DELIBERAÇÃO DA ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
ALOJAMENTO LOCAL
Sumário

I - A apreciação da validade de deliberação de assembleia de condóminos deve ser feita em face da lei que estava em vigor à data em que a mesma teve lugar, nos termos do artigo 12º, número 2, primeira parte do Código Civil.
II - A afetação de uma fração autónoma no título constitutivo da propriedade horizontal a escritórios, consultórios ou outras atividades afins não inclui a possibilidade de ali ser explorada a atividade de alojamento local.
III - A redação dada ao artigo 9.º, número 2 do DL 128/2014 pela Lei 56/2023 não restringe de forma excessiva ou desproporcionada os direitos de iniciativa económica privada ou de propriedade do dono de fração autónoma.

Texto Integral

Processo número 2294/24.7T8PRT.P1 Juízo Local cível do Porto, Juiz 4.

Recorrente: AA

Recorrido: Condomínio ...

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeira adjunta: Carla Jesus Costa Fraga Torres

Segunda adjunta: Maria Fernanda Fernandes de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1. Em 01-02-2024 AA propôs ação a seguir a forma de processo comum contra Condomínio ..., pedindo a anulação de deliberação da assembleia de condóminos de 05-12-2023, pela qual se decidiu a oposição ao exercício da atividade de alojamento local na fração L, de que é proprietário.

Alegou a falta de quórum deliberativo para aprovação dessa decisão, a violação do disposto no artigo 9º do DL 128/2014 - por entender que a referida fração se destina ao comércio e à prestação de serviços pelo que admite o seu uso para o fim de alojamento local, atividade que disse ter registado e licenciado junto da Câmara Municipal ... - e ainda a inconstitucionalidade da referida norma por limitar o direito de propriedade e violar direitos e expetativas já constituídas.

2. O Réu contestou em 06-03-2024 alegando que a deliberação em causa foi tomada em assembleia em que estavam presentes condóminos que representavam 68,22% do valor total do prédio e que a mesma não é contrária à lei na redação em vigor à data em que foi tomada nem viola qualquer direito constitucionalmente garantido do autor.

3. Em 02-07-2024 teve lugar audiência prévia em que foram saneados os autos tendo-se identificado o objeto do litígio e indicado os temas da prova bem como foram admitidos os requerimentos probatórios.

4. A audiência de julgamento realizou-se em 20-09-2024 com produção da prova admitida e alegações orais.

5. Em 28-10-2024 foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo o réu do pedido.

II - O recurso:

É desta sentença que recorre o autor pretendendo a sua revogação com a consequente declaração de procedência da ação.

Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

“A. O Autor instaurou a presente ação peticionando a anulação da deliberação da assembleia de condomínios constante do ponto 11 do elenco da matéria de facto como dada como provada, com fundamento na a) falta de quórum deliberativo, b) falta de validade material uma vez que a atividade de alojamento local exercida pelo auto deve ser considerado como respeitadora da afetação prevista no titulo constitutivo de propriedade horizontal e c) inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 9.º/2 do decreto lei 125/2014, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 56/2023, de 06/10, com os artigos 61.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa.

B. O tribunal a quo julgou a ação totalmente improcedente, sendo que o autor incide o seu objeto recursivo quanto à matéria de direito, isto é, pretende a reapreciação das supra identificadas alíneas b) e c) da conclusão imediatamente antecedente.

C. No que diz respeito à desconformidade da deliberação com o teor do disposto na supra identificada norma, importante atentar que a fração autónoma do autor tem, no título constitutivo, a “escritórios, consultórios e outras atividades afins”, sendo comummente entendido que a atividade de alojamento local é considerada como um serviço.

A lata afetação da fração autónoma do autor que se encontra descrita no titulo constitutivo visou permitir a exploração, por parte do autor, de qualquer serviço comercial que pudesse ser estruturalmente prestado na fração autónoma da qual é proprietário.

E. Pelo que, sendo a exploração da atividade de alojamento local a prestação de um serviço comercial de alojamento, deve ser entendido que tal atividade encontra-se compreendida na descrição daquilo que é a afetação da fração autónoma do autor no título constitutivo e, como tal, a deliberação ora impugnada viola o pressuposto material do artigo 9.º2, já supra transcrito e, como tal, deve ser anulada.

F. A não se entender assim sempre deverá ser anulada uma vez que a norma prevista no artigo 9.º/2 do decreto lei 128/2014, na redação conferida pela Lei n.º 56/2023, de 06/10, configura uma restrição desproporcional e injustificada do direito à propriedade e iniciativa privadas, consagrados nos artigos 61.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa.

G. A sobredita norma, que fundamentou a tomada de deliberação ora impugnada, permitiu que o condomínio Réu deliberasse a oposição ao exercido da atividade de alojamento local:

a. Bastando a mera concordância de 2/3 da permilagem do prédio;

b. De forma arbitrária, porque não é necessária a apresentação de motivo ou justificação para o efeito;

c. Com produção de efeitos automáticos para as frações que já exploram tal atividade e não apenas para aquelas que pretendem, no futuro, exercer tal atividade.;

d. Sem o mínimo de controlo camarário.

H. Atualmente a referida norma foi já objeto de nova redação, na sequência do decreto lei 7/2024, de 23/10 pelo que, aos dias de hoje, a deliberação ora impugnada não poderia ser tomada já que se exige o seguinte:

2 - No caso de a atividade de alojamento local ser exercida numa fração autónoma de edifício, ou parte de prédio suscetível de utilização independente, a assembleia de condóminos pode opor-se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração, através de deliberação fundamentada aprovada por mais de metade da permilagem do edifício, com fundamento na prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos, solicitando, para o efeito, uma decisão do presidente da câmara municipal territorialmente competente, nos termos dos números seguintes.

3 - (Revogado.)

4 - Uma vez recebida a deliberação da assembleia de condóminos aprovada nos termos do disposto no n.º 2, o presidente da câmara municipal pode ordenar a realização do procedimento previsto nos n.os 12 e 13.

5 - O presidente da câmara municipal territorialmente competente, com faculdade de delegação nos vereadores e nos dirigentes dos serviços municipais, decide sobre o pedido de cancelamento bem como sobre outras medidas que lhe sejam propostas em relatório final do procedimento de cancelamento.

6 - O cancelamento do registo determina a imediata cessação da exploração do estabelecimento, sem prejuízo do direito de audiência prévia.

I. Em face do exposto, a deliberação condominial impugnada nestes autos tem como causa a norma correspondente ao artigo 9.º/2 do decreto lei 128/2014, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 56/2023, de 06/10, padece de inconstitucionalidade porque restringe, de forma injustificada e desproporcional, o direito à propriedade e iniciativa privadas e, como tal, não pode produzir efeitos.

J. O entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo violou, entre o mais, o disposto nos artigos 61.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que, e nos melhores de direito,

Requer-se a V/ Exas. que o presente recurso seja julgado totalmente procedente, por provado e, por via disso, ser declarada nula ou anulada a deliberação constante do ponto 11 do elenco da matéria de facto dada como provada, nos termos supra requeridos”.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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O recurso foi admitido por despacho de 02-02-2025.

III – Questões a resolver:

Em face das conclusões do Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:

1- Anulabilidade da deliberação da assembleia de condóminos de 05-12-2023 por ilegalidade decorrente da adequação da atividade de alojamento local à afetação prevista no título constitutivo de propriedade horizontal para a fração de que o autor é proprietário; assim não se entendendo

2- Anulabilidade da mesma deliberação por inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 9.º/2 do decreto lei 125/2014, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 56/2023, de 06/10, por violação dos artigos 61.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa.

IV – Fundamentação:

Foram os seguintes os factos selecionados pelo tribunal recorrido como relevantes para a decisão da causa:

“Factos provados:

1. O condomínio, aqui Réu, refere-se ao prédio urbano constituído no regime de regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., inscrito na respectiva matriz predial urbana da União de Freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto, freguesia ..., sob o n.º ...;

2) O prédio, que foi constituído em propriedade horizontal por escritura pública, identificado em 1) encontra-se dividido num total de 16 fracções autónomas;

3) O A. é titular do direito de propriedade da fracção autónoma com a letra “L” do prédio constituído em regime de propriedade horizontal supra identificado em 1);

4) A fracção autónoma identificada em 3) tem a permilagem de 4,86%;

5) A fracção autónoma “L”, propriedade do autor, tem como afectação, no título constitutivo da propriedade horizontal, “escritórios, consultórios ou outras actividades afins”;

6) Na presente data, a referida fracção é utilizada pelo A. para exploração do serviço de alojamento local;

7) A empresa A..., Lda exerce funções de administradora do condomínio Réu;

8) No dia 5 de dezembro de 2023 realizou-se uma assembleia extraordinária de condomínios, com a seguinte ordem de trabalhos.

1. Eleição da Mesa da Assembleia;

2. Análise e discussão e deliberação da assembleia de condóminos quanto à oposição ao exercício da atividade de alojamento local na fração autónoma "L” do edifício e dar conhecimento dessa deliberação ao Presidente da Câmara Municipal ... para que o mesmo proceda ao cancelamento do registo dessa actividade na dita fracção e que a mesma produza efeitos no prazo de 60 dias após o envio da deliberação, nos termos do art.º 9.º, n.ºs 2 e 4 do DL n.º 128/2014, de 29 de agosto, com a redação dada pela lei n.º 56/2023, de 6 de outubro;

3. Outros assuntos do interesse geral do condomínio

9) O A. não compareceu à assembleia de condomínio do dia 5 de Dezembro;

10) Pelo que, no dia 22/12/2023, foi-lhe enviada, via email, a respectiva acta;

11) De acordo com o teor da acta que lhe foi enviada, via email, consta ter sido aprovada, por condomínios representativos de 68,22% da permilagem do edifício, a seguinte deliberação: “a oposição ao exercício da actividade de alojamento local na fração autónoma L do edifício”, a qual corresponde ao ponto 2) da ordem de trabalhos;

12) Na acta da assembleia consta que estiveram “presentes ou representadas as fracções A, C, E, F, G, I, J, K, M, N e P, tal como consta na folha de presenças anexas à presente acta, representativas de 68,22% do capital investido.”;

13) E que, por unanimidade dos presentes, ou seja, por 68,22% do capital investido, a referida deliberação foi aprovada;

14) Da referida acta consta, ainda, o seguinte:“Nada mais havendo a tratar foi lavrada a presente acta, que será assinada por todos os condóminos presentes (…)”.

15) Na referida acta não consta a informação de qual o (s) condóminos que estiveram representados;

16) Igual não informação verifica-se na lista de presenças anexa à mesma;

17) Nem na referida acta nem na lista de presenças anexa à mesma consta qualquer assinatura relativamente à condómina proprietária da fracção A, fracção autónoma com a permilagem de 11,54% do capital do prédio;

18) Sendo que na referida acta consta a alegada presença da condómina ou seu representante na referida assembleia e, bem assim, a alegada aprovação da mesma (fracção A) quanto à deliberação já supra referida

19) Em 29/12/2023 o A. solicitou, via email, ao condomínio Réu – na pessoa do seu administrador – cópia das procurações/instrumentos de representação que foram evidenciados na Assembleia relativamente aos condóminos não presentes;

20) Pedido que solicitou que lhe fosse satisfeito com brevidade atendendo ao prazo em curso de reacção contra a(s) deliberações alegadamente aprovadas;

21) A fracção “A”, que corresponde à loja nº ..., é da condómina BB, que outorgou uma procuração para se fazer representar na dita reunião por CC;

22) Esta CC esteve presente na referida reunião de 05/12/2023 em representação da condómina BB;

23) Durante o dia da reunião, ou seja no dia 05-12-2023, em contacto telefónico havido entre o representante da Administração do Condominio, Dr. DD e a Condómina da fracção “A”, D. BB, esta transmitiu-lhe que iria fazer-se representar na reunião;

24) E a condómina fez questão de transmitir ao administrador do condomínio o seu sentido de voto, relativamente ao ponto 2 da Ordem de Trabalhos;

25) No sentido de que se opunha ao exercício da actividade de alojamento local na fracção autónoma designada pela letra “L”, pertencente ao A.;

26) Na Convocatória da assembleia de condóminos do dia 05-12-2023 consta o seguinte: “Nota: A deliberação do 2º ponto da Ordem de Trabalhos tem de ter os votos favoráveis de, pelo menos, dois terços da permilagem”;

27) A condómina da fracção “A” recebeu a acta nº ..., via postal;

28) Esta condómina não veio declarar que não se fez representar na dita assembleia de 05-12-2023.


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“Não ficaram provados outros factos com relevo para a boa decisão da causa, nomeadamente:

a) A sobredita fracção autónoma “L”, propriedade do autor, tem como afectação, actualmente, “serviços”;

b) Para o exercício dessa actividade foi, oportunamente, registada e licenciada, junto da Câmara Municipal ..., a actividade de alojamento local;

c) O condomínio Réu não enviou a documentação referida em 19), como também não justificou o não envio da mesma;

d) A condómina proprietária da fracção autónoma designada pela letra “A” não esteve presente na assembleia de condóminos realizada em 05/12/2023, muito menos aprovou as deliberações constantes da acta junta com a petição inicial como doc. n.º 4;

e) A deliberação constante do ponto 2 da ordem de trabalhos, a ter sido aprovada, foi, apenas, por maioria representativa de 56,68% da permilagem do edifício;

f) Foi a contar com a possibilidade de explorar a fracção para fins de alojamento local que o A. a adquiriu, já que a sua destinação assim o permite”.


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1. A sentença recorrida fez o correto enquadramento jurídico do regime legal propriedade horizontal e da forma da sua constituição, bem como do teor e menções obrigatórias e facultativas do respetivo título constitutivo. Também analisou de forma correta o regime das invalidades das deliberações das assembleias de condóminos, de forma que não mereceu censura do recorrente.

Sublinhando que o autor não logrou provar, como alegara, que a fração L, de que é proprietário, está destinada, de acordo com o respetivo título constitutivo à prestação de serviços, entendeu ser válida a deliberação da assembleia de condóminos cuja anulação o mesmo pedira.

O apelante volta a pugnar em sede de recurso pela adequação da atividade de alojamento local à afetação que está prevista no respetivo título constitutivo. Da alínea 5 dos factos provados resulta que tal afetação é a seguinte: “escritórios, consultórios ou outras atividades afins”. Nestas últimas pretende o autor que se insira a de prestação de serviços em que entende incluir-se o de alojamento local.

Em 10-05-2022 o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência[1]: “No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fracção se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local”. Na fundamentação do referido acórdão seguiu-se o entendimento de que “O AL não é um simples habitar da fracção, equivalente à habitação que dele fazem os usuários não abrangidos pelo AL, ainda que possam aí pernoitar e descansar - sob o ponto de vista da destinação da coisa e da respectiva envolvência sócio-económica condominial, uma vivência habitacional é essencialmente diversa da sua utilização em alojamento de terceiros, com repercussões diversas no meio inter-habitacional ou condominial em que se desenvolvem”. Mas também nele se sublinhou também que a qualificação do alojamento local como ato de comércio é artificial “em face da utilização específica que o alojamento local comporta (pernoitar e ter certos serviços associados à pernoita”. Ali se critica a tentativa do legislador de qualificar o alojamento local como uma atividade de “prestação de serviços”, nos termos do artigo 4º da Lei 128/2014 de 29 de agosto.

Em recente acórdão, de 04-02-2025[2], o Tribunal da Relação de Lisboa também se afasta da qualificação da atividade de alojamento local como um contrato de prestação de serviços, sublinhando que as referências do legislador a tal expressão não são vinculativas quanto à qualificação da natureza e regime legal de tais contratos/atividades. Ali se pode ler, de forma sintética e clara, com a qual concordamos inteiramente que “O cerne do alojamento local assenta no facultar o gozo do imóvel, proporcionando ao beneficiário um direito pessoal de gozo, reconduzível ao arrendamento ou à hospedagem”.

Ora, salvo o devido respeito pela posição defendida pelo apelante, não encontramos qualquer similitude ou afinidade entre as previstas afetações de escritórios e consultórios com a de alojamento local definida pelo legislador no já referido artigo 4º do DL 128/2014 da seguinte forma: “exercício, por pessoa singular ou coletiva, da atividade de prestação de serviços de alojamento”. O alojamento corresponde à atividade de hospedagem em que o cliente pernoita e habita, portanto, temporariamente, um imóvel ou parte dele. Assim sendo, não vemos qualquer razão para nos afastarmos do entendimento seguido na sentença recorrida quando na mesma se conclui que a atividade de alojamento local não é “afim” à exercida em escritórios e/ou consultórios.

Do mesmo modo que acompanhamos o argumento essencial em que se baseia a sentença para o afastamento da pretendida ilegalidade da deliberação: o artigo 9º, número 2 do DL 128/2014 (na versão em vigor à data da deliberação, ou seja, a introduzida pela Lei 56/2023 de 6 de outubro que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação) aplica-se também à situação dos autos (e não apenas a casos em que a afetação da fração seja apenas a da habitação). De facto, é a seguinte a redação do referido preceito: “No caso de a atividade de alojamento local ser exercida numa fração autónoma de edifício ou parte de prédio urbano suscetível de utilização independente, a assembleia de condóminos, por deliberação de pelo menos dois terços da permilagem do edifício, pode opor-se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração, salvo quando o título constitutivo expressamente preveja a utilização da fração para fins de alojamento local ou tiver havido deliberação expressa da assembleia de condóminos a autorizar a utilização da fração para aquele fim.”.

Nos termos do número 2 do artigo 1418.º do Código Civil, a par do destino do prédio ou das suas frações autónomas fixado no projeto de construção e na autorização de utilização, pode o título constitutivo da propriedade horizontal conter a menção do fim a que se destina cada fração autónoma ou parte comum, conforme o disposto na alínea a).

Tal menção, facultativa, existe no título constitutivo da propriedade horizontal objeto dos autos.

Ora, a lei em vigor à data da deliberação que se quer ver anulada permitia que, posteriormente à constituição da propriedade horizontal, a assembleia de condóminos se opusesse sem fundamentação e por uma maioria de dois terços, ao exercício da atividade de alojamento local em qualquer fração autónoma.

É inaplicável à situação em apreço a alteração legal entretanto introduzida por via da Lei 76/2024 de 23 de outubro, posterior, portanto à deliberação em apreço, já que, nos termos do artigo 12.º, número 2 do Código Civil o que está em causa é a apreciação da validade substancial de um ato jurídico, ou seja a conformidade de uma deliberação da assembleia de condóminos à lei, não podendo a mesma ser aferida senão com base na lei em vigor à data dessa deliberação[3]. Ora, à data em que foi proferida, a mesma estava em total conformidade com o previsto no artigo 9º, número 2 do DL 128/2014, pelo que não é, como pretende o apelante, ilegal.


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2- Questão diversa, que o apelante também suscita e a primeira instância também apreciou, é a da constitucionalidade do referido preceito.

Segundo o recorrente o artigo 9º, número 2 da Lei 128/2014, à luz do qual foi proferida a deliberação da assembleia de condóminos que quer ver anulada, viola os artigos 61.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa.

Entende que “o legislador, com a redação que conferiu ao artigo 9.º do decreto lei 128/2014, na sequência da Lei n.º 56/2023, de 06/10 permitiu que, de forma arbitrária, o órgão condominial decida restringir o livre exercício, por parte do(s) proprietário de fração autónoma, da atividade de alojamento local, o que constitui uma restrição ao seu direto de propriedade”.

Sublinha ainda o apelante que tal opção legal “permitiu que essa restrição ocorresse perante frações que já explorava tal atividade, frustrando as legítimas expectativas não só de futuros proprietários como dos proprietários que já exerciam, e com estabilidade, a referida atividade nas frações da qual são proprietários, como é o caso do aqui Autor”.[4]

Os preceitos constitucionais convocados pelo Apelante têm o seguinte teor:

Artigo 61.º:

“1. A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral.

2. A todos é reconhecido o direito à livre constituição de cooperativas, desde que observados os princípios cooperativos.

3. As cooperativas desenvolvem livremente as suas atividades no quadro da lei e podem agrupar-se em uniões, federações e confederações e em outras formas de organização legalmente previstas.

4. A lei estabelece as especificidades organizativas das cooperativas com participação pública.

5. É reconhecido o direito de autogestão, nos termos da lei.”.

Artigo 62.º:

“1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.

2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.”.

Muito embora o recorrente defenda que tais preceitos imponham que não possa ser limitado no exercício da sua atividade económica e atividade por via de deliberação “arbitrária” dos demais condóminos do prédio a que pertence a fração de que é proprietário, a sua argumentação dirige-se, sobretudo, à censura da opção legal que levou à redação dada ao número 2 do artigo 9.º do DL 128/2014 pela Lei 56/2023 de 6 de outubro. Segundo o mesmo - que salienta e convoca a seu favor a alteração recente de tal preceito por via do já acima referido DL 76/2024 de 23 de outubro - o intuito do legislador era o de fomentar a habitação, inserindo-se a alteração da redação dada a tal artigo 9.º, número 2 no que ficou conhecido por pacote legislativo “mais habitação”. E com esse desiderato violou o direito dos proprietário de darem aos seus imóveis o uso que bem entendam.

De facto, a Lei 56/2023 visou aprovar medidas com o objetivo de garantir mais habitação para o que introduziu diversas alterações ao regime do arrendamento urbano, à transferência de apartamentos do regime do alojamento local para o fim de arrendamento habitacional, à promoção da reabilitação urbana e da construção, entre outras medidas enumeradas no seu artigo 1º.

Foi nesse âmbito que o artigo 9.º, número 2 do DL 128/2014 viu alterada a sua redação resultante da Lei 62/2018 de 22 de agosto em que se exigia, como voltou a exigir-se desde a entrada em vigor do DL 76/2024 de 23 de outubro, que a deliberação da assembleia de condóminos que se opusesse ao exercício de atividade de alojamento local fosse “fundamentada, decorrente da prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos”.

Assim, desde 7 de outubro de 2023 (data da entrada em vigor da Lei 56/23) e até 1 de novembro de 2024 (entrada em vigor do DL 76/2024, de acordo com o seu artigo 7º) passou a ser possível que uma maioria de pelo menos dois terços dos condóminos se opusesse ao exercício da atividade de alojamento local sem necessidade de fundamento. No mesmo período e por via do mesmo instrumento legal passou a exigir-se que o registo de tal atividade passasse a ser antecedido de decisão do condomínio no caso de frações destinadas à habitação (artigo 5º, números 4 e 5 que apenas se aplicava aos novos registos, posteriores, portanto à sua entrada em vigor, nos termos do artigo 52º da Lei 56/2023 e que também já foram revogados).

É assim claro que a solução legal em apreço visava aumentar o número de fogos disponíveis para arrendamento habitacional ou para habitação própria.

Daí não decorre, todavia, que tal solução permita uma restrição desproporcionada do direito de propriedade e/ou de iniciativa privada.

É sabido que o alojamento local, que se tornou uma realidade de facto antes de ter consagração legal, passou nas duas últimas décadas a representar uma muito significativa percentagem das soluções para alojamentos turísticos, como alternativas a hotéis, pensões e outros albergues a tanto destinados e licenciados.

Num quadro de grave crise habitacional em que a oferta de habitações a preços ao alcance dos cidadãos portugueses é escassa, o legislador entendeu de limitar tal atividade económica exigindo para o seu licenciamento um determinado número de requisitos, entre eles – que é o que aqui se discute -, a não oposição de uma maioria qualificada dos condóminos quando tal alojamento se situe em prédio constituído em propriedade horizontal.

Ora, nem a regulação dessa atividade económica de alojamento temporário e turístico nem a limitação da afetação de uso das frações integradas em propriedade horizontal são soluções legais novas, nem tampouco as mesmas constituem restrições desproporcionais dos direitos fundamentais de iniciativa económica privada e de propriedade.

O primeiro está previsto no número 1 do artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa da seguinte forma: “A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral”. Não há praticamente atividade económica que não esteja regulada e em que o legislador ordinário não estabeleça um conjunto de requisitos prévios, com vista à proteção do interesse geral, para o seu exercício. Entre elas está particularmente regulamentada a atividade hoteleira e similar.

Quanto ao direito de propriedade, definido no Código Civil como 1305.º do Código Civil como pleno e exclusivo “dentro dos limites da lei e com a observância das restrições por ela impostas” é limitado no regime da propriedade horizontal, pela própria definição desta forma de estruturação da propriedade imobiliária. Desde o DL 267/94 de 25 de outubro que passou a estar prevista a possibilidade de limitação do uso de certas frações a determinados fins, foi proibido aos condóminos dar às frações um fim diverso daquele a que se destinava pelo título constitutivo ou nela exercer atividade que fosse proibida pela assembleia de condóminos aprovada sem oposição. Sempre que o título constitutivo não dispusesse sobre o fim de cada fração autónoma, a alteração ao seu uso carecia da autorização da assembleia de condóminos, aprovada por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio (cfr. artigo 1422.º do Código Civil na redação introduzida pelo DL 267/94).

Tais restrições, como outras especialmente previstas no regime da propriedade horizontal, relativas ao uso das partes comuns, a obras que afetem a linha arquitetónica ou o arranjo estético do edifício (artigo 1422.º, número 2 a)) ou constituam inovações (artigo 1425.º) à divisão de frações (artigo 1422.ºA, número 3), são a consequência da especial configuração deste direito de propriedade que não pode existir sem a fixação legal de regras de compatibilização entre a propriedade privada de cada fração e a compropriedade das partes comuns.

Quer no âmbito do exercício do direito de iniciativa económica provada quer do exercício do direito de propriedade sobre fração autónoma de edifício constituído em propriedade horizontal cabe ao legislador ordinário fazer a ponderação dos interesses em confronto, dentro da margem de discricionariedade que lhe é conferida pelo artigo 18.º, número 2 da Constituição da República Portuguesa que apenas impõe que as restrições aos direitos fundamentais se limitem ao necessário a proteger outros direitos ou interesses constitucionalmente garantidos não diminuindo a e extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (artigo 18.º, números 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa).

Desde que as opções legais sejam respeitadoras desta proibição do excesso e obedeçam ao princípio da proporcionalidade, as mesmas não serão inconstitucionais.

Ora, no caso, estamos perante uma norma legal (o artigo 9º, número 2 do DL 128/2014 com a redação decorrente da Lei 56/2023), que não restringe o direito de propriedade nem de iniciativa económica dos proprietários de frações autónomas senão no caso de, não estando especialmente prevista a possibilidade de afetação ao alojamento local, a assembleia de condóminos, por uma maioria de pelo menos dois terços da permilagem do edifício, se opor a esse fim.

Tal possibilidade de oposição dos demais proprietários de frações do mesmo edifício - para que se exige, note-se, uma significativa maioria representativa de dois terços da permilagem -, não configura restrição desproporcional do direito do condómino a quem é oposta tal deliberação já que, ainda que sem terem de partilhar as razões dessa oposição, tais condóminos podem ter interesse em proteger o uso que dão quer às suas frações quer às partes comuns do edifício. É manifesto que, pela sua própria natureza, o alojamento local implica uma constante entrada e circulação no edifício de diferentes pessoas, por períodos que podem ir de apenas uma noite a várias semanas, muitas vezes portadores de bagagem volumosa. Tal é suscetível de causar perturbação do sossego e tranquilidade dos demais proprietários/arrendatários das frações habitacionais, do uso comercial que possa ser feito das mesmas (vg. consultórios médicos ou outros equiparados em que o silêncio seja relevante) e de causar maior insegurança no controlo de entradas e saídas. Pelo que a solução legal adotada à data da deliberação em apreço não deixa de ser justificada e proporcional apesar de por ela se terem dispensado os condóminos oponentes de partilhar os fundamentos da sua deliberação, fundamentos esses que podem divergir de condómino para condómino e que podem ser apenas preventivos e não consubstanciados em incidentes já ocorridos.

Como decidido em primeira instância, não se vê que a possibilidade de restrição do uso da fração autónoma a fim diverso do que consta do título constitutivo por via uma deliberação tomada por uma maioria qualificada de condóminos desvirtue ou deixe desprotegido qualquer direito do proprietário dessa fração, seja ele o direito de propriedade (cujo fim, no caso, está previsto no título constitutivo da propriedade horizontal e não é o de alojamento local), seja o de livre iniciativa económica que pode se deve estar sujeita a regulamentação legal, como estão outras atividades afins, de hotelaria ou outra forma de hospedagem.

Estando prevista no título constitutivo da propriedade horizontal objeto dos autos um fim (escritórios consultórios ou afins) em que não se insere a atividade de alojamento local e não tendo o autor licenciado e registado previamente tal atividade, o seu direito de propriedade mantém-se com os mesmos limites que resultavam do título constitutivo e não lhe foi defraudada qualquer expetativa de continuidade de atividade económica que já estivesse a exercer legalmente.

Como tal, entende-se que o artigo 9º, número 2 do DL 128/2014 com base no qual foi tomada a deliberação da assembleia de condóminos impugnada, não viola os artigos 61.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa.

V – Decisão:

Nestes termos julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente nos termos do previsto no artigo 527.º, número 1 do Código de Processo Civil.


Porto, 28 de abril de 2025.
Ana Olívia Loureiro
Carla Fraga Torres
Fernanda Almeida
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