CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
PRAZO
INTERPRETAÇÃO DO ART 68º
Nº 3
AL C) DO CPP
Sumário

1. Na fase da instrução, o ofendido tem de requerer a sua constituição como assistente no prazo correspondente da alínea a) do nº 3 do artigo 68º do CPP.
2. Na fase de julgamento, o ofendido tem de requerer a sua constituição como assistente no prazo correspondente da alínea a) do nº 3 do artigo 68º do CPP.
3. Em 2015 o legislador introduziu a possibilidade de ser requerida a constituição como assistente no prazo para interposição de recurso da sentença – al. c) do nº 3 do artigo 68º do C. P. Penal – omitindo deliberadamente idêntica possibilidade para recurso de decisão instrutória, omissão que por não ser acidental, não admite integração analógica.
4. A sentença e o despacho de não pronúncia têm natureza e estrutura diferentes, pelo que, se o legislador quisesse abranger o despacho de não pronúncia na nova alínea, te-lo-ia feito constar expressamente da alínea c) do artigo 68º do CPP quando procedeu à alteração operada pela Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro.
5 - Em suma, o ofendido que não se constituiu como assistente até cinco dias antes do debate instrutório, NÃO pode, após ser proferida decisão de não pronúncia, recorrer desta decisão, nos termos do disposto no artº 68º, nº 3 alínea c) do CPP, requerendo, nesse momento, a sua constituição como assistente
6 - O sentido útil do segmento do n.º 3, do art. 68º, do C. Proc. Penal, na parte em que dispõe que “os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar (…)” é somente o de que o assistente pode participar nos actos processuais que decorram após ter sido admitido a intervir nos autos, estando legalmente impedido de questionar os actos anteriores à sua intervenção.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO

           

           1. O DESPACHO RECORRIDO

Na Instrução nº 659/22.8T9LRA, a correr termos no Juízo de Instrução Criminal de Leiria, foi proferido despacho com a referência nº 108377912, datado de 24.9.2024, com o seguinte teor (transcrição):  

«A..., S.A. notificada como lesada da decisão instrutória de não pronúncia que pôs termo ao processo, veio requerer a sua admissão nos autos como assistente, a fim de nessa qualidade recorrer de tal decisão – cfr. fls. 220 a 243.

Nos termos da alínea a) do nº 3 do artigo 68º do C. P. Penal, no caso de o processo não prosseguir da fase da instrução para a fase de julgamento, o ofendido com legitimidade para se constituir como assistente tem que o requerer até cinco dias antes do início do debate instrutório. Não o tendo feito a requerente, é extemporâneo o pedido feito neste momento.

Note-se que o legislador, em 2015, introduziu a possibilidade de ser requerida a constituição como assistente no prazo para interposição de recurso da sentença – al. c) do nº 3 do artigo 68º do C. P. Penal – não tendo deliberadamente referido idêntica possibilidade para recurso de decisão instrutória. Omissão que não é, de todo, acidental, mas deliberada e, por isso, não admite integração analógica.

Como se refere no Acórdão do Tribunal de Guimarães de 09/04/2018 (Processo nº 916/15.0T9GMR.G1, Relatora Desembargadora Laura Maurício, acessível em www.dgsi.pt): «(…)  Se a decisão instrutória for uma decisão de não pronúncia, o interessado que não se constituiu assistente, podendo tê-lo feito, fica impossibilitado de reagir contra aquela decisão. Admitir o contrário equivaleria a subverter o espírito do prescrito no artº 68º, nº 3, do CPP, permitindo que a definitiva estabilização da instância na fase de instrução fosse perturbada por alguém a quem (por opção própria, decorrente da falta de formulação de requerimento para constituição de assistente até ao momento limite admitido) estava já vedada a intervenção em sede de instrução.

(…) E tal entendimento não coarta o acesso ao direito, assegurado no nº 1 do artº 20 da CRP. É certo que a lei fundamental reconhece ao ofendido o direito de intervir no processo, mas condiciona tal intervenção aos "termos da lei", cometendo a tarefa da sua modelação à lei ordinária nos termos do nº 7 do artº 32 da CRP, não tendo cabimento chamar à colação para este efeito a norma do nº 1 deste mesmo preceito, que se refere aos direitos de defesa do arguido em processo penal, pois que é admissível que o legislador condicione a intervenção do ofendido à sua prévia constituição como assistente em limites temporais bem definidos (…)».

Entendimento igualmente sufragado pelo (tanto quanto se sabe inédito) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/05/2022 (Processo nº 248/17.9GLSNT-B.C1, Relator Desembargador Luís Teixeira), onde se refere que «(…) a intervenção do assistente no debate instrutório ou na audiência de julgamento está dependente dessa intervenção ser requerida ao juiz até cinco dias antes do respetivo início, do debate ou da audiência – alínea a), do nº 3, do artigo 68º, do Código de Processo Penal. (…) É certo que, quer o despacho de não pronúncia quer a sentença, põem termo ao processo. (…) Todavia, como se deixou expresso (…) com o despacho de não pronúncia, o caso não chega a ser introduzido em juízo, para julgamento. O processo é dado como encerrado, sem ter lugar a fase de julgamento. (…) Ora, o legislador, ao acrescentar apenas e tão só, como resulta expressamente do teor da nova alínea c), do nº 3, do artigo 68º, que o ofendido (vítima), pode ainda intervir, mesmo já depois da audiência de julgamento, no prazo para interposição de recurso da sentença, quis tratar de modo diferenciado as decisões finais das duas situações ou fases processuais. (…) Sabedor e consciente das possibilidades do desfecho processual findo o debate instrutório com a prolação de decisão instrutória, pondo-se termo ao processo com a decisão de não pronúncia e consequente não prosseguimento dos autos para julgamento, se o julgador pretendesse nesta fase e momento processual dar oportunidade ao ofendido ainda não constituído assistente, de interpor recurso da decisão de não pronúncia, tê-lo-ia dito do mesmo modo que o fez para a interposição da sentença. O que também efetivamente faz para as situações previstas na alínea b), do nº 3, do artigo 68º, ou seja, para deduzir acusação ou requerer a abertura de instrução no prazo para a prática destes actos (…)».

Termos em que, por extemporaneidade, não admito A..., S.A. a intervir nos autos como assistente e, consequentemente, por falta de legitimidade, o recurso pela mesma interposto.

Notifique».

Tal despacho foi proferido na sequência de um pedido de constituição como assistente por parte de A..., SA após prolação de decisão instrutória de «não pronúncia».

            2. O RECURSO

Inconformada, a ofendida A..., SA recorreu do despacho em causa, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

A.


«O douto despacho recorrido indeferiu o requerimento de constituição de assistente, considerando-o intempestivo com fundamento no artigo 68º, nº 3, alínea a), do Código de Processo Penal, efetuando, com o devido respeito, ue é muito, uma incorreta interpretação do citado normativo legal.
B. Contudo, o artigo 68º, nº 3, alínea c), introduzido pela Lei n.0 130/2015, permite ao ofendido requerer a constituição de assistente no prazo de interposição de recurso da sentença.
C. Esta norma visa reforçar a proteção das vítimas e garantir o seu acesso efetivo à justiça, em conformidade com os artigos 20º e 32º, nº 7, da Constituição.
D. O despacho recomido desconsiderou a aplicabilidade do artigo 68º, nº 3, alínea c), ao recurso da decisão instrutória, adotando uma interpretação restritiva e contrária à letra e espírito da lei.
E. A jurisprudência citada (vide. AC. do SFJ n.0 12/2016 e AC. do TRL — Proc. n.0 176/16.5PDCSC-A.L1-3) demonstra claramente que a alteração legislativa veio reforçar os direitos das vítimas, permitindo-lhes constituir-se assistentes no prazo de interposição de recurso da sentença.
F. Tal proteção é necessariamente aplicável ao recurso da decisão instrutória.
G. Negar essa interpretação seria contrariar a finalidade da Lei nº 130/2015 e violar o princípio do acesso efetivo à justiça.
H. Pelo que, o requerimento de constituição de assistente foi apresentado tempestivamente, dentro do prazo de interposição de recurso da decisão instrutória, sendo legalmente admissível.
I. Face ao que se requer a revogação do douto despacho recorrido e consequentemente a admissão da recorrente como assistente nos autos e bem assim a admissão do recurso interposto da douta decisão instrutória proferida, com o que se fará a costumada JUSTIÇA!»

           3. O Ministério Público em 1ª instância e o arguido AA responderam ao recurso, opinando que o recurso não merece provimento.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, após resposta da recorrente, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

           

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].

           Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.

Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.

Assim sendo, é esta a única questão a decidir por este Tribunal:

· É tempestivo o pedido de constituição como assistente por parte da ofendida após a prolação de um despacho de não pronúncia?

2. Sobre a sequência de factos processuais:

a) Após acusação pelo Ministério Público, veio o arguido AA requerer a abertura da fase de instrução.

b) No termo dessa instrução, foi proferido pelo JIC de Leiria um despacho de não pronúncia do arguido.

c) Notificado do teor da decisão mencionada em b), veio a ofendida A..., SA requerer a sua constituição como assistente, ao mesmo tempo que vem recorrer de tal despacho de não pronúncia.

d) É então proferido o despacho recorrido com data de 24.9.2024.

            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

           3.1. Nos presentes autos veio a ofendida/lesada recorrer do despacho que, por extemporaneidade, não admitiu a sua constituição como assistente [o que teve como consequência a não admissão do recurso mencionado na alínea c), parte final, do antecedente ponto 2].

Dispõe o artigo 68º, nº 3 do CPP; após a redacção dada pela Lei nº 130/2015, de 4.9:

 «3 - Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz:

a) Até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento;

b) Nos casos do artigo 284º e da alínea b) do nº 1 do artigo 287º, no prazo estabelecido para a prática dos respectivos actos.

c) No prazo para interposição de recurso da sentença».

            Duas teses aqui se digladiam:

· aquela que entende que aqui se aplica o artigo 68º, nº 3, alínea a) do CPP.

· a outra tese que pretende fazer aqui aplicação da alínea c) de tal nº 3.

O tribunal seguiu a 1ª tese.

A ofendida recorrente propugna pela 2ª tese.

Neste assunto, está dividida também a jurisprudência – daí que seja público que esta questão está neste momento pendente no STJ para futura prolação de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência:

«Processo nº 248/17.9 GLSNT - B.C1-A - A questão que se suscita é a de saber se o ofendido que não se constituiu como assistente até cinco dias antes do debate instrutório, pode, após ser proferida decisão de não pronúncia, recorrer desta decisão, nos termos do disposto no artº 68º nº 3 alínea c) do CPP, requerendo, nesse momento, a sua constituição como assistente - 3ª Secção - Sentido sugerido pelo Ministério Público na jurisprudência a fixar: “O ofendido que não se constituiu como assistente até cinco dias antes do debate instrutório (nos termos do disposto na alínea a) do nº 3 do artigo 68º do Código de Processo Penal) não pode, após ser proferida decisão de não pronúncia, requerer a sua constituição como assistente nos termos da alínea c) do nº 3 do mesmo preceito, com vista a recorrer dessa decisão”».

3.2. Vejamos.

Está aqui em causa a interpretação a dar à alínea c) do artigo 68º, nº 3, tida por aplicável pela recorrente.

Ora, neste campo, não temos qualquer dúvida em nos situarmos do lado do tribunal recorrido, comungando, neste particular, das doutas explanações feitas pela Exmª Juíza Desembargadora Adjunta neste aresto, Drª Sandra Ferreira, no recente Acórdão da Relação de Coimbra, datado de 22.1.2025 (Pº 141/23.6GGCVL-D.C1), aqui reproduzidas:

«Do disposto no citado art. 68º, nº 3 al. a) do Código de Processo Penal decorre que o ofendido não poderá intervir no debate instrutório se não requereu a sua constituição como tal no prazo ali estabelecido (até cinco dias antes do debate instrutório).

Realizado aquele debate, prosseguindo os autos para a fase de julgamento poderá ainda o ofendido requerer a sua constituição como assistente até cinco dias antes do julgamento e, com a introdução da alínea c), operada pela lei nº 130/2015 de 4 de setembro, no prazo de interposição de recurso da sentença.

Na verdade, o legislador com a redação da Lei nº 130/2015 de 4 de setembro, incluiu nesta alínea c) do nº 3 apenas a sentença, isto é a decisão final proferida em fase de julgamento – art. 97º, nº 1 do Código de Processo Penal -, não mencionando expressamente o despacho de não pronúncia, nem efetuando qualquer alteração às antecedentes alíneas.

Resulta do artº 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3).

Afirma Batista Machado: “ O art. 9º deste Código, que à matéria se refere, não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjectivista e a doutrina objectivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à "vontade do legislador", nem à "vontade da lei", mas apontar antes como escopo da actividade interpretativa a descoberta do "pensamento legislativo" (art. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exactamente que o legislador não se quis comprometer. [...]

Começa o referido texto por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra mas reconstituir a partir dela o "pensamento legislativo". Contrapõe-se letra (texto) e espírito (pensamento) da lei, declarando-se que a actividade interpretativa deve - como não podia deixar de ser - procurar este a partir daquela.

A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9º, 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) "que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso".

Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto "falhado" se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. Afasta-se assim o exagero de um subjectivismo extremo que propende a abstrair por completo do texto legal quando, através de quaisquer elementos exteriores ao texto, descobre ou julga descobrir a vontade do legislador. Não significa isto que se não possa verificar a eventualidade de aparecerem textos de tal modo ambíguos que só o recurso a esses elementos externos nos habilite a retirar deles algum sentido. Mas, em tais hipóteses, este sentido só poderá valer se for ainda assim possível estabelecer alguma relação entre ele e o texto infeliz que se pretende interpretar.

Ainda pelo que se refere à letra (texto), esta exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correcto das expressões utilizadas. Com efeito, nos termos do art. 9º, 3, o intérprete presumirá que o legislador "soube exprimir o seu pensamento em termos adequados". Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo.

Desde logo, o mesmo nº 3 destaca outra presunção: "o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas". (sublinhado nosso).

Ora, concatenando o nº 2 e as alíneas do nº 3 do art. 68º do Código de Processo Penal verificamos que neles são regulados os concretos momentos em que a constituição como assistente é admissível, estabelecendo-se especificamente para a fase de instrução que o pode fazer em simultâneo com o requerimento de abertura de instrução (art. 68º, nº 3 al. b) e 287º, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal) ou até 5 dias antes do debate instrutório ( arts. 68º, nº 3, al. a) do Código de Processo Penal).

Na fase de julgamento até cinco dias antes da audiência ( art. 68º, nº 3 al. a) do Código de Processo Penal) ou na fase de recurso da sentença nos termos da al. c) do nº 3 do referido art. 68º do Código de Processo Penal, e portanto restrita a esta fase do processo.

Na exposição de motivos da proposta de lei nº 343/XII que serviu de fundamento à mencionada Lei nº 130/2015 de 4 de setembro [disponível em https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=rnEhQ5jpO%252bNEVjt0m5QbbtbQ8wEs7CbcW96XT7No2WEkaO%252bmgsr4%252f8OYhSo53UyxEE9LOee6tmp3Wkt3qdE02N] escreveu-se: “A definição de um estatuto homogéneo para as vítimas de crimes tem enfrentado a dificuldade assente na existência de vários enquadramentos legais, pois as vítimas podem ser sujeitos processuais se assumirem as vestes de assistentes ou demandantes civis, em ordem a sustentar uma acusação ou formular um pedido de indemnização civil, respetivamente, ou podem ter apenas intervenção no processo, neste caso como denunciantes e testemunhas. Todas estas vertentes se podem cumular, em virtude de serem complementares, mas encerram distintos regimes jurídicos: aos assistentes e aos demandantes civis, por terem a qualidade de sujeitos processuais, é facultada a apresentação de peças processuais, a participação na audiência de julgamento através de advogado por si constituído, bem como a interposição de recurso relativamente às decisões que lhes sejam desfavoráveis; já as demais vítimas têm tão somente os direitos reconhecidos às testemunhas, o que significa que apesar de se poderem fazer acompanhar por um advogado, este não pode intervir na audiência de julgamento em sua representação (artigo 132º, nº 4, a contrario, do Código de Processo Penal), e, apesar de poderem solicitar verbalmente o arbitramento de uma indemnização na audiência, não lhes assiste legitimidade para interporem recurso da decisão que eventualmente não fixe essa indemnização, nem, aliás, da decisão que eventualmente absolva o acusado (artigo 401º, nº 1, alíneas b) e c), a contrario, do Código de Processo Penal).

Na presente proposta de lei, entendeu-se autonomizar o conceito de vítima no Código de Processo Penal, mantendo todavia os conceitos de assistente e demandante civil, precisamente porque todos se revestem de utilidade prática no espectro de proteção da vítima que se pretende reforçado. Não obstante, introduziu-se na presente proposta de lei uma alteração que se considera significativa no regime do assistente e que se prende com a possibilidade de requerer a atribuição desse estatuto no prazo de interposição de recurso da sentença.” (sublinhado nosso).

Como se refere no voto de vencido apresentado no Acórdão do TRP de 15.11.2018 (acima mencionado): “Tal norma é específica daquela fase processual (de recurso diria) da sentença, e como tal deve ser considerada.

Poder-se-á argumentar estarmos perante um lugar paralelo.

Todavia, creio que o legislador teve oportunidade de resolver essa questão e não o fez, mantendo a regulação específica para a fase de instrução e aditando uma norma nova para fase de recurso subsequente a julgamento e prolação de sentença.

Em face dessa norma, se fosse outra a sua intenção, o legislador até devia ter revogado, senão totalmente pelo menos parcialmente a al. a) do nº 3 do artº 68º CPP, o que não fez, pelo que, pelo menos, no que respeita à fase de instrução deve considerar-se que mantém plena eficácia, no pressuposto legal de que o legislador “consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” – artº 9º 3 CC.

Aliás a própria “exposição de motivos” da proposta de lei é clara e limitativa à fase de recurso da sentença: “Não obstante, introduziu-se na presente proposta de lei uma alteração que se considera significativa no regime do assistente e que se prende com a possibilidade de requerer a atribuição desse estatuto no prazo de interposição de recurso da sentença” o que é inequívoco no seu sentido e vontade e foi plasmado na norma em causa, mostrando-se o seu pensamento perfeitamente expresso.”.

Também neste sentido se pronunciou o Acórdão do TRG de 09.04.2018 [processo nº 916/15.0T9GMR.G1, disponível in www.dgsi.pt], onde se escreveu: “Certo é também que, não obstante um despacho de não pronúncia e uma sentença serem decisões que podem pôr termo ao processo, são decisões diversas e com diferentes estruturas, pelo que se o legislador quisesse abranger o despacho de não pronúncia tê-lo-ia feito constar expressamente da alínea c) do nº3 do artigo 68º, do Código de Processo Penal quando procedeu à alteração operada pela Lei nº130/2015, de 4 de setembro, e não o fez, sendo esta a opção do legislador, não se vislumbrando que a mesma fira o princípio da igualdade ou outro princípio constitucional.

Com efeito, não se diga que, desta forma, o ofendido (que dispunha de legitimidade para intervir nos autos como assistente se assim o tivesse requerido) vê coartado o acesso ao direito, assegurado no nº 1 do art. 20º da Constituição da República Portuguesa. É certo que a lei fundamental lhe reconhece o direito de intervir no processo, mas condiciona tal intervenção aos “termos da lei”, cometendo a tarefa da sua modelação à lei ordinária nos termos do nº 7 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, não tendo cabimento chamar à colação para este efeito a norma do nº 1 deste mesmo art.32º, que se refere aos direitos de defesa do arguido em processo penal, pois que é admissível que o legislador condicione a intervenção do ofendido à sua prévia constituição como assistente em limites temporais bem definidos”. [Também neste sentido se pronunciou o acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra proferido no âmbito do processo nº 248/17.9GLSNT-B.C1 (não publicado) e no âmbito do qual foi interposto o já mencionado recurso para fixação de jurisprudência].

Salientamos, ainda, por inteiramente pertinente o referido pelo Digno Procurador Geral Adjunto no seu parecer quando escreve: “Com efeito, tendo para além do mais em conta o teor literal da disposição constante desta alínea c) e a história do preceito legal no qual a mesma foi inserida, dúvidas não poderá haver de que a extensão do(s) prazo(s) legalmente impostos para a constituição como assistente que aí foi consignada apenas abrangerá a possibilidade intervenção em sede de recurso duma sentença, no sentido previsto na alínea a) do nº 1 do art. 97º do Código de Processo Penal – não havendo qualquer razão para crer que o legislador se tenha enganado ao utilizar o termo “sentença” quando efectuou a referida alteração, ou que a circunstância de não ter previsto a possibilidade de constituição como assistente para interposição de recurso de outras decisões que também ponham “termo ao processo” gere, de algum modo, uma lacuna a integrar pelo julgador.

A tal interpretação não se opõe a unidade do Sistema Jurídico Português, na medida em que, reconhecendo o art. 32º, nº 7 da Constituição da República Portuguesa ao ofendido o direito a intervir no processo “nos termos da lei”, confere ao legislador ordinário a possibilidade de modelar essa intervenção, designadamente através da fixação de limites temporais.

Deste modo, ponderando os elementos interpretativos acima mencionados e designadamente o elemento literal e histórico, e os critérios interpretativos estabelecidos no art. 9º do Código Civil, cremos que a interpretação feita pelo despacho recorrido de que a al. c) do nº 3 do art. 68º do Código de Processo Penal não abrange o despacho de não pronúncia não merece censura e, consequentemente, também a não merece, a decisão de considerar extemporâneo o requerimento formulado para constituição de assistente por AA, após a leitura do despacho de não pronúncia proferido nestes autos».

Estamos totalmente de acordo com esta tese.

E, ASSIM, a ofendida, caso pretendesse intervir no debate instrutório para defesa dos seus interesses e manter em aberto a possibilidade de recorrer na eventualidade de vir a ser proferido despacho de não pronúncia,

o deveria ter-se constituído assistente nos autos até ao limite temporal fixado na al. a) do nº 3 do art. 68º do CPP;

o não o tendo feito acabou por se sujeitar a ver precludida em definitivo a sua possibilidade de intervenção, no caso de o arguido não vir a ser pronunciado, como ocorreu na nossa situação.

De facto, não faz qualquer sentido interpretar de forma diversa esta alínea c).

Ou estamos na fase da instrução, e aí o ofendido tem de pedir a sua constituição como assistente no prazo correspondente da alínea a) do nº 3 do artigo 68º do CPP.

Ou estamos na fase de julgamento, e aí o ofendido tem de pedir a sua constituição como assistente no prazo correspondente da alínea a) do nº 3 do artigo 68º do CPP.

Em 2015, foi dada uma derradeira hipótese a tal ofendido para se constituir como assistente – pode fazê-lo no prazo para interposição de recurso da sentença (e de mais nenhum acto decisório dos juízes, tal como é feita a definição do artigo 97º do CPP).

Só assim faz sentido este sistema, sob pena de desvirtuarmos o que consta da alínea a) – se adoptássemos a tese da recorrente, a alínea c) seria sempre aplicável, fazendo a alínea a) de inusitada letra morta.

Não se pode defender uma interpretação legal que coloque em contradição flagrante duas alíneas de um mesmo normativo (tal seria contrário à ideação que todos temos da inteligência e prudência do legislador que não pode adoptar soluções desarmoniosas e reveladores de fatal incoerência e descoordenação interna).

Se o pretendido pela alteração legislativa de 2015 fosse no sentido de a norma do artigo 68º, nº 3 deixar de conter a compartimentação que resulta da existência das ditas três alíneas, seria suficiente o seguinte texto, sem quaisquer alíneas:

«Os assistentes podem intervir qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz até ao decurso do prazo de interposição do recurso da sentença».

E, por isso, mesmo com a actual redacção do artigo 68º, nº3, alínea c), do CPP, julgamos que a sociedade ofendida só poderia requerer a sua constituição como assistente no prazo de interposição de recurso da sentença, mas não no prazo de interposição de recurso do despacho de não pronúncia.

É certo que ambas as decisões podem pôr termo ao processo.

Contudo, a sentença e o despacho de não pronúncia têm natureza e estrutura diferentes, pelo que, se o legislador quisesse abranger o despacho de não pronúncia na nova alínea, teria feito constar isso expressamente da alínea c) do artigo 68º do CPP quando procedeu à alteração operada pela Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro.

E NÃO O FEZ.

Nem se diga que assim fica prejudicada a posição da «vítima».

Mesmo sendo vítima, não pode ter prerrogativas processuais que não tenham o mínimo suporte legal.

Reforçar os direitos da vítima, sim.

Mas não a todo o custo.

A interpretação feita pela recorrente, com a amplitude que quer dar à dita alínea c), não confere com a função útil da norma nem com a sua razão histórica, não encontrando, a nosso ver, qualquer apoio na letra da lei.

3.3. Se assim é, e pelos fundamentos acima descritos, só pode improceder este recurso, devendo-se assim considerar extemporânea a peça processual em que a ofendida vem requerer a sua constituição como assistente para efeitos de recurso de uma decisão instrutória de não pronúncia.

3.4. Em sumário da nossa decisão:

1. Se estamos na fase da instrução, o ofendido tem de pedir a sua constituição como assistente no prazo correspondente da alínea a) do nº 3 do artigo 68º do CPP.

2. Se estamos na fase de julgamento, o ofendido tem de pedir a sua constituição como assistente no prazo correspondente da alínea a) do nº 3 do artigo 68º do CPP.

3. Em 2015, foi dada uma derradeira hipótese a tal ofendido para se constituir como assistente – pode fazê-lo no prazo para interposição de recurso da sentença (e de mais nenhum acto decisório dos juízes, tal como é feita a definição do artigo 97º do CPP).

4. Só assim faz sentido este sistema, sob pena de desvirtuarmos o que consta da alínea a) – se adoptássemos a tese da recorrente, a alínea c) seria sempre aplicável, fazendo a alínea a) de inusitada letra morta.

5. Não se pode defender uma interpretação legal que coloque em contradição flagrante duas alíneas do mesmo normativo (tal seria contrário à ideação que todos temos da inteligência e prudência do legislador que não pode adoptar soluções desarmoniosas e reveladores de fatal incoerência e descoordenação interna).

6. Se o pretendido pela alteração legislativa de 2015 fosse no sentido de a norma do artigo 68º, nº 3 deixar de conter a compartimentação que resulta da existência das ditas três alíneas, seria suficiente o seguinte texto, sem quaisquer alíneas: «Os assistentes podem intervir qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz até ao decurso do prazo de interposição do recurso da sentença».

7. Por isso, mesmo com a actual redacção do artigo 68º, nº 3, alínea c), do CPP, julgamos que a sociedade ofendida só poderia requerer a sua constituição como assistente no prazo de interposição de recurso da sentença, mas não no prazo de interposição de recurso do despacho de não pronúncia.

8. É certo que ambas as decisões podem pôr termo ao processo.

9. Contudo, a sentença e o despacho de não pronúncia têm natureza e estrutura diferentes, pelo que, se o legislador quisesse abranger o despacho de não pronúncia na nova alínea, teria feito constar isso expressamente da alínea c) do artigo 68º do CPP quando procedeu à alteração operada pela Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro.

            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em NEGAR provimento ao recurso intentado pela ofendida A..., SA, mantendo o teor da decisão recorrida datada de 24.9.2024.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].


Coimbra, 9 de Abril de 2025
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)

 


 Relator: Paulo Guerra

Adjunta: Alcina da Costa Ribeiro

Adjunta: Sandra Ferreira