FLAGRANTE DELITO
DESCONTO DO DIA DE DETENÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário

1 - Não decorre da lei nem da jurisprudência fixada que o desconto a que alude o art 80º do CP tenha, necessária e obrigatoriamente, de ser ordenado na sentença, embora tal seja aconselhável se estiverem reunidas as condições para o efeito, sendo inquestionável que pode ser determinado posteriormente por despacho, obviamente recorrível.
2 - Assim, não foi violado comando do artigo 80º, n.º 2, do Código Penal, por na sentença não se ter o tribunal a quo pronunciado a esse respeito, o que poderá ser feito em despacho posterior, prévio à liquidação da pena de multa.

Texto Integral

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Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. - RELATÓRIO

1. - No âmbito do processo abreviado que, sob o n.º 132/23.7GDCBR, corre termos no Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, foi proferida sentença rematada pelo seguinte dispositivo [transcrição[1]]:

«1. Condeno o arguido AA, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292º, do Código Penal, na pena de 55 (cinquenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a multa no montante global de € 330,00 (trezentos e trinta euros).

2. Condeno o arguido na proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria, pelo período de três meses, nos termos do artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal.

3. Condeno o arguido nas custas do processo, com taxa de justiça que fixo em uma UC, já reduzida a metade por força da confissão.

4. Notifico o arguido para, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da presente sentença, entregar na Secretaria deste Tribunal ou num posto policial, que a remeterá àquela, a respectiva carta de condução, com a advertência de que não o fazendo, será determinada a sua apreensão, (art. 500º, nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal), e incorrerá na prática de um crime de desobediência».

 2. - Inconformado, o arguido interpôs recurso nos seguintes termos [transcrição]:
               «OBJECTO E DELIMITAÇÃO DO RECURSO:
               O presente recurso tem por objecto:
               A nulidade da sentença atenta a violação do disposto no art.º 80.º CP.
               VENERANDOS JUÍZES DESEMBARGADORES


               É a seguinte a MOTIVAÇÃO DO RECURSO:

               Dispõe o art. 80.º do Código Penal o seguinte:
               1 - A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
               2 - Se for aplicada pena de multa, a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas à razão de 1 dia de privação da liberdade por, pelo menos, 1 dia de multa.

               Com efeito, a referida norma legal manda descontar na pena aplicada ao ora recorrente o tempo de privação da liberdade do condenado, por força da sua submissão a detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação.

               Ora, aquando da prática dos factos em 29/04/2023, o recorrente foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 385.º, n.º 2 CPP, para comparecer no dia 02/05/2023, perante o Ministério Público, tendo este efectivamente comparecido, conforme resulta do auto de interrogatório de arguido datado de 02/05/2023 de fls. (….) dos autos.

               Pelo que a referida norma legal impunha que tal tempo de privação de liberdade fosse descontado na pena que lhe foi aplicada.

               Ora, ao ignorar-se tal decorrência legal, deixou o Tribunal a quo de pronunciar-se sobre questão que lhe incumbia conhecer – dado que a mesma implica actividade de valoração pelo Tribunal, o que torna a sentença nula, nos termos da al. c) do n.º 1, do artigo 379.º do CP Penal.

               Ascende à Douta Cognição desse Superior Tribunal ad quem o presente recurso, que vai interposto da Douta Sentença condenatória, que, desconsiderando que o arguido foi detido em flagrante delito e portanto privado de liberdade por um dia, não procedeu ao desconto de um dia, a final, na pena de 55 dias que lhe foi aplicada.

               Foi assim violado com a decisão em apreço o artigo 80.º, n.º 2 do CP.

               CONCLUSÕES:
               ÚNICA: A sentença recorrida não efectuou o desconto de um dia na pena pela detenção do arguido, violando assim o disposto no artigo 80.º, n.º 2 do CP.
               Nestes termos e nos melhores de direito, deve tal decisão ser alterada, descontando-se tal dia na pena aplicada, como é de Direito e de JUSTIÇA!»
              

3. - A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu ao recurso nos seguintes moldes:

«(…)

Insurge-se o arguido com a circunstância de, na sentença, não ter sido efectuado o desconto do dia de detenção sofrido, por ocasião do flagrante delito, nos termos do art. 80.º, n.º 1, do Cód. Penal.

A operação do desconto surge num momento posterior – o da execução da pena, tendo como pressuposto que a decisão de condenação transitou em julgado. Para o efeito, é até dado o contraditório ao arguido, antes de a liquidação da pena de multa ser efectuada. Nesse sentido se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação Lisboa, de 11.07.2013, processo n.º 153/03.6GEBNV-D.L1-9.

Não tem assim cabimento o recurso do arguido, uma vez que o dia de detenção que haja de ser descontado operará após o trânsito da sentença condenatória, em despacho judicial autónomo, não padecendo a sentença, por conseguinte, de qualquer vício.

Face ao exposto, mantendo a decisão recorrida, V.ªs Ex.as farão JUSTIÇA!»

4. - Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer que aqui se transcreve parcialmente:

«(…)

4. O Ministério Público na 1ª instância apresentou bem fundamentada resposta, defendendo que o dia de detenção sofrido não deve ser descontado na pena, mas, como se refere no art. 80º, n.º 1, do Código Penal, no cumprimento da pena, isto é, em momento posterior ao trânsito em julgado da sentença, em sede de execução da pena.

5. Sufragamos a argumentação da Sra. Procuradora da República na 1ª instância, no sentido da improcedência do recurso, o que nos dispensa de considerações adicionais.

6. Assim, e pelo exposto, emite-se parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente mantendo-se a decisão recorrida.»

5. - Cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao predito parecer.

            6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.


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            II. – APRECIAÇÃO

1. - Na sentença, previamente ao dispositivo supra transcrito, exarou-se o seguinte no capítulo referente à “escolha e medida da pena a aplicar” [transcrição]:

Cumpre agora determinar a natureza e a medida concreta da pena a aplicar ao arguido pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, o qual é punido em alternativa com prisão ou multa.

No que diz respeito à escolha da pena, rege a este propósito o critério geral contido no artigo 70º do Código Penal, segundo o qual “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Este critério geral ancora-se nos princípios da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiariedade da pena de prisão, tendo em vista, no caso, as finalidades das penas.

As penas criminais têm por finalidade essencial a “protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, de acordo com a norma constante do n.º 1 do artigo 40º do Código Penal.

No caso em apreço, atendendo ao facto de o arguido não ter averbada no seu CRC qualquer condenação, e gozar de inserção profissional, familiar e social, entende-se que a pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que se opta pela aplicação da pena de multa.


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Cumpre, agora, proceder à determinação da medida concreta da pena.

Dispõe o art. 40.º, do Código Penal que “a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1) e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (n.º 2).

O art. 71.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, dispõe, por seu turno, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

Dos citados preceitos legais, extrai-se que a medida concreta da pena tem como parâmetros: a) a culpa, cuja função é a de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; b) a prevenção geral (de integração), à qual cabe a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; c) a prevenção especial, à qual caberá a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente.

Temos, pois, que a culpa e a prevenção constituem os dois termos do binómio que importa ter em conta para encontrar a medida correcta da pena.

É, pois, à luz de tais princípios, que terá de ser encontrada a pena adequada ao caso concreto.

Assim, temos que:

- É de grau mediando a ilicitude dos factos, traduzido no modo de execução destes, vista a taxa de alcoolemia apresentada pelo arguido;

- O arguido agiu com culpa dolosa, sendo o dolo directo, intenso;

- As necessidades de prevenção geral são acentuadas, uma vez que a condução de veículos em estado de embriaguez está associada aos elevados índices de sinistralidade rodoviária verificados no nosso país, o que causa natural alarme social;

- As necessidades de prevenção especial não se denotam com acuidade, uma vez que o arguido não tem averbada qualquer condenação no seu CRC, e goza de inserção profissional, familiar e social.

- O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado. 

Sopesando tais factos, entende-se como adequada a pena de 55 dias de multa.

Na determinação da medida da pena acessória o tribunal dá aqui como reproduzidas as considerações vertidas quanto à determinação da medida da pena principal, frisando que a ilicitude é mediana, a culpa é elevada, as necessidades de prevenção geral são muito acentuadas, e as necessidades de prevenção especial não se denotam com alguma acuidade.

Entende-se, assim, adequada a fixação da pena acessória em três meses.


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Na fixação da taxa diária da pena de multa, dentro dos limites e critérios definidos no art. 47º, nº 2 do Código Penal, atende-se à situação sócio-económica, profissional, e composição do agregado familiar do arguido, ponderando-se a actividade profissional que desenvolve, e as despesas mensais que tem, não se podendo deixar, ainda de referir, que o montante diário da pena de multa não dever ser doseado para que tal pena não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os Tribunais e a própria Justiça, gerando um sentimento de injustiça, de insegurança, de inutilidade e de impunidade.

Sopesando tais factores julga-se adequada a fixação da taxa diária no montante de € 6,00.»

            2. - O recorrente alega, em síntese, no recurso que interpôs, que o artigo 80º do Código Penal manda descontar na pena aplicada o tempo de privação da liberdade do condenado, por força da sua submissão a detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação, que aquando da prática dos factos, em 29/04/2023, foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 385.º, n.º 2, Código de Processo Penal, para comparecer no dia 02/05/2023, perante o Ministério Público, tendo efetivamente comparecido, conforme resulta do auto de interrogatório de arguido datado de 02/05/2023; a referida norma legal impunha que tal tempo de privação de liberdade fosse descontado na pena que lhe foi aplicada; ao ignorar-se tal decorrência legal, deixou o tribunal a quo de se pronunciar sobre questão que lhe incumbia conhecer – dado que a mesma implica atividade de valoração –, o que torna a sentença nula, nos termos da al. c), do n.º 1, do artigo 379.º do Código de Processo Penal. Mais aduz que, ao desconsiderar-se que o recorrente foi detido em flagrante delito e, portanto, privado da liberdade por um dia, não se procedendo ao desconto de um dia, a final, na pena de 55 dias que lhe foi aplicada, foi violado o disposto no artigo 80º, n.º 2, do Código Penal.

            Formula uma única conclusão - «A sentença recorrida não efectuou o desconto de um dia na pena pela detenção do arguido, violando assim o disposto no artigo 80.º, n.º 2 do CP.»

            Ou seja, apesar de aludir à nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal, o recorrente não verteu tal alegação na única conclusão que formulou, nem extraiu a devida consequência daquela nulidade no pedido final.

            Limitou-se a concluir que ao não se efetuar na sentença o sobredito desconto violou-se o preceituado no artigo 80º, n.º 2, do Código Penal, peticionando seja a decisão ser alterada, descontando-se um dia na pena aplicada.

            3. – Conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, do Código de Processo Penal, é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, nas quais sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido, que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo, naturalmente, das questões que devem ser conhecidas oficiosamente.

Concretamente, dispõe o artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que “[a] motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

Assim, como enfatiza o Professor Germano Marques da Silva, «[s]ão só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem a apreciar»[2].

Contudo, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[3]].

O objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente e, outras, de conhecimento oficioso[4].

Assim, no presente recurso, a única questão a solver é se o desconto a que alude o artigo 80º do Código Penal deve obrigatoriamente ser efetuado na sentença condenatória, sem prejuízo de, assim se entendendo, se concluir pela nulidade da sentença, que é de conhecimento oficioso, nos preditos termos.

           

            4. - Estatui atualmente o artigo 80º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04.09:

            “1 - A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.

            2 - Se for aplicada pena de multa, a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas à razão de um dia de privação da liberdade por, pelo menos, um dia de multa.”

                Segundo Figueiredo Dias, «O instituto do desconto, regulado nos artigos 80.º a 82.º, assenta na ideia básica segundo a qual privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha já sofrido em razão do facto ou factos que integram ou deveriam integrar o objecto de um processo penal devem, por imperativos de justiça material, ser imputadas ou descontadas na pena a que, (…), o agente venha a ser condenado»[5].

            Em sentido idêntico se pronunciou Maria da Conceição Ferreira Da Cunha[6], salientando que, face a tensões entre princípios do direito penal, «algumas ordens jurídicas optaram por abrir certas excepções ao instituto do desconto, enquanto que outras, como é o caso português, consagraram-no sem excepções, dando prevalência aos imperativos de justiça material». Explicita que o problema, em tese, coloca-se mais, em certos casos, no critério de compensação adotado, do que nas exceções. A adoção de critérios de compensação de sacrifícios, de natureza mais aritmética, fará prevalecer as exigências de justiça material, ao passo que a adoção de critérios mais equitativos será mais própria de uma ideia de satisfação de exigências de prevenção, que se fazem prevalecer. Em alguns casos, porém, haverá uma certa coincidência entre exigências de justiça e necessidades de prevenção e, de todo o modo, o sacrifício total da justiça material nunca favorece as exigências de prevenção.

                O nosso sistema penal dá prevalência ao imperativo de justiça, impondo que se desconte por inteiro na pena a cumprir o tempo de privação de liberdade de «qualquer tipo» (prisão preventiva, obrigação de permanência na habitação e mesmo detenção) que o agente haja sofrido por conta do facto ou factos que integram ou deviam integrar o objeto do processo e, atualmente, mesmo que as medidas hajam sido aplicadas em processo diferente daquele em que foi proferida a condenação, nos termos indicados na parte final do atual n.º 1 do artigo 80.º do Código Penal.

            Atenta a razão de ser do instituto em causa e dos seus fundamentos, o desconto não configura uma faculdade atribuída ao arguido, que pode optar por usá-la ou por recusá-la, antes se apresenta como imperativo, sendo necessariamente aplicado quando se verifiquem os respetivos pressupostos[7].

            A enunciada disposição legal não refere, porém, se tal desconto terá de ser efetuado obrigatoriamente na sentença, como defende o recorrente, ou se poderá ser efetuado em despacho posterior, na fase da execução da pena, questão que ora nos importa dilucidar.

            A doutrina e a jurisprudência não são consensuais na resposta a tal questão.

            Leal-Henriques e Simas Santos[8], em nota ao artigo 80º do Código Penal, na redação anterior, dada pelo DL n.º 48/95, de 15.03, aduziam o seguinte:

            «É ao juiz, e só a ele, que compete efectuar o desconto da prisão preventiva, em princípio na própria decisão condenatória. Efectivamente, a expressão «no cumprimento da pena» do n.º 1, introduzida pela Comissão Revisora, leva a que o juiz deva condenar na pena que cabe ao caso concreto, sem considerar o desconto a efectuar, explicitando depois, na sentença ou em despacho, quanto deve ser descontado.

            Com o n.º 2 procurou-se preencher uma lacuna do Projecto e, do mesmo passo, tratar equitativamente os casos em que tendo sido o arguido condenado em multa, há medidas processuais a descontar».

            Por seu turno, em idêntico exercício de anotação ao artigo 80º do Código Penal, mas na atual redação, observam Victor Sá Pereira e Alexandre Lafayete[9]:

            «3. Decorre do n.º 1 e é lógica e cronologicamente exacto, que num primeiro momento se condena e num outro, posterior, se faz o desconto. Este, entretanto, pode ter lugar através do mesmo acto, ou seja, na própria decisão condenatória, mas pode também ocorrer por via de decisão posterior: O STJ, a respeito e em consonância, já decidiu: «o desconto da prisão preventiva não tem que ter lugar na decisão condenatória, resultando imperativamente da lei» (BMJ, 345/228). Obviamente no sentido da não preclusão do desconto naquela não operado. Como, aliás, não poderia deixar de ser.

            4. O n.º 2 refere-se à multa fixada em dias, na qual, se caso disso, se descontarão detenção, prisão preventiva e/ou obrigação de permanência na habitação, «à razão de 1 dia de privação de liberdade por, pelo menos, 1 dia de multa». (Há uma razão que não se reporta necessariamente a uma igualdade entre os dias de multa e os dias de privação de liberdade. E a expressão pelo menos é significativa. A lei, pois, atribui ao juiz a concreta definição daquela razão. Com particular acuidade ao nível da obrigação de permanência na habitação e da eventualidade de multa em quantia.) Entretanto, outros casos atendíveis de desconto estão contemplados na acima referida disposição do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março; a saber: a) multa em quantia dá lugar ao desconto que «parecer equitativo»; e b) o mesmo desconto também ocorrerá quando se trate de «prisão e multa em quantia». Com efeito, prevenindo-se hipóteses de subsistência de penas de multa de quantia determinada, em legislação extravagante, há que atender à norma do artigo 8.º do mencionado Decreto-Lei n.º 48/95: “Se for aplicada pena de multa em quantia ou de prisão e multa em quantia e o desconto a que se refere o artigo 80.º do Código Penal dever incidir sobre a pena de multa, efetuar-se-á o desconto que parecer equitativo”.

            Porém, sobre esta matéria, Figueiredo Dias[10] sustenta que o instituto do desconto deverá ser tratado do ponto de vista sistémico como um “caso especial de determinação da pena”, e não como uma mera regra legal de execução. Isto porque, se é verdade que o desconto é “obrigatório”, nem sempre é automático no sentido de legalmente pré-determinado, porquanto vezes há, como acontece no caso da pena de multa, em que desconto será feito à razão de 1 dia de privação da liberdade por, pelo menos, 1 dia de multa, procedendo assim o juiz a um desconto que lhe pareça equitativo, transformando o quantum da pena a cumprir. E neste sentido deveria o desconto ser determinado na sentença.

            Assim, no que se refere à pena de prisão, designadamente não estando em causa processos diferentes, tem sido entendimento maioritário que o desconto constitui mera regra de execução, que resulta imperativamente da lei, pelo que não tem que ser ordenado na decisão condenatória para ser tomado em conta no cumprimento da pena. Note-se que o artigo 479.º do Código de Processo Penal prevê o critério de contagem do tempo de prisão, mas não se refere expressamente ao desconto. Porém, na ausência de outra norma, o desconto terá de ser efetuado de acordo com o previsto naquele preceito – assim, a contagem do tempo de prisão faz-se em anos, meses e em dias. Por isso, a prisão ou detenção ocorrida por período de tempo inferior a 1 dia ou a 24 horas há de corresponder à unidade de tempo mais pequena nele prevista, isto é, um dia, sendo esta é a melhor interpretação conforme à constituição, com respeito pelo direito à liberdade previsto no artigo 27º da Constituição da República Portuguesa[11].

            Já no que diz respeito ao desconto, na pena de multa, da detenção sofrida pelo arguido, o critério legal fornecido pela lei não é tão linear, reclamando um juízo valorativo por parte do tribunal. Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.11.2008, «o juiz terá de fazer o que se lhe afigurar equitativo, porquanto a expressão “pelo menos” do artigo 80.º, n.º 2, do CP significa que 1 dia de prisão pode equivaler a mais de 1 dia de multa».[12] Também nesse sentido aponta o artigo 49º, n.º 1, do Código Penal  relativamente à conversão da pena de multa não paga em prisão subsidiária, em que a 3 (três) dias de multa correspondem 2 (dois) dias de prisão.

            Por isso, há quem defenda que é aconselhável ou desejável que o desconto seja mencionado na sentença condenatória, para que fique desde logo determinado o exato quantum da multa e, assim, definida a verdadeira situação “jurídico-penal” do arguido[13].

            Mas há, até, quem sustente que, em qualquer dos casos, o desconto é uma operação que compete ao tribunal de julgamento, na sentença condenatória, sendo autonomamente recorrível a decisão relativa ao desconto e que a omissão de decisão sobre o desconto na sentença constitui uma nulidade do artigo 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, na medida em que a operação implica uma valoração do tribunal[14].

            No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2011, de 23 de novembro[15], escreveu-se, a dado passo o seguinte:

            «16 - Seja qual for a posição que se adopte quanto à natureza jurídica do desconto - caso especial de determinação da pena ou regra legal de execução da pena (30) -, mesmo sendo ele obrigatório e legalmente predeterminado, justifica-se plenamente o tratamento sistemático do instituto do desconto no quadro da determinação da pena porque o desconto transforma o quantum da pena a cumprir; embora a pena, na sua espécie e gravidade, esteja definitivamente fixada antes de o tribunal considerar a questão do desconto, o que é certo é que a gravidade da pena a cumprir é também determinada pela decisão da questão do desconto (31).

            Tudo leva, assim, a que o desconto - mesmo quando legalmente predeterminado - deva ser sempre mencionado na sentença condenatória (32).

            Nos casos em que o desconto a efectuar decorra de detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido em processo distinto, as, eventuais, dificuldades ou demoras na recolha dos elementos necessários à sua comprovação e determinação poderão, frequentemente, conduzir a que o desconto não seja mencionado na sentença condenatória.

            A ser assim, o desconto deve ser ordenado em decisão judicial posterior, nomeadamente no momento da homologação do cômputo da pena (33) ou, mesmo, mais tarde, rectificando-se, então, a anterior contagem».

            Como se vê, nem a lei impõe, nem decorre da jurisprudência fixada, que o desconto tenha, necessária e obrigatoriamente, de ser ordenado na sentença, embora tal seja aconselhável se estiverem reunidas as condições para o efeito, sendo inquestionável que pode ser determinado posteriormente por despacho, obviamente recorrível[16].

            Com efeito, desde logo, de acordo com a expressão normativa, o desconto é efetuado no cumprimento – e não na pena[17]. A locução adverbial utilizada pelo legislador constitui um argumento literal que aponta claramente para a fase da execução da pena, ou seja, para um momento posterior à condenação.

            Aliás, há casos em que o desconto não pode ser determinando na sentença, como acontece quando é aplicada pena de prisão suspensa na sua execução. Só haverá lugar a desconto se esta vier a ser revogada, findo o prazo da suspensão – que pode atingir o máximo de cinco anos – ou antecipadamente – em casos menos frequentes. Naturalmente, só na fase da execução da pena haverá lugar ao desconto que se imponha, segundo as circunstâncias que então se apurem, que poderão ser muito distintas daquelas que existiam à data da prolação da sentença, pelo que, nessa medida, até a mera menção, na sentença, da necessidade de, oportunamente, se proceder a desconto de acordo com os dados até ali conhecidos, poderá estar perfeitamente desatualizada.

            Ademais, conforme decorre da experiência judiciária, com muita frequência apenas na fase de cumprimento de pena se adquire conhecimento de situações de privação da liberdade, sofridas noutros processos, que determinam a necessidade de efetuar o desconto. Nessa ocasião, colhidas as informações necessárias, com a vantagem de poder ser cumprido o contraditório, será proferido despacho, efetuando a valoração que se imponha, do qual poderá ser interposto recurso em caso de discordância dos sujeitos processuais.

            Ante o exposto, conclui-se que, in casu, não foi violado comando do artigo 80º, n.º 2, do Código Penal, por na sentença não se ter o tribunal a quo pronunciado a esse respeito, o que poderá ser feito em despacho posterior, prévio à liquidação da pena de multa.

            Outrossim, não sendo questão a apreciar obrigatoriamente na sentença, não padece esta da alegada nulidade por omissão de pronúncia, nos termos previstos no artigo 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.

            Improcede, assim, o recurso interposto.


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            III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto nos autos pelo arguido e, em consequência, manter a sentença recorrida.

            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta [artigos 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma].


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            Notifique [artigo 425º, n.º 6, do Código de Processo Penal].

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(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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Coimbra, 09 de abril de 2025

 Isabel Gaio Ferreira de Castro

[Relatora]

Helena Lamas

 [1.ª Adjunta]

Fátima Sanches

 [2.ª Adjunta]


[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.


[2] In Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág. 340.
[3] Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[4] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e 336; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
[5] In Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 434, págs 297-298)
[6] In «Desconto das medidas processuais privativas de liberdade - Análise de algumas questões», Juris et de Jure - Nos 20 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Porto 1998, págs. 873-899
[7] Neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.04.2022 [Processo nº 331/17.0PBFIG-A.P1], acessível em http://www.dgsi.pt
[8] In Código Penal, 1.º Volume, 2.ª Edição, Editora  Rei dos Livros, pág. 631
[9] In Código Penal Anotado e Comentado, 2.ª Edição, pág. 268
[10] In Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra editora 2005, págs.297 -299
[11] Cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.09.2018, acessível em http://www.pgdl.pt
[12] Processo 281/07.9PANZR.C1, disponível em www.dgsi.pt
[13] Neste sentido, vejam-se os acórdãos do TRL de 21-03-2013, CJ, 2013, T2, pág.143, do Tribunal da Relação de Évora de 18.02.2003, CJ, Ano XXVII, 2003, Tomo I, pág. 264, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.03.1994, CJ, Ano XIX, Tomo II, pág. 42
[14] Neste sentido, vide Paulo Pinto Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 5.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, págs. 434/5
[15] Publicado no Diário da República n.º 225/2011, Série I de 2011-11-23, que fixou a seguinte jurisprudência: «Verificada a condição do segmento final do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal - de o facto por que o arguido for condenado em pena de prisão num processo ser anterior à decisão final de outro processo, no âmbito do qual o arguido foi sujeito a detenção, a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação -, o desconto dessas medidas no cumprimento da pena deve ser ordenado sem aguardar que, no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, seja proferida decisão final ou esta se torne definitiva.».
[16] Cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 08.10.2018 [processo 6/18.3PTGMR.G] e do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.07.2013, 153/03.6GEBNV-D.L1-9, acessíveis em www.dgsi.pt.
[17] Ao contrário do que sucede, por exemplo, com o perdão de pena, que é aplicado nesta.