CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
APREENSÃO DE VEÍCULO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
RELAÇÃO DE CAUSALIDADE ADEQUADA
DEVER DE RESTITUIÇÃO
PERDA DE VANTAGENS
ARRESTO
Sumário

I- A apreensão tem de obedecer a critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, por imposição do princípio da proporcionalidade, na vertente de proibição do excesso, consagrado no art.º 18º/2 da Constituição da República Portuguesa.
II- No respeitante à declaração de perda de veículos automóveis, e em ordem a salvaguardar o princípio da proporcionalidade consagrado no n.º 2 do artigo 18º da CRP, o STJ tem interpretado o artigo 35º do Decreto-Lei n.º 15/93 no sentido de exigir que a relação do veículo com a prática do crime se revista de um carácter significativo, de que entre a utilização do veículo e a prática do crime exista uma relação de causalidade adequada, de modo a que, sem essa utilização, a infração em concreto não teria sido praticada ou não o teria sido na forma em que o foi.
III- Decorre desta jurisprudência, que conforma o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, que a perda só deve ser declarada, em regra quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito.
IV- E é neste quadro que se inscreve o dever de restituição do veículo apreendido logo que a sua manutenção deixe de ser necessária para assegurar as finalidades prosseguidas pela apreensão.
V- A circunstância de ter sido requerida a perda de vantagens, com base em liquidação de património incongruente, ao abrigo do regime da Lei 5/2002 – e ter sido decretado o arresto dos mesmos bens - não tem qualquer reflexo na apreensão de bens já que são diferentes os pressupostos e as finalidades das garantias usadas, ainda que, nalguns casos, com aplicação subsidiária e, noutros, alternativa.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

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         Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Coimbra:

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I- Relatório:


No Juízo de Instrução Criminal de Leiria - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria foi proferido despacho judicial, datado de 1/12/2024,  a indeferir o pedido de revogação da apreensão dos veículos com as matrículas ..-..-LM, ..-VE-.. e AT-..-1Z, que havia sido requerida pelo arguido AA.

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-» Inconformado, o arguido BB interpôs recurso, apresentando motivações e concluindo do seguinte modo (transcrição):
1. O objeto deste recurso, que versa tão-só sobre matéria de direito, à luz do disposto no n. 0 2 do artigo 412.0 do Código de Processo Penal, é o despacho datado de 01-12-2024, no âmbito do qual se decidiu declarar improcedente o pedido de revogação da apreensão dos veículos com as matrículas ..-..-LM, ..-VE-.. e AT-..-1Z.
2. Atenta a factualidade indiciada no despacho proferido no dia 09-08-2024, no seguimento do 1. 0 interrogatório judicial de arguido detido, o tribunal a quo considerou que existem fortes indícios de que os veículos em causa consubstanciam instrumentos do crime, afigurando-se, pois, provável a declaração de perda a favor do Estado, o que justifica a manutenção da apreensão.
3. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o disposto no n. º 1 do artigo 35.º do Decreto-Lei n. 0 15/93, de 22 de janeiro e no n.º 1 do artigo 178º do Código de Processo Penal, dado que, embora tenha colocado a questão corretamente, considerou que o critério da essencialidade ínsito a estas disposições legais se basta com uma mera relação, qualquer que seja, ao facto ilícito típico, operando de forma automática.
4. E não é assim que estas normas devem ser interpretadas.
5. A verificação do requisito — «tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infração» —, necessário à declaração de perda prevista no n.º 1 do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, cuja probabilidade de vir a ocorrer legitima a manutenção da apreensão, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 178.º do Código de Processo Penal, subjaz um critério de essencialidade.
6. Neste sentido, um objeto jamais poderá ser considerado um instrumento do crime e, assim, manter-se apreendido, quando se conclua que a infração teria sido praticada, nos aspetos com relevância penal, da mesmíssima forma.
7. Bem vistas as coisas, analisando a factualidade que se encontra indiciada e vertida no despacho proferido no dia 09-08-2024, no seguimento do 1.º interrogatório judicial de arguido detido, é precisamente esta a situação que se verifica no caso destes autos.
8. De um lado, alegadamente, o arguido dedicava-se à venda direta de reduzidas quantidades aos consumidores que o procuravam para esse efeito, as quais podiam ser facilmente acondicionadas no bolso de uma qualquer peça de vestuário, pelo que, da perspetiva do peso da mercadoria, os carros são, in casu, absolutamente irrelevantes. Sublinhe-se que a quantidade mais elevada referida nos autos ascende a 50,9 gramas.
9. De outro lado, a circunstância de o arguido ter, supostamente, realizado transações em localidades distintas não conduz, por si só, à conclusão de que as mesmas não se teriam verificado (ou teriam ocorrido em menor número) caso o arguido não dispusesse dos veículos apreendidos como meio de locomoção, pelo que, do ponto de vista do trajeto, os carros apreendidos afiguram-se, igualmente, irrelevantes.
10. Em primeiro lugar, as localidades são muito próximas umas das outras, possibilitando a realização dos trajetos destinados à venda de produtos estupefacientes a pé, de bicicleta, à boleia ou através da utilização de transportes públicos.
11. Em segundo lugar, o arguido iria realizar o percurso entre as localidades em causa — ...; ...; ...; ... — fosse por que meio fosse, dado que o seu local de trabalho situa-se em ... e a sua residência localiza-se em ..., sendo certo que para chegar do primeiro ponto ao segundo, e vice-versa, é necessário passar pelas localidades de ... e ....
12. Tudo visto, constata-se que o veículos automóveis apreendidos não eram essenciais à prática da infração, a qual teria sido cometida da mesmíssima forma caso o arguido não tivesse usado tal meio de transporte.
13. De harmonia com as considerações precedentes, os veículos automóveis utilizados não são instrumentos do crime, dado que não preenchem o critério da essencialidade que subjaz ao n.º 1 do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, razão pela qual se impõe a revogação da apreensão, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 178.º  do Código de Processo Penal.
14. Deve. pois. a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra em que se decida revogar a apreensão dos automóveis com as matrículas ..-..-LM: ..-VE-.. e ..-..-IZ.
15. Ainda que assim não se entenda, o que só por mero dever de patrocínio aqui se concede, jamais necessitaria o arguido de fazer uso de três automóveis distintos, o que torna evidente que, pelo menos, dois dos carros que atualmente estão apreendidos eram, totalmente, desnecessários.
16. De sublinhar que nada consta nos autos a propósito da necessidade de usar os veículos para dissimular fosse o que fosse, ao que acresce que os veículos em causa eram, igualmente, utilizados pelo arguido para realizar o percurso entre a sua residência e o seu local de trabalho.
17. Assim, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro em que se decida revogar a apreensão de, pelo menos, dois dos veículos automóveis que atualmente se encontram apreendidos.
Nestes termos, requer-se a Vossas Excelências se dignem revogar o despacho recorrido, substituindo-o por outro em que se decida revogar a apreensão dos automóveis com as matrículas ..-..-LM; ..-VE-.. e AT-..-1Z.”

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-» O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo (artigos 406º, n.º 1, 407º, n.º 1 e n.º 2 al. a) , 408º, a contrario do C. P. Penal).

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-» O Ministério Público respondeu ao recurso, que motivou  e do qual extraiu as seguintes conclusões:
1.            Ao contrário do que alega o recorrente, os veículos apreendidos foram um instrumento essencial para a prática do crime;
2.            Ainda que existisse uma rede de transporte público, os respetivos horários eram incompatíveis com a frequência diária com a que venda era efetuada, entre várias localidades;
3.            Por outro lado, conforme resulta das escutas telefónicas, os arguidos eram extremamente cautelosos na prática desde ilícito – razão pela qual utilizavam vários veículos – demonstrativo de que dificilmente utilizariam transportes de táxi/TVE onde poderia facilmente ser identificada e denunciada a sua atividade;
4.            A utilização de vários veículos permitiu ao arguido evitar ser identificado/reconhecido e eventualmente denunciado, para além de dificultar ações de vigilância;

5.            Pelo que deverá o recurso improceder, mantendo-se a decisão recorrida.

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-» Uma vez remetido a este Tribunal, a Ex.ma Senhora Procuradora -Geral Adjunta proferiu parecer no sentido da improcedência do recurso, pelas razões elencadas na resposta do Ministério Público em 1ª instância, acrescentando que:
Seguindo a formulação abstrata proposta em Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.07.2024 (Relatora Ana Cláudia Nogueira), importa, na decisão a proferir, tendo, por base os indícios reunidos nos autos, formular um juízo de probabilidade de perda a favor do Estado com esse fundamento; na formulação desse juízo, há de contemplar-se a jurisprudência segundo a qual a declaração de perda não é automática, encontrando-se sujeita a critérios de causalidade e proporcionalidade;  Será provável a declaração de perda a favor do Estado se se concluir, ainda que com base em prova indiciária, que o crime não teria sido praticado - ou teria sido praticado de uma forma diferente, sendo essa diferença penalmente relevante - sem o veículo apreendido, segundo um critério de essencialidade; a utilização desse veículo será essencial se tornar a prática do crime significativamente mais fácil e se não for episódica ou ocasional, mas reiterada e prolongada no tempo; por outro lado, a futura perda desse objeto há de antever-se como justa e proporcional à gravidade do crime que se indicia ter sido praticado.
Assim, num juízo indiciário – que é aquele que, nesta fase processual pode ser desenvolvido - o tribunal recorrido considerou essencial o uso das viaturas apreendidas, não se vislumbrando censura a fazer ao despacho proferido.
Não se pronunciou o tribunal recorrido sobre a vertente de garantia patrimonial, a qual foi também ponderada na validação da apreensão e repetidamente invocada pelo Ministério Público.
Salienta-se, em todo o caso, que posteriormente a esta decisão e ao recurso que sobre ela incidiu, foi requerida a perda de vantagens, com base em liquidação de património incongruente, ao abrigo do regime da Lei 5/2002 – sendo requerido arresto dos mesmos bens, entretanto decretado – pelo que a decisão que vier a ser proferida quanto ao despacho recorrido não colide com essa medida, já que são diferentes os pressupostos e as finalidades das garantias usadas, ainda que, nalguns casos, com aplicação subsidiária e, noutros, alternativa. 
Nas palavras de João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues : “(…) o concurso de garantias não constitui litispendência, mas o funcionamento natural de mecanismos diversos (João Conde Correia, 2012, pp 542/3). Cumpre ainda referir que todas estas medidas cautelares (apreensão, arresto preventivo e arresto para a perda ampliada) poderão ser aplicados concomitantemente e no mesmo processo.”

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-» Cumprido o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPP, o arguido respondeu, reiterando tudo quanto alegou no recurso por si interposto.

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Proferido despacho liminar, foram os autos aos “vistos” e teve lugar a conferência.

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II – Questões a decidir:

De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.

Atentas as conclusões apresentadas, as questões a examinar e decidir prendem-se com saber se deve ser revogada a apreensão dos veículos automóveis do recorrente.

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III -Transcrição das peças processuais relevantes para a decisão da causa:
a) Despacho recorrido:
1. BB requer a revogação da apreensão dos automóveis com as matrículas ..-..-LM, ..-VE-.. e ..-..-IZ, alegando ser seu dono, inexistindo indícios que permitam concluir que os veículos em causa fossem usados na atividade ilícita à qual o arguido supostamente se dedicava, podendo a mesma ser realizada a pé.
O MP opõe-se.
Cumpre conhecer e decidir:
2.A questão é tão somente saber se os veículos assinalados mantêm-se apreendidos.
3. Ora, não está em causa a propriedade dos veículos. Seja o MP seja o Requerente não põem tal em causa.
O parâmetro legal é o seguinte: são apreendidos os instrumentos relacionados com a prática de um facto ilícito típico. É no que tem por essencial  decidir dando resposta ao problema o que consta no artigo 178 n.º 1 do C.P.P..
4. Ora, até ao momento, resultou fortemente indiciado que o Requerente usava os referidos veículos no âmbito do ilícito que resulta fortemente indiciado: crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21 do DL 15/93, cfr. fls. 77, 78 (despacho que aplicou a medida de coação, facto 3).
Será provável a declaração de perda a favor do Estado se se concluir, ainda que com base em prova indiciária, que o crime não teria sido praticado - ou teria sido praticado de uma forma diferente, sendo essa diferença penalmente relevante - sem o veículo apreendido, segundo um critério de essencialidade.
No caso, e para o que agora importa, os veículos eram usados na economia do ilícito.
E, é notório, por não ser algo anormal, referir-se que há um interesse claro nisso: diferentes veículos usados servem para dificultar ações de vigilância ou evitar consumidores malquistos ou com crédito reduzido.
Por outro lado, não é a pé que o comércio era realizado de forma eficiente.
Vejam-se os locais: ... (concelho ...), ... (...), R. dos ... em ..., ..., ..., ... (...), ... (...).  Acaso fosse realizado a pé, e da forma indiciada em 30. (por reporte à promoção), nunca o dono dos mencionados veículos, o aqui Requerente, conseguiria tantas vendas como a que sucederam.
E, não se diga que a consideração é despicienda: perante o vício, propiciador de uma permanente procura, outros haverão a fornecer, como um olhar atento ao flagelo em causa será capaz de transmitir a um auditório objetivo e imparcial.
Aliás, como pode ser facilmente visto no motor de busca da Internet tais percursos a partir de sua casa são de cinco, dez, doze quilómetros, o que a pé levaria uma ou duas horas, para além do perigo, até fisicamente para si, de andar a pé com estupefaciente guardado, à vista de todos. 
Conclui-se: os três veículos são essenciais ao projeto criminoso.
5. Decide-se declarar improcedente o pedido de revogação da apreensão dos veículos com as matrículas ..-..-LM, ..-VE-.. e ..-..-IZ. Notifique.”

b) Requerimento do arguido:
BB, arguido nos autos à margem referenciados e aí melhor identificado, vem requerer a Vossa Excelência, à luz do disposto no n.º 7 do artigo 178.º do Código de Processo Penal, a revogação da apreensão dos automóveis com as matrículas ..-..-LM, ..-VE-.. e ..-..-IZ e, subsidiariamente, reclamar da decisão de venda antecipada do primeiro proferida pelo Gabinete de Administração de Bens (GAB), conforme decorre da Lei n.º 45/2011, de 24 de junho, o que faz nos termos e com os fundamentos que de seguida se expõem
1. Em primeiro lugar, os veículos automóveis com as matrículas ..-..-LM, ..-VE-.. e ..-..-IZ são propriedade do arguido e foram adquiridos com dinheiro proveniente da sua atividade profissional enquanto operário fabril
2. Em segundo lugar, inexistem nos autos quaisquer indícios que permitam concluir que estes veículos automóveis eram utilizados na atividade ilícita à qual o arguido supostamente se dedicava.
3. Em terceiro lugar, o Ministério Público, aparentemente, já se pronunciou sobre a desnecessidade de manter estes bens apreendidos para efeitos de prova.
4. É admissível, de harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 178.º do Código de Processo Penal, a apreensão de bens que consubstanciem «instrumentos, produtos ou vantagens relacionadas com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir de prova».
5.  A apreensão tem, essencialmente, duas finalidades. Uma finalidade probatória, garantir a conservação da prova, e uma finalidade confiscatória, garantir a conservação dos bens para que seja possível executar a declaração de perda do mesmo a favor do Estado.
6. In casu, os carros não constituem instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática do crime alegadamente cometido pelo arguido.
7. E isto porque, de um lado, os mesmos foram adquiridos com dinheiro decorrente da atividade profissional do arguido e não se afiguram essenciais à prática do suposto crime, dado que, atenta a factualidade indiciada, o arguido poderia ter- se deslocado de outras formas, por exemplo, a pé (!).
8. De outro lado, ainda que assim não se entendesse, sempre se diria que a apreensão não tem nenhuma justificação, dado que é inútil para efeitos de prova e que os automóveis não são suscetíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado.
9. Nestes termos, dúvidas não restam de que se impõe a revogação da apreensão dos
veículos com as matrículas ..-..-LM, ..-VE-.. e ..-..-IZ, o que se requer.
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(…)
Nestes termos, requer-se a Vossa Excelência, à luz do n.º 7 do artigo 178.º do Código de Processo Penal, e com a fundamentação constante dos artigos 1.º a 9.º do presente articulado, se digne revogar a apreensão dos veículos com as matrículas ..-..-LM, ..-VE-.. e ..-..-IZ.”


c) Promoção do M.º P.º
II A fls. 1831-1833 o arguido BB apresentou um requerimento, dirigido ao Mmo. Juiz de Instrução, requerendo a revogação da apreensão dos automóveis com as matrículas ..-..-LM, ..-VE-.. e ..-..-IZ, bem como reclamar da decisão de venda antecipada do primeiro proferida pelo Gabinete de Administração de Bens (GAB).
                Para apreciação do referido requerimento, desentranhe o mesmo (fls. 1830-1833) – deixando cópia no seu lugar – e extraia certidão do presente despacho, bem como dos seguintes elementos – que deverão integrar o apenso:
                - Certidão de fls. 1205-107;
                - Autos de apreensão de veículo automóvel, fls. 1213, 1216, 1225;
                - Relatórios de busca, fls. 1214-1215, 1217-1218, 1220-1221;
- Requerimento para 1.º interrogatório, fls. 1260-1280 (onde consta o pedido, fundamentado, para intervenção do GAB);
                - Auto de interrogatório dos arguidos, fls. 1289-1330;
                - Pedido de intervenção do GRA, verso de fls. 1360-1365;
                - Informação do GAB, fls. 1505;
                - Auto de exame e avaliação do veículo de matrícula ..-..-IZ, fls. 1538-1540;
                - Auto de exame e avaliação do veículo de matrícula ..-VE-.., fls. 1544-1546;
                - Auto de exame e avaliação do veículo de matrícula ..-..-LM, fls. 1547-1549;
                - Notificação do GAB, fls. 1725-1727.
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                Os veículos apreendidos, conforme se consignou no próprio requerimento para primeiro interrogatório judicial, para além de terem sido utilizados na prática do crime de tráfico – cfr. ponto 3 do referido requerimento – existem fortes indícios de terem sido adquiridos com quantias monetárias obtidas com o crime de tráfico de estupefacientes, pelo que, com elevada probabilidade poderão vir a ser declarados perdidos a favor do Estado nos termos dos artigos 109.º e 110.º do Código Penal.
                Note-se que o arguido BB é funcionário a empresa A... SA, com última remuneração recebida em agosto de 2024 no valor de € 287,36 (duzentos e oitenta e sete euros e trinta seis cêntimos).
                Com efeito, de setembro de 2022 a agosto de 2023, o arguido BB adquiriu veículos automóveis, num valor superior a 56 500 € o que, claramente, é incompatível com os seus rendimentos auferidos como funcionário na referida empresa, tendo de ser adquiridos, necessariamente, com os valores recebidos pela prática do crime de tráfico.
                Assim, atenta a elevada probabilidade de poder ser considerado vantagem da prática dos crimes em investigação (cfr. artigo 110º, nº 1, al. b), do Código Penal e 35º, do D.L. nº 15/93, de 22 de Janeiro) e/ou ser promovido o ser arresto, na sequência da intervenção do G.R.A. – Gabinete de Recuperação de Ativos -  nos termos das disposições legais conjugadas dos artigos 109º a 111º, do Código Penal, 1º, nº 1, al. a) e 7º, ambos da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, 3º, nº 1 e 4º e 7º, nº 1, al. b), todos da Lei nº 45/2011, de 24 de Junho, entendemos que a apreensão dos veículos deve ser mantida.”

                                                           *
IV – Do mérito do recurso:

Compulsado o presente apenso de recurso, constatamos que a apreensão dos veículos em causa nos autos foi realizadas pelo OPC (autos de apreensão datados de 7/8/2024 e juntos a fls. 10 a 12) e foi validada pelo M.º P.º ao abrigo do disposto no art.º 178º do CPP (cfr. promoção datada de 9/8/2024 e junta a fls. 19 a 39).

O juiz de instrução criminal, por entender que estão em causa veículos que foram essenciais para a prática do crime e que, por isso, são suscetíveis de vir a ser declarados perdidos a favor do Estado, indeferiu o levantamento dessa apreensão, sendo esta a decisão a sindicar.

Ora, diz-nos o art.º 178º do CPP que:

“1. São apreendidos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova.

2 - Os objetos apreendidos são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto.

3 - As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária.

4 - Os órgãos de polícia criminal podem efetuar apreensões no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 249.º

5 - As apreensões efetuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas.

6 - Os titulares de bens ou direitos objeto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 5 do artigo 68.º

7 - Se os objetos apreendidos forem suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o. A autoridade judiciária prescinde da presença do interessado quando esta não for possível.”

Como resulta do referido normativo, a apreensão de objetos visa, por um lado, garantir a integridade da coisa, de modo a “conservar intacto o seu valor geneseológico inicial” (função conservatória, de segurança processual) e, por outro, “garantir a execução do confisco dos instrumenta, producta e vantagens decorrentes da prática de um facto ilícito” (função de confisco, de garantia patrimonial). “Embora tradicionalmente associada à prova, a apreensão é, pois, apenas uma mera medida conservatória de certos bens, seja porque eles têm interesse probatório, seja porque eles devem, a final, ser declarados perdidos. O que está em causa é a imposição de um vínculo de indisponibilidade, com carácter provisório, com vista à sua futura utilização processual.” - Conde Correia, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 3ª ed. Tomo II, Almedina, pág. 637 e 238 (dessa dupla vertente da apreensão, dão também conta Duarte Nunes e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do CPP, vol. I, 5ª edição atualizada, pg. 778).

Também o Tribunal Constitucional se tem pronunciado sobre esta dupla vertente da apreensão, em vários Acórdãos, de que é exemplo o AC. n.º 294/2008, de 29 de maio, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080294.html onde se escreve que:

«a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objetos apreendidos à ordem do processo até à decisão final»

Embora unificadas na mesma norma, estas duas finalidades processuais são independentes: uma pode existir sem a outra. A apreensão pode ser indispensável para a prova do facto e irrelevante para efeitos de confisco e vice-versa, imprescindível para este e inútil para aquela.

A apreensão para conservação da prova, tendo em vista a descoberta da verdade e o exercício do ius puniendi estadual, tem na sua génese a constatação de que, sem a imposição de um vínculo de indisponibilidade sobre o bem apreendido, ele pode ser destruído ou extraviado ou adulterado. Com tal objetivo, é permitida a apreensão de tudo aquilo que seja necessário para demonstrar o thema probandum.

Já a apreensão para confisco visa garantir a execução da sentença penal, sendo que, sem um sistema eficaz de perda, “o verdictum final arrisca-se a ser simbólico, sem qualquer possibilidade de execução prática” (cfr. Conde Correia, Apreensão ou arresto preventivo dos proventos do crime?, in RPCC, 25, 2015).

Há que notar, contudo, que a apreensão não prossegue quaisquer intuitos substantivos, como a perda antecipada da coisa. Em causa está apenas garantir essa possibilidade futura.

E, considerando esta função, o âmbito objetivo dos ativos que podem ser apreendidos circunscreve-se aos instrumentos, produtos e vantagens do crime, de suspeitos, arguidos ou terceiros, como previsto nos arts. 109º a 111º, do Código Penal.

Lembram Paulo Pinto de Albuquerque e Duarte Nunes, loc. cit., nota 4 que, estando em causa  a limitação no uso e fruição desses bens pelo seu proprietário decorrente da sua apreensão em processo crime, a apreensão tem de obedecer a critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, por imposição do princípio da proporcionalidade, na vertente de proibição do excesso, consagrado no art.º 18º/2 da Constituição da República Portuguesa.

A apreensão, tal como sucede com todas as restrições de direitos e liberdades resultantes da aplicação de medidas cautelares em sede criminal, está sujeita aos princípios da proporcionalidade e deverá cingir-se ao estritamente necessário para prossecução dos desígnios que serve, quer quanto à sua extensão, quer quanto à forma de execução, quer ainda quanto à duração da indisponibilidade sobre o bem.

Em qualquer caso, há um limite absoluto para a restrição de direitos, liberdades e garantias que consiste no respeito do conteúdo essencial do preceito que os consagra.

(para uma análise mais exaustiva da aplicação destes princípios à apreensão, cfr. o Ac RL de 05 Março 2024, Processo: 413/14.0TELSB-S.L1-5, citado também no parecer antecedente)

À luz das considerações supra tecidas, a questão reside pois em saber se a apreensão dos veículos do arguido tem respaldo na CRP e na lei processual penal.

In casu, a função visada com a manutenção da apreensão dos veículos é  apenas a de garantia da perda do produto e vantagem do crime.

E não importa apreciar neste recurso a verificação de indícios da prática do crime imputado ao arguido, afirmada no despacho judicial proferido em sede de primeiro interrogatório judicial (que foi confirmado por Acórdão desta relação proferido no apenso A), nem tampouco a legalidade do despacho que validou a apreensão dos veículos reclamados pela recorrente, pois os despachos em causa transitaram em julgado.

Apenas cumpre tão só aferir se a apreensão ainda se justifica.

Ora, no Código Penal Português, nos arts. 109º a 112º do Código Penal prevêem-se três modalidades de perda de bens: a perda de instrumentos, a de produtos e a de vantagens.

Todas estas modalidades radicam em necessidades de prevenção.

 Contudo, na perda de instrumentos e objectos está em causa a perigosidade imediata da sua adequação para a prática de factos ilícitos típicos, ao passo que na perda de produtos e vantagens está em causa a prevenção da criminalidade ligada à ideia de que o ‘crime não compensa’.

Lê-se no Ac STJ de fixação de jurisprudência 5/2024, de 9 de maio, publicado no Diário da República n.º 90/2024, Série I de 2024-05-09:

Efectivamente, a perda de vantagens desenvolve um papel fundamental no combate à criminalidade, designadamente económica, pois, só privando os infractores, de forma efectiva, dos bens, serviços e benefícios que a actividade criminosa lhes proporciona, ou seja, garantindo que não beneficiam economicamente da sua prática, se consegue o efeito dissuasor pretendido.

E previu o legislador penal, especificamente para o crime de tráfico de estupefacientes (arts 35 e 36ºdo DL 15/93) - e tal como acontece nos termos gerais - a perda a favor do Estado de objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de tal facto ilícito ou que por esta tiverem sido produzidos e ainda as recompensas, direitos, objetos e vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridas, para si ou para outrem, pelos agentes do crime

E na “perda específica associada às medidas de combate à criminalidade organizada”, aplicável, entre outros, aos crimes de tráfico de estupefacientes previstos nos art.ºs 21º a 23º e 28º, do Decreto-Lei 15/93, de 22.01, branqueamento de capitais e associação criminosa (art.º 1º, n.º 1, als. a), i) e j), da Lei 5/2002, de 11 de janeiro), estabelece-se no art.º 12º-B desta Lei 5/2002, que a declaração de perda dos instrumentos do crime terá lugar ainda que os mesmos não ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral e a ordem públicas, nem ofereçam risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícito

Porém, no respeitante à declaração de perda de veículos automóveis, e em ordem a salvaguardar o princípio da proporcionalidade consagrado no n.º 2 do artigo 18º da CRP, o STJ tem interpretado o artigo 35º do Decreto-Lei n.º 15/93  no sentido de exigir que a relação do veículo com a prática do crime se revista de um carácter significativo, de que entre a utilização do veículo e a prática do crime exista uma relação de causalidade adequada, de modo a que, sem essa utilização, a infração em concreto não teria sido praticada ou não o teria sido na forma em que o foi.

 (neste sentido, e por todos, cfr. os Acs. STJ de 21-10-2004, Processo: 04P3205 e de  13/12/2006, Processo: 06P3664, disponíveis em www.dgsi.pt)

Lemos no referido Ac STJ de 13/12/2006:

“Trata-se de orientação que tem por fundamento a necessidade de existência ou preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre o objecto e a infracção, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objecto. Decorre desta jurisprudência, que conforma o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, que a perda só deve ser declarada, em regra - e não sempre, visto que perante objecto de extrema perigosidade ou perante a existência de altíssimo risco da utilização daquele para a prática de outros crimes, poderá o julgador declarar a sua perda independentemente da existência de proporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito, devendo para tanto sopesar, de acordo com um prudente juízo, os valores e interesses em conflito -, quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito.”

É precisamente a procura desse equilíbrio entre estes interesses públicos da aplicação do direito criminal e os direitos dos arguidos e de terceiros que possam ser atingidos com as normas impositivas de  restrições de direitos, liberdades e garantias que constitui, não raras vezes, a principal dificuldade do direito penal e processual penal.

E é neste quadro que se inscreve o dever de restituição do bem apreendido logo que a sua manutenção deixe de ser necessária para assegurar as finalidades prosseguidas pela apreensão.

Ora, no caso em apreço, da leitura dos factos que estão fortemente indiciados e que estão descritos no despacho judicial proferido em sede de primeiro interrogatório judicial,  a 9/8/2024, resulta  uma utilização reiterada, habitual dos três veículos por parte do arguido na atividade de tráfico a que se dedicava, deslocando-se por várias localidades (como seja ..., ..., ... e ...), sendo que sem tal utilização  a entrega de estupefacientes não ocorreria com a facilidade, rapidez, recato e volume retratada em tal despacho.

O uso de veículos diferentes permite manter uma maior discrição da atividade, escondê-la de um observador mais atento

A utilização dos veículos em causa mostrou-se, assim, essencial para o cometimento do ilícito, indispensável ao transporte e ocultação do produto estupefaciente. O crime, a ter tido lugar, teria um volume de vendas distinto e seria detetado e investigado com maior facilidade.

Existe, assim, a exigida «relação de causalidade adequada» entre a utilização daqueles veículos e a prática do crime previsto no artigo 21º, n.º 1, do DL 15/93, razão pela qual é possível tecer um juízo de prognose futura de possibilidade de os referidos veículos serem declarados perdidos a favor do Estado, a qual se afigura justa e proporcional.

Note-se ainda que é irrelevante para a perda a circunstância dos veículos serem usados pelo arguido noutras atividades, para além da de venda de produtos estupefacientes.

Pelo exposto, a apreensão continua a mostrar-se necessária, como garantia de confisco.

Uma última nota, no sentido de que a circunstância de ter sido requerida a perda de vantagens, com base em liquidação de património incongruente, ao abrigo do regime da Lei 5/2002 – e ter sido decretado o arresto dos mesmos bens  não tem qualquer reflexo na presente decisão já que, como salienta a Sra Procuradora Geral Adjunta no parecer que antecede, “são diferentes os pressupostos e as finalidades das garantias usadas, ainda que, nalguns casos, com aplicação subsidiária e, noutros, alternativa.

Nas palavras de João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues1: “(…) o concurso de garantias não constitui litispendência, mas o funcionamento natural de mecanismos diversos (João Conde Correia, 2012, pp 542/3). Cumpre ainda referir que todas estas medidas cautelares (apreensão, arresto preventivo e arresto para a perda ampliada) poderão ser aplicados concomitantemente e no mesmo processo.”

            Em suma: o recurso do arguido improcede, confirmando-se a decisão recorrida.


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V. Decisão:

Pelo exposto, as juízas da 5ª secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, após conferência, acordam em negar provimento ao recurso do arguido e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça individualmente devida em 3UC.

Notifique


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Coimbra, 9-04-2025

[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

   Sara Reis Marques


                                          Maria da Conceição Miranda

                                           Maria Alexandra Guiné