PESSOA COLETIVA
VIOLAÇÃO DO DIREITO AO BOM NOME
PUBLICAÇÃO DE NOTÍCIA
DIRETOR DO PERIÓDICO
CONHECIMENTO ANTECIPADO DO TEOR DA PUBLICAÇÃO
PRESUNÇÃO LEGAL ILIDÍVEL
Sumário

I – Em consonância com o art. 20º, nº 1, al. a) da Lei de Imprensa, recai sobre o diretor do periódico um dever especial de conhecimento antecipado das matérias a publicar e que hão de constituir o seu conteúdo, de modo a obstar à publicação daquelas que possam integrar um tipo legal de crime ou constituir um facto ilícito gerador de responsabilidade civil.
II – Dessa obrigação decorre uma presunção legal ilidível de conhecimento antecipado do teor da publicação.
III - Assim, ao lesado caberá invocar e provar a publicação da notícia que entende lesiva dos seus direitos, bem como os danos que sofreu e o nexo de causalidade entre aquela e estes, e à empresa jornalística caberá alegar e provar que, por razões estranhas à sua vontade, não teve conhecimento antecipado da publicação dessa notícia.
IV - A ofensa ao bom nome e reputação das sociedades comerciais não releva apenas como dano patrimonial indireto, podendo também relevar como dano não patrimonial.
V - Só se um ato ilícito que ofenda um direito de personalidade de uma pessoa coletiva puser em causa o seu prestígio e a sua credibilidade, a tal ponto que danifique a sua capacidade de prossecução do seu fim, é que temos um dano.
VI - Com a publicação de uma notícia, acompanhada de uma fotografia das instalações da autora, relatando a realização de uma relevante ação de fiscalização da ASAE, respeitante à contrafação de artigos têxteis, quando a autora nenhuma relação tinha com essa operação, ocorreu uma violação do seu direito ao bom nome.
VII – Porém, provando-se tão-somente que a notícia foi conhecida no meio em que a autora desenvolve a sua atividade, tal nada significa, em termos de verificação para esta de um dano efetivo, indemnizável em termos patrimoniais ou não patrimoniais, pois desse facto não resulta, só por si, qualquer prejuízo para o património da autora, nem a partir dele se pode considerar demonstrado que a ofensa verificada com a publicação da notícia tenha afetado a sua credibilidade e posto em causa a sua capacidade de prossecução dos seus fins.

Texto Integral

Proc. nº 2271/22.2T8BCL.P1

Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto – Juiz 3

Apelação

Recorrentes: “A..., S.A.”; “B..., Unipessoal, Lda.”

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Pinto dos Santos e Maria da Luz Teles Meneses de Seabra

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

A autora “B..., Unipessoal, Lda.” propôs a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a ré “A..., S.A.”, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 47.671,40€, acrescida de juros até pagamento integral.

Alegou, para tanto, que no dia 22.1.2020 foi publicada no Jornal ..., periódico da propriedade da ré, e difundida por outros órgãos de comunicação, uma notícia sobre a realização de uma ação de fiscalização pela ASAE respeitante à apreensão de artigos têxteis contrafeitos num armazém localizado em ..., acompanhada de uma fotografia a retratar as suas instalações, captada por fotógrafo ao serviço da ré, não tendo, no entanto, a autora qualquer relação com os atos noticiados. Mais alegou que a associação da autora àqueles factos ilícitos pela forma como foram noticiados acompanhados da referida fotografia lhe causou danos, quer decorrentes do cancelamento de encomendas por clientes, quer pela lesão ao seu bom nome perante fornecedores, clientes e potenciais clientes.

A ré contestou. Defendeu-se por exceção, invocando a incompetência do tribunal e, no mais, qualificou a sua defesa como de mera impugnação. Invocou para afastar a responsabilidade que lhe foi apontada que nem o Diretor, nem os Diretores Adjuntos do Jornal ... tiveram conhecimento prévio da notícia nem se opuseram à sua publicação e que, no percurso de elaboração da notícia desde a redação à publicação, aqueles não têm intervenção. Suscitou o incidente de intervenção principal provocada da “C..., Lda.”, enquanto proprietária da “Rádio ...”.

A autora exerceu o contraditório, tomando posição quanto à exceção invocada e quanto aos demais factos alegados pela ré em sua defesa.

Foi apreciada e julgada procedente a exceção da incompetência territorial e os autos foram remetidos aos Juízos Locais Cíveis do Porto.

A “C..., Lda.” foi admitida a intervir a título principal e, sendo pessoal e regularmente citada, não contestou.

Dispensou-se a realização da audiência prévia, tendo-se proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova.

Realizou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo.

Por fim, proferiu-se sentença que julgou a ação parcialmente procedente e condenou a ré “A..., S.A.” e a “C..., Lda.”, solidariamente, a pagar à autora a quantia de 3.000,00€, acrescida de juros, calculados à taxa de 4% ao ano desde 18.8.2022, até efetivo e integral pagamento.

Inconformadas com o decidido, interpuseram recurso a ré e a autora.

A ré “A..., S.A.” formulou as seguintes conclusões:

A. O presente recurso é interposto da sentença de fls., que julgou a acção parcialmente procedente, na parte em que condenou a Recorrente ao pagamento da quantia de €3.000,00 a título de indemnização civil por alegados danos não patrimoniais da A..

B. Como decorre da sentença proferida, o que está em causa nos presentes autos é a publicação de uma fotografia no jornal da Ré e na “Rádio ...” (da Interveniente) que a A. considerou violadora dos seus direitos e ofensiva do seu bom nome.

C. É a reunião de todos os requisitos previstos no art. 483º do CC que condiciona a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, não se tendo nestes autos provado um requisito fundamental: a culpa.

D. O Tribunal violou o art. 29º, nº 2 da Lei de imprensa, que faz (inequivocamente) depender a responsabilização cível solidária da empresa jornalística do conhecimento prévio do texto ou imagem publicados e da não oposição à respectiva publicação pelo Director ou seu substituto legal.

E. Trata-se de norma e diploma legal especiais, vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio de que «norma especial derroga norma geral», pelo que não podia o Tribunal estribar-se em princípios gerais do direito civil (mormente no disposto no art. 500º do CC) que, no caso em apreço, não podiam ter aplicação.

F. Sendo que o Tribunal deu como provado (23º a 26º dos Factos Provados) que no processo de elaboração das notícias publicadas no “Jornal ...” (Jornal ...), os jornalistas elaboram e redigem o texto das notícias, ainda sem imagens, e que despois são remetidas para a gráfica onde são inseridas as fotografias, sem voltarem às mãos do jornalista.

G. E que antes da publicação o resultado final não passa pelo Director ou qualquer dos Directores Adjuntos (salvo alguma notícia com especial relevância).

H. Dando ainda como provado que quer o Director, quer qualquer dos Directores Adjuntos do Jornal ..., não tiveram qualquer intervenção na selecção e inserção da fotografia publicada, bem como que nenhum deles teve conhecimento prévio da notícia, e imagem, dos autos.

I. Se o tribunal deu como provado que o Director ou qualquer dos Directores Adjuntos do Jornal ... não teve conhecimento prévio da notícia dos autos, clara devia ser a conclusão de que estes não poderiam impedir ou opor-se sob qualquer forma à publicação da mesma (precisamente porque, dado o total desconhecimento do seu teor, o não poderiam ter feito).

J. Razão pela qual não podia responsabilizar-se a ora Recorrente por eventuais e alegados danos emergentes da imagem publicada na notícia dos autos, em virtude do disposto no art. 29º, nº 2 da Lei de Imprensa.

K. O tribunal começa por fundar semelhante responsabilidade num alegado “incumprimento” do Director das suas funções, o que não aconteceu, nem se provou.

L. «Ao director compete: a) Orientar, superintender e determinar o conteúdo da publicação», o que o Director em questão, ouvido como testemunha, fez.

M. O que não diz a lei é que é dever do Director ter conhecimento antecipado de todas as matérias publicadas, e, sobretudo, da forma como todas as matérias são publicadas, pois só quem não conhece um jornal, diário como é o caso, é que pode presumir que é possível ao Director saber como vão ser publicadas todas as páginas do jornal.

N. Foi explicado, e provado, que “no processo de elaboração das notícias publicadas no Jornal ... na versão em papel, os jornalistas elaboram e redigem o texto das notícias, que depois passam para os editores ainda sem imagens, são remetidas para a gráfica onde são inseridas as fotografias, sem voltarem às mãos do jornalista.” (23. dos factos provados), e que “o resultado final antes da publicação não passa pelo Director ou qualquer dos Directores Adjuntos, salvo alguma notícia com especial relevância.” (24. dos factos provados).

O. E, portanto, se assim foi, mal se compreende a condenação da Recorrente, quando o art. 29º, nº 2 da Lei de Imprensa prevê o que prevê, pelo que o Tribunal violou a referida norma.

P. Por outro lado, sustenta o tribunal recorrido a sua decisão numa pretensa relação de comitente-comissário (art. 500º do CC), afirmando que «a empresa jornalística não poderá deixar de responder perante os lesados pela publicação nos termos gerais dos arts. 483.º, nº1, ou 500.º do Código Civil e 29.º, n.º1, da Lei de Imprensa. »

Q. O tribunal a quo aplica tal norma erradamente, porque a responsabilidade prevista no art. 500º do CC é uma responsabilidade fundada no risco, que é tratado num capítulo autónomo ao da responsabilidade civil por actos ilícitos de que ora nos curamos (arts. 483º e 484º do CC).

R. Como ensinam Antunes Varela e Pires de Lima, «a obrigação de indemnizar nasce do risco próprio de certas actividades e integra-se nelas, independentemente de dolo ou culpa. Os casos de responsabilidade objectiva têm carácter excepcional, como se diz no nº 2 do artigo 483º, não podendo as disposições que os admitem aplicar-se por analogia.»

S. É o caso das actividades que contêm em si mesmas um risco directo associado: casos dos danos causados por animais (art. 502º), dos acidentes causados por veículos (art. 506º) ou dos danos causados por instalações de energia eléctrica ou gás (art. 509º).

T. Não é o caso da actividade jornalística que tem ademais lei própria, pois o art. 29º, nº 2 da Lei de Imprensa é NORMA ESPECIAL de responsabilidade. E a prova que foi feita nos autos iliba a Recorrente. Como é entendimento na nossa jurisprudência.

U. No caso em apreço, inexiste qualquer responsabilidade objectiva, que foi o que o tribunal veio clausular, pelo que mal andou o tribunal ao recorrer a uma norma legal que não tem qualquer aplicabilidade no caso em apreço, violando não apenas o disposto no art. 483º, nº 2 do CC, como também (e novamente) o art. 29º, nº 2 da Lei de Imprensa.

V. Também não foi feita prova dos danos não patrimoniais susceptíveis de legal indemnização, pois o Tribunal apenas deu como provado que 28) A notícia foi conhecida no meio em que a autora desenvolve a sua actividade.

W. À míngua de prova, o Tribunal objectivou danos que seriam… subjectivos, pois nada se provou quanto a possível perda de clientes. Quantos é que deixaram de recorrer aos produtos da A. Por causa da notícia. Nenhum dano de imagem ou de crédito.

X. Os putativos danos não patrimoniais só poderiam ser sentenciados a partir de factos, circunstâncias e relatos da vida económica da A. que não foram narrados: faltas de clientes, aconselhamento mediático, contratação de empresa de comunicação, comportamentos diários demonstrativos do seu abalo no mercado, como ausência a compromissos a feiras, abandono de actividades da empresa, etc., etc.

Y. Pelo que violou o previsto no art. 483º, nº1 e 496º, nº 1 do CC, bem como o princípio do contraditório, o princípio da igualdade processual das partes e extravasou os seus poderes de cognição de factos para além dos que foram alegados pelas partes, violando o nº 2 do art. 608º do Código de Processo Civil, determinando a nulidade da mesma nos termos da al. d) do art. 615º do CPC.

Z. O Tribunal acabou ainda por considerar que a R. e a Interveniente acessória, C... Lda. (proprietária da “Rádio ...”), contribuíram em igual medida para os “danos”, cuja indemnização determinou, não tendo apurado quanto seria da responsabilidade da “Rádio ...” (da interveniente acessória) e quanto seria do Jornal ....

AA. A “Rádio ...” também causou os alegados danos e causa ainda, pois a mesma fotografia publicada continua disponível no seu site on-line, e a fotografia na notícia do Jornal ... foi logo retirada.

BB. O Jornal ... publicou uma nota de esclarecimento, o que a Rádio ... não fez.

CC. Donde que, também aqui, a decisão dos autos não faz nenhuma justiça ao caso, não tendo graduado as culpas (se existiram) de ambos os agentes demandados de modo equilibrado e justo, violando os normativos legais aplicáveis in casu que obrigam a que, sendo vários responsáveis, a indemnização terá lugar na medida das respectivas culpas.

A autora “B..., Unipessoal, Lda.”, por seu lado, formulou as seguintes conclusões:

a. A Recorrente expressamente impugna a decisão proferida acerca da matéria de facto, porquanto entende ter ocorrido erro de julgamento de facto, desde logo, considerando a imposição legal decorrente do artigo 640.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, a Recorrente indica quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados.

b. Entende a Recorrente que a prova produzida nos presentes autos reconduziria a decisão diversa da que foi proferida quanto aos factos a), b) e c), os quais devem ser considerados como provados, sustentado na prova produzida, documental e testemunhal, e nos juízos de probabilidade e causalidade adequada.

c. Ficou amplamente dito pelas testemunhas que prestaram depoimento sobre essa matéria, que cancelaram as suas encomendas e a causa para o cancelamento foi a divulgação a nível nacional, da notícia de apreensão de material têxtil contrafeito, associando à notícia fotografias das quais resulta focado o estabelecimento da recorrente, e com visibilidade do seu logótipo.

[00:09:09] AA: É assim, eu tenho, eu trabalho com muitas agentes têxteis. Tive reunião com as três sobre essa situação, que uma notícia em ... que, ..., ..., e na nossa área de enfase, e uma delas exigiu que eu não tivesse no momento, relação comercial com a B...…

[00:07:01] BB: Não. Na altura deliberou-se tudo o que estivesse lá, tudo o que estivesse lá para ser cancelado. Até porque nós tínhamos algumas coisas personalizadas a ser feitas lá, e tivemos que fazer o cancelamento….

d. Ocorreu efetivo erro na apreciação da prova, bem como flagrante desconformidade entre os elementos probatórios e a decisão acerca da matéria de facto, e a fundamentação que vai sendo plasmada pelo tribunal a quo ao longo da sentença proferida.

e. Pese embora considere como não provado os danos diretos, como causa direta da repercussão da notícia, minimizando a sua verificação em função da nota de esclarecimento, a certo momento da fundamentação presente na Sentença, é possível ler,

“(…) logrou provar o efetivo conhecimento do teor da notícia no meio em que desenvolve a sua atividade.

Importa salientar que foram noticiados factos de elevada gravidade, passíveis de fazer incorrer os seus autores na prática de crimes de grande repercussão em função do valor dos bens apreendidos, sendo inclusive notificada como «uma das maiores apreensões de bens contrafeitos de que há registo na ASAE.

A associação da notícia à autora lesou necessariamente o seu bom-nome, pois que, até a um criminoso, a imputação de um crime que não praticou é lesiva da sua honra.

E tal é tanto mais evidente quando, em concreto, a autora se viu na contingência de, pelos meios imediatos de que dispunha, reagir perante a ré e, sobretudo, diligenciar por esclarecer os seus clientes e colaboradores.

(…)

Claro que a nota de esclarecimento terá atenuado a lesão mas não se julga ser tal bastante para considerar o dano causado: é ingénuo acreditar que a nota de esclarecimento foi lida por tantos quantos leram a notícia e que tantos falaram da notícia voltaram a falar do assunto para propalar o esclarecimento.”.

f. Assim, perante toda a gravidade da situação e repercussão na vida económica da recorrente, percebida e provada perante o tribunal a quo, o mesmo teria, sustentando-se na mesma base, dar como provadas os cancelamentos das encomendas subjacentes à divulgação dos factos noticiados de elevada gravidade.

g. Para prova do cancelamento das encomendas, a recorrente juntou aos autos, o documento n.º 5 da petição inicial, correspondente a uma comunicação eletrónica da qual resulta clara a intenção de cancelamento da encomenda do cliente D... SARL, justificando tal ato na divulgação das notícias que envolveram o nome da recorrente.

h. Perante este documento, o juiz a quo valorou o respetivo teor do documento para dar como provado o cancelamento da encomenda – ponto 29 dos factos considerados provados, mas já não valorou esse mesmo teor para dar como provado o fundamento do cancelamento de encomenda,

i. Sem apresentar qualquer argumento válido para, no mesmo documento, e com base nas declarações dele resultantes, dar como provado o cancelamento da encomenda, valorando as declarações aí prestadas e a vontade manifestada, mas já não considerando válidas tais declarações na parte em que justifica o cancelamento com a divulgação da notícia.

j. Apesar do princípio da livre apreciação da prova, cabe à Relação, enquanto Tribunal de 2ª instância, reapreciar, não apenas se a convicção expressa pelo Tribunal de 1ª instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os restantes elementos constantes dos autos revelam, mas, também, avaliar e valorar, de acordo com o princípio da livre convicção, toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto, o que deverá ocorrer nos presentes autos.

k. Considerada a prova documental, em especial documento nº 5, o depoimento dos comerciais a reforçar que os cancelamentos foram ordenados na sequência e por conta dos cancelamentos, patrões e clientes ordenaram o cancelamento, e mesmo rutura da relação comercial com a recorrente, pelo que devem as alíneas a), b) e c), ser excluídas, sendo esses factos englobados na relação de factos provados.

l. Alterada a matéria de facto, e considerando que estamos no campo da responsabilidade civil extracontratual, é necessário o preenchimento, de pressupostos, que são a existência de um facto, a ilicitude desse facto, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre aquele facto e o dano, que, no caso concreto se verificam.

Pretende assim a condenação das recorridas no pagamento solidário dos danos sofridos pela recorrente.

A ré “A..., S.A.” apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

A. No presente recurso o que a Recorrente procura é disputar o princípio da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum em que se fundou o Tribunal a quo para valorar a matéria impugnada em questão, pretendendo, no fundo, um segundo julgamento, que legalmente lhe está vedado.

B. Decidiu manifestamente bem o Tribunal a quo pela improcedência do pedido da A. de pagamento de alegados danos patrimoniais formulados nos autos, nenhuma razão de facto ou argumento legal havendo que permita inverter tal decisão.

C. A A. achou que seria suficiente “arranjar” uma ou duas testemunhas “da casa” para virem contar que a A. tinha perdido duas encomendas por causa da notícia do “Jornal ...”, e que tal chegaria para convencer o Tribunal a arbitrar uma indemnização pecuniária por danos patrimoniais.

D. A decisão não é errada ao ter dado como não provada a factualidade vertida em a), b) e c) dos Factos Não Provados, já que se louvou naquilo que em seu entender foram os mais que dúbios e inconsistentes depoimentos prestados em julgamento pelas testemunhas indicadas pela A., precisamente as mesmíssimas duas testemunhas de que a Recorrente se pretende socorrer no recurso ora apresentado para reverter o decidido.

E. O Tribunal deu como provado em 29) e 30) que a “D... SARL” cancelou a encomenda à Autora de 13 de Janeiro de 2020, por intermédio da sua agente “E..., Lda.”. que é uma empresa que partilha sede com a A….

F. Para o Tribunal – e bem - «Quanto à encomenda da “D... SARL”, apesar do fundamento invocado na referida mensagem pelo gerente da “E..., Lda.”, ouvido como testemunha em audiência, tal afigura-se ser incoerente quando as instalações desta também são retractadas nas mesmas fotografias (pois que as instalações são ao lado, como aliás decorre de forma concordante do teor da certidão do registo comercial) e que a cliente só colocou objecção à autora e não já à “E...”, com quem continua a manter relação comercial. »

G. Foi isso que tal testemunha declarou na audiência de julgamento de 16.01.2024, e que resultou de todo o seu depoimento, e não apenas dos excertos que a Recorrente cita, confirmando a mesma que a “D... SARL”, firma que representa, continua a ser sua cliente, apesar de a fotografia publicada no Jornal ... retratar tanto as instalações da A., como as da referida “E...”, contíguas que são no mesmo conjunto de armazéns.

H. É realmente inexplicável (e inconsistente) a tese da A. de que uma notícia – que não menciona o nome da Recorrente, que apenas retrata um conjunto de edificado, um grupo de armazéns -, pudesse apenas pôr em causa as relações comerciais da “D... SARL” com a A. (e suas alegadas encomendas), e não também as relações comerciais com o seu agente “E...”, cujas instalações são contíguas.

I. O Tribunal recorrido considerou adicionalmente que «Tal julga-se ser tanto mais evidente quanto, como assegurou, aquela continua a recusar encomendar acessórios à autora, depois dos esclarecimentos públicos feitos, o que aponta para que a causa do cancelamento da encomenda tenha sido outra que não a publicação.».

J. Ou seja, a A. (e a sua testemunha) quiseram convencer o Tribunal que uma notícia que serve para cancelar uma encomenda, não serve para “descancelar”, pois um dia apenas após a notícia foi publicada uma segunda notícia - o esclarecimento do Jornal ... -, do qual decorre que a A. não estava implicada nos factos narrados na notícia anterior e é alheia aos mesmos.

K. E mesmo assim, e após todos estes anos, e segundo a testemunha citada, a D... SARL nunca mais encomendou nada à A. e não mais voltou a fazer negócio com a A., o que, de facto aponta para outra causa para o cancelamento da encomenda que não a notícia do Jornal ....

L. Pelo que só poderia o Tribunal ter dado a factualidade vertida em a) como não provada, por total falta de coerência e lógica do relatado pela testemunha quanto ao cancelamento e respectiva causa.

M. O mesmo se passando com os factos não provados das alíneas b) e c) dos Factos não Provados, tendo entendido o Tribunal que «Quanto à encomenda da “F...”, no valor de 35.666,40€, conforme resulta da requisição da encomenda, julga-se de todo em todo inverosímil, ante o valor em causa, que a decisão de cancelar tenha sido transmitida oralmente tão-só pelo director comercial e que a autora simplesmente se tenha conformado com isso.»

N. E que «tal como mencionado pelo gerente da autora, este era um cliente de há cerca de 27/28 anos, pelo que mal se compreende que, estando a encomenda feita e com o esclarecimento prestado, incluindo no Jornal ..., num tipo de produtos cuja proveniência não é mencionada no próprio produto (por forma a ser associado aos eventuais actos ilícitos), tenha sido decidido cancelar a encomenda. Não é de todo uma decisão racional, tanto mais que, tendo a encomenda sido feita há mais de dez dias por referência à data da notícia, a “F...” também precisaria dos acessórios para, por sua vez, concluir a sua produção e cumprir os seus prazos para com os seus clientes.»

O. Efectivamente, não só os produtos alegadamente encomendados à A. (“fechos” diversos) não correspondiam àqueles que eram descritos na notícia do Jornal ... como tendo sido apreendidos (sapatilhas contrafeitas das marcas Adidas, Nike e perfumes), como a A. quis convencer o Tribunal que tinha um cliente, com quase 30 anos de relação (!), que após publicação de uma notícia que não se referia à A. ou aos produtos que comercializava, e após os esclarecimentos noticiados pelo Jornal ... no dia seguinte, decide cancelar uma avultada encomenda (35 mil euros), cujos acessórios necessitava para satisfazer prazos de produção e entregas aos seus clientes (!)….

P. A prova produzida em julgamento foi analisada pelo Tribunal e ius-valorada em conformidade com os princípios da livre apreciação da prova e de acordo com as regras da experiência comum, e está fundamentada de forma lógica, coerente e não contraditória.

Q. Entendimento que este Tribunal da Relação do Porto vem perfilhando na sua jurisprudência ao plasmar que a Recorrente não pode almejar sobrepor a sua “convicção” à do julgador, “pretendendo um segundo julgamento da causa pelo Tribunal ad quem, no essencial sustentado naquela sua convicção”.

R. E, especificamente, a A. não demonstrou o nexo causal entre o facto (notícia) e os danos alegados, uma vez que os depoimentos de BB e de AA, suscitaram ao Tribunal dúvidas sérias e lógicas, não lhes tendo descortinado consistência no relatado quanto ao cancelamento e respectiva causa.

S. Mas mesmo antes disso, e sem prejuízo do exposto, a verdade é que a A. não provou verdadeiros e indemnizáveis danos patrimoniais, pois não demonstrou o respectivo valor da putativa perda efectiva.

T. A A. peticionou o valor total das duas alegadas encomendas, mas aquilo a que poderia eventualmente almejar, se acaso tivesse conseguido demonstrar que tinha perdido as encomendas por causa da notícia do Jornal ..., era ao valor dos ganhos, do lucro que teria porventura obtido se não tivessem sido canceladas, já que estas contemplariam, além do mais, custos e despesas que a A. teria tido que suportar, e alegadamente não suportou, pois… foram canceladas.

U. Ora, isso a A. nem sequer alegou. Muito menos provou. Pelo que não provou efectivos e materiais danos indemnizáveis.

V. Não se encontrando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, nomeadamente os danos patrimoniais peticionados e o nexo de causalidade entre o facto e os putativos danos, só poderia soçobrar nesta parte o pedido.

Os recursos foram admitidos como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Cumpre então apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito dos recursos, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que neles foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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As questões a decidir são as seguintes:

I – A condenação da ré “A...” a indemnizar a autora/O disposto no art. 29º, nº 2 da Lei nº 2/99, de 13.1 [Lei de Imprensa] – recurso interposto pela ré;

II – A indemnização a atribuir à autora:

a) O cancelamento das encomendas/Reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto – recurso interposto pela autora;

b) A indemnização pelos danos decorrentes da ofensa ao bom nome da autora – recurso interposto pela ré.


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É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:

1) A autora tem como objecto social a actividade de comércio por grosso de acessórios têxteis.

2) A ré é um grupo de media que actua em Portugal, com presença nos sectores da imprensa, rádio, multimédia e internet.

3) É proprietária, entre outras publicações, do Jornal ....

4) O Jornal ... é um jornal diário, disponibilizado em versão em papel e em versão online.

5) No 22 de Janeiro de 2020, foi noticiado no Jornal ... a realização de uma ação de fiscalização da ASAE respeitante a contrafação de artigos têxteis num armazém localizado em ....

6) Essa notícia foi veiculada na versão em papel e na versão online.

7) A notícia foi publicada com o título “ASAE apreende cinco milhões em contrafação em armazéns de ...” e o subtítulo “Armazéns em ... escondiam centenas de milhares de sapatilhas das marcas Adidas, Nike e perfumes destinados à venda através do Facebook. É uma das maiores apreensões de bens contrafeitos de que há registo na ASAE”.

8) A notícia surge associada a fotografias.

9) Nas fotografias é retratado, pelo exterior, um conjunto de armazéns de uma rua de ..., aparecendo em primeiro plano as instalações do edifício onde funciona o estabelecimento da autora.

10) E numa das fotografias associadas à notícia publicada na versão online surge retratada a fachada das instalações na parte onde figura o logotipo da autora (“B...”).

11) A fotografia publicada com a notícia na versão em papel é acompanhada da seguinte legenda “Um dos armazéns alvo de buscas está situado no fundo desta rua de ...”.

12) As fotografias publicadas são da autoria de CC.

13) CC encontrava-se ao serviço da ré.

14) A autora não é mencionada na notícia.

15) No texto da notícia não é identificado o local e nome da empresa ou proprietário alvo da fiscalização da ASAE.

16) A notícia foi difundida pela Rádio ....

17) A Rádio ... é propriedade da “C..., Lda.”.

18) A acção de fiscalização levada a cabo pela ASAE teve lugar num armazém vizinho às instalações da autora.

19) A notícia em nada diz respeito à autora.

20) A autora tomou posição quanto à notícia publicada, dando conhecimento aos clientes e colaboradores, negando qualquer relação com os factos noticiados.

21) E reagiu à publicação perante a ré.

22) No dia 23 de Janeiro de 2020, foi publicada no Jornal ... uma nota de esclarecimento com o seguinte teor: “Em relação à notícia sob o título “ASAE apreende cinco milhões em contrafação em armazéns de ...”, publicada esta terça-feira, o Jornal ... esclarece que a empresa B..., Unipessoal, Lda., não está implicada, nem tem qualquer relação com os factos relatados”.

23) No processo de elaboração das notícias publicadas no Jornal ... na versão em papel, os jornalistas elaboram e redigem o texto das notícias, que depois passam para os editores ainda sem imagens, são remetidas para a gráfica onde são inseridas as fotografias, sem voltarem às mãos do jornalista.

24) O resultado final antes da publicação não passa pelo Director ou qualquer dos Directores Adjuntos, salvo alguma notícia com especial relevância.

25) A notícia mencionada em 5) foi publicada sem que o Director ou qualquer dos Directores Adjuntos do Jornal ... tivessem tido intervenção na selecção e inserção da fotografia publicada.

26) E sem terem tido conhecimento da notícia ilustrada com a fotografia tal como veio a ser publicada.

27) A autora apresentou queixa-crime, designadamente contra a ré, tendo sido aberto o inquérito que correu termos com o n.º 921/20.4T9BCL, que veio a ser arquivado contra a ré com fundamento na insusceptibilidade de responsabilizar uma pessoa colectiva pela prática do crime que seria susceptível de ser imputado ante a limitação prevista no art. 11.º do Código Penal; e contra os demais arguidos por falta da existência de indícios.

28) A notícia foi conhecida no meio em que a autora desenvolve a sua actividade.

29) A “D... SARL” cancelou a encomenda à autora formalizada em 13 de Janeiro de 2020, por intermédio da “E..., Lda.”, no valor de 7.005,00€.

30) O que fez em 6 de Fevereiro de 2020.

Não resultou provado:

a.- A “D... SARL” invocou como fundamento para o cancelamento da encomenda a publicação e divulgação da notícia.

b.- A “F...” cancelou uma encomenda no valor de 35.666,40€.

c.- Tendo invocado como razão a publicação da notícia e não pretender ver a sua imagem associada à autora.

d.- Para além do esclarecimento referido na alínea 22), foi alterada a fotografia constante da notícia, retirando a anterior.


*

Passemos à apreciação do mérito do recurso.

I. A condenação da ré “A...” a indemnizar a autora/O disposto no art. 29º, nº 2 da Lei nº 2/99, de 13.1 [Lei de Imprensa] – recurso interposto pela ré

1. Na sentença recorrida a ré “A..., S.A.” e a “C..., Lda.” foram condenadas, solidariamente, a pagar à autora a quantia de 3.000,00€, acrescida de juros, calculados à taxa de 4% ao ano desde 18.8.2022, até efetivo e integral pagamento.

Teve esta decisão a discordância em via recursiva da ré “A...”, que sustenta que com a mesma a Mmª Juíza “a quo” desrespeitou o disposto no art. 29º, nº 2 da Lei de Imprensa.

Vejamos.

2. O art. 29º da Lei de Imprensa no seu nº 1 estatui que «[n]a determinação das formas de efetivação da responsabilidade civil emergente de factos cometidos por meio de imprensa observam-se os princípios gerais.»

Depois, no nº 2, quanto a empresas jornalísticas, prevê-se uma forma de responsabilidade objetiva com contornos especiais, fazendo sobre as mesmas recair a responsabilidade «no caso de escrito ou imagem inseridos numa publicação periódica com conhecimento e sem oposição do diretor ou seu substituto legal», sendo esta solidária «com o autor pelos danos que tiverem causado».

Assim, as empresas jornalísticas respondem perante o lesado pela publicação de um escrito ou imagem verificados os seguintes pressupostos:

- Se sobre o autor do escrito ou imagem recair a obrigação de indemnizar, nos termos previstos nos arts. 483º, nº1, do Cód. Civil e 29º, n.º 1, da Lei de Imprensa;

- Se a publicação do escrito ou imagem tiver sido feita “com o conhecimento e sem oposição” do diretor da publicação ou do seu substituto legal.

Face ao teor desta disposição legal entendeu alguma jurisprudência que quem se considere lesado, nomeadamente na sua honra, bom nome e reputação em consequência da publicação de notícias e pretenda responsabilizar o diretor e/ou a empresa jornalística, tem que alegar e demostrar que o diretor teve conhecimento antecipado daquela publicação, e não se opôs à mesma – neste sentido cfr. acórdãos STJ de 7.2.2008 (JOÃO BERNARDO), p. 07B1103 e Rel. Guimarães de 24.4-2012 (EDUARDO AZEVEDO), p. 6063/10.3TBBRG.G1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

Porém, a esta corrente jurisprudencial opõe-se uma outra que sustenta que a Lei de Imprensa consagrou uma presunção de culpa do diretor, que caso não seja elidida, conduz igualmente à responsabilização da empresa jornalística.

Com efeito, compete ao diretor, nomeadamente, nos termos do estatuído no art. 20º, nº 1, a), da Lei da Imprensa, “orientar, superintender e determinar o conteúdo da publicação”. Esta competência, entre outras, que a lei comete ao diretor significa que lhe impõe um dever especial de conhecimento antecipado das matérias a publicar e que hão de constituir o conteúdo do periódico, que lhe importa determinar como um dever funcional, em ordem a obstar à publicação daquelas que possam integrar um tipo legal de crime ou constituir um facto ilícito gerador de responsabilidade civil. Sobre o diretor impendem os aludidos deveres especiais de conhecimento das matérias a publicar e de eventual impedimento da divulgação daquelas que sejam suscetíveis de determinar responsabilidade. Impondo-se ao diretor da publicação o dever, de acordo com as competências definidas por lei, de conhecer e decidir, antecipadamente, sobre a determinação do seu conteúdo, em ordem a impedir a divulgação de escritos ou imagens suscetíveis de constituir um facto ilícito gerador de responsabilidade civil. A imputação ao mesmo do conteúdo que resulta da própria titularidade e exercício da função e dos inerentes deveres de conhecimento integra uma presunção legal, porque a lei considera certo um facto, quando se não faça prova em contrário.

Esta presunção legal dispensa ao autor-lesado o ónus da prova do facto, ou seja, o conhecimento, a aceitação e a imputação da publicação, por parte do diretor, a que a presunção conduz, isto é, a demonstração da culpa do lesante, admitindo-se, porém, que o onerado a ilida, mediante prova em contrário, dada a sua natureza de presunção juris tantum, nos termos do art. 350°, nºs 1 e 2, do Cód. Civil – Cfr acs. STJ 9.9.2010 (Gonçalo Silvano), p. 77/05.2TBARL.E1.S1; STJ 14.2.2012 (Hélder Roque), p. 5187/07.2TBOER.L1.S1; Rel. Lisboa 30.6.2011 (Rosário Gonçalves), p. 1755/08.0TVLSB.L1-7, Rel. Lisboa 12.7.2012 (Cristina Coelho), p. 342/09.0TVLSB.L1-7 e Rel. Lisboa 18.4.2013 (Ezagüy Martins), p. 2768/10.7TVLSB.L1-2, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Tal como se entendeu no Ac. Rel. Lisboa de 8.10.2019 (p. 17012/17.8 T8LSB.L1-7, relator DIOGO RAVARA, disponível in www.dgsi.pt.), consideramos ser de optar por esta segunda tese, “por ser aquela que de forma mais consentânea e abrangente, confere inteiro significado aos deveres de supervisão, chefia e vigilância do diretor da publicação jornalística, conduzindo a uma distribuição equilibrada do ónus da prova dos pressupostos da responsabilização da empresa jornalística.

Assim, ao lesado caberá invocar e provar a publicação da notícia que entende lesiva dos seus direitos, bem como os danos que sofreu e o nexo de causalidade entre aquela e estes, e à empresa jornalística caberá alegar e provar que por razões estranhas à sua vontade, não teve conhecimento antecipado da publicação dessa notícia.”[1]

3. Prosseguindo, como já atrás se referiu, da alínea a) do art. 20º, nº 1 da Lei de Imprensa decorre o dever do diretor de conhecimento antecipado das matérias a publicar, não no sentido de coartar a liberdade jornalística (a “liberdade de criação, expressão e divulgação do jornalista”), mas sim no de impedir a divulgação de factos que possam constituir um ilícito criminal ou gerar responsabilidade civil.

Deste modo, sendo o diretor o responsável pelas publicações, no pressuposto do pontual cumprimento dos deveres que sobre si impendem, só se exime da responsabilidade (eximindo também a empresa jornalística) no caso de, por circunstâncias que lhe forem alheias, a publicação for feita à sua revelia (por exemplo, o jornalista não ter cumprido qualquer orientação dada).

Consequentemente, conforme se afirma na sentença recorrida, “estando a responsabilidade do director (e consequentemente da empresa jornalística) assente no pressuposto do conhecimento e não oposição à publicação, não pode o incumprimento de um dever que a lei impõe afastar sem mais qualquer forma de responsabilidade daqueles.”

O diretor, tal como decorre do art. 21º, nº 2 da Lei de Imprensa, é escolhido pela empresa jornalística, ouvido o conselho de redação (assim como o são os diretores-adjuntos e os subdiretores).

Assim, se e na medida em que este não cumpra o dever de conhecimento antecipado das matérias a publicar e que tal actuação culposa seja geradora de danos a terceiros, a empresa jornalística será responsável nos termos gerais dos arts. 500º, nº1, do Cód. Civil e 29.º, n.º1, da Lei de Imprensa.

Na sentença recorrida, a nosso ver corretamente, operou-se a seguinte sistematização:

“- O art. 29.º, n.º 2, da Lei de Imprensa delimita a responsabilidade objectiva da empresa jornalística assente no pressuposto de que o director por si escolhido cumpre pontualmente os deveres que sobre si impendem, concretamente o de conhecimento antecipado das matérias a publicar, tal-qual densificado (…) por referência ao disposto no art. 20.º, n.º1, al. a), do mesmo Diploma.

Esta norma, de facto, comporta uma limitação da responsabilidade da empresa jornalística por referência ao disposto no art. 500.º do Código Civil e à actuação de todos os autores dos escritos e imagens publicados, o que se compreende dada a especificidade da actividade e os princípios por que se pauta, a justificar que a direcção seja assumida por pessoa diversa do proprietário da publicação.

Assim, só se e na medida em que o director tenha tomado conhecimento e não se tenha oposto à publicação, é que a empresa jornalística é solidariamente responsável com o autor do escrito ou imagem.

- Mas se o director, escolhido que é pela empresa jornalística, não cumpre pontualmente os deveres que sobre si impendem – concretamente descurando aquela primeira das competências que lhe são atribuídas prevista na alínea a) do n.º1 do art. 20.º –, a empresa jornalística não poderá deixar de responder perante os lesados pela publicação nos termos gerais dos arts. 483.º, nº1, ou 500.º do Código Civil e 29.º, n.º1, da Lei de Imprensa.”

4. Regressando ao caso concreto, o que se verifica é que a ré “A...” pretende afastar a sua responsabilidade fundando-se no art. 29º, nº 2 da Lei da Imprensa e na matéria fáctica que, a propósito, foi dada como assente nos seus nºs 23 a 26, cuja redação é a seguinte:

- No processo de elaboração das notícias publicadas no Jornal ... na versão em papel, os jornalistas elaboram e redigem o texto das notícias, que depois passam para os editores ainda sem imagens, são remetidas para a gráfica onde são inseridas as fotografias, sem voltarem às mãos do jornalista;

- O resultado final antes da publicação não passa pelo Director ou qualquer dos Directores Adjuntos, salvo alguma notícia com especial relevância.

- A notícia mencionada em 5) foi publicada sem que o Director ou qualquer dos Directores Adjuntos do Jornal ... tivessem tido intervenção na selecção e inserção da fotografia publicada.

- E sem terem tido conhecimento da notícia ilustrada com a fotografia tal como veio a ser publicada.

Na sentença recorrida concluiu-se que, não obstante o que consta dos seus nºs 25 e 26, mostram-se preenchidos, por referência à atuação omissiva dos diretores (ou pelo menos do diretor-adjunto no momento ao serviço da ré) os pressupostos da responsabilidade civil a que aludem os arts. 483.º, nº1 e 486.º do Cód. Civil, de tal forma que, respondendo a empresa jornalística objetivamente pela atuação daqueles nos termos dos arts. 500º do Cód. Civil e 29º, nº1, da Lei de Imprensa, impõe-se concluir pela responsabilidade da ré.

A Mmª Juíza “a quo” desenvolveu assim a sua linha argumentativa de modo a concluir desta forma:

“A se considerar isto o bastante para afastar a responsabilidade da ré por referência ao disposto no art. 29.º, n.º2, da Lei da Imprensa, a afirmação daqueles factos [os nºs 25 e 26] consente a afirmação do incumprimento pelo director (ou directores adjuntos) do dever de conhecimento antecipado das matérias a publicar decorrente da competência que lhe é imposta pelo art. 20.º, n.º1, al. a), ainda da Lei de Imprensa.

Porquê?

Pretendeu a ré fazer prevalecer a ideia de que, no contexto actual da actividade jornalística, o director e os directores adjuntos não têm condições de cumprir essa competência.

Efectivamente, logrou provar que no processo de elaboração das notícias publicadas no Jornal ... na versão em papel, os jornalistas elaboram e redigem o texto das notícias, que depois passam para os editores ainda sem imagens, são remetidas para a gráfica onde são inseridas as fotografias, sem voltarem às mãos do jornalista. E que o resultado final antes da publicação não passa pelo Director ou qualquer dos Directores Adjuntos, salvo alguma notícia com especial relevância (factos julgados provados nas alíneas 23. e 24.)

Mesmo perante a prova destes factos, não se vê que o incumprimento se possa dizer justificado (afastando a ilicitude da conduta).

Desde logo, o que resultou provado apenas se refere ao procedimento de elaboração das notícias que a organização do Jornal ... implementou. Nada permite afirmar esse procedimento como único e necessário.

É notória a velocidade da comunicação nos tempos actuais e a exigência que a actividade [jornalística] enfrenta para lhe responder. Mas a responsabilidade social dos [meios] de comunicação social e a presunção de verdade de que ainda beneficiam impõe que o “fazer depressa” não se possa sobrepor ao “fazer bem”, com respeito pelo valor máximo da verdade e pelo rigor da informação.

E no cumprimento destas máximas da verdade e rigor da informação assume especial relevância a figura do director (e subdirectores e directores adjuntos) e aquela competência de “orientar, superintender e determinar o conteúdo da publicação” que lhe é atribuída.

Assim, de todo em todo o procedimento de elaboração das notícias que o Jornal ... vem adoptando, totalmente à revelia [da] participação da direcção na esmagadora maioria das notícias veiculadas, pode justificar o incumprimento daquele dever legal.

Acresce que, em concreto, perante o texto da notícia, que não desvela a autoria dos factos ilícitos, o erro na captação e escolha das fotografias é de tal forma grosseiro que, tivesse o dever de conhecimento antecipado das matérias a publicar sido pontualmente cumprido, não deixaria o director ou os directores-adjuntos, como profissionais experientes, de deixar de o detectar.

De facto, parece evidente que, não sendo transmitida a autoria dos factos no texto (e sendo isso deliberado), não pode a imagem permitir identificar alguém, sobretudo como aconteceu de forma mais flagrante numa das fotografias da versão online em que aparece a parte da fachada com o logotipo da autora; tendo a apreensão ocorrido no fundo da rua, não pode a imagem rectractar, em primeiro plano, um armazém do início da rua.

Um profissional experiente não poderia ter deixado de questionar o acerto da inclusão daquelas fotografias.

A adopção do comportamento legalmente imposto de conhecimento antecipado das matérias seria, por isso, apto a evitar a publicação nos moldes em que o foi e, em consequência, a ocorrência da lesão do bom-nome da autora, sendo, por isso, a omissão do cumprimento do dever legal causal do dano.”

5. Concordamos com esta linha argumentativa, salientando-se, tal como já se referiu atrás, que se ao lesado cabe invocar e provar a publicação da notícia que entende lesiva dos seus direitos, bem como os danos que sofreu e o nexo de causalidade entre aquela e estes, já à empresa jornalística cabe alegar e provar que por razões estranhas à sua vontade, não teve conhecimento antecipado da publicação dessa notícia.

É certo que nem o diretor, nem os diretores adjuntos do Jornal ..., tiveram conhecimento da publicação da notícia ilustrada com a fotografia aqui em causa, mas daqui não resulta que, por esse motivo, possa ser afastada a responsabilidade da empresa jornalística.

O desconhecimento da notícia por parte da ré, para eximir a responsabilidade desta, teria que radicar em razões estranhas à sua vontade e não é o que se verifica na presente situação.

Esse desconhecimento filia-se na própria prática editorial da ré, que vem descrita nos nºs 23 e 24, e da qual decorre que só notícias com especial relevância é que passam pela análise do diretor ou de qualquer dos diretores adjuntos.

Trata-se de um procedimento que não pode ser aprovado, do qual resultará que a grande maioria das notícias publicadas pelo Jornal ... é-o à revelia da própria direção do jornal, em flagrante incumprimento do dever que sobre ela recai de conhecimento antecipado das matérias a publicar, que surge como desenvolvimento do dever mais lato previsto no art. 20º, nº 1, al. a) da Lei de Imprensa, de orientar, superintender e determinar o conteúdo da publicação.

Assim, embora a ré tenha provado que a direção do Jornal ... desconhecia a publicação da notícia aqui em causa, não conseguiu fazer a necessária prova de que esse desconhecimento era isento de culpa e se fundava em razões estranhas à sua vontade. Bem pelo contrário, o que se provou é que tal desconhecimento se mostra culposo, por ter a sua origem numa prática que ignora, de forma evidente, o relevante dever da direção ter conhecimento antecipado das matérias a publicar.

Improcede, pois, neste segmento (conclusões A a U) o recurso interposto pela ré “A...”.


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II – A indemnização a atribuir à autora

a) O cancelamento das encomendas/Reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto – recurso interposto pela autora;

1. A autora insurge-se, no seu recurso, contra a decisão recorrida na parte em que não lhe atribuiu qualquer indemnização por danos diretos resultantes do cancelamento de duas encomendas em virtude da publicação da notícia, no que peticionou o pagamento da quantia de 42.671,40€.

Com o propósito de alterar o decidido pela 1ª Instância nesse segmento impugnou a decisão proferida sobre a matéria fáctica, pretendendo que os factos dados como não provados nas alíneas a), b) e c) transitem para o elenco dos provados.

É a seguinte a redação destes três pontos factuais, tidos por não assentes:

a.- A “D... SARL” invocou como fundamento para o cancelamento da encomenda a publicação e divulgação da notícia.

b.- A “F...” cancelou uma encomenda no valor de 35.666,40€.

c.- Tendo invocado como razão a publicação da notícia e não pretender ver a sua imagem associada à autora.

No sentido da alteração pretendida a autora, no seu recurso, indicou excertos dos depoimentos produzidos pelas testemunhas AA e BB e aludiu ainda ao documento nº 5 junto com a petição inicial.

Uma vez que se mostram preenchidos os ónus previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil, iremos proceder à reapreciação dos factos impugnados, no que se procedeu à audição dos depoimentos testemunhais referenciados.

AA é gerente da empresa “E...”, que é vizinha da autora, sendo esta sua fornecedora de acessórios têxteis. Quase todos os dias faz encomendas à “B...” de cordões, fechos, molas, pulseiras. Referiu que trabalha com muitos agentes têxteis, sendo que um deles – a D... – exigiu que não tivesse qualquer relação comercial com a “B...”, o que comunicou a esta empresa. Isto porque a D... trabalha com uma marca muito exigente e que não queria qualquer relação com a “B...” por causa da notícia, pois muita gente percebeu que a apreensão teria sido nesta empresa. Também confirmou o envio de email a cancelar a encomenda da D....

BB em 2020 trabalhava para a “F...”, onde era diretor comercial. A sua empresa era cliente da “B...” e na altura da publicação da notícia existiam encomendas em curso. Mais referiu que a notícia circulou no seu meio industrial onde toda a gente se conhece. A sua empresa entendeu então que tudo o que estivesse na “B...” era para ser cancelado e, por isso, o seu patrão mandou suspender todas as encomendas (de fechos) que lá tinham.

O documento nº 5 junto com a petição inicial trata-se de um email remetido pela aqui testemunha AA (“E...”) para a autora “B...”, no dia 6.2.2020, às 17h14m, com o seguinte teor:

 

2. O art. 662º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil diz-nos que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»

A Relação, nesta reapreciação, goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.

Como tal, a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância.[2]

3. A Mmª Juíza “a quo” fundamentou pela seguinte forma a sua opção por considerar como não provados os factos constantes das alíneas a), b) e c):

“Por último, no que respeita aos factos relativos aos cancelamentos das encomendas e suas causas (os factos das alíneas 29. e 30. e a. a c.), apenas se julgou provado o cancelamento da “D... SARL”, por referência à mensagem de correio eletrónico de 6 de Fevereiro, suscitando-se sérias dúvidas quanto ao mais.

Veja-se:

- Quanto à encomenda da “D... SARL”, apesar do fundamento invocado na referida mensagem pelo gerente da “E..., Lda.”, ouvido como testemunha em audiência, tal afigura-se ser incoerente quando as instalações desta também são retractadas nas mesmas fotografias (pois que as instalações são ao lado, como aliás decorre de forma concordante do teor da certidão do registo comercial) e que a cliente só colocou objecção à autora e não já à “E...”, com quem continua a manter relação comercial. Tal julga-se ser tanto mais evidente quanto, como assegurou, aquela continua a recusar encomendar acessórios à autora, depois dos esclarecimentos públicos feitos, o que aponta para que a causa do cancelamento da encomenda tenha sido outra que não a publicação.

- Quanto à encomenda da “F...”, no valor de 35.666,40€, conforme resulta da requisição da encomenda, julga-se de todo em todo inverosímil, ante o valor em causa, que a decisão de cancelar tenha sido transmitida oralmente tão-só pelo director comercial e que a autora simplesmente se tenha conformado com isso. Mais: tal como mencionado pelo gerente da autora, este era um cliente de há cerca de 27/28 anos, pelo que mal se compreende que, estando a encomenda feita e com o esclarecimento prestado, incluindo no Jornal ..., num tipo de produtos cuja proveniência não é mencionada no próprio produto (por forma a ser associado aos eventuais actos ilícitos), tenha sido decidido cancelar a encomenda.

Não é de todo uma decisão racional, tanto mais que, tendo a encomenda sido feita há mais de dez dias por referência à data da notícia, a “F...” também precisaria dos acessórios para, por sua vez, concluir a sua produção e cumprir os seus prazos para com os seus clientes.”

Referiu-se também na sentença recorrida que os depoimentos prestados pelas testemunhas AA e BB suscitaram sérias dúvidas, não se tendo encontrado consistência no relatado nesses depoimentos quanto ao cancelamento e respetiva causa.

4. Daqui resulta que a julgadora, que aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – art. 607º, nº 4 do Cód. Proc. Civil -, fundamentou de modo convincente o porquê de ter dado como não provado, por um lado, o cancelamento da encomenda da “F...” e, por outro, que o cancelamento da encomenda da D... tenha tido como razão a publicação da notícia.

As dúvidas colocadas pela Mmª Juíza “a quo” aos depoimentos produzidos pelas testemunhas AA e BB, depois de ouvidos os mesmos, são inteiramente pertinentes.

Com efeito, não faz sentido que situando-se as instalações da “E...” junto às da autora, surgindo estas igualmente na fotografia em causa nos autos, a D... só tenha levantado problemas em relação à autora, continuando a manter relações comerciais com a primeira. Como tal, é de concluir, conforme se fez na sentença recorrida, que tendo o cancelamento da encomenda ocorrido apenas em 6.2.2020, já depois do esclarecimento efetuado no Jornal ... em 23.1.2020, o motivo do mesmo terá sido outro que não a publicação da notícia.

Por outro lado, no que concerne à “F...” também não faz sentido que uma tão significativa encomenda, no valor de 35.666,40€, tenha sido cancelada através de uma comunicação meramente oral e que a autora se tenha conformado com tal cancelamento sem qualquer reação.

Assim, não se vendo nenhuma razão para dissentir da convicção probatória formada pela 1ª Instância, que se encontra adequadamente motivada, manter-se-ão como não provadas as alíneas a), b) e c), o que significará a improcedência da impugnação da matéria de facto efetuada pela autora.

5. Permanecendo inalterada a matéria de facto, terá de se concluir que a autora “B...” não logrou provar que a publicação da notícia, acompanhada por uma fotografia onde eram reconhecíveis as suas instalações, tenha motivado o cancelamento de encomendas a ela feitas por parte da D... e da “F...”.

Deste modo, o segmento indemnizatório peticionado pela autora pelo cancelamento destas encomendas em virtude da publicação da notícia, no valor de 42.671,40€, não pode ser acolhido, o que impõe necessariamente a improcedência “in totum” do recurso por ela interposto.


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b) A indemnização pelos danos decorrentes da ofensa ao bom nome da autora – recurso interposto pela ré

1. Na sentença recorrida fixou-se em 3.000,00€, com base na equidade, a indemnização devida pela lesão ao bom nome da autora, tendo a Mmª Juíza “a quo” escrito “… ser de afirmar a repercussão do facto noticiado no bom-nome da autora, no sentido da sua evidente depreciação, com repercussão no meio em que desenvolve a actividade e com reflexo nessa actividade, revelando-se, no entanto, impossível determinar o valor exacto do dano (isto é, quantos clientes ou potenciais clientes deixaram de comprar ou o período em que, mantendo a hesitação, os já clientes deixaram de comprar até retomarem a normalidade as relações comerciais).”

Divergindo deste entendimento, a ré/recorrente entende inexistirem factos em que se possa apoiar tal montante indemnizatório e, por isso, pugna pela sua não atribuição.

Vejamos então.

2. As pessoas coletivas, ao invés das pessoas singulares, não têm dimensão biológica, nem psicológica, constituindo antes um instrumento que agrega, em torno de um fim, pessoas singulares, de tal modo que não são passíveis de sofrer lesões, como sejam dores físicas, desgostos morais, vexames, lesão da honra, complexos de ordem estética.

Por conseguinte, reportando-se à ressarcibilidade dos danos não patrimoniais causados pela ofensa ao bom nome de pessoa coletiva, há quem sustente que toda a ofensa a esse bom nome acaba por se projetar num dano patrimonial indireto – um reflexo negativo na potencialidade de lucro a auferir –, não sendo, por isso, suscetível de indemnização por danos não patrimoniais, os quais apenas afetariam os indivíduos com personalidade moral.

Sem personalidade física ou moral, as sociedades comerciais são alheias, por natureza, às emoções e estados físicos e psicológicos, que caracterizam os prejuízos desta natureza. Daí que a ofensa perpetrada sobre tais bens jurídicos só relevará, para efeitos de indemnização, na medida em que seja suscetível de projetar-se no seu património[3].

No entanto, entendimento diverso vem sendo adotado maioritariamente pela jurisprudência, de forma a admitir que a ofensa ao bom nome e reputação das sociedades comerciais não releva apenas como dano patrimonial indireto, podendo também relevar como dano não patrimonial.[4]

Sucede que este entendimento depara-se com dificuldades na delimitação de quais os danos suscetíveis de serem ressarcidos como danos não patrimoniais indiretos, recorrendo-se por vezes à fixação de uma indemnização a título de danos não patrimoniais como forma de se contornar a falta de prova da ocorrência de danos patrimoniais e fazendo-os equivaler à própria lesão do bom nome e prestígio da pessoa coletiva.

Prosseguindo, não cabem dúvidas de que a pessoa coletiva é titular de um direito ao bom nome e ao crédito, tal como flui dos arts. 70º e 484º do Cód. Civil, sendo que neste último se dispõe o seguinte:

«Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou coletiva, responde pelos danos causados

Ora, se o bom nome nas pessoas singulares constitui uma dimensão da sua honra (dimensão externa), já nas pessoas coletivas ela representa uma densidade diferente, muito mais ténue e instrumental. Funciona como um elemento indispensável à prossecução dos seus fins por parte da pessoa coletiva. Marcadamente relacional, a pessoa coletiva precisa de ganhar e conservar intacto um conceito ou uma imagem de credibilidade, de reputação e de prestígio social, sob pena (em caso de violação do seu direito ao bom nome) de se ver incapacitada de prosseguir o seu escopo.[5]

Salientando a necessidade de proceder à distinção entre a ofensa do bem jurídico e o dano, NUNO ALONSO PAIXÃO (in “Danos Não Patrimoniais em Pessoas Coletivas”, pág. 130) sustenta que da violação de um direito de personalidade pode resultar um dano que não seja suscetível de ser avaliado em dinheiro, nem se consubstancie propriamente na perda de prestígio da pessoa coletiva. “Este dano será relevante apenas e só quando se produza numa concreta dimensão da pessoa coletiva: quando afete gravemente a sua capacidade de prossecução do seu fim. É aquilo a que chamaríamos “dano de frustração na capacidade de prossecução do fim”.

A perda de prestígio ou de credibilidade não devem ser entendidos, só por si, como um dano não patrimonial, sendo antes meros acessórios, instrumentos essenciais para a creditação social da pessoa.
Assim, só se um ato ilícito que ofenda um direito de personalidade de uma pessoa coletiva puser em causa o seu prestígio e a sua credibilidade, a tal ponto que danifique a sua capacidade de prossecução do seu fim, é que temos um dano. E este dano será um dano de natureza não patrimonial, na medida em que o interesse danificado é, pela sua natureza, insuscetível de avaliação pecuniária.[6]
No entanto, nem toda a frustração dessa capacidade de prossecução do fim merecerá tutela ao nível de uma indemnização por danos não patrimoniais: só quando a aptidão para a prossecução do fim for seriamente afetada e esse dano não for avaliável em dinheiro é que se poderá falar de um dano não patrimonial.[7]
O que é lesado (para além de poder importar um menor lucro efetivo – dano patrimonial) é a sua capacidade de prosseguir o lucro, como o fazia até à verificação do facto ilícito.[8]
3. No caso “sub judice”, a Mmª Juíza “a quo”, fundando-se na lesão do bom nome da autora em virtude da publicação da notícia aqui em causa, atribuiu-lhe uma indemnização na importância de 3.000,00€.
Fundamentou essa atribuição pela seguinte forma:
“(…) Perante o que fica exposto, julga-se que a lesão de bens jurídicos imateriais como o direito ao bom-nome dos quais a pessoa colectiva reconhecidamente goza é indemnizável na medida em que tal se reflicta na prossecução do seu fim e, muito concretamente no seu património.
Na medida em que a lesão do direito é de afirmar quando tenha esta repercussão, o dano é apreciado e tratado como um dano patrimonial (e não como um dano não patrimonial).
Ora, ainda que a autora não tenha logrado fazer a prova da repercussão económica imediata da publicação da notícia no seu património (ou seja, do cancelamento das encomendas), logrou provar o efectivo conhecimento do teor da notícia no meio em que desenvolve a sua actividade.
Importa salientar que foram noticiados factos de elevada gravidade, passíveis de fazer incorrer os seus autores na prática de crimes de grande repercussão em função do valor dos bens apreendidos, sendo inclusive notificada como “uma das maiores apreensões de bens contrafeitos de que há registo na ASAE”.
A associação da notícia à autora lesou necessariamente o seu bom-nome, pois que, até a um criminoso, a imputação de um crime que não praticou é lesiva da sua honra.
E tal é tanto mais evidente quando, em concreto, a autora se viu na contingência de, pelos meios imediatos de que dispunha, reagir perante a ré e, sobretudo, diligenciar por esclarecer os seus clientes e colaboradores.
Se a notícia nenhum impacto tivesse no bom-nome da autora e no que dele necessita para desenvolver a sua actividade, nenhuma necessidade haveria de diligenciar nesse sentido. Poderia até, movendo-se por interesses puramente económicos, vir a demandar judicialmente a ré mas a sua actuação primeira não seria já a de apelar à publicação da nota de esclarecimento.
Claro que a nota de esclarecimento terá atenuado a lesão mas não se julga ser tal bastante para considerar anulado o dano causado: é ingénuo acreditar que a nota de esclarecimento foi lida por tantos quantos leram a notícia e que tantos quantos falaram da notícia voltaram a falar do assunto para propalar o esclarecimento.
Julga-se, pois, ser de afirmar a repercussão do facto noticiado no bom-nome da autora, no sentido da sua evidente depreciação, com repercussão no meio em que desenvolve a actividade e com reflexo nessa actividade, revelando-se, no entanto, impossível determinar o valor exacto do dano (isto é, quantos clientes ou potenciais clientes deixaram de comprar ou o período em que, mantendo a hesitação, os já clientes deixaram de comprar até retomarem a normalidade as relações comerciais).
Assim, afirmada a verificação do dano e ante o circunstancialismo factual mobilizável para determinação do seu quantum, julga-se ser incontornável convocar o critério previsto no n.º3 do art. 566.º do Código Civil. Não pode é uma vez afirmada a verificação do dano, como se impõe, a dificuldade prática de o quantificar importar uma decisão que equivalha a julgar o acto lícito.
Desta forma e com apelo à equidade, ponderando a gravidade da lesão infringida ao bom-nome da autora, concretamente pela sua associação ao cometimento de factos ilícitos, mas sopesando o imediato reconhecimento do erro pela direcção do Jornal ... subjacente à publicação da nota de esclarecimento, julga-se adequado fixar a indemnização em 3.000,00€.”
4. Contudo, apesar do esforço argumentativo feito na sentença recorrida no sentido da atribuição à autora de uma indemnização de 3.000,00€ pela lesão feita ao seu bom nome, entendemos que a matéria de facto apurada não é de molde a justificar essa atribuição.

Com efeito, o único facto concreto em que a Mmª Juíza “a quo” se apoia para tal efeito é, em toda a sua secura, o constante do nº 28: “A notícia foi conhecida no meio em que a autora desenvolve a sua actividade.”

É certo ser inequívoco que com a publicação de uma notícia, acompanhada de uma fotografia das instalações da autora, relatando a realização de uma relevante ação de fiscalização da ASAE, respeitante à contrafação de artigos têxteis num armazém localizado em ..., quando a autora nenhuma relação tinha com essa operação, ocorreu uma violação do seu direito ao bom nome.

A questão está em saber se a factualidade apurada permite concluir pela verificação de um dano efetivo para a autora/lesada, em consequência dessa violação do seu direito ao bom nome, e a nossa resposta será negativa.

O cancelamento de encomendas antes feitas à autora, conforme já se apreciou atrás, não ficou demonstrado, tal como nada se provou quanto à perda – temporária ou definitiva - de clientes ou quanto a outras repercussões negativas para a autora, como seriam, por exemplo, gastos acrescidos a nível comunicacional para minorar os efeitos negativos da notícia, diminuição significativa da sua atividade empresarial, ausência de participação em eventos relacionados com o seu ramo de atividade.

Ou seja, da publicação da notícia dos autos, não se provou a ocorrência de quaisquer consequências.

Ter-se provado, sem mais, que a notícia foi conhecida no meio em que a autora desenvolve a sua atividade nada significa, em termos de verificação para esta de um dano efetivo, indemnizável em termos patrimoniais ou não patrimoniais, tanto mais que logo no dia seguinte à publicação da notícia foi publicado no Jornal ... um esclarecimento, referindo que a “B...” não está implicada, nem tem qualquer relação com os factos relatados nessa notícia.

Na verdade, de tal facto não resulta, só por si, qualquer prejuízo para o património da autora, nem a partir dele se pode considerar demonstrado que a ofensa verificada com a publicação da notícia tenha afetado a sua credibilidade e posto em causa a sua capacidade de prossecução dos seus fins.

Por conseguinte, pese embora se tenha verificado uma ofensa ao bom nome da autora, e sem desdouro para o decidido em 1ª Instância, não há, a nosso ver, fundamento para que lhe seja atribuída indemnização para ressarcimento de danos patrimoniais ou não patrimoniais.

Tal importa, nesta parte, a procedência do recurso interposto pela ré “A...” (conclusões V a Y) e a consequente revogação da decisão recorrida.


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As demais questões suscitadas pela ré/recorrente no seu recurso – nulidade ao abrigo do art. 615º, nº 1, al. d) do Cód. Proc. Civil; falta de graduação de culpas entre a ré e a interveniente (conclusões Z a CC) – encontram-se prejudicadas nos termos do art. 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil.

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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso interposto pela autora “B..., Unipessoal, Lda.” e parcialmente procedente o interposto pela ré “A..., S.A.” e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida e absolve-se a ré, bem como a interveniente “C..., Lda.”, do pedido formulado.

Em virtude do seu decaimento, as custas em ambas as instâncias serão suportadas pela autora.


Porto, 29.4.2025
Rodrigues Pires
Pinto dos Santos
Maria da Luz Seabra
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[1] Cfr. também Ac. STJ de 15.3.2022, p. 405/14.0 T8STS.P1.S1 (BARATEIRO MARTINS), que consignou no respetivo sumário que “demandado o diretor como responsável, é a ele que cabe alegar e provar os factos suscetíveis de ilidirem tal presunção legal de culpa (é a ele que cabe fazer a prova de que ignorava, de forma não culposa, o conteúdo do escrito, ou de que este foi publicado com a sua oposição).
[2] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., págs. 823 e 825.
[3] Neste sentido, na jurisprudência Acs. do STJ de 23.1.2007, relator FARIA ANTUNES, Ac. Rel. Lisboa de 18.2.2014, relatora ROSA RIBEIRO COELHO, Ac. Rel. Coimbra de 24.2.2015, relator FONTE RAMOS, todos disponíveis in www.dgsi.pt.. Na doutrina, FILIPE MIGUEL CRUZ DE ALBUQUERQUE MATOS, “Responsabilidade Civil por Ofensa ao Crédito ou ao Bom Nome”, Teses, Almedina, págs. 379/380, escreveu: “(…) o bom nome, a reputação, a projeção social, tem um cunho manifestamente mais relacional quando a sua titularidade se reporta às pessoas coletivas. Particularmente relevante para a tutela jurídica é o bom nome enquanto fonte geradora de contactos, relações negociais, possibilidades aquisitivas para os entes coletivos, e não o valor emocional, afetivo ou estimativo normalmente associado a estes bens jurídicos. Razão por que, uma vez verificado o ilícito ao bom nome e ao crédito cujo lesado seja uma pessoa coletiva, recai sobre o agente a obrigação de indemnizar os danos emergentes, os lucros cessantes, bem como outras perdas económicas significativas sofridas pelas organizações de pessoas ou de bens a quem tenha sido reconhecida personalidade jurídica”.
[4] Cfr. Acs. STJ de 12.9.2013, relator OLIVEIRA VASCONCELOS; de 9.7.2014 relator JOÃO BERNARDO; de 6.7.2011, relator GABRIEL CATARINO, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. NUNO ALONSO PAIXÃO, “Danos Não Patrimoniais em Pessoas Coletivas”, disponível in repositório-aberto.up.pt.
[6] Cfr. NUNO ALONSO PAIXÃO, ob. cit., pág. 132.
[7] Cfr. NUNO ALONSO PAIXÃO, ob. cit., págs. 133/134.
[8] Neste ponto 2. seguimos no essencial a argumentação produzida no Ac. Rel. Coimbra de 27.4.2017, p. 289/14.8T8FND.C1, relatora MARIA JOÃO AREIAS, disponível in www.dgsi.pt.