I. As pessoas colectivas são, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código Civil, representadas, em juízo e fora dele, pela pessoa que os estatutos determinarem ou, na falta de disposição estatutária, à administração ou a quem por ela for designado e que os negócios jurídicos realizados pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último [artigo 258.º, n.º 1, do Código Civil].
II. Quando o procedimento criminal depender de queixa do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
III. A queixa abrange na sua dimensão dois elementos que se exigem ao titular do direito violado: a) dar conhecimento ao Ministério Público dos factos com relevância penal e b) manifestar vontade na promoção do processo penal.
IV. A declaração de vontade, por regra, vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. [artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil].
V. Quando o declarante emite uma declaração divergente da vontade real, sem ter consciência dessa falta de coincidência, incorre num lapso ou equivoco, podendo ser rectificada, nos termos do artigo 249.º do Código Civil.
VI. Consagra-se, aqui, o principio da retificação da declaração aplicável, também, aos actos processuais praticados pelas partes no âmbito de um processo, por força do artigo 295.º, do Código Civil, em conformidade com os princípios processuais, como sejam o direito a um processo equitativo e à tutela judicial efetiva, a boa fé processual, a adequação formal e a prevalência do fundo sobre a forma.
VII. Não prevendo o Código de Processo Penal norma para suprimir as deficiências formais dos actos praticados pelos sujeitos processuais, é de convocar, subsidiariamente, o artigo 146º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º, do Código de Processo Penal, nos termos da qual, para além, da admissibilidade da retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada [artigo 146.º n.º 1], deve, ainda, o juiz admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa [artigo 146.º, n.º 2].
VIII. A circunstância da participação criminal não conter a expressão habitual que, neste tipo de situações, costuma ser usada para designar a actuação em nome de outrem, isto é, que o declarante actua por si e em representação das sociedades que representa; não significa que o declarante não tenha manifestado a vontade de apresentar queixa em nome e no interesse das sociedades que representa.
IX. A queixa não exige formalidades especiais, podendo ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a vontade inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto.
X. A validade e eficácia da queixa não depende da menção à fórmula sacramental, o denunciante, sócio maioritário e gerente das sociedades (…) por si e em nome das suas representadas requer a instauração do procedimento criminal.
XI. Se o participante, sócio gerente das sociedades ofendidas, revela no texto da participação, nos documentos e procuração que a acompanham e em todo o comportamento processual, mormente o acto de retificação, que a queixa por si assinada se destinava a instaurar procedimento criminal contra as denunciadas pelos factos lesivos dos interesses legítimos das empresas de quem é o legal representante, tendo subscrito e assinado a referida queixa em nome das daquelas, não pode deixar de se concluir que a queixa foi legitima e tempestivamente apresentada, produzindo, todos os seus efeitos na esfera jurídica das sociedades.
XII.O Ministério Público, no exercício da acção penal, tem o poder/dever de promover o processo e de tomar posição expressa sobre a sua tramitação e destino. Este poder/dever da promoção processual refere-se quer aos crimes de natureza pública, quer semi-pública, quer particulares.
XIII. No caso dos crimes particulares, a promoção processo consiste em notificar o assistente nos termos e para efeitos do disposto no artigo 285.º, do Código de Processo Penal, isto é, para que este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular [n.º 1], indicando na notificação se foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os seus agentes [n.º2], podendo nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles. [n.º 4].
XIV. Se o Ministério proferiu despacho de arquivamento em relação aos crimes públicos e semi-públicos, sem dar oportunidade à ofendida de se constituir assistente e deduzir acusação particular, não a tendo notificado nos termos dos preceitos legais citados, não promoveu o processo nos termos e segundo as regras legais do artigo 48º do Código de Processo Penal (que remete expressamente para o artigo 50º quanto aos crimes particulares).
XV. A falta de promoção de processo por crime particular integra a nulidade insanável prevista na alínea b) do artigo 119º do Código de Processo Penal, tornando inválido o acto em que se verificou, acarretando a invalidade do próprio despacho de arquivamento e de tudo o que foi praticado posteriormente ao arquivamento.
XVI. A nulidade tem por efeito, a invalidade do acto em que se verificaram, bem como os que dele dependerem e aqueles que puderem afectar [artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal].
XVII. A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade. [artigo 122.º, n.º 2, do Código de Processo Penal].
XVIII. Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela [artigo 122.º, n.º 3, do Código de Processo Penal].
(Sumário elaborado pela Relatora).
ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
I. RELATÓRIO
1. Em 2 de setembro de 2024, foi proferida a seguinte de decisão:
«Por despacho proferido em 21/05/2024, o Ministério Público encerrou o inquérito, arquivando os autos na parte atinente ao crime de burla denunciado e ordenando a notificação do assistente para, querendo, deduzir acusação particular quanto aos crimes de difamação e ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva – cf. fls. 251.
Apenas existe um assistente constituído no processo – AA, a fls. 222.
Consequentemente, só este foi notificado do despacho de arquivamento e para, querendo, deduzir acusação particular – cf. fls. 254 a 256.
O mesmo, em requerimento da sua então advogada remetido em 13/06/2024, veio requerer “a prolação de Despacho que se pronuncie sobre o requerimento de constituição de Assistente, apresentado a 08/04/2024, das sociedades A..., Lda. (…) e B..., Unipessoal, Lda.” – cf. fls. 269. Na mesma data, pela pena da mesma advogada, foi formulada acusação particular em nome do assistente e das duas invocadas sociedades – cf. fls. 270 a 280.
O Ministério Público, depois de solicitar esclarecimentos, optou por declarar não acompanhar “a acusação particular deduzida pela assistente nestes autos” – cf. fls. 285/286.
Perante os esclarecimentos prestados pelo assistente AA, no sentido de que pretendia a constituição como assistentes das duas sociedades que indicou – cf. fls. 296 –, o Ministério Público referiu nada ter a opor à admissão de tais sociedades como assistentes – cf. fls. 300.
Do exposto resulta, desde logo, que o inquérito findou com despacho de arquivamento que assumiu existir um único assistente e putativo ofendido: AA. Nunca se referiu a possibilidade de estarem em causa outros ofendidos, nem quanto a esses foi diligenciada qualquer notificação para qualquer efeito, nomeadamente dedução de acusação particular. E, assim sendo, é manifesto que o processo, tal como configurado pelo Ministério Público, tem como único ofendido AA.
Não se percebe, pois, como possa o Ministério Público sustentar que as sociedades A... e B... devem ser admitidas a intervir nos autos como assistentes, quando nunca as tratou como ofendidas. Uma de duas: ou o processo se mantém como configurado pelo Ministério Público e o único ofendido é AA, ou tem que ser alterado o despacho de encerramento do inquérito de modo a considerar serem também ofendidas as indicadas sociedades. O que não pode é manter-se o despacho de encerramento do inquérito e pretender a admissão como assistentes de sociedades que, face àquele, não são ofendidas nem nunca foram tratadas como tal.
Por outro lado, é cristalino que apenas AA apresentou queixa – cf. fls. 2 a 7 – não existindo queixa válida e tempestiva apresentada em nome das sociedades A... e B.... Também o requerimento de constituição como assistente é formulado em nome de AA, embora dele se depreenda a vontade de abranger as indicadas sociedades, sendo autoliquidadas três taxas de justiça – cf. fls. 177 a 197. A questão é que, na data desse requerimento, há muito que se havia extinguido o direito de queixa das ditas sociedades – artigo 115º, n.º 1, do C. Penal. Na verdade, a queixa de AA data de Dezembro de 2022 e o requerimento de constituição como assistente de Fevereiro de 2024. Como expressamente se refere no n.º 1 do artigo 50º do C. P. Penal, quando o procedimento criminal depender de acusação particular – como é o caso dos crimes de difamação e de ofensa a pessoa colectiva imputados na acusação particular de fls. 177 a 197, nos termos dos artigos 180º, n.º 1, 187º, n.º 1 e 188º, n.º 1, todos do C. Penal – é necessário que os ofendidos se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.
Ora, mesmo admitindo que no requerimento de 08/02/2024, em nome de AA, se requereu a constituição como assistentes das sociedades A... e B..., nessa data estava já extinto o direito de queixa das mesmas, pelo que não poderiam ser admitidas a intervir nessa qualidade. Além de o requerimento ser feito em nome de AA e não das sociedades e subscrito por advogada sem poderes de representação demonstrados de tais sociedades.
Assim, pese embora o Ministério Público tenha contribuído em larga medida para a criação do imbróglio agora em apreciação, proferindo despachos que se contradizem mutuamente, a verdade é que não se justifica devolver o processo a tal entidade para esclarecimento. É inexorável a inadmissibilidade da constituição como assistentes das sociedades A... e B..., uma vez que se extinguiu quanto a elas o direito de queixa pelos crimes que pretenderam imputar às arguidas.
Razão pela qual não admito tais sociedades a intervir nos autos como assistentes.
Notifique (a Dra. BB também para, dentro do prazo de 10 dias e sob pena de se dar cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 48º do C. P. Civil – aplicável ex vi do artigo 4º do C. P. Penal - juntar original ou cópia certificada da procuração forense outorgada por AA a seu favor, não podendo a outorga de mandato forense ser demonstrada com a mera cópia constante de fls. 319) e devolva ao DIAP ....»
2. Inconformados, recorrem os assistentes, formulando as seguintes conclusões:
A. Por despacho de fls. do Juízo de instrução Criminal de Leiria, referencia 108214294, foi indeferida a constituição como assistentes das sociedades comerciais A... e B..., nomeadamente, por não terem apresentado queixa.
B. As Recorrentes não concordam com o douto despacho, pelo que o impugnam.
C. A queixa apresentada contém factos em que o lesado não é apenas o Assistente AA, mas também as duas sociedades A... e B....
D. A apresentação de queixa não está sujeita a qualquer formalismo específico, bastando que se deseje procedimento criminal.
E. Sendo o Denunciante, ora Assistente AA, titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação» - gerente das sociedades B... e A..., era legitimo este apresentar queixa, por si e por elas.
F. A legitimidade está aferida nos autos pelas certidões permanentes junta nos autos, com a queixa crime.
G. A queixa versa sobre factos que atingem as sociedades ora Recorrentes, entendendo se sempre que o sucedido afectava pessoa singular e sociedades.
H O Assistente AA, em representação das Recorrentes, na queixa-crime apresentada, denunciou factos ilícitos que lesam e ofendem estas.
I. O Assistente AA prestou declarações na qualidade de gerente das sociedades, tendo sido interrogado nessa qualidade.
J. A prova recolhida no inquérito também constata indícios de crime em que as ofendidas são as sociedades A... e B....
K. Tal só pode resultar que, os factos – esses sim – consubstanciam a queixa e a sua denúncia eram, também, sobre as sociedades, apresentados pelo seu representante – gerente, o Assistente AA.
L. Sendo que, no caso dos autos, o participante, único legal representante das ofendidas sociedades se apresentou perante as autoridades a apresentar queixa-crime por factos de que aquela foi vítima. ´
M. Da leitura do processo resulta claramente que o tribunal “a quo” se ateve exclusivamente às palavras de um provável leigo em matéria de direito e não procurou alcançar o que realmente ele quis dizer.
N. Pois, em tempo, todos os ofendidos apresentaram queixa e foram constituídos assistentes.
O. Dos autos consta, de forma clara, manifesta e tempestiva, a vontade de exercício do direito de queixa pelo respectivo titular, ou seja, do gerente da sociedade A... e da B... como igualmente ofendidas.
P. A procuração foi junta com a queixa, pelo que estão preenchidos todos os pressupostos de constituição como Assistentes as Recorrentes.
Q. Neste sentido, deve o entendimento do Tribunal a quo ser revogado e, considerando-se que, a queixa apresentada pelo Assistente AA, foi apresentada por si e em representação das sociedades A... e B..., porquanto os factos descritos imputáveis ao crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, são referentes não só ao já admitido como Assistente, mas também quanto às Sociedades.
R. Não constitui, assim, motivo de rejeição da constituição das assistentes o fundamento invocado no despacho recorrido, pelo que deve ser revogado, substituindo o mesmo por um que admita as sociedades, ora Recorrentes, como Assistentes no processo.
SÓ ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA!».
3. O Ministério Público em primeira e nesta instância defendem o provimento do recurso.
4.Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, colhidos os vistos, nada obsta à decisão.
II. APRECIAÇÃO DO RECURSO
São duas as questões a decidir, saber se as sociedades representadas por AA apresentaram queixa válida e se têm legitimidade para se constituírem assistentes.
1. Fundamentação de facto
Com interesse para a decisão, importa ter presente os seguintes actos processuais:
a) AA apresentou a queixa de fls. 2 a 8, em 2 de dezembro de 2022 imputando às denunciadas, CC e C... Unipessoal, Lda., um crime de burla previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal; um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva previsto no artigo 187.º, do Código Penal e um crime de difamação previsto e punido pelos artigos 180.º e 183.º, do Código Penal, alegando, além do mais, que é gerente da Sociedade A..., Lda. e que pretende procedimento criminal contra as denunciadas.
b) Os actos narrados na referida queixa respeitam à conduta das denunciadas traduzida na utilização indevida e sem consentimento da sede, da imagem, e de outros elementos identificadores da Sociedade A... (espaço comercial), causando-lhe prejuízos, sendo estes extensíveis à B... Unipessoal, Lda., e a AA.
c) Na data da apresentação da queixa, foi junta uma procuração a favor da Sra. Dra. DD, emitida por AA, por si e em representação da sociedade A... Lda. das duas sociedades referidas no ponto n.º 2, da queixa.
d) Ouvido em declarações no dia 6 de outubro de 2023, AA, declarou que continua a requerer procedimento criminal e judicial contra as denunciadas, pelo uso indevido da morada da A....
e) Em 8 de fevereiro de 2024, AA veio retificar a queixa apresentada em a), esclarecendo que agiu não só em nome pessoal como também em nome das sociedades, A... e B..., o que faz ao abrigo do disposto no artigo 49.º do Código de Processo Penal, requerendo, também, a constituição das sociedades como assistentes.
f) Por despacho de 21 de março de 2024, AA foi admitido a intervir nos autos como assistente.
g) Em 21 de maio de 2024, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento e ordenou a notificação do assistente para, querendo, deduzir acusação particular, nos termos do artigo 285, n. 1 do Código de Processo Penal.
h) Em 13 de junho de 2024, AA requerer seja prolatada decisão sobre a questão prévia suscitada em 8 de fevereiro de 2024.
i) Na mesma data, AA, por si e em representação das duas sociedades, deduz, à cautela, acusação particular contra as denunciadas, imputando-lhes a prática de um crime previsto e punido pelo artigo 187.º, do Código Penal e deduz o respectivo pedido de indemnização civil.
j) Por despacho de fls. 82, o Ministério Público ordena a notificação de AA para esclarecer qual das sociedades comerciais que representa pretende ver constituída como Assistente, ao que aquele reitera que já havia requerido, em 8 de fevereiro de 2024, a constituição como assistente das sociedades A... e B..., insistindo pela prolação de decisão.
l) Por despacho de fls 82 a 84, o Ministério Público declara que não acompanha acusação particular mencionada em i).
m) Em 9 de julho de 2024, o Ministério Público remete os autos ao JIC para apreciação do pedido de constituição de assistente das duas sociedades, com a promoção de não se opõe.
n) Em 2 de setembro de 2024, é proferido o despacho recorrido.
2. A queixa
No cabeçalho da queixa apresentada 2 de dezembro de 2022 consta como denunciante AA e não as sociedades A... Lda. e B... Lda., de que aquele é o legal representante, em face do que decidiu o Tribunal a quo que as empresa não exercerem tempestivamente o direito de queixa.
Já os Recorrentes defendem que a queixa apresentada por AA, bem como as declarações que prestou, em nome e em representação das sociedades, equivalem ao exercício do direito a queixa.
É este impasse que temos de resolver.
Os crimes em que o procedimento criminal depende de queixa ou de acusação particular estão assinalados no Código Penal, como sucede no caso pelo crime de burla [artigo 217.º, n.º 3, do Código Penal] e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva previsto (artigos 187.º e 188.º, do Código Penal).
Dispõe o artigo 113.º n.º 1, do Código Penal, que não havendo norma em contrário, têm legitimidade para apresentar queixa, o ofendido, considerando-se, como tal, o titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação.
O crime previsto e punido pelo artigo 187.º do Código Penal visa proteger o bom nome, traduzido a credibilidade, o prestígio ou a confiança do organismo, ou serviço ou pessoa colectiva pública e não o bom nome da pessoa individual, o construído em torno da sua existência socialmente inserida .
O titular dos interesses protegidos com a criminalização das acções descritas no ilícito do artigo 187.º do Código Penal é, pois, o organismo, o serviço ou a pessoa colectiva ofendida com aquelas acções e não pessoa individual que as representa.
Também no crime de burla previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal – o bem jurídico protegido consiste no património, globalmente considerado - é ofendido, o titular do património directamente atingido pela conduta fraudulenta do agente. Se o titular desse património é uma pessoa colectiva será esta pessoa o ofendido e não a pessoa que do legal representante.
Revistos os factos narrados e os crimes imputados às denunciadas na queixa – fls. 3 a 7 – bem como os documentos anexos - fls. 8 a 20 – parece indesmentível que o evento histórico, o “pedaço de vida” descrito atinge, em particular, o bom nome e o património das sociedades A... e B..., não se vislumbrando como afastar a qualidade de ofendidas que assumem nestes autos.
Só aquelas sociedades são susceptíveis de serem sujeitos passivos do crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, pelo que a actuação do seu legal representante só tem efeito útil se agir não em nome próprio, mas em nome e no interesse das sociedades. AA, enquanto pessoa individual, carece de legitimidade para apresentar queixa em relação a este ilícito.
Já quanto ao crime de burla, decorre do conteúdo da queixa que a titular do património directamente afectado pela conduta das denunciadas é a empresa A....
Assentemos, pois, de acordo com o conteúdo da queixa, a titular do direito de queixa relativamente aos crimes de burla e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva é a sociedade A... Lda. Já a sociedade D... é, igualmente, titular do interesse protegido pelo crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva.
Por conseguinte, têm as duas sociedades legitimidade para apresentar queixa, promovendo, deste modo, o procedimento relativamente aos crimes denunciados.
Importa, ainda ter presente, que as pessoas colectivas são, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código Civil, representadas, em juízo e fora dele, à pessoa que os estatutos determinarem ou, na falta de disposição estatutária, à administração ou a quem por ela for designado e que os negócios jurídicos realizados pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último [artigo 258.º, n.º 1, do Código Civil].
Cabe, pois, apreciar e decidir se AA, ao apresentar queixa, o fez titulo pessoal, como entendeu o Exmo. Senhor Juiz no despacho recorrido, ou na qualidade de sócio maioritário e gerente das mencionadas sociedades.
Vejamos:
O princípio da oficialidade no exercício da acção penal, segundo o qual incumbe ao Ministério Público investigar todos os crimes de que tenha noticia, sofre restrições de acordo a natureza do crime, conforme estatuído nos artigos 48º a 52º, do Código de Processo Penal.
Um crime é público, quando o procedimento criminal não depende de queixa, nem de acusação, cabendo ao Ministério Público legitimidade para promover o respectivo procedimento criminal, logo que tenha adquirido notícia do crime, por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia, nos termos dos artigos 48.º, primeira parte e 241.º a 247º, do Código de Processo Penal.
O mesmo não acontece com os crimes semi-públicos – de cujo procedimento criminal depende de queixa (artigo 49º do Código de Processo Penal) – nem com os crimes particulares – de cujo procedimento criminal depende de acusação particular (artigo 50º, nº 1 do mesmo diploma). Nestes casos, o Ministério Público só tem legitimidade para exercer a acção penal – promover o processo criminal – quando seja apresentada queixa ou deduzida acusação particular, conforme as normas que regulam um e outro instituto.
Como defende Figueiredo Dias, a exigência da queixa e de acusação particular assumem uma tripla função: a) o significado criminal relativamente ao pequeno crime pode aconselhar, de um puro ponto de vista criminal, que o procedimento criminal só tenha lugar se e quando corresponder ao interesse vontade do ofendido; b) evitar que o processo penal prosseguido sem ou contra a vontade do ofendido, possa em certas hipóteses, representar uma inconveniente (ou mesmo inadmissível) intromissão na esfera das relações pessoais que entre ele e os outros participantes intercedem e c) servir a função de especifica protecção da vitima (ofendido) do crime.
«Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular» [artigo 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal].
Quando o procedimento criminal depender de queixa do ofendido ou de outras pessoas, estipula o artigo 49º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal a necessidade dessas pessoas darem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo, sendo que a queixa se considera feita ao Ministério Público a que for dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.
A queixa, diferente da denúncia - uma simples comunicação, através da qual é levada ao conhecimento dos órgãos de perseguição penal a suspeita de que foi cometido um crime - abrange na sua dimensão dois elementos que se exigem ao titular do direito violado: a) dar conhecimento ao Ministério Público dos factos com relevância penal e b) manifestar vontade na promoção do processo penal.
Ou, nas palavras de Figueiredo Dias, «a queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento criminal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada.
No que toca à forma da queixa, tanto o CP como o CPP são omissos, devendo, por isso, entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto, o que é reforçado pelo disposto no artigo 49.º, nº 3, do CPP já referido. Não se torna necessário que a queixa seja como tal designada (…). Tão pouco é relevante que os factos nela referidos sejam correctamente qualificados do ponto jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve e menciona.». (sublinhado nosso).
No que respeita à interpretação da declaração de vontade, estatui o artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, uma regra geral, no sentido de que a «declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.».
Exceptuam-se os casos de não poder ser, razoavelmente, imputado ao declarante aquele sentido (n.º 1, do citado artigo 236.º) ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante. Neste caso, é de acordo com ela que vale a declaração emitida. [artigo 236.º, n.º 2, do Código Civil).
O declaratário normal deve ser uma pessoa com «razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo.».
Quando a declaração contiver um «simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta.» [artigo 249.º do Código Civil].
Neste caso, «o declarante emite a declaração divergente da vontade real, sem ter consciência dessa falta de coincidência. Trata-se de um lapso, de um engano, de um equívoco. É o caso que se nos apresenta quando o declarante incorre num lapsus linguae ou lapsus calami, ou quando o declarante está equivocado sobre o verdadeiro nome de um objeto, dando-lhe uma denominação que, na realidade, corresponde a outro objecto».
Consagra-se, assim, o princípio da ractificação da declaração, aplicável, também, aos actos processuais praticados pelas partes no âmbito de um processo, por força do artigo 295.º, do Código Civil, em conformidade com os princípios enformadores do Código de Processo Civil, como sejam o direito a um processo equitativo e à tutela judicial efetiva, a boa fé processual, a adequação formal e a prevalência do fundo sobre a forma.
Não prevendo o Código de Processo Penal norma para suprimir as deficiências formais dos actos praticados pelos sujeitos processuais, é de convocar, subsidiariamente, o artigo 146º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º, do Código de Processo Penal, nos termos da qual, para além, da admissibilidade da retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada [artigo 146.º n.º 1], deve, ainda, o juiz admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa [artigo 146.º, n.º 2].
Perante este quadro legal, cabe-nos decidir, se a menção aos elementos de identificação do denunciante no cabeçalho, de AA e bem assim a menção ao mesmo denunciante no pedido final “requer a instauração do respetivo procedimento criminal”, permite inferir que a declaração de vontade emitida por aquele, o foi apenas em seu nome pessoal e não em nome das sociedades que representa.
Pois bem.
É certo que a participação criminal não contém a expressão habitual que, neste tipo de situações, costuma ser usada para designar a actuação em nome de outrem, isto é, que o declarante actua por si e em representação das sociedades que representa; mas não é menos certo, que o teor da queixa, os documentos juntos, a procuração e a conduta processual posterior denunciante, evidenciam bem que as declarações de intenção e de vontade emitidas pelo subscritor da queixa, o foram, também, em nome e no interesse das sociedades.
Em primeiro lugar, porque o capitulo I, da queixa (artigos 1.º a 12.), sob a epígrafe “Legitimidade”, se destina precisamente a apontar as razões de facto pelas quais o denunciante e as suas representadas têm legitimidade para formular a queixa demonstrar e constituírem-se assistentes.
Aí se alega:
O denunciante é o gerente e sócio maioritário da sociedade A..., detida pelas sociedades E..., Lda. e F..., Lda., factos demonstrados pelas certidões comerciais permanentes de fls. 9 a 17 (artigos 1º a 3.º e 11.º).
A sociedade por quotas, F..., é comercial a sócia única da B... Unipessoal, Lda., pelo que se reconduzem todas ao denunciante, conforme documentado a fls. 18 (artigo 4.º).
A A... é a proprietária dos imóveis m.id no artigo 5.º
Tais imóveis foram dados de arrendamento à G... Lda., com sede à data na propriedade da A..., contrato esse revogado em 28 de junho de 2022 (artigo 6.º e 7.º).
A denunciada, CC, é sócia gerente da G... e da denunciada C..., e, aproveitado da condição de sócia gerente da G..., praticou todos os actos em seu nome e das suas representadas, lícitos ou ilícitos, sendo, subsequentemente responsável, tanto a título pessoal como empresarial, por todos os actos resultantes da sua acção ou omissão (artigo 9.º).
Designadamente, a denunciada usou sem o consentimento da representada do Denunciante a morada desta como sede social da C..., sem qualquer autorização ou mera comunicação de que iria colocar a sede naquele local (artigo 10.º).
Tais ilícitos resultam de actos perpetrados pela denunciada dos quais resultam danos na imagem, designadamente pelo uso da imagem propriedade da A..., ficando a proprietária representada pelo denunciante e ele próprios afectados na sua credibilidade perante o comércio (artigo 11.º).
Actos que a denunciada usa, sem consentimento ou conhecimento do denunciante e suas representadas, ludibriando pela indicação na internet e outros locais de uma morada onde não opera mais (artigo 12.º).
Em segundo lugar, porque todos os factos descritos no Capítulo II reportam a relação entre a conduta das denunciadas e as empresas A... e B..., com os subsequentes danos a estas causados por aquelas.
Vejam-se, por exemplo:
«A cedência operada resultou da (…) omissão grave dos deveres da Denunciada que na ótica do Denunciante resultaram em gestão danosa com a consequente diminuição patrimonial da representada pelo Denunciante, omissão de receitas que a Denunciada fez suas, pela utilização indevida das contas da sociedade, causando avultados prejuízos (…) designadamente à representada do Denunciante (artigo 15.º).
Igualmente (…) causou diversos prejuízos por incumprimento de contratos de arrendamento com a sociedade A... (artigo 16.º).
A conduta da denunciada impossibilita a B... (exploradora do espaço comercial de catering com a A...) de fazer a divulgação do seu negócio (artigos 22.º e 23.).
Os comportamentos perpetrados pela Denunciada são lesivos do bom nome da sociedade do Denunciante, agravados pela ofensa ter sido praticada através de meios que facilitam a sua divulgação (…) bem sabendo que tal divulgação afecta a imagem da propriedade da A... (artigo 26.º).
A denunciada sabe que não está autorizada a divulgar imagens ou indicar a morada da propriedade da representada do denunciante (A...), pelo que tem consciência da ilicitude, em prejuízo dos lesados clientes da Denunciante e da representada do Denunciante (artigo 27.º).
A denunciada mantém a morada sede das suas empresas, nas instalações da A..., bem sabendo que usa a imagem indevida de uma sociedade, causando prejuízos à imagem da A... que daí advêm (artigo 29.º).
A denunciada procurou denegrir a imagem da A..., por ardil e premeditada intenção (artigo 32.º).
A denunciada agiu com intenção de causar prejuízos concretos, nomeadamente, desviar clientela, causar imprecisões ou confusões que geram desconfiança com a empresa B..., diminuído e dificultando a contratação de serviços a esta empresa (artigo 33.º).
O uso da imagem e morada da A... resulta em prejuízo para esta e para a B..., denegrindo a imagem destas, bem como a imagem do denunciante enquanto seu sócio maioritário e gerente (artigo 35.º).
A conduta da denunciada é passível de procedimento criminal, o que desde já se manifesta intenção (artigo 40.º)
Daqui resulta que, na participação assinada por AA : (i) se intitula como sócio maioritário e gerente das sociedades em causa (v.g, artigos 1.º a 4.º 13.º, 35.º); (ii) alude à sua qualidade de representante das sociedades A... e B... e considera-as suas representadas (v.g artigos 10.º, 11.º, 12.º, 15.º, 26.º, 27.º, 34.º e 35); (iii) refere-se à A... como denunciante (v.g. artigo 19.º, e 30.º); e (vi) descreve as mencionadas sociedades como titulares dos direitos que, em seu entender, as denunciadas lesaram (v.g artigos 5.º, 6.º, 7.º, 11.º, 12.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º, 29.º, 30.º, 32,º, 33.º 34.º, 35.º, 36.º, 37.º e 38.º).
Deste modo, não há como afastar o facto de AA pretender abranger as sociedades A... e B..., enquanto ofendidas e lesadas, tanto mais que nos artigos 40.º e 41.º, refere expressamente que «a conduta da denunciada é passível de procedimento criminal, o que desde já se manifesta intenção», em relação aos crimes previstos nos artigos 217.º, n.º 1, 187, º e 180.º, agravado pelo artigo 183.º, do Código Penal.
Em terceiro lugar, porque o recorrente entregou com a queixa as certidões permanentes das sociedades comerciais que representa, comprovando a sua qualidade de legal representante.
Em quarto lugar, porque o recorrente emitiu procuração de fls. 19 e 20, nela inscrevendo: «por si e na qualidade de gerente das sociedades comerciais», declarando que «com qualidade e poderes para o acto, constitui sua procuradora a Sra. Dra. DD.
Em quinto e último lugar, porque o recorrente, através de vários requerimentos, revelou ao longo do processo a vontade de, em nome das sociedades, requerer o procedimento criminal e a constituição destas como assistentes.
De particular relevância encontra-se a retificação da legitimidade do queixoso de 8 de fevereiro de 2024, esclarecendo «que não age apenas em nome pessoal, mas também com a qualidade de gerente das sociedades (…)».
Ora, já se disse, que a queixa não exige formalidades especiais - o que é compreensível, visto que é uma manifestação de vontade, espontânea e inequívoca de instaurar procedimento criminal - não dependendo a sua validade e eficácia da menção à fórmula sacramental, o denunciante, sócio maioritário e gerente das sociedades (…) por si e em nome das suas representadas requer a instauração do procedimento criminal.
A queixa «pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto (…).Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona.»
E quanto a esta vontade não há como afastar a evidência de que AA revelou desde o início do processo, que a queixa por si assinada se destinava a instaurar procedimento criminal contra as denunciadas pelos factos lesivos dos interesses legítimos das empresas de quem é o legal representante, tendo subscrito e assinado a referida queixa em nome das daquelas.
A queixa foi, pois, apresentada, por AA, em nome das sociedades A... e B..., assistindo razão aos recorrentes na critica ao despacho recorrido.
3. Promoção da acção penal nos crimes particulares
É inquestionável que cabe ao Ministério Público exercer a acção penal orientada pelo principio da legalidade e defender a legalidade democrática [artigo 219.º, da Constituição da República Portuguesa].
De acordo com o disposto no artigo 48.º, do Código de Processo Penal, a legitimidade para o exercício da acção penal cabe ao Ministério Público, com as restrições previstas nos artigos 49º a 52º, do Código de Processo Penal, isto é, as relacionadas com a natureza do ilícito.
Assim, quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público para que este promova o processo [artigo 49.º, do Código de Processo Penal), do que resulta que se não existir queixa, o Ministério não tem legitimidade para promover o processo, ou seja, não pode investigar nem deduzir acusação.
Se o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular [artigo 50.º, do Código de Processo Penal], isto é, a legitimidade processual do Ministério Público para promover o processo está dependente daqueles requisitos.
Por seu turno, dispõe o artigo 246.º, n.º 4, do Código de Processo Penal:
«O denunciante pode declarar, na denúncia, que deseja constituir-se assistente. Tratando-se de crime cujo procedimento depende de acusação particular, a declaração é obrigatória, devendo, neste caso, a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal a quem a denúncia for feita verbalmente advertir o denunciante da obrigatoriedade de constituição de assistente e dos procedimentos a observar».
Neste caso, o Ministério Público procede oficiosamente a quaisquer diligências que julgar indispensáveis à descoberta da verdade e couberem na sua competência, participa em todos os actos processuais em que intervier a acusação particular, acusa conjuntamente com esta e recorre autonomamente das decisões judiciais [artigo 50.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]
Ou seja, o Ministério Público promove a acção penal oficiosamente, (nos crimes públicos), mediante queixa (nos crimes semipúblicos) e constituição de assistente e dedução que acusação particular (nos crimes particulares).
O inquérito – conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262º, nº1, do Código de Processo Penal) – inicia-se por decisão do Ministério Público, sempre que haja notícia de um crime, ressalvadas as excepções previstas na lei (nº 2 do citado artigo 262º).
O inquérito é da competência do Ministério Público, a quem cabe exclusivamente a sua direcção, embora possa ser assistido pelos órgãos de polícia criminal (artigo 263º, do Código de Processo Penal).
O Ministério Público pratica os actos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades do inquérito, com excepção dos reservados à competência do juiz de instrução criminal (Artigo 267º a 270º, do Código de Processo Penal).
Findo o inquérito, o Ministério Público profere, em face dos elementos recolhidos, entre outros possíveis, despacho de acusação ou de arquivamento do inquérito, respectivamente, nos termos dos artigos 277º e 283º, do Código de Processo Penal.
Se, durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias deduz acusação contra aquele (artigo 283º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Se, pelo contrário, no decurso do inquérito, existe prova bastante de não se ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento (artigo 277º, nº 1, do Código de Processo Penal) ou não tiverem sido recolhidos indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os seus agentes (artigo 277º, nº 2, do Código de Processo Penal), o Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito.
Se no final do inquérito for de proferir despacho de arquivamento, nos termos do artigo 277.º, do Código de Processo Penal, como sucede no nossos caso, o despacho de arquivamento é comunicado ao arguido, ao assistente, ao denunciante com faculdade de se constituir assistente e a quem tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil nos termos do artigo 75.º, bem como ao respectivo defensor ou advogado o despacho de arquivamento, conforme preceitua o artigo 277.º n.º 3, do Código de Processo Penal.
Tratando-se de crime de natureza particular, estabelece o artigo 285.º do Código de Processo Penal: findo o inquérito, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular [n.º 1], indicando na notificação se foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os seus agentes [n.º2], podendo nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles. [n.º 4].
Em suma, findo o inquérito, compete ao Ministério Público tomar posição relativamente aos crimes públicos e semi-públicos indiciados nos autos. Em relação aos crimes particulares, deve o Ministério Público notificar o assistente para, querendo, deduzir acusação particular, nos termos e para os efeitos do artigo 285.º do Código de Processo Penal.
O que quer dizer que o Ministério Público, no exercício da acção penal, tem o poder/dever de promover o processo e de tomar posição expressa sobre a sua tramitação e destino. Este poder/dever da promoção processual refere-se quer aos crimes de natureza pública, quer semi-pública, quer particulares.
Quando se verifique a inobservância destes preceitos, importa qualificar o vício que enfermam, o seu modo de suprimento e as respectivas consequências.
A propósito da não promoção da ação penal, nos crimes de natureza particular, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23 de abril de 2014:
«(…) Se o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento dos autos, sem dar oportunidade à ofendida de se constituir assistente e deduzir acusação particular, não a tendo notificado nos termos dos preceitos legais citados, não promoveu o processo nos termos e segundo as regras legais do artigo 48º do Código de Processo Penal (que remete expressamente para o artigo 50º quanto aos crimes particulares).
A falta de promoção de processo por crime particular integra a nulidade insanável prevista na alínea b) do artigo 119º do Código de Processo Penal, tornando inválido o acto em que se verificou, acarretando a invalidade do próprio despacho de arquivamento e de tudo o que foi praticado posteriormente ao arquivamento, designadamente as notificações efetuadas, toda a instrução e o próprio despacho de não pronúncia.».
Neste sentido, também se pronuncia, entre outros, o Acórdão desta Relação de 22 de abril de 2015, que, por ser, também, a nossa posição se transcreve:
«Da forma como interpretamos o poder/dever de promoção processual do MP, entendemos que o vício de falta de promoção deve ser o mesmo quer nos crimes públicos, quer nos crimes semi-públicos quer nos crimes particulares.
Para todos eles existem regras específicas que têm que ser observadas.
Se é de entender que nos crimes públicos e nos crimes semi-públicos a falta de acusação pelo MP corresponde a uma falta de promoção processual, logo, constitui a nulidade do artigo 119º, alínea b), do CPP, também a falta de promoção do MP com vista à dedução de acusação particular pelo assistente, tem de conduzir ao mesmo vício e resultado. Também nesta situação, a observância pelo MP das disposições legais – com a notificação obrigatória ao assistente -, é requisito essencial para que seja deduzida a respectiva acusação particular. Sem a notificação do assistente para este fim e a consequente dedução da acusação, o processo não atinge a sua finalidade principal.».
*
No caso em apreço, o Ministério Público omitiu qualquer pronúncia expressa sobre a acusação particular relativamente ao crime de ofensa ao organismo, serviço ou pessoa colectiva, previsto no artigo 187.º, em que as sociedades A... e B... são indicadas como ofendidas e lesadas.
A notificação nos termos e para efeitos do disposto no artigo 246.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, a notificação do despacho de arquivamento e a notificação nos termos do disposto no artigo 285.º, do Código de Processo Penal, foram dirigidas ao denunciante, AA, tendo sido este a única pessoa a ser admitida a intervir nos autos como assistente.
Por outro lado, resulta da tramitação processual que no inquérito:
(i) não houve pronúncia sobre a questão da legitimidade das sociedades para presentar queixa;
(ii) não houve pronúncia sobre a rectificação da queixa requerida em 8 de fevereiro de 2024;
(iii) não houve pronúncia sobre a questão prévia da legitimidade das mesmas sociedades para se constituírem assistentes e deduzirem acusação particular suscitada pelo denunciante no requerimento de 8 de fevereiro de 2024;
(iv) não foram ordenadas directamente as notificações referidas nos artigos 277.º, n.º 3 e 285.º, do Código de Processo Penal.
Aqui chegados, duas situações se colocam.
Ou o Ministério Público considerou que a queixa se estendia às sociedades e, por isso, com legitimidade para se constituírem assistentes – o que parece resultar da promoção datada de 9 de julho de 2024 – sendo sua intenção incluir nas notificações ao denunciante, AA, as ofendidas ou, não ponderou, sequer, essa possibilidade, tramitando todo o processo à revelia daquelas.
No primeiro caso, a questão está solucionada como o requerimento apresentado pelas denunciantes, em 8 de fevereiro de 2024 e 13 de junho de 2024, já que, com a apresentação dos mesmos se encontram sanadas as irregularidades das notificações às ofendidas [artigo 120.º, n.ºs 1, 2 alínea d) e 3, alínea c), do Código de Processo Penal]
No segundo caso, a inobservância do disposto nos artigos 277.º, 3 e do artigo 285.º, ambos do Código de Processo Penal, conduz, pelos motivos expostos, à nulidade insanável prevista não artigo 119.º, alínea b), do Código de Processo Penal, de conhecimento oficioso a todo o tempo.
A nulidade tem por efeito, a invalidade do acto em que se verificaram, bem como os que dele dependerem e aqueles que puderem afectar [artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal].
A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade. [artigo 122.º, n.º 2, do Código de Processo Penal].
Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela [artigo 122.º, n.º 3, do Código de Processo Penal].
Estando em causa uma nulidade por omissão de um acto do Ministério Público em que não ordenou a notificação das sociedades para os termos dos artigos 277.º, n.º 3 e 285.º, do Código de Processo Penal, mas em que as ofendidas requereram, atempadamente, a sua constituição como assistentes, pagaram a taxa de justiça e constituíram advogado, tendo, à cautela apresentado acusação particular e deduzido pedido cível, mandam os princípios da economia processual e da proibição da prática de actos inúteis, aproveitar tais peças processuais, em vez de sujeitar o Ministério Público, a cumprir todas as disposições legais em falta.
Deste modo, aproveitam-se, a acusação particular e o pedido cível deduzidos a fls. 72 a 81, repondo, deste modo, a regularidade processual.
4. Conclusão
Do que precede, se conclui pela procedência do recurso, revogando-se a decisão recorrida e, por consequência decide-se:
(i) declarar validamente prestada a queixa pelas sociedades A... Lda. e B... Unipessoal, Lda.
(ii) admitir as recorrentes a intervir nos autos como assistentes;
(iii) aproveitar a acusação particular e o respectivo pedido cível de fls. 72 a 81.
(iv) determinar o prosseguimento dos autos a partir do momento a que se refere o artigo 285º, nº 4, do Código de Processo Penal.
III. DECISÃO
Por todo o exposto, acordam os Juízes da 5ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar provido o recurso interposto por AA, A..., Lda. e B... Unipessoal, Lda., revogando a decisão recorrida.
Consequentemente, decidem:
(i) declarar validamente prestada a queixa pelas sociedades A... Lda. e B... Unipessoal, Lda.
(ii) admitir as recorrentes a intervir nos autos como assistentes;
(iii) aproveitar a acusação particular e o respectivo pedido cível de fls. 72 a 81.
(iv) determinar o prosseguimento dos autos a partir do momento a que se refere o artigo 285º, nº 4, do Código de Processo Penal.
Coimbra, 16 de abril de 2025
Relatora: Alcina da Costa Ribeiro
Primeira Adjunta: Sara Reis Marques
Segunda Adjunta: Maria Alexandra Guiné.