provada fixada pela primeira instância, que integra a prática de ilícito criminal, de que resultaram danos para o assistente.

            Não se verifica, pois, a premissa de que parte o recorrente e com base na qual afirma que não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos.

            Ademais, decorre da decisão recorrida que, em face da materialidade fáctica provada, se mostram reunidos tais pressupostos, pelas razões aí explicitadas.

            Mostra-se, assim, prejudicada a apreciação da enunciada questão.


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            III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto nos autos pelo arguido e, em consequência, manter o acórdão recorrido.

            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 4 (quatro) unidades de conta [artigos 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma].


*

            Notifique [artigo 425º, n.º 6, do Código de Processo Penal].

*

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(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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Coimbra, 09 de abril de 2025

 Isabel Gaio Ferreira de Castro

[Relatora]

Rosa Pinto

[1.ª Adjunta]

Helena Lamas

 [2.ª Adjunta]


[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.


[2] Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 15/10/2008, Proc. 08P2864, www.dgsi.pt;

[3] Proc. 156/08.4TASLV.E1, www.dgsi.pt;


[4] Ac. do Trib. da Rel. do Porto, de 10/04/2013, Proc. 2361/09.7TAVLG.P1, www.dgsi.pt;
[5] Idem, pág. 447;

[6] SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, Código Penal Anotado, 3.ª ed., II, Parte Especial, 2000, pág. 368;
[7] Cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 449;
[8] JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pág. 472 e 473;
[9] JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pág. 477;
[10] Idem, pág. 478 e 479;
[11] Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/10/2011, Proc. 19/05.5JELSB.S1, www.dgsi.pt;
[12] JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, ob. Cit., pág. 480;
[13] JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português- As consequências jurídicas do crime, pág. 331;
[14] Ac. do Trib. da Rel. de Lisboa, de 17/04/2013, ob. e loc. cit;
[15] Ac. do Trib. da Rel. de 18/05/16, Proc. 232/12.9GEACB.C2, www.dgsi.pt;
[16] Idem.
[17] Cfr., entre outros, Damião Cunha, «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37; Paulo Saragoça da Matta, «A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença - Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais», pág. 253.
[18] Vide, neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2005 e de 09-03-2006, acessíveis em www.dgsi.pt
[19] Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.07.2017, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[20] In D.R. n.º 77, Série I, de 18-04-2012
[21] Vide Figueiredo Dias, in "Direito Processual Penal", 1º volume, Coimbra, ed. 1974, págs. 203 a 205.
[22] Cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 464/97, publicado no DR, II Série, de 12.01.1998
[23] Vide Alberto Ruço, “Prova Indiciária”, Coimbra, 2013, pág. 9
[24] Cfr. O acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23.02.2016, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[25] Vide acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.09.2017 e de 09.01.2012 e do Tribunal da Relação de Évora de 21.04.2015, disponíveis em www.dgsi.pt.
[26] Proferido no proc. nº 07P4375, acessível em www.dgsi.pt
[27] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º volume, reimpressão, Coimbra, 1984, páginas 203 a 205.
[28] Cfr. Figueiredo Dias, “Ónus de Alegar e de Provar em Processo Penal?”, Revista de Legislação e de Jurisprudência 105 (1972-73), págs. 140 e 141.
[29] Vide Cristina Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra Editor, 1997
[30] Vide, para maior desenvolvimento, Ramon Ragués Vallès, El dolo y su prueba en el proceso penal, J. M. Bosch Editor – Barcelona, 1999, págs. 291 a 295
[31] In Revista do Ministério Público, n.º 59, pág. 29 e ss..
[32] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 477.
[33] Cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.07.2001, in CJ, 2001, pág. 163.
[34] Neste sentido, vide o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.04.2013 [processo 2361/09.7TAVLG.P1], acessível em http://www.dgsi.pt

[35] Cfr. Mouraz Lopes, in “Os Crimes contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal”, 2ª ed., pág. 50.

[36] Neste sentido, ainda que a respeito de diferente circunstância – dade – veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.05.2023 [processo 24/23.0GAMFR-A.E1], disponível para consulta em http://www.dgsi.pt

[37] In Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Lisboa-1993, pág. 256. No mesmo sentido, Maia Gonçalves, Código Penal Português – Anotado e Comentado, Almedina, Coimbra – 1998, pág. 247
[38] Cfr. acórdãos do STJ de 09-05-2002, in CJ do STJ, 2002, Tomo II, pág. 193, de 14-2-2007 (relatado por Santos Cabral), de 11-10-2007 (relatado por Carmona da Mota), 27-05-2009 e de 16-6-2010 (relatados por Raúl Borges), acessíveis em www.dgsi.pt
[39] Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídica do Crime, 1993, §254, p. 197. Cfr., também, Anabela M. Rodrigues, A determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, 1995, págs. 97-106.
[40] Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.09.2017, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[41] Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 197, para quem 'resta um amplo campo à discricionariedade legislativa em matéria de definição das penas'.
[42] Figueiredo Dias, “O sistema das «penas acessórias» no novo Código Penal Português”, Criminología y Derecho Penal al servicio de la persona Libro-Homenaje al Profesor Antonio Beristain, 1989, p. 504
[43] In “Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime”, pág. 158