1 - A não constituição de arguido e o seu interrogatório constitui uma nulidade nos termos do artigo 120º., n º. 2 al. d) do Código de Processo Penal, “por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios”, uma vez que o arguido podia ter sido constituído arguido e interrogado nessa qualidade e não o foi.
2 - Declarada na fase de Instrução a nulidade sanável ocorrida na fase de Inquérito por falta de constituição e interrogatório do arguido, deve o Juiz retirar de tal declaração as respectivas consequências, determinando quais os actos afectados pela omissão integradora dessa nulidade, incluindo as subsequentes acusações, particular e do Ministério Público, assim cumprindo o disposto no art. 122º, do CPP.
3 - Mais deve ordenar o regresso dos autos à fase de Inquérito, permitindo que o MP, se assim entender, proceda ao suprimento da omissão integradora de nulidade e promova a subsequente tramitação dos autos.
4 - A declaração de nulidade, por falta de constituição de arguido e, consequentemente, a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público, para praticar um ato que por lei obrigatoriamente lhe competia, em nada contende com a estrutura acusatório do processo penal, nem com a independência e autonomia do Ministério Público no exercício da ação penal orientado pelo princípio da legalidade.
5 - A referida nulidade não é fundamento de não pronúncia, sendo que o despacho de não pronúncia apenas deverá ser proferido após o confronto de todas provas (indiciárias) recolhidas na fase do inquérito e desse escrutínio o juiz de instrução concluir pela inexistência de indícios suficientes da prática de um crime.
Acordam, em conferência, na 5ª. Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
Relatório
Nos presentes autos de instrução nº. 131/23.9GASRE que corre seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo de Instrução Criminal de Coimbra - Juiz 1, foi proferido despacho de não pronúncia do arguido AA, melhor identificado nos autos, relativamente aos quatro crimes de difamação, previstos e punidos pelo artigo 180º., nº. 1, do Código Penal que lhe haviam sido imputados na acusação particular deduzida pela assistente.
Inconformado com tal decisão, veio a assistente interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“1 - De acordo com o nº. 3 do artigo 122º. do CPP que "Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela."
2 - De acordo com PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, está em causa uma "regra de aproveitamento dos actos subsequentes que não tenham um nexo de dependência lógica e valorativa com o acto nulo".
3 -No momento da declaração de nulidade deve o Juiz determinar o sentido e o alcance daquela para o processo, quais os atos afetos de nulidade e quais os atos a aproveitar.
4 -Tal entendimento apresenta-se fundamentado com HENRIQUES GASPAR quando este afirma que "(...) a declaração de nulidade não é pura e simples, mas deve ser completada pela determinação das consequências no processo. "
5. In casu, perante a declaração de nulidade, o Juiz de Instrução Criminal apenas se reportou à "(..) invalidade total do despacho de acusação com o consequente despacho de não pronuncia do arguido AA(...)"
6- Não obstante, foram praticados atos no inquérito que poderão ser aproveitados, como inquirição de testemunhas, obtenção de dados de registo criminal, etc, devendo a declaração de nulidade realizada no despacho sob impugnação afetar apenas a acusação particular e o despacho de 20.02.2024 do Ministério Público.
7 - O despacho impugnado não podia ordenar ao Ministério Público que procedesse ao interrogatório do arguido, mas omitiu a delimitação precisa dos efeitos da declaração de nulidade, tendo em vista o aproveitamento de atos não inquinados do vício gerador daquela, bem como a ordem de emissão de certidão do despacho e sua remessa àquele órgão, para que, titular do inquérito, pudesse, atentas as suas competências, determinar o seu prosseguimento, expurgado dos atos (despacho de 20.02.2024 e acusação particular) que efetivamente deveriam ser declarados nulos.
8 - O Ministério Público profere despacho de não pronúncia quando este tipo de despacho só pode ser proferido se não "tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança" (cfr. artigo 309º. nº. 1, do CPP), o que implica uma decisão de mérito sobre prova indiciária.
9 - Porém, deveria ter-se limitado a questão procedimental/formal: não ter sido realizado o interrogatório do arguido, sem que se proferisse decisão de mérito relativa a inexistência de prova indiciária.
10- Com efeito, antes de proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia o juiz tem que decidir todas as questões prévias ou incidentais de que possa conhecer (art. 308º., nº. 3, do CPP), e nesse saneamento preliminar tem que apreciar os pressupostos processuais, bem como conhecer das nulidades ou eventuais questões prévias incidentais. Ou seja, o Juiz a quo, entendendo verificar-se uma nulidade, deveria declará-la e dar cumprimento ao disposto no art. 122º., nº.3 do CPP, ficando prejudicada, por conseguinte a emissão de despacho de pronúncia/não, pronúncia.
11 - Face ao exposto, entende a Recorrente que padece o despacho impugnado de vício gerador de sua nulidade ao abrigo do disposto no artigo 379º., nº.1, alínea c) do CPP, onde se prevê ser nula a sentença "Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento'.
12- A nulidade do despacho impugnado verifica-se quer por omissão de pronúncia — quanto à não determinação do sentido e do alcance da declaração de nulidade e à não emissão de certidão ao MP para os efeitos convenientes — quer por expresso de pronúncia, por não poder decidir quanto à inexistência de prova indiciária nos autos.
13 -O despacho recorrido violou o disposto nos artigos 122º., nº. 2, 308º., nº. 3 309º., nº. 1, do CPP, e é nulo atento o artigo 379º., nº. 1, alínea c) do CPP.
NESTES TERMOS E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADO O DESPACHO IMPUGNADO, DETERMINANDO-SE A SUA SUBSTITUIÇÃO POR NOVO DESPACHO QUE DENSIFIQUE CONSEQUÊNCIAS DA NULIDADE INVOCADA EM FASE DE INSTRUÇÃO PARA O PROCESSO, TENDO EM VISTA O APROVEITAMENTO DOS ATOS DE INQUÉRITO NÃO AFETADOS PELO VÍCIO.”
Notificado o arguido e o Ministério Público da interposição do recurso, apenas o Ministério Público apresentou resposta, tendo pugnado pela respetiva improcedência e tendo apresentado as seguintes conclusões
“1. Não foram violadas quaisquer normas ou princípios.
2. Carece, pois, de fundamento e relevância jurídica o alegado pela recorrente, pelo que o mesmo é inócuo em sede de recurso.
3. Na realidade, a decisão instrutória poderá ser apenas de dois tipos: pronúncia ou não pronúncia. Haverá pronúncia quando forem recolhidos indícios suficientes da prática do crime por parte do arguido. Será proferido despacho de não pronúncia em duas situações: quando os indícios forem insuficientes; ou quando se conheçam c declarem nulidades ou outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
4. No despacho de não pronúncia, o juiz começa por apreciar nulidades, questões prévias e incidentais, nos termos do n.º 3 do artigo 308.º, do C.P.P. Havendo nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa, o juiz profere, sem mais, despacho de não pronúncia.
5.Encerrado o inquérito e aberta a instrução, abre-se uma fase autónoma do processado cuja direcção radica, a partir dali, no juiz de instrução, que, com total autonomia ordena as diligências que tenha por necessárias ao fim dessa fase eventual: proferir decisão instrutória.
6.Do regime legal resulta, pois, que é autónoma a intervenção do MP no inquérito e do juiz de instrução na fase eventual que se lhe segue.
7.Se existe autonomia de actuação, não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional, nem hierárquica a tal injunção.
8 - Conforme defende Nuno Brandão, "A instrução não se destina a sindicar directamente o modo como no inquérito o Ministério Público desenvolveu a actividade de investigação. Tal tipo de escrutínio violaria o estatuto de autonomia reconhecido ao Ministério Público tanto pela lei ordinária (art. 2. 0 do Estatuto do Ministério Público), como pela lei fundamental (art. 219. 0-2 da CRP)".
9.Acrescentando que uma "instrução concebida como suplemento investigatório seria absolutamente incongruente com a repartição de funções entre a magistratura do Ministério Público e a magistratura judicial que constituiu a pedra de toque do modelo processual erigido no Código de 1987 e do mesmo passo constituiria um desvio incompreensível à dimensão material da estrutura acusatória de que o mesmo se reveste, em observância do preceituado no n. 0 5 do art. 32. O da Constituição."
10. Não poderia o Mmo. J.I.C. determinar a devolução do processo — um processo com inquérito encenado e instrução aberta, ao Ministério Público.
11. Se essa fosse a intenção do legislador, sempre a haveria de a consagrar legalmente o que, manifestamente, não sucedeu.
12.Por outro lado, levar a cabo tal procedimento através de inquérito autónomo iniciado por certidão extraída dos autos sempre seria uma violação do princípio do ne bis in ident.
13.Nesse sentido, o acórdão do TJUE de I I de fevereiro de 2003 - processos penais contra Hüseyin Gôzütok (C-187/01) e Klaus Brügge (C-385/01), onde foi decidido que o princípio ne bis in idem vale não só para decisões judiciais, como também relativamente a decisões finais proferidas pelo Ministério Público — in casu, atendendo ao despacho de encerramento de inquérito deduzido nos presentes autos.
14.Pelo que, bem andou o Tribunal a quo, ao decidir nos temos em que decidiu, nenhuma censura merecendo a decisão recorrida, que não violou qualquer preceito legal.
15.Deverá assim ser mantida a decisão agora em crise, considerando-se a não procedência do recurso interposto pela recorrente.
Termos em que, se V. Exas. julgarem improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida, farão a habitual justiça!
Neste Tribunal, o Exmo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso.
“a) Com efeito, ao contrário do que parece ser entendido pelo Tribunal recorrido, o princípio do acusatório, vigente no nosso processo penal, não impede que o Juiz de Instrução, caso deva apreciar e declarar como tal uma nulidade sanável ocorrida em fase de Inquérito (tal como indubitavelmente lhe poderá caber fazer, face ao disposto na alínea c) do nº 3 do art. 120º do Código de Processo Penal), se afaste da disciplina prevista no art. 122º do mesmo Código, em sede de efeitos de tal declaração.
Assim, nada obsta a que, ocorrendo uma nulidade sanável em fase de Inquérito (desde logo, a prevista na alínea d) do nº 2 do mesmo art. 120º do Código, por falta de interrogatório do arguido), e sendo a mesma declarada em fase de Instrução, o Juiz retire de tal declaração as consequências que se imponham, à luz do disposto no referido art. 122º, precisamente como o faria caso estivesse em causa uma nulidade ocorrida nessa fase de Instrução
Logo, ao apreciar e declarar a referida nulidade, como questão prévia à prolação de decisão instrutória, ao abrigo do disposto nº 3 do art. 308º do Código de Processo Penal, deveria o Tribunal recorrido ter determinado, em cumprimento do disposto nos nºs 1 e 2 do art. 122º do mesmo Código, quais os actos afectados pela omissão integradora dessa mesma nulidade, incluindo as subsequentes acusações particular e do Ministério Público, tal como decidiu ser o caso – mas ordenando assim, de modo a possibilitar o suprimento da omissão integradora de nulidade e a subsequente (re)tramitação dos autos, o seu regresso à fase de Inquérito. Tal é, com efeito, a única consequência possível duma declaração de nulidade proferida em fase de instrução, uma vez que, conforme é referido no recurso interposto, tal declaração não pode justificar a prolação duma decisão de não pronúncia (nem duma absolvição), conforme resulta com clareza do Código e dos princípios gerais de direito penal e processual. b) Note-se, a este respeito, que poderá ter havido, no caso, alguma confusão com as consequências decorrentes da eventual declaração das nulidades previstas nos arts. 309º e 379º, nº 1, b), do Código, das quais decorrerá necessariamente uma decisão, total ou parcial, de não pronúncia ou de absolvição do arguido.
Mas isto apenas sucede por estar em causa uma nulidade da própria decisão instrutória ou da sentença, relativa especificamente à proibição legal de que tal decisão seja, nos casos aí previstos, desfavorável ao arguido, impondo assim a correcção de tal nulidade uma decisão que lhe seja favorável. Não é esse, porém, o caso da generalidade das nulidades, nem sequer das demais nulidades da sentença (que poderão sempre ser declaradas e corrigidas, sem que daí decorra, necessariamente, uma decisão favorável ao arguido); não sendo esse o caso, certamente, da nulidade declarada no presente caso, relativa à mera omissão do cumprimento do disposto no art. 272º do Código, sempre passível de suprimento. c) Nem se diga, ainda a este propósito (tal como parece pretender defender o Ministério Público na Resposta apresenta em 1ª instância), que o princípio do acusatório impedirá que o Juiz de Instrução declare a nulidade de actos praticados em fase de Inquérito e ordene a devolução dos autos ao Ministério Público para suprimento da mesma, por a separação de funções entre as magistraturas impedir que tal Juiz dê “ordens” àquele Ministério Público.
Com efeito, sendo como se disse legalmente prevista, de forma expressa, a possibilidade de declaração, em fase de instrução, de nulidades ocorridas em fase de Inquérito, apenas poderá daí retirar-se que o despacho judicial que profira tal declaração terá força de caso julgado formal, como qualquer outro que não seja impugnado, ou que o seja sem sucesso; sendo, nessa medida e apenas nessa, obrigatório para o Ministério Público, tal como o será para os outros sujeitos processuais (incluindo os magistrados judiciais com posterior intervenção no processo).
Daí não decorre, porém, a emissão de qualquer “ordem” ao Ministério Público, que não ficará obrigado a tirar quaisquer consequências processuais, em termos da sua posterior actuação, da decisão em causa – limitando-se a dever a respeitá-la, nos seus precisos termos, mas sem que por força dela fique obrigado a praticar, repita-se, qualquer específica actuação processual.
Note-se, a este respeito, não ser esse o caso da situação objecto do Acórdão do STJ de 27-4- 2006[1] que é citado na Resposta apresentada pelo Ministério Público em 1ª instância, por aí ter sido realmente “ordenado” ao Ministério Público que suprisse uma nulidade similar à que está em causa nos presentes autos, sem que fosse declarada, aparentemente, a invalidade dos actos subsequentes à mesma e sem que se determinasse que os autos regressassem, na totalidade, à fase de Inquérito, antes permanecendo em instrução, aguardando a realização da diligência em falta por parte do Ministério Público. [2]
d) Para além disso, ao contrário do que parece ser alegado no despacho impugnado, o Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra aí citado[3] tão pouco retirou duma declaração de invalidade parcial da acusação deduzida nos autos, proferida em sede de decisão instrutória (também por falta de prévio interrogatório do arguido), as consequências aparentemente decorrentes da decisão impugnada.
Com efeito, apesar de ter decidido “não pronunciar” os arguidos pela prática de determinados crimes, a decisão de 1ª instância proferida nesse caso ordenou “que após trânsito fosse extraída certidão da presente decisão e de fls.170, 179, 180, 192, 206, 207, 222 a 230, 245 a 251, 252, 259 a 263” e remetida ao DIAP competente, para os fins tidos por convenientes, acompanhada do inquérito apenso 34/19....”, em termos que foram expressamente sufragados no Acórdão proferido por este Venerando Tribunal. Logo, ainda que referindo-se a si própria como sendo de “não pronúncia” (a nosso ver, incorrectamente[4] ), a decisão proferida nesse caso, mantida por este Venerando Tribunal, não retirou da sua apreciação duma questão prévia de nulidade as consequências juridicamente decorrentes dum verdadeiro despacho de não pronúncia, que apreciasse o mérito da causa objecto dos autos (ou seja, a prolação duma decisão tendencialmente definitiva de não submissão do arguido a julgamento, apenas modificável em sede de eventual revisão), mas tão somente as consequências decorrentes duma declaração de invalidade parcial da acusação afectada por nulidade, precisamente nos termos que são propugnados no recurso interposto pela assistente. Assim, estando nos presentes autos em causa uma declaração de invalidade total das acusações deduzidas nos autos, por força de anterior nulidade decorrente do não interrogatório do arguido, parece-nos dever ser determinada a devolução dos autos ao Ministério Público, para que este decida como bem entender qual deverá ser a tramitação processual do Inquérito a seu cargo, na sequência de tal declaração de nulidade e de subsequente invalidade dos actos por esta afectados, proferida em fase de Instrução. [5]
Face ao exposto, como se disse já, parece-nos dever ser concedido provimento ao recurso interposto pela assistente.”
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º., nº.2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Foram colhidos os vistos, após o que os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º., nº. 3, do Código de Processo Penal.
II – Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
Em consonância com o disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº.7/95, de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento pacífico que só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar, artigos. 403º, 412º e 417º do Código de Processo Penal, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.
A este respeito, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Tendo em consideração as conclusões delimitadoras da pretensão da recorrente, a questão a apreciar é a seguinte:
Nulidade decorrente da falta de constituição de arguido.
A Decisão Recorrida
O despacho recorrido diz-nos:
“(…)
Procedeu-se à realização de debate instrutório, com a observância do pertinente formalismo e no decurso do qual não foram requeridas quaisquer diligências de prova .
2. Saneamento
O Tribunal é competente .
Inexistem nulidades , excepções , questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer além da seguinte :
Nulidade de insuficiência de inquérito prevista na al. d) do nº 2 do Artigo 120º do Código de Processo Penal
O arguido veio suscitar a nulidade de inquérito alegando para o efeito que foi ouvido, enquanto Arguido, no Posto Territorial ..., sobre factos constantes da queixa crime, relativo a prática de um crime de tentativa de violação/Assédio e foi sobre aqueles factos que, naquela data, o aqui Arguido exerceu o seu direito ao silêncio, isto é, não prestou declarações e relativamente aos factos constantes da acusação particular deduzida pela aqui Assistente, subsumíveis aos quatro crimes de difamação , o Arguido nunca foi ouvido/ não foi confrontado sobre os mesmos em sede de inquérito pelo ocorreu a violação do artigo 272ºdo Código de Processo Penal em que é obrigatório o interrogatório como arguido, salvo se não for possível notifica-lo pelo que foi omitido um acto processual obrigatório por lei , pelo que no caso concreto se verifica a nulidade de inquérito prevista na al. d) do nº 2 do Artigo 120º do Código de Processo Penal , com a consequente declaração de nulidade da acusação.
Foi exercido o competente contraditório por parte do MP e do Assistente .
Cumpre apreciar e decidir :
Quanto à verificação de nulidade de inquérito invocada , concordando-se com os doutos Acórdão da Relação de Lisboa proferido no recurso n.º 1771/03, publicado em 29-4-2003, e de 6-11-2007 acessível in www.dgsi.pt "a lei processual penal vigente não impõe a prática de quaisquer actos típicos de investigação .
Na verdade, “a direcção do inquérito cabe ao M°P°, assistido pelos órgãos de polícia criminal (art.° 263° CPP), praticando, conforme preceituado no art° 267° CPP, os actos e assegurando os meios de prova necessários à realização das finalidades a que alude o art.° 262°, n.°1 CPP, ou seja, "o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação".
Compete ao juiz de instrução praticar, ou ordenar ou autorizar, os actos referidos nos art.°s 268° e 269° CPP, respectivamente, sendo a intervenção do juiz, nesta fase, circunscrita a actos isolados e específicos. Por seu turno, ao assistente compete colaborar com o M°P° a cuja actividade subordina a sua intervenção no processo podendo desenvolver as competências previstas no art.° 69° CPP, entre as quais as de intervir no inquérito oferecendo provas e requerendo diligências, deduzir acusação e interpor recurso das decisões que os afectem. E compete ao JIC, em sede de instrução, conhecer das nulidades cometidas durante o inquérito e arguidas pelo assistente nos termos prevenidos no art.° 308°, n.°3 CPP.
Perante a formulação legislativa constante dos art.° 119 e 120 do Código Processo Penal, tem a jurisprudência questionado se a insuficiência do inquérito respeita apenas à omissão de actos obrigatórios, ou a esses e ainda a quaisquer outros actos de investigação e de recolha de prova necessários à descoberta da verdade.
A solução maioritariamente seguida, partindo daquilo que consideramos uma correcta ponderação da estrutura acusatória do processo penal, art.° 32° n.°5 da Constituição, dos princípios do contraditório e da oficialidade, entende que só se verifica esta nulidade quando ocorra ausência absoluta ou total de inquérito [Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.1099 Colectânea de Jurisprudência Ano XXIV Tomo 4, p. 158.1, e/ou se omita acto que a lei prescreve como obrigatório.
Ancora-se esta solução no entendimento de que a titularidade do inquérito, bem como a sua direcção, pertencem ao Ministério Público, art.° 262° e 263° do Código Processo Penal, sendo este livre — dentro do quadro legal e estatutário em que se move e a que deve estrita obediência, art.° 53°, 267° do Código Processo Penal de promover as diligências que entender necessárias, ou convenientes com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar, com excepção dos actos de prática obrigatória no decurso do inquérito, como sejam os actos de interrogatório do arguido, salvo se não for possível notificá-lo, de notificação ao arguido, ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e às partes civis do despacho de encerramento do inquérito e no que respeita a certos crimes, actos investigatórios imprescindíveis para se aferir dos elementos de certos tipos de crimes, nomeadamente os exames periciais nos termos do art.° 151° do CPP. [Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa citado, e Acórdão do Tribunal Constitucional 395/04 de 2.6.2004, DR II série de 9.10. 04, p. 149751).
Na decisão desta problemática olvida-se não raramente o modelo de autonomia que em sede de exercício da acção penal o legislador no actual Código Processo Penal desenhou para a actividade do Ministério Público [Pertence ao Estado o dever de administração da justiça, art.° 202 da Constituição através de uma entidade pública que é o Ministério Público, art. 219° da Constituição, art.° 48 do Código Processo Penal.
O Ministério Público promove o processo penal depois de adquirir a notícia do crime, art.° 241° do Código Processo Penal. A investigação decorre naquilo que se chama a fase de inquérito, art.° 262°, sob a direcção do Ministério Público]. Como se refere no Acórdão n.° 581/00 do Tribunal Constitucional de acordo com o disposto no n.° 1 do artigo 219° da Constituição, ao Ministério Público compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade.
Esse exercício é regulado pela lei e, como decorre da remissão contida neste preceito para o número seguinte, acarreta um estatuto próprio do Ministério Público e a sua autonomia. Do n.° 1 do artigo 219° da Constituição pode retirar-se que o exercício da acção penal pelo Ministério Público comporta a direcção e a realização do inquérito por esta magistratura, não se cingindo esse exercício à sustentação da acusação em juízo [Figueiredo Dias, "Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal", Jornadas de Direito Processual Penal (O Novo Código de Processo Penal), 1988, p. 8-9].
No mesmo sentido se pronuncia Germano Marques da Silva [Curso de Processo Penal, volume Ill, 2a edição, p. 91) sustentado que a insuficiência de inquérito é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreva como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa e que a omissão de diligências de investigação não impostas por lei, não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade de actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público.
Das considerações que antecedem resulta pois que só a ausência absoluta de inquérito ou a omissão de diligências impostas por lei implica a nulidade do inquérito.
No caso concreto resulta pois que o arguido foi interrogado em tal qualidade , na fase de inquérito , mas apenas foi confrontado com os factos relativos ao crime de tentativa de violação/ coacção sexual cfr. fls. 20 , não tendo sido confrontado quanto aos factos relativos aos crimes de difamação imputados .
O Ac do STJ nº 1/2006, de 23/11/2005 veio a consolidar a doutrina obrigatória no sentido de que “A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui nulidade prevista no art 120, nº 2, al d) do CPP” sendo que em primeira linha esta aresto tem por base a não constituição de arguido e absoluta falta de interrogatório do mesmo para o processo o que não sucedeu no caso concreto .
Ora dispõe o artigo 272ºdo Código de Processo Penal que correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interroga-la como arguido, salvo se não for possível notifica-la sendo que no caso concreto , mais uma vez se refere que ocorreu interrogatório do arguido mas não quanto a todos os crimes imputados .
Também é certo que o Ac. Tribunal Constitucional nº 72/2912, DR, II Série de 12-03-2012, que não julgou inconstitucionais as normas constantes dos artigos 272.º, n.º 1, 120.º, n.º 2, alínea d), 141.º, n.º 4, alínea c), e 144.º, todos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que não constitui nulidade, por insuficiência de inquérito, o não confronto do arguido, em interrogatório, com todos os factos concretos que venham a ser inseridos na acusação contra ele deduzida.
Mas a situação dos autos é diversa da abordada pelo TC , pois o que está em causa não é o arguido não ter sido confrontado com todos os factos da acusação mas sim de não ter sido confrontado com todos os crimes , ou seja se o arguido foi confrontado com os factos de crime de tentativa de violação/ coacção sexual já não foi confrontado com os factos dos crimes de difamação .
Concordando com o Acórdão da Relação de Évora de 10 de Outubro de 2017, “O exercício da garantia de defesa – no caso o interrogatório- não exige uma comunicação exaustiva de todos os factos que constituem o pedaço de vida em causa, mas impõe que se comuniquem ao arguido os factos concretamente imputados, as circunstâncias de tempo e lugar e modo se forem conhecidas e os elementos do processo que sustentam a imputação, caso não existam razões para vedar o conhecimento de algum meio de prova. E, haverá uma violação da garantia de defesa do arguido nos casos em que são aditados outros factos na acusação susceptíveis de integrarem outros crimes, sejam ou não da mesma natureza, em relação aos quais ele não foi confrontado, uma vez que ninguém deve ser surpreendido com uma acusação, sem que antes lhe seja dada possibilidades de se defender da mesma.”
Note-se que mesmo o referido acórdão do Tribunal Constitucional nº 72/2012, defende que “a Constituição não exige que o arguido tenha conhecimento em momento anterior à acusação de todos os factos que venham a constar desta” (…) , “mas no pleno respeito das garantias de defesa consagradas na Constituição, tal conhecimento não poderá nunca ficar aquém dos factos essenciais a verter ou vertidos (…) na acusação” o que determinaria uma verdadeira violação das garantias de defesa. Como se sustenta no referido acórdão do TC após o primeiro interrogatório pode não ser necessário a realização de interrogatório complementar em conformidade com o art. 272º nº 1 do CPPenal e “ (…) uma vez que se assim é em relação aos casos, em que os novos factos dizem respeito ao crime sobre o qual já foi ouvido, tal já não acontece se tais factos dizem respeito a outro crime.” E explicita nos seguintes termos: “… ocorreria a violação da garantia de defesa, por ex., se o arguido fosse interrogado apenas pela prática de um crime de homicídio (do tal Sr. X) e, não obstante, fosse narrado na acusação, além desse crime, também factualidade para o crime de burla informática, e ambos em concurso real ali lhe fossem imputados. Assim, a garantia de defesa é violada quando, no decurso do inquérito o objecto do processo se alarga mediante a adição de outros pedaços de vida material e radicalmente diversos … sem que, podendo tal suceder, se haja diligenciado pela audição do arguido em torno destes novos factos.”
Ora no caso concreto verifica-se que a omissão audição / interrogatório do arguido em relação aos factos descritos na acusação particular e subsumíveis aos quatro crime de difamação traduz-se na omissão de acto legalmente obrigatório, já que é imposto pelo artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, verificando-se deste modo a nulidade do artigo 120.º, n.º 2, al. d),que foi arguida pelo interessado e em tempo como resulta do artigo 120.º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal.
Tal nulidade determina a invalidade total do despacho de acusação já que toda a factualidade aí descrita é nova para o arguido , pois nunca foi anteriormente confrontado com a mesma e deste modo , com o consequente despacho de não pronúncia nos termos conjugados dos artigos 120.º, n.º 2, al. d), 122.º, n.º 1 e 308.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal.
Neste sentido o d. acórdão da Relação de Coimbra de 3-3-2022 cuja fundamentação se segue de perto :
I – Revelando-se, na decorrência da apensação de um inquérito a outro, novos factos indiciadores de crimes sobre os quais o arguido não foi confrontado, podendo sê-lo, as acusações subsequentes (pública e particular), englobando tais factos, são (parcialmente) nulas, por ter sido omitido acto legalmente obrigatório, qual seja, o interrogatório do arguido sobre a dita factualidade.
II – Considerado o princípio acusatório, o JIC não pode ordenar a prática do acto omitido em sede de instrução nem devolver o processo ao MP para repristinação do inquérito.
4. Decisão
Pelo exposto, declaro encerrada a instrução e decido:
- Por omissão de audição / interrogatório do arguido em relação aos factos descritos na acusação particular e subsumíveis aos quatro crime de difamação por omissão de acto legalmente obrigatório, imposto pelo artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, declarar a nulidade do artigo 120.º, n.º 2, al. d),que foi arguida pelo interessado e em tempo como resulta do artigo 120.º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal.
- E em consequência determinar a invalidade total do despacho de acusação, com o consequente despacho de não pronúncia do arguido AA nos termos conjugados dos artigos 120.º, n.º 2, al. d), 122.º, n.º 1 e 308.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal.
Custas a cargo da Assistente – art.º 515º n.º 1 alinea a) do CPP com taxa de justiça que se fixa em 2 Ucs .
Notifique .
Após transito arquive.”
Da Apreciação do Mérito do Recurso
A assistente deduziu acusação particular contra o arguido imputando-lhe a prática de quatro crimes de difamação, previstos e punidos pelo artigo 180º., nº. 1, do Código Penal.
Todavia, o arguido nunca foi confrontado, na fase de inquérito, com esses factos, assim, veio arguir essa nulidade no requerimento de abertura da instrução e, em consequência, o tribunal a quo declarando-a proferiu despacho de não pronúncia e determinou o arquivamento dos autos.
A assistente insurge-se contra este despacho, precisamente, na parte em que o tribunal a quo declarando a nulidade, ocorrida em fase de inquérito, não retirou os devidos efeitos legais dessa declaração e ao invés proferiu despacho de não pronúncia.
Estabelece o artigo 272º., do Código de Processo Penal:
“1 - Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la.”
De igual modo, resulta do artigo 58°. , do Código de Processo Penal:
“ 1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:
a) Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal.”
A constituição do denunciado como arguido tem como finalidade conferir-lhe um conjunto de direitos – artigos 60º. e 61°. do Código de Processo Penal - que visam assegurar-lhe todas as garantias de defesa com consagração no artigo 32°. nº.1 da Constituição da República Portuguesa, e a possibilidade de intervenção no processo.
A obrigatoriedade da constituição de arguido só cessa nos casos de impossibilidade de convocação do denunciado, o que no caso em apreço não se verificava.
A não constituição de arguido e o seu interrogatório constitui uma nulidade nos termos do artigo 120º., n º. 2 al. d) do Código de Processo Penal, “por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios”, uma vez que o arguido podia ter sido constituído arguido e interrogado nessa qualidade e não o foi.
Ocorrendo tal nulidade pode ser declarada pelo Juiz em sede instrução, como decorre do disposto no artigo 308º, nº 3 Código de Processo Penal.
Efetivamente, as nulidades do inquérito podem ser conhecidas pelo juiz de instrução se requerida a abertura da fase processual da instrução ou, na ausência de instrução, pelo juiz da causa no momento de recebimento dos autos (artigo 311º., nº. 1, do Código de Processo Penal), uma vez que, nessa fase, compete-lhe fazer o saneamento do processo e como tal conhecer das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito.
No caso em apreço, a recorrente não coloca em causa a verificação da nulidade, ocorrida em fase de inquérito, conhecida pelo Juiz de instrução criminal, mas tão só a parte da decisão que entendeu que a consequência dessa declaração determinaria a não pronúncia do arguido.
Sustenta o Ministério Público, na 1ª. Instância, que, caso o juiz de instrução criminal decida conhecer da nulidade decorrente da falta de constituição do arguido, não pode ordenar a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público, sob pena de afrontar a estrutura acusatória do processo penal, a independência e a autonomia do Ministério Público, consagradas nos artigos 32º. nº. 5 e 219º., nº. 2 da Constituição da República Portuguesa.
Não nos parece que assim seja.
Não é este, rigorosamente, o âmbito em que deve ser enquadrada a questão. De facto, tal como sublinha o Exmo. Procurador Geral adjunto, no seu parecer, há uma certa confusão de planos, isto porque a questão reporta-se aos efeitos da declaração de nulidade e não constitui qualquer interferência na independência e autonomia do Ministério Público no exercício da ação penal orientado pelo princípio da legalidade.
Na fase de instrução, a estrutura acusatória do processo penal significa que o seu objeto é fixado pela acusação que delimita a atividade cognitiva e decisória do juiz de instrução criminal, tendo em vista assegurar as garantias de defesa do arguido, protegendo-o contra a alteração ou o alargamento do objeto do processo.
É por este motivo que a acusação constituiu, do ponto de vista da defesa, a peça processual de maior importância.
Dito de outro modo, o princípio do acusatório significa que só se pode ser julgado pela prática de um crime mediante prévia acusação que o contenha, deduzida por entidade distinta do julgador e constituindo ela o limite do julgamento.
Estipula o artigo 122º. do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “ Efeitos da declaração de nulidade”:
“1 - As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.
2 - A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respetivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.”
Da leitura da norma transcrita conclui-se que o Juiz ao declarar a nulidade de um acto está obrigado a ordenar a sua reparação, sempre que possível, e a tomar posição sobre os actos que passam a considerar-se inválidos e aquelas que são suscetíveis de aproveitamento.
A declaração de nulidade, por falta de constituição de arguido e, consequentemente, a remessa dos autos aos serviços dos Serviços do Ministério Público, para praticar um ato que por lei obrigatoriamente lhe competia - (trata-se tão só da sanação de um vício, em estrita obediência à lei, pela autoridade judiciária que no mesmo incorreu) - em nada contende com a estrutura acusatório do processo penal, nem com a independência e autonomia do Ministério Público no exercício da ação penal orientado pelo princípio da legalidade.
Na verdade, a autonomia do Ministério Público refere-se à ação penal, investigação e acusação e, a ser assim, não se pode confundir com a questão da reparação da nulidade por omissão do ato de constituição de arguido que, no estrito comprimento da lei processual penal, é atribuída ao Ministério Público como titular na fase processual de inquérito, não resulta qualquer violação da estrutura acusatório do processo penal, porque não ocorre qualquer ação suscetível de conflituar com a independência e autonomia do Ministério Público no exercício da ação penal.
Neste mesmo sentido se pronunciou o Acórdão da Relação do Porto de 5/07/23, processo nº. 6669/21.1T9PRT.P1, in www.dgsi.
Convém ainda reter que o despacho de não pronúncia apenas deverá ser proferido após o confronto de todas provas (indiciárias) recolhidas na fase do inquérito e desse escrutínio o juiz de instrução concluir pela inexistência de indícios suficientes da prática de um crime.
Deste modo, procede o recurso.
Decisão.
Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso e consequentemente;
- revogar o despacho recorrido, na parte em que declarou, como consequência da nulidade, por falta de constituição de arguido, a não pronúncia do arguido, o qual deve ser substituído por outro que ordene a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para que este decida da sanação do acto se assim o entender e, bem ainda, tomar posição sobre os actos que passam a considerar-se inválidos e aqueles que puderem ser aproveitados, prosseguindo os actos de inquérito o seu curso normal.
Sem custas.
Notifique.
Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que o presente acórdão foi elaborado pela relatora, e revisto pelas signatárias.
*
Coimbra, 9 de Abril de 2025
Maria da Conceição Miranda
Alcina Costa Ribeiro
Maria Alexandra Guiné
[1] Disponível em www.dgsi.pt.
[2] Sem esquecer que, nesse caso, o Ministério Público tinha proferido despacho de arquivamento, em termos que tornariam no mínimo muito duvidosa a obrigatoriedade de realização de interrogatório de arguido no Inquérito.
[3] Que se presume ser o datado de 2-3-2022, da autoria da Desembargadora Isabel Valongo, disponível em www.dgsi.pt.
[4]A decisão correcta, segundo nos parece, seria a que se negasse a apreciar sequer, nessa parte, a acusação deduzida, tendo em conta a respectiva invalidade e a dos subsequentes actos dela dependentes (incluindo os de instrução, nessa mesma parte).
[5] Decisão esta que se limitou a apreciar uma questão prévia, não se justificando assim a prolação de despacho de não pronúncia, nos termos já referidos supra, bem como no recurso interposto pela assistente.