CONTRA-ORDENAÇÕES DE SEGURANÇA SOCIAL
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO
COVID 19
Sumário

1- No âmbito das contra-ordenações laborais e de segurança social, a prescrição do procedimento contra-ordenacional ocorre quando, desde a prática da contra-ordenação e ressalvado o tempo de suspensão, tenham decorrido 7 anos e seis meses.
2- Na contagem do referido prazo deverão ser considerados os períodos de suspensão previstos na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e na Lei n.º 4-B/2021, de 01 de Fevereiro.

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa:

I- Relatório
Nos presentes autos de procedimento contra-ordenacional em que é arguida AA foi proferida em 28.01.2025 pelo Exmº Juiz a quo a seguinte decisão:
«A decisão impugnada nos autos imputa à arguida AA a prática das seguintes infrações:
− uma contraordenação muito grave, p. e p. pelos artigos 11º, n.º 1; 39º-B, al. a); 39º-E, al. a); 39º-F e 39º-H, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14/03, republicado pelo Decreto-Lei n.º 33/2014, de 04/03, sancionada com coima parcelar de €22.000,00 e com a sanção acessória de encerramento do estabelecimento por um período de 24 meses, por imputada exploração lucrativa de resposta de apoio social a pessoas idosas através do funcionamento de uma ERPI em estabelecimento sem licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento;
− uma contraordenação p. e p. pelos artigos 3º, n.º 1, al. a), e 9.º, n.º 1, al. a) e n.º 4, do DL 156/2005, de 15/09, republicado pelo Decreto-Lei n.º 371/2007, de 06/11, sancionada com coima parcelar de €500,00, por imputada inexistência do livro de reclamações no estabelecimento.
O artigo 52.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, prevê um prazo único de cinco anos para a prescrição do procedimento por contraordenação laboral ou de segurança social.
A prescrição determina a extinção do procedimento contraordenacional não necessitando de ser invocada por quem dela possa beneficiar, sendo de conhecimento oficioso.
Nos artigos 53º e 54º, a Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, estabelece causas de suspensão e de interrupção da prescrição, nos seguintes termos:
Artigo 53.º (Suspensão da prescrição)
1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:
a) Não possa legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;
b) Não possa prosseguir por inviabilidade de notificar o arguido por carta registada com aviso de recepção;
c) Esteja pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa competente, nos termos previstos no regime geral das contra-ordenações.
d) Esteja pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa competente, até à decisão final do recurso.
2 - Nos casos previstos nas alíneas b), c) e d) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.
Artigo 54.º (Interrupção da prescrição)
1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:
a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
d) Com a decisão da autoridade administrativa competente que procede à aplicação da coima.
2 - Nos casos de concurso de infracções, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação.
3 - A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tenha decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
De acordo com a decisão impugnada as infrações imputadas à arguida foram verificadas em fiscalização realizada no dia 09/02/2017, mais consignando que a exploração do estabelecimento ocorria desde setembro de 2014, não sendo efetuada qualquer referência factual à continuidade da exploração do estabelecimento em data posterior à da fiscalização ou, seja, após 09/02/2017.
Dos autos resulta também que o prazo de prescrição foi interrompido em 17/05/2019 com a notificação da arguida para apresentação de defesa ou pagamento voluntário (fls. 7 a 9) – cfr. artigo 54º, n.º 1, als. a) e c), da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro – e em 09/04/2024 com a notificação da decisão impugnada (fls. 78) – cfr. artigo 54º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
No entanto, como resulta do disposto no n.º 3 do artigo 54º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tenha decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
O processo não evidencia qualquer dos fundamentos de suspensão previstos no artigo 53º, n.º 1, als. a) e b), da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, pelo que a primeira causa determinante da suspensão do procedimento contraordenacional em apreço ocorreu apenas em 21/10/2024, com o envio dos autos ao Ministério Público (fls. 3), nos termos do disposto no artigo 53º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
Ora, em tal data já tinha decorrido o prazo da prescrição (5 anos) acrescido de metade (dois anos e 6 meses), ou seja, mais de 7 anos e 6 meses contados desde a data da constatação da prática da infração. Efetivamente tendo as infrações sido constatadas em 09/02/2017 e não existindo quaisquer referências factuais à sua continuidade após tal data, o prazo de prescrição máximo de 7 anos e 6 meses foi atingido em 09/08/2024.
Assim sendo, e uma vez que antes de tal data não ocorreu qualquer causa de suspensão que importasse ressalvar, o procedimento contraordenacional prescreveu em 09/08/2024.
Face ao exposto, declaro extinto, por prescrição, o procedimento contraordenacional contra a arguida e, em consequência, determino o arquivamento dos autos.
Sem custas – artigo 94º, n.º 3 “a contrario”, e n.º 4 do RGCO, ex vi artigo 60º da Lei n.º 107/2009, de 14/09.
Notifique (a arguida e o Ministério Público)
Comunique ao ISS, IP (artigo 45º, n.º 3, da Lei n.º 17/2009, de 14/09).»
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O Ministério Público recorreu desta decisão e formulou as seguintes conclusões:
1) Não se verifica assim, ainda, a prescrição do procedimento contraordenacional.
2) A notificação à arguida dos factos imputados e da possibilidade de contestar, nos termos e para os efeitos do direito de audição e de defesa consagrado no artigo 18.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, aplicável por remissão do artigo 39.º-K do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de março, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 33/2014, de 3 de março, implicou que o prazo da prescrição do procedimento contraordenacional foi interrompido em 17 de maio de 2019.
3) O prazo da prescrição do procedimento contraordenacional voltou a ser interrompido com a decisão administrativa condenatória prolatada em 1 de abril de 2024.
4) Houve suspensão da prescrição do procedimento contraordenacional durante o hiato temporal de 9 de março de 2020 a 3 de junho de 2020, ou seja, por 84 dias, nos termos e para os efeitos do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, alterada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril.
5) Houve nova suspensão da prescrição do procedimento contraordenacional no intervalo de tempo de 22 de janeiro de 2021 a 5 de abril de 2021, isto é, pelo hiato temporal de 74 dias, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, na versão da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro.
6) Independentemente da posição que se pretenda assumir sobre a aplicação dos prazos da suspensão emergentes da pandemia por COVID-19, ou seja, se tal suspensão da prescrição vale como uma causa especial e autónoma ou se integra, ao invés, a previsão de uma causa geral, resulta de forma cristalina que, no intervalo de tempo de 9 de março de 2020 a 3 de junho de 2020 e, bem assim, no hiato temporal de 22 de janeiro de 2021 a 5 de abril de 2021, o procedimento contraordenacional não podia continuar perante a paralisação imposta por lei para os atos e prazos a decorrer na Administração Pública, no Ministério Público e nos Tribunais.
7) Que, pese embora a discussão que sempre poderia ocorrer sobre a natureza das causas determinantes da suspensão da prescrição do processo de contraordenacional emergentes da legislação aprovada sobre medidas excecionais e temporárias de resposta à situação pandémica motivada pela doença por COVID-19, nomeadamente se é suscetível de integrar a alínea a) do n.º 1 do artigo 53.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, sempre se impunha que o douto Tribunal observasse a contagem do prazo da prescrição do procedimento contraordenacional tomando em consideração os períodos de suspensão dos prazos de prescrição de todos os procedimentos contraordenacionais em curso motivados pela legislação sobre medidas excecionais e temporárias de resposta à situação pandémica motivada pela doença por COVID-19.
8) Não se afigura legalmente possível concluir que a prescrição do procedimento contraordenacional ocorreu em 9 de agosto de 2024, porquanto a norma do n.º 3 do artigo 54.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, ressalva o tempo de suspensão.
9) Pois a 21 de outubro de 2024 ocorreu nova causa determinante da suspensão do procedimento contraordenacional.
10) O envio dos autos de contraordenação ao Ministério Público para efetivação do direito de impugnação da Recorrente, implica nova causa de suspensão da prescrição do procedimento contraordenacional ao abrigo da alínea d) do n.º 1 do artigo 53.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
11) A prescrição do processo de contraordenação suspende-se durante o tempo em que o procedimento esteve pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa competente, até à decisão final do recurso.
12) A suspensão da prescrição inicia-se com a notificação do despacho que procede ao exame preliminar da impugnação judicial da decisão administrativa condenatória e cessará, sem prejuízo da duração máxima legalmente imposta de seis meses, com a última decisão judicial que vier a ser prolatada em última instância.
13) Está em curso prazo para apresentação de recurso da decisão judicial prolatada em 1.ª Instância, dir-se-á que, ao prazo de 158 dias (84 dias + 74 dias) resultante das normas extraídas da legislação aprovada sobre medidas excecionais e temporárias de resposta à situação pandémica motivada pela doença por COVID-19, deverá também somar-se, pelo menos, o prazo de 99 dias, isto é, o hiato que volveu entre 21 de outubro de 2024 e 28 de janeiro de 2025
14) Por aplicação da norma do n.º 3 do artigo 54.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, e atendendo à referência à ressalva do tempo de suspensão da prescrição do processo de contraordenação, deverá somar-se o prazo de 257 dias (158 dias + 99 dias) ao prazo máximo dos 7 anos e meio.
15) À data de 9 de agosto de 2024 acrescem 257 dias e, nessa medida, a prescrição do processo de contraordenação sub judice não ocorrerá, pelo menos, antes de 23 de abril de 2025.
16) Fazendo recurso da limitação de seis meses imposta pelo n.º 3 do artigo 53.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, a prescrição do processo de contraordenação não ocorrerá antes do final do mês de junho de 2025.
17) Parece assim ter laborado em erro o douto Tribunal na contagem do prazo da prescrição.
18) Não opera assim a exceção da prescrição do procedimento contraordenacional, importando assim a realização de julgamento de mérito da decisão administrativa ora impugnada.
Assim, deverá, pois, o presente recurso obter provimento alterando-se, por conseguinte, o douto despacho judicial de 28 de Janeiro de 2025 que deve ser revogado e substituído por outro diferente que proceda a marcação de nova data para realização de audiência de discussão e julgamento.
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A arguida respondeu e formulou as seguintes conclusões:
I. O despacho objeto do presente recurso não merece qualquer reparo, havendo o Tribunal a quo decidido bem e de acordo com o Direito aplicável.
II. Desde logo, porque, ao contrário do doutamente alegado pelo MP, a legislação especial constante da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, não foi, principalmente, aplicável às instituições do Estado, mas antes aos particulares que, em virtude dos constrangimentos na liberdade de ação e circulação decorrentes da situação pandémica global que atravessamos, viram, assim, os seus direitos salvaguardados.
III. Acresce que, no caso concreto, o MP não alega qualquer circunstância concreta que justifique a aplicação de tal legislação no âmbito dos presentes Autos.
IV. Por outro lado, percorrido o texto legislativo da aludida Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, quer na sua redação original, quer após as alterações de que foi alvo, não se vislumbra qualquer referência a processos e procedimentos da Segurança Social.
V. Deste modo, bem decidiu o Tribunal de 1ª Instância, ao aplicar aos presentes Autos o disposto no art.º 54º, nº 3, da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro.
VI. Considerando que a alegada infração foi detetada no dia 09.02.2017, o prazo de prescrição de 7 anos e 6 meses (cfr. art.º 52º e art.º 54º, nº 3, da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro) esgotou-se no dia 09.08.2024, não havendo, entretanto, ocorrido qualquer causa de suspensão da prescrição.
VII. Nestes termos, o Tribunal a quo declarou, de forma justa e adequada, a extinção do procedimento de contraordenação, por efeito da prescrição, não merecendo tal despacho qualquer censura.
Terminou, pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação do despacho recorrido.
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A Exmª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer nos seguintes termos:
«Recorre o Ministério Público da sentença que, em 28-01-2025, declarou extinto por prescrição o procedimento contraordenacional contra a arguida e, determinou o arquivamento dos autos.
Alega e conclui, em síntese, e no que releva que:
a. a) Ocorreu a suspensão da prescrição do procedimento contraordenacional entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020 (84 dias), nos termos e para os efeitos do artigo 7.º da Lei 1- A/2020, de 19 de março, alterada pela Lei 4-A/2020, de 6 de abril;
b) Ocorreu nova suspensão da prescrição do procedimento contraordenacional entre 22 de janeiro de 2021 e 5 de abril de 2021 (74 dias) nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 6.º-B da Lei 1-A/2020, na versão da Lei 4-B/2021, de 1 de fevereiro;
c) Não ocorreu a prescrição do procedimento contraordenacional em 9 de agosto de 2024;
d) Ocorreu nova suspensão da prescrição em 21 de outubro de 2024 (notificação do despacho que procede ao exame preliminar da impugnação judicial);
e) Ao prazo de 158 dias (84+74) devem somar-se, pelo menos 99 dias, que correspondem ao período entre 21 de outubro de 2024 e 28 de janeiro de 2025;
f) Por força do disposto no artigo 54.º, n.º 3 da Lei 107/2009, de 14 de setembro, deverá somar-se o prazo de 257 dias (158 + 99) ao prazo máximo de 7 anos e meio;
g) Acrescendo 257 dias à data de 9 de agosto de 2024, a prescrição nunca ocorrerá antes de 23 de abril de 2025;
h) Fazendo uso de prazo máximo de 6 meses previsto no artigo 53.º, n.º 3 da Lei 107/2009, de 14 de setembro a prescrição não ocorrerá antes do final do mês de junho de 2025;
i) O despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que proceda à marcação de nova data para realização de audiência de discussão e julgamento.
Respondendo, pugna a arguida pela manutenção do decidido.
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Vejamos:
Com relevo para a decisão, resulta dos autos que:
1. No dia 9 de fevereiro de 2017 a arguida explorava de forma lucrativa um estabelecimento de resposta social a pessoas idosas sem que para tanto tivesse obtido a necessária licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento. No referido estabelecimento, não existia livro de reclamações.
2. Iniciado o procedimento contraordenacional, em 17 de maio de 2019 a arguida foi notificada para apresentar defesa ou proceder ao pagamento voluntário da coima.
3. Em 9 de abril de 2024 a arguida foi notificada da decisão da autoridade administrativa, agora objeto de impugnação.
4. Em 21 de outubro de 2024 os autos foram enviados ao Ministério Público.
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Nos termos do disposto no artigo 52.º da Lei 107/2009, de 14 de setembro (que estabelece o regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social), sem prejuízo das causas de suspensão e interrupção da prescrição previstas no regime geral das contra-ordenações, o procedimento extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação hajam decorrido cinco anos.
Por sua vez, nos termos do disposto no artigo 54.º, n.º 3 da mesma lei, a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tenha ocorrido o prazo de prescrição acrescido de metade (sublinhado e negrito nossos), ou seja, sete anos e 6 meses.
A sentença recorrida considerou que «a primeira causa determinante da suspensão do procedimento contraordenacional em preço ocorreu apenas em 21/10/2024, com o envio dos autos ao Ministério Público (fls. 3), nos termos do disposto no artigo 53.º, n.º 1, al. c) da Lei 107/2009, de 14 de setembro», sendo que, nessa data, já tinha decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade, contados desde a data da verificação da infração, que teria sido atingido em 09/08/2024.
Não é exato.
Na verdade, por força do disposto no artigo 7.º, n.º 3 da Lei 1-A/2020, de 19 de março (que estabeleceu medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19) «A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.», sendo que, nos termos do disposto no n.º 4 do mesmo artigo «O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional».
Esta suspensão vigorou entre os dias 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020, num total de 87 dias (cfr. artigos 5.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, e artigos. 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2000 de 29 de maio).
Posteriormente, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º-B da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, vigou entre 22 de janeiro de 2021 e 5 de abril de 2021, nova suspensão dos prazos de prescrição dos procedimentos criminais e contraordenacionais, num total de 74 dias (cfr. art.º 4.º da Lei n.º 4- B/2021, de 1 de fevereiro, e art.º 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril).
Assim, ao prazo máximo de 7 anos e seis meses, que ocorreria a 9 de agosto de 2024, sempre haveria de se somar os 161 dias (87+74) da suspensão excecional.
Entre 9 de agosto e 21 de outubro de 2024, apenas decorreram 72 dias, pelo que é para nós claro que em 21 de outubro de 2024 o procedimento contraordenacional não se encontrava prescrito, como também não se encontrava prescrito 28 de janeiro de 2025, considerando que desde 21 de outubro de 2024 que o prazo se encontra de novo suspenso, nos termos do disposto no artigo 53.º, n.º 3 da Lei 107/2009, de 14 de setembro, e não decorrera ainda o prazo máximo de 6 meses, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
Assim sendo, somos de parecer que o recurso interposto merece provimento.»
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II- Importa solucionar no âmbito do presente recurso se prescreveu o procedimento contra-ordenacional.
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III- Apreciação
Dos autos resulta:
1- Os factos em apreço reportam-se a 09.02.2017;
2- Em 17/05/2019 a arguida foi notificada pela entidade administrativa para apresentar a sua defesa e proceder ao pagamento voluntário;
3- Em 01.04.2024 foi proferida decisão pela entidade administrativa. Foram aplicadas as coimas parcelares acima indicadas e a coima única de €22 250;
4- A arguida foi notificada em 09.04.2024 da decisão da entidade administrativa;
5- Em 21.10.2024 os autos foram remetidos ao Ministério Público;
6- Em 19.11.2024 a impugnação judicial apresentada pela arguida foi admitida e foi designada data para julgamento (09.01.2025);
7- O defensor da arguida foi notificado deste despacho em 20.11.2024 (considerando-se a notificação efectuada em 25.11.2024);
8- Foi remetida carta registada, com prova de recepção, à arguida, com vista à notificação da data para julgamento, em 09.12.2024;
9- A carta registada referida no número anterior foi devolvida com a menção “endereço insuficiente”;
10- Em 08.01.2025 o julgamento foi adiado para 28.01.2025;
11- A arguida foi notificada deste despacho em 23.01.2025.
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Vejamos, agora, se prescreveu o procedimento contra-ordenacional.
O Tribunal a quo não atendeu à “legislação Covid” indicada pelo Ministério Público no seu recurso.
Sobre esta questão refere o Acórdão desta Relação de 29.01.2025 (relatado pela Desembargadora Celina Nóbrega - www.dgsi.pt ) :
«Como é sabido, com vista a fazer face à situação epidemiológica gerada pelo Coronavírus-COVID 19 e na sequência da pandemia decretada pela Organização Mundial de Saúde em 11 de Março de 2020, foram adoptadas várias medidas, nomeadamente a nível legislativo.
Assim, no dia 19 de Março de 2021 foi publicada a Lei n.º 1-A/2020 que procedeu à ratificação dos efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março (Estabelece medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus - COVID 19) e aprovou medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19 (art.1.º da referida Lei).
De acordo com o artigo 2.º da mesma Lei “O conteúdo do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, é parte integrante da presente lei, produzindo efeitos desde a data de produção de efeitos do referido decreto-lei”.
E quanto aos institutos da prescrição e da caducidade referia o n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, que “A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.”
Nos termos do n.º 4 do mesmo artigo “O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.”
Tendo sido suscitada a inconstitucionalidade destas duas normas, o Acórdão do Tribunal Constitucional 500/2021, de 9 de Junho de 2021, Processo n.º 353/2021, 3.ª Secção, Relator Conselheira Joana Fernandes Costa, decidiu “Não julgar inconstitucional o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência;”
Por seu turno, dispõe o artigo 10.º da referida Lei que “A presente lei produz efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março.”
De acordo com o seu artigo 37.º, o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, produziu efeitos no dia da sua aprovação (12 de Março), com excepção do disposto nos artigos 14.º a 16.º, que produziu efeitos desde 9 de Março de 2020 e do disposto no capítulo VIII que produziu efeitos a 3 de Março de 2020.
Posteriormente, a Lei n.º 4-A/2020, de 06 de Abril alterou os artigos 7.º e 8.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, mantendo-se, no entanto, a anterior redacção do n.º 3 do artigo 7.º
De acordo com o artigo 5.º desta Lei (Norma interpretativa) “O artigo 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, deve ser interpretado no sentido de ser considerada a data de 9 de março de 2020, prevista no artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, para o início da produção de efeitos dos seus artigos 14.º a 16.º, como a data de início de produção de efeitos das disposições do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.”
E nos termos do artigo 6.º da mesma Lei:
“1 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a presente lei produz efeitos à data de produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março.
2 - O artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela presente lei, produz os seus efeitos a 9 de março de 2020, com exceção das normas aplicáveis aos processos urgentes e do disposto no seu n.º 12, que só produzem efeitos na data da entrada em vigor da presente lei.”
Posteriormente, as Leis n.º 4-B/2020, de 6 de Abril e n.º 14/2020, de 9 de Maio, que também alteraram a Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março, não introduziram alterações nos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º.

Sucede que a suspensão dos prazos de prescrição e caducidade que vigorava desde 9 de Março de 2020 veio a cessar com a Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, que entrou em vigor no dia 3 de Junho de 2020, pois o seu artigo 8.º revogou o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Maio.
Contudo, o artigo 6.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio estabeleceu que “Sem prejuízo do disposto no artigo 5.º, os prazos de prescrição e caducidade que deixem de estar suspensos por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período de tempo em que vigorou a sua suspensão.”
Posteriormente, a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, aditou à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março o artigo 6.º-B que determinou nos números 3 e 4 o seguinte:
“3 - São igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.”
E o n.º 1 do artigo 6.º-B estatuía: “1 - São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.”
Por seu turno, o artigo 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro determinou que o disposto nos artigos 6.º-B a 6.º-D da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, produzia efeitos a 22 de Janeiro de 2021, sem prejuízo das diligências judiciais e actos processuais entretanto realizados e praticados.
A Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril (Cessa o regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adotado no âmbito da pandemia da doença COVID-19, alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março), que entrou em vigor no dia 6 de Abril de 2021 (art.7.º), no seu artigo 6.º procedeu, à revogação dos artigos 6.º-B e 6.º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.
E o artigo 5.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril estatuía que “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os prazos de prescrição e caducidade cuja suspensão cesse por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão.”
Assim, por força das citadas Leis, todos os prazos de prescrição e de caducidade estiveram suspensos de 9 de Março de 2020 a 2 de Junho de 2020 (86 dias), retomando a sua contagem no dia 03.06.2020 e de 22 de Janeiro de 2021 a 5 de Abril de 2021 (74 dias), no total de 160 dias.»
A suspensão dos prazos de prescrição aplica-se também aos procedimentos por contra-ordenação, conforme decorre do art.º 7º, nº 3 da lei 1-A/2020 (ao aludir a todo o tipo de processos e procedimentos) e do art.º 6º-C, nºs1, b), 3 e 4 da lei nº 4-B/2021, de 01/02.
A questão de constitucionalidade referida neste Acórdão de 29.01.2025 tem sido objecto de divergências (vide, designadamente Acórdão desta Relação de 15.12.2022 - relatado pela Desembargadora Paula Penha - www.dgsi.pt)
O Acórdão do Tribunal Constitucional nº500/2021, de 09/06/2021 (citado no Acórdão desta Relação de 29.01.2025) refere:
« (…) Percorridos os dados mais relevantes da doutrina, da jurisprudência dos tribunais comuns, da jurisprudência do TEDH e do TJUE e, mais importante ainda, da jurisprudência constitucional, crê-se ser nesta altura possível traçar o quadro de relacionamento do instituto da prescrição com o princípio da legalidade penal à luz do qual deverá ser encarada a questão da compatibilidade do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, com a exigência de lei prévia, na dimensão correspondente à proibição da retroatividade in pejus.
Ao estatuir que «[n]inguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão» (n.º 1), nem sofrer «penas que não estejam expressamente cominadas em lei anterior» (n.º 3) ou «mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos» (n.º 4), o artigo 29.º da Constituição consagra o princípio da legalidade penal em termos equivalentes à sua formulação latina nullum crimen sine lege, nulla poena sine praevia lege poenali, da autoria de Anselm von Feuerbach, que corresponde, ainda hoje, ao modo de enunciação universal daquele princípio.
O princípio encontra-se estabelecido para as leis que determinam os pressupostos da relevância criminal das condutas ativas e omissivas - o complexo do facto punível - e para as leis que estabelecem as respetivas consequências jurídicas - as penas. Na dimensão correspondente à exigência de lei prévia, dele resulta que o legislador não pode atribuir relevância criminal a factos passados, nem punir mais severamente crimes praticados em momento anterior.
As normas relativas à prescrição do procedimento criminal não se encontram incluídas, de modo literal, na proibição da retroatividade in pejus fixada para as normas incriminadoras (neste sentido, quanto à proibição da analogia, v. Acórdão n.º 205/1999). A sua recondução ao âmbito de aplicação do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4.º, da Constituição, só poderá fazer-se, por isso, com apoio em argumentos jurídico-constitucionais, os quais, por sua vez, haverão de extrair-se, não da classificação das normas atinentes ao instituto da prescrição segundo os critérios desenvolvidos no plano infraconstitucional, mas antes da ratio da proibição da retroatividade in pejus e, por conseguinte, dos próprios fundamentos do princípio da legalidade penal. Ainda que para justificar uma leitura maximizadora das garantias inerentes àquela proibição, não deixa de ser esse o sentido em que adverte Pedro Caeiro: a distinção entre normas processuais formais e normas processuais materiais não deve constituir um «prius relativamente à questão da (não) sujeição das normas» — ou de certa norma — «àquela proibição da retroatividade, mas sim um resultado da correta delimitação do âmbito de aplicação da retroatividade desfavorável» (“Aplicação da lei penal no tempo e prazos de suspensão da prescrição do procedimento criminal: um caso prático”, Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, 2001, Coimbra Editora, p. 243). O que vale por dizer que, quando se trata de determinar o estatuto constitucional de certo elemento legal à face do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição, importa ter em definitivo presente, «não tanto a integração deste ou daquele instituto no direito penal ou processual, quanto a função atribuída pela Constituição ao princípio da irretroatividade» (Giorgio Marinucci e Emilio Dolcini, ob. cit., p. 59).
(…) É sabido que o princípio da legalidade penal tem como fundamento a ideia de que um Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição) deve proteger o indivíduo não apenas através do direito penal, mas também do direito penal (cf. Claus Roxin, ob. cit., p. 137). Trata-se, portanto, de um princípio defensivo, que atribui aos cidadãos posições de defesa perante o Estado, enquanto titular oficial do poder punitivo. Em sintonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, onde foi pela primeira vez consagrado, o princípio da legalidade penal continua a ter como função proteger o indivíduo perante o direito penal, colocando-o a salvo de uma intervenção estadual excessiva ou arbitrária.
A proibição da retroatividade in pejus explica-se inteiramente a esta luz: ao contrário do que sucede com a imposição da retroatividade in mellius, «que possui uma génese e um fundamento especificamente político-criminal», ligado à «ausência de exigências de prevenção que justifiquem a persistência da aplicação ao caso da lei (mais severa) que vigorava no momento da prática do facto», a proibição da retroatividade in pejus tem uma génese e um fundamento «marcadamente político-jurídico», diretamente associado à «defesa da liberdade e da segurança dos cidadãos contra o arbítrio do Estado» (Pedro Caeiro, loc. cit., p. 235-236, itálico aditado). É justamente isso que explica que, não obstante «ser questionável a existência de um verdadeiro direito do agente a que a inércia do Estado na prossecução penal o beneficie» (Acórdão n.º 205/1999), as normas relativas à prescrição, designadamente as que estabelecem as causas de interrupção e de suspensão do prazo respetivo, se encontrem, prima facie, subordinadas à proibição da retroatividade in pejus.
Apontam para essa conclusão dois dados essenciais.
Em primeiro lugar, importa levar em conta que tanto as causas de interrupção como as causas de suspensão da prescrição se destinam a tornar «efetiva a possibilidade de se vir a aplicar o Direito Penal no caso concreto» (cf., uma vez mais quanto à proibição da analogia relativamente à interrupção da prescrição, Acórdão n.º 205/1999): as primeiras porque têm por efeito a inutilização do tempo de prescrição já decorrido (artigo 121.º, n.º 2, do Código Penal); as segundas porque originam a paralisação do decurso do prazo de prescrição pelo tempo em que perdurar o evento suspensivo, observados os limites máximos fixados na lei (artigo 120.º, n.º 6). Assim, a exigência de que umas e outras se encontrem fixadas em lei prévia tenderá a considerar-se justificada a partir da ideia de controlo do exercício do poder punitivo do Estado através do Direito que previamente criou: as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus, na medida em que se destinam a proteger o indivíduo contra possíveis abusos por parte do legislador, opõem-se à possibilidade de o Estado, através da ampliação retroativa do elenco das causas de interrupção ou suspensão da prescrição, mitigar ou até mesmo reverter a débito do arguido os efeitos da «sua inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto» (cf., uma vez mais quanto à proibição da analogia em matéria de interrupção da prescrição, Acórdão n.º 205/1999). Neste sentido, a proibição da aplicação retroativa das normas que estabelecem as causas de interrupção e de suspensão da prescrição do procedimento criminal partilhará dos fundamentos da proibição da aplicação retroativa das normas que estabelecem os pressupostos da responsabilidade: tal como esta, também aquela será imposta em nome da defesa do cidadão contra a discricionariedade e o arbítrio ex post facto.
Em segundo lugar, importa não perder de vista que a ratio da proibição da retroatividade in pejus se liga igualmente ao princípio da confiança. Como se escreveu no Acórdão n.º 261/2020, as garantias inerentes àquela proibição assentam «numa ideia de previsibilidade (por sua vez enraizada no princípio da confiança) das normas, no sentido em que qualquer cidadão, para além de não poder ser surpreendido pela incriminação de um comportamento anteriormente adotado (n.º 1 do artigo 29.º da Constituição), também não pode ser surpreendido pela aplicação de uma sanção mais grave ou por normas processuais materiais de efeitos mais gravosos do que aqueles com que podia contar à data em que praticou os factos (n.º 4 do artigo 29.º da Constituição)» (Acórdão n.º 261/2020). Na síntese do Tribunal Constitucional italiano, formulada em jurisprudência posterior à chamada “saga Taricco”, a «proibição em causa visa garantir ao destinatário da norma uma previsibilidade razoável das consequências com que se deparará ao violar o preceito penal» (Acórdão n.º 32 de 2020, ponto 4.3.1.), previsibilidade que é, em regra, afetada quando se alteram para o passado as condições em que o facto criminoso pode ser sancionado.
Pois bem.
Mesmo não pondo em causa que, em matéria de prescrição, o conceito de retroatividade é dado tempus deliti e não pelo terminus do prazo - o que, conforme se viu, não corresponde sequer à orientação sufragada no Acórdão n.º 449/2002 -, não restam dúvidas de que a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, pela sua singularidade, escapa totalmente a ambas as rationes com base nas quais é possível justificar o alargamento às normas sobre prescrição das garantias inerentes à proibição da retroatividade.
(…) A medida constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 — já o notámos — insere-se no âmbito de legislação temporária e de emergência, aprovada pela Assembleia da República para dar resposta à crise sanitária originada pela pandemia associada ao coronavírus SARS-CoV-2 e à doença COVID-19.
No cumprimento do seu dever de proteção da vida e da integridade física dos cidadãos (artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da Constituição, respetivamente), o Estado adotou um conjunto de medidas destinadas a conter o risco de contágio e de disseminação da doença, baseado na implementação de um novo modelo de interação social, caracterizado pelo distanciamento físico e pela diminuição dos contactos presenciais.
No âmbito da administração da justiça — vimo-lo também —, o cumprimento desse dever de proteção conduziu à excecional contração da atividade dos tribunais, concretizada através da sujeição dos atos e diligências processuais ao regime das férias judiciais referido no n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, e, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 4-A/2020, à regra da suspensão, pura e simples, de todos os prazos processuais previstos para aquele efeito. Para os processos urgentes, começou por estabelecer-se um regime especial de suspensão dos prazos para a prática de atos, ainda que com exceções (artigo 7.º, n.º 5, da Lei n.º 1-A/2020), que a Lei n.º 4-A/2020 acabou por modificar, impondo a sua normal tramitação desde que fosse possível assegurar a prática de atos ou a realização de diligências com observância das regras de distanciamento físico.
Por força desta paralisação da atividade judiciária, que se estendeu à justiça penal, os atos processuais interruptivos e suspensivos da prescrição deixaram de poder praticar-se no âmbito dos procedimentos em curso, pelo menos nas condições em que antes o podiam ser. Relativamente aos procedimentos criminais, assim sucedeu com a dedução da acusação, a prolação da decisão instrutória e a apresentação do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo (artigos 120.º, n.º 1, alínea b), e 121.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal), a declaração de contumácia (artigos 120.º, n.º 1, alínea c), e 121.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal) e a constituição de arguido (121.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal). Já no âmbito dos procedimentos contraordenacionais, o mesmo se verificou, pelo menos, com a prolação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima (artigo 27.º-A, n.º 1, alínea c), e 28.º do RGCO), a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomadas ou qualquer notificação (artigo 28.º, n.º 1, alínea a), do RGCO), a realização de quaisquer diligências de prova (artigo 28.º, n.º 1, alínea b), do RGCO) e a prolação da decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima (artigo 28.º, n.º 1, alínea d), do RGCO).
É este particular e especialíssimo contexto que está subjacente à fixação, por lei parlamentar, de uma causa de suspensão da prescrição que não somente é transitória, como se destinou a vigorar apenas e durante o período em que se mantivesse — se manteve — o condicionamento à atividade dos tribunais determinado pela situação excecional de emergência sanitária e pelo concomitante imperativo de proteção da vida e da saúde dos operadores e utentes do sistema judiciário: suspendeu-se o decurso do prazo de prescrição porque se suspenderam os prazos previstos para a prática dos atos suscetíveis de obstar à sua verificação; suspenderam-se os prazos previstos para a prática desses (e de outros) atos processuais porque se suspendeu a atividade normal dos tribunais de modo a prevenir e conter o risco de infeção dos intervenientes no sistema de administração da justiça, incluindo dos próprios arguidos.
Como bem notou o Tribunal recorrido, encontramo-nos, pois, diante de um «mecanismo normativo […] instrumental», destinado a fazer face a uma «situação de rutura e anormalidade», em estreita e indissociável relação com o já designado «“lockdown” da justiça penal» (Gian Luigi Gatta, “Lockdown da justiça penal, suspensão da prescrição do crime e princípio da irretroatividade: um curto-circuito”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 30, n.º 2, maio-agosto de 2020, p. 297 e ss.) originado pela crise sanitária, que afetou em intensa medida — ou mesmo eliminou — a possibilidade de serem praticados os atos processuais suscetíveis de interromper e de suspender a prescrição.
Não é demais sublinhar que se trata de uma suspensão, e não de uma interrupção, do prazo prescricional: o tempo de prescrição já decorrido desde a data da consumação do ilícito típico não é inutilizado; apenas o seu decurso é paralisado pelo tempo correspondente à paralisação do normal processamento dos termos ulteriores dos processos em curso.
Neste contexto, é evidente que a causa de suspensão da prescrição estabelecida no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 apenas se encontraria apta a cumprir aquela função se pudesse aplicar-se aos procedimentos pendentes por factos anteriores ao início da sua vigência. Como refere Gian Luigi Gatta a propósito de norma congénere aprovada em Itália (artigo 83.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 18, de 17 de março de 2020), «[t]rata-se de uma disposição temporária pensada precisamente para os processos em curso e, como tal, para ter eficácia retroativa. Suspende-se uma atividade em curso por força da impossibilidade do seu prosseguimento, determinando-se um prazo para o seu reatamento, congelando-se o intervalo de tempo entretanto volvido. A suspensão é forçada: não é imputável a ninguém e não há razão para que beneficie quem quer que seja» (loc. cit., p. 303).
Esta última afirmação é especialmente relevante: conforme se verá em seguida, ela sintetiza, na verdade, as duas razões que explicam a impossibilidade de reconduzir a causa de suspensão prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, à ratio da proibição da retroatividade in pejus, consagrada no artigo 29. º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição.
(…) Dizer-se que a suspensão «não é imputável a ninguém» é o mesmo que dizer-se que a suspensão não é imputável ao Estado.
Tendo em conta os fundamentos inerentes ao princípio da legalidade penal, tal constatação, para além de correta, é particularmente esclarecedora.
A suspensão do decurso do prazo de prescrição dos procedimentos sancionatórios pendentes durante o período em que vigoraram as medidas de emergência adotadas na Lei n.º 1-A/2020 não se destinou a permitir que o Estado corrigisse ou reparasse os efeitos da sua inércia pretérita no âmbito do exercício do poder punitivo de que é titular. Destinou-se apenas e tão só a responder aos efeitos de uma superveniente e não evitável paralisação do sistema de administração da justiça penal, imposta pela necessidade de controlar e conter a disseminação de um vírus potencialmente letal. Tratando-se de uma causa de suspensão e não de interrupção do prazo de prescrição, cuja vigência não excedeu o lapso temporal durante o qual se verificou a afetação ou condicionamento da atividade dos tribunais, nem conduziu — reticus, não tinha sequer a virtualidade de conduzir — à reabertura dos prazos prescricionais já integralmente decorridos, a sua aplicação aos procedimentos pendentes não exprime qualquer excesso, arbítrio ou abuso por parte do Estado contra o qual faça sentido invocar as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus: ao determinar a aplicação a procedimentos pendentes da suspensão da prescrição em razão da pandemia então em curso, a solução adotada limita-se, na verdade, a assegurar «a produção do efeito útil da norma de emergência» (idem, p. 313), não ingressando no âmbito da esfera defensiva que é assegurada pelo princípio da legalidade.
Não é diferente a conclusão a que se chega se encararmos a proibição da retroatividade in pejus a partir da proteção da confiança, como fez o Tribunal recorrido.
Se tal proibição visa garantir ao destinatário uma previsibilidade razoável das consequências com que se deparará ao violar o preceito penal, é relativamente evidente, quando se trate de estender o respetivo âmbito de incidência para além dos limites traçados pela letra dos n.ºs 1, 3 e 4, do artigo 29.º, que a sua invocação deixará de ter fundamento se o evento em causa se situar no mais elevado grau daquilo que não é por natureza antecipável, como sucede com a paralisação do sistema de administração da justiça penal ditada pelo súbito e inesperado surgimento de uma pandemia à escala global.
Contra o que acaba de dizer-se, pode argumentar-se, é certo, que a antecipação em lei contemporânea da prática dos factos da causa de suspensão da prescrição que veio a constar do conjunto de medidas de emergência aprovadas pelo Parlamento teria sido, em rigor, possível. Bastaria que o legislador português tivesse integrado no elenco das causas de suspensão da prescrição previstas no artigo 120.º, n.º 1, do Código Penal, uma disposição idêntica à que consta do artigo 159.º do Código Penal italiano, que prevê a suspensão do decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal nos «casos em que a suspensão do procedimento ou do processo penal é imposta por uma disposição especial da lei».
Do ponto de vista da invocabilidade das garantias inerentes à proibição da retroatividade, a diferença entre o ordenamento jurídico português e o Direito italiano não é, porém, determinante: apesar de ter conhecimento de que o decurso do prazo de prescrição se suspenderá se e quando vier a ser determinada em lei posterior a suspensão do processo ou do procedimento, o agente que deva ser punido segundo o direito italiano não sabe, no momento em que decide praticar o ilícito-típico, se essa suspensão virá efetivamente a ocorrer, nem sobre durante quanto tempo vigorará na hipótese de vir a ser determinada, nem sobre as caraterísticas do facto ou do acontecimento que venham a ditar essa eventual opção.
Perante a causa de suspensão que veio a constar do artigo 83.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 18, de 17 de março de 2020, a posição do agente italiano não é, por isso, muito diferente daquela em que se encontra o agente português em face da causa de suspensão da prescrição constante do n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020: tal como este não podia saber, no momento em que praticou o facto criminoso, que a suspensão da prescrição do procedimento instaurado viria a ser imposta pela Assembleia da República em consequência do lockdown da justiça penal originado pelo súbito avanço da pandemia, também aquele não podia ter conhecimento, quando tomou a decisão de praticar o crime, de que a suspensão do processo — e, com ela, a suspensão do prazo de prescrição — viria a ser determinada em norma posterior, editada no mesmo exato contexto.
É por isso que, apesar de o Tribunal Constitucional italiano ter atribuído relevância à existência de uma norma de intermediação como a constante do proémio do artigo 159.º do respetivo Código Penal para concluir pela compatibilidade da norma constante do artigo 83.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 18, de 17 de março de 2020, com a proibição da retroatividade (Acórdão n.º 278 de 2020), não existe entre uma e outra solução qualquer diferença que possa ser considerada decisiva ou determinante do ponto vista da proteção da confiança: em ambos os casos, a causa da suspensão do prazo de prescrição é integralmente determinada em lei ulterior ao momento da prática do ilícito-típico, sem que possa dizer-se, tendo em conta o carácter totalmente imprevisível dos acontecimentos que a determinaram, que a sua aplicação aos procedimentos pendentes frustre aquela exigência de previsibilidade das consequências da violação da norma penal a que responde a proibição da retroatividade in pejus.
Em suma: para além de absolutamente congruente com o mais amplo critério seguido na jurisprudência do TEDH e do TJUE, a norma extraída dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, interpretados no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, não se encontra abrangida, nem pela letra, nem pela ratio da proibição da retroatividade in pejus a que a Constituição, no seu artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, sujeita a aplicação das leis que definem as ações e omissões puníveis e fixam as penas correspondentes.
(…) Tudo o que se disse até agora assentou na consideração da causa de suspensão da prescrição estabelecida nos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, independentemente da natureza criminal ou contraordenacional dos procedimentos em curso.
A circunstância de a interpretação sindicada se cingir aos procedimentos contraordenacionais pendentes por factos anteriores ao início da vigência da Lei n.º 1-A/2020 apenas serve para tornar mais evidente a conclusão que acima se alcançou. Com efeito, apesar de o direito das contraordenações, enquanto direito sancionatório público, ser influenciado ou “matizado” pelos princípios constitucionais do direito penal, a autonomia material do ilícito de mera ordenação social em relação ao ilícito penal obsta a que tais princípios possam ser transpostos deste para aquele de forma automática ou imponderada ou que possam aí valer com na mesma exata extensão ou com o mesmo grau de intensidade (cf. Acórdão n.º 76/2016; no mesmo sentido, a propósito da liberdade de conformação do legislador na modelação do instituto da prescrição, v. Acórdão n.º 297/2016). No que diz respeito à proibição constitucional da retroatividade in pejus, isso significa que ela se estenderá ao direito contraordenacional somente enquanto manifestação nuclear da função de garantia do princípio legalidade, exigida pela ideia de Estado de Direito e oponível ao arbítrio ex post facto.
Resta concluir, assim, que, ao proibir que qualquer cidadão seja «sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão» ou sofra pena que não esteja expressamente cominada «em lei anterior» ou mais grave do que a prevista «no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos», o artigo 29.º da Constituição, respetivamente nos seus n.ºs 1, 3 e 4, não se opõe à aplicação de uma causa de suspensão da prescrição com a função e o recorte daquela que foi prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2000, a procedimentos contraordenacionais pendentes por factos praticados antes do início da respetiva vigência.
(…) Uma vez aqui chegados, uma nota final se impõe ainda, tendo em conta a invocação do parâmetro extraído princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição.
Alega o recorrente que os preceitos acima referidos, «ao determinarem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a um processo que continua a correr seus termos e relativamente a cujos prazos os arguidos continuam adstritos, como se denota pela tramitação dos presentes autos, gera uma situação de desigualdade, em favor da pretensão punitiva do Estado e contra o direito dos arguidos».
O argumento não é de fácil compreensão.
Em primeiro lugar, cumpre recordar o processo que deu origem ao presente recurso apenas passou a revestir natureza urgente a partir de 18 de agosto de 2020, data em que foi proferido o despacho que lha atribuiu. Significa isto que, no período que mediou entre o início da vigência do regime estabelecido no artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2000 e o momento da sua revogação pela Lei n.º 16/2020, tal processo se encontrou sujeito, primeiro ao regime das férias judiciais, e, após as alterações levadas a cabo pela Lei n.º 4-A/2020, ao regime da suspensão pura e simples de todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devessem ser praticados (supra, n.ºs 16.2 e 16.3.).
Em segundo lugar, a invocação do princípio da igualdade, em si mesma, é manifestamente inadequada.
Para além de fundar-se na ideia da igual dignidade social de todos os cidadãos - e não da igual dignidade dos cidadãos e do Estado -, o princípio da igualdade postula, enquanto norma de controlo judicial, um processo de comparação entre as situações ou categorias postadas, tendo em conta a qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar.
A pretensão punitiva do Estado e os direitos dos arguidos não se prestam a esse processo comparativo, não constituindo grandezas que possam colocar-se em cada um dos dois pratos da balança quando o tipo de controlo que se tem em vista é baseado no princípio da igualdade.
Não tendo ficado por apreciar qualquer um dos parâmetros invocados, resta concluir pela integral improcedência do recurso.
(…)
Em face do exposto, decide-se:
(…)
b) Não julgar inconstitucional o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência; e, em consequência,
c) Julgar o presente recurso totalmente improcedente.»
As razões indicadas no citado Acórdão do Tribunal Constitucional quanto ao juízo de constitucionalidade das normas em apreço aplicam-se ao caso subjudice.
Apenas temos a salientar que o art.º 53º, nº1 da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, prevê a possibilidade de suspensão do procedimento por contra-ordenação nos “casos especialmente previstos na lei”.
Assim e por força das citadas leis deverá ser considerado o período de 160 dias (86+74)1, pelo que o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional ainda não tinha decorrido em 25.11.2024 ( data da notificação do despacho que procedeu ao exame preliminar do processo)- vide artigo 53º, nº1, d) da Lei nº 107/2009.
Não consideramos relevante a data da remessa dos autos ao Ministério Público (21.10.2024).
Com efeito, refere João Soares Ribeiro in “Contra-Ordenações Laborais”, 3ª edição, pág. 97, em anotação ao referido art.º 53º: «A redacção da alínea c) parece-nos manifestamente infeliz e de difícil entendimento sem a busca da sua origem. O que está em causa na norma paralela do regime geral das CO (art.º 27-A/1b), que remete para o art.º 40º, não é o envio dos autos ao MºPº quando há impugnação judicial da decisão de aplicação de coima ou sanção acessória (essa situação está contemplada na alínea d)). O que aqui se pretende acautelar é tão-somente a remessa dos autos ao MºPº pela Administração- ou quando entenda que se está perante um crime (art.º 40º/1 da LG das CO) ou por haver simultaneamente crime e contra-ordenação (art.º 38º/1). Casos em que a competência para a instrução do processo lhe não pertence, tendo, porém, o MºPº uma posição diversa quanto a essa competência, reenviando-os para a Administração. É durante esse lapso de tempo, que não pode ultrapassar seis meses, que a prescrição não corre.»
Quanto à alínea d) do nº 1 do referido art.º 53º da Lei nº 107/2009, importa considerar o Acórdão do STJ de 13.01.2011 que fixou jurisprudência nos seguintes termos : « A suspensão do procedimento por contra-ordenação cuja causa está prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, inicia-se com a notificação do despacho que procede ao exame preliminar da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa e cessa, sem prejuízo da duração máxima imposta pelo n.º 2 do mesmo artigo, com a última decisão judicial que vier a ser proferida na fase prevista no Capítulo IV da Parte II do Regime Geral das Contra-Ordenações.»
Ainda não decorreram seis meses desde a data da notificação do despacho que procedeu ao exame preliminar do recurso.
Em suma: À data da notificação do despacho que procedeu ao exame preliminar do recurso (25.11.2024) ainda não tinha decorrido o período de 160 dias, a contar de 09.08.2024.
O prazo de seis meses a contar da data da notificação do referido despacho não ocorre antes de 25.05.2025.
Concluímos, assim, que ainda não decorreu o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional.
Procede, desta forma, o recurso.
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IV- Decisão
Em face do exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os ulteriores termos legais.
Sem custas.

Lisboa, 23 de Abril de 2025
Francisca Mendes
Maria José Costa Pinto
Manuela Bento Fialho
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1. É controvertido na jurisprudência se os referidos períodos de 86 e 74 dias deverão ser acrescidos de iguais períodos, atento o disposto nos arts 6º da Lei nº 16/2020, de 29/05 e 5.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04.