RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
MORTE
CULPA
CULPA DA VÍTIMA
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO MORTE
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Sumário


Sumário (art. 663º, nº7, do CPCivil)
I - Num acidente de viação consistente no atropelamento de um peão na hemi faixa reservada ao veículo atropelante, em que a presença do peão a atravessar a faixa de rodagem era visível a mais de 100 metros para o condutor do veículo, é de considerar que o acidente se deveu a culpa de ambos, peão e condutor.
II - Por não se ver que a culpa de um seja claramente superior à do outro, considera-se ajustado repartir por igual as culpas no acidente.
III - Não há motivo para alterar os montantes indemnizatórios pelo dano morte, pelo sofrimento da vítima no período que antecedeu a morte, e da viúva, equitativamente fixados, se os valores atribuídos respeitam os critérios normativos aplicáveis e os valores as indemnizações estão em linha com a mais recente jurisprudência do Supremo.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, falecida no decurso da acção e substituída pelo habilitado BB, propôs a presente acção contra “Caravela - Companhia de Seguros, S.A.” pedindo a condenação da Ré “[a] pagar à Autora a título de responsabilidade civil a quantia de € 286.388,86 pelos danos causados, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde 16.09.2018, até efectivo e integral pagamento.”.

Alegou para o efeito que o montante peticionado corresponde à indemnização de que a Autora é beneficiária por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da morte do seu marido, em consequência de atropelamento provocado por veículo automóvel segurado pela Ré, com culpa do condutor deste.

Contestou a Ré, impugnando a responsabilidade do condutor na produção do sinistro, a extensão dos danos invocados e a respectiva quantificação económica atribuída pela Autora.

Por despacho proferido, a 16.06.2021, no processo n.º 248/19.4T8ORQ, foi determinada a respectiva apensação aos presentes autos.

Naqueles, “Deutsche Rentenversicherung Knappschaft-Bahn-See”, ( 2a Autora) demanda a “Caravela - Companhia de Seguros, S.A.”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe: (i.) a quantia de € 48.823,07, a título de pagamentos efectuados por esta Autora a AA, em consequência do acidente que vitimou CC, acrescidos de juros à taxa legal, contados desde a data dos factos até integral e efectivo pagamento; e (ii.) indemnização a liquidar em execução de sentença, relativa a eventuais pagamentos futuros que surjam como consequência directa e necessária do acidente.

Alegou para o efeito estar sub-rogada na posição da lesada - 1.ª Autora - contra a Ré, enquanto responsável civil pelos montantes pagos a título de pensão de viuvez.

A Ré contestou, excepcionando a ilegitimidade activa da Autora (2ª no processo único) e impugnando os fundamentos do pedido.

Findos os articulados, foi julgada válida a instância e admitida a apensação dos processos.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou os pedidos das acções principal e apensa totalmente improcedentes, absolvendo a Ré dos mesmos.

As Autoras apelaram da sentença com parcial sucesso, pois que a Relação de Évora julgou os recursos em parte procedentes, condenando a Ré a pagar:

- ao habilitado na posição processual da Autora AA, a quantia de € 85.524,71 (oitenta e cinco mil, quinhentos e vinte e quatro euros e setenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados sobre a quantia de € 8.524,71 (oito mil, quinhentos e vinte e quatro euros e setenta e um cêntimos) desde a citação e contados sobre a quantia de € 77.000,00 (setenta e sete mil euros) desde a presente data, em qualquer dos casos até efectivo e integral pagamento;

à Autora “Deutsche Rentenversicherung Knappschaft-Bahn-See”, a quantia de € 56.576,77 (cinquenta e seis mil, quinhentos e setenta e seis euros e setenta e sete cêntimos) acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Das 97 conclusões da revista dos AA, retira-se que suscitam questões relacionados com a culpa no acidente e montantes indemnizatórios.

• Quanto à culpa: ambos, condutor e peão, tiveram culpa no acidente, devendo ser repartidas nas proporções de 80% para aquele 20% para o peão;

• Devem ser fixadas as seguintes indemnizações, ao invés das fixadas no acórdão:

• A título de danos morais próprios do falecido: €60.000,00, e não os €15.000,00 fixados no acórdão;

• Dano moral próprio da Autora com a morte do marido: €35.000,00;

• Dano patrimonial futuro: €78.300,00;

• Dano patrimonial com a morte do marido (funeral, campa…): €40.463,86.

• Finalmente, o pedido de reembolso formulado pela 2ª Autora deve ser julgado procedente, de acordo com a repartição de culpas.

A Ré Caravela SA, também interpôs recurso de revista, no qual, em síntese, pede a revogação do acórdão recorrido, para ficar a subsistir a sentença que julgou a acção totalmente improcedente, assim não se entendendo, caso, o STJ entenda ser de atribuir culpa parcial ao condutor, no que não se concede,

Sempre a respectiva percentagem de contribuição deverá ser fixada até ao limite máximo de 30%, com a consequente alteração do valor de condenação da Ré / Recorrente: parcial, quanto à indemnização pelo dano morte e pelos danos não patrimoniais da 1.ª Autora; e global, em linha com a percentagem de contribuição que venha a ser fixada ao condutor.

Fundamentação.

Vem provada a seguinte matéria de facto:

1. A 1.ª Autora, nascida em ... de ... de 1937, e CC, nascido em ... de ... de 1936, constituíram matrimónio em ... de ... de 1979.

2. A ... de Outubro de 2016, a 1.ª Autora e CC encontravam-se, em
Portugal, de férias.

3. A 1.ª Autora e CC reservaram uma viagem com voo e estadia no Hotel ..., no ..., para o período de 13 de outubro a 06 de novembro de 2016.

4. A ... de Outubro de 2016, a 1.ª Autora e CC visitavam amigos, tendo este, após o almoço, ido dar um passeio, levando consigo uma máquina fotográfica.

5. CC deslocava-se com desenvoltura física para a respetiva idade.

6. CC vestia, na ocasião, uma camisa de xadrez azul e vermelho e umas calças de fazenda cinzentas.

7. Por volta das 14h40m, CC iniciou o atravessamento do lado esquerdo para o lado direito [no sentido A........-O......], no Itinerário Complementar n.º 1 (IC 1), ao Km 696,9, em ..., concelho de ..., constituído por uma faixa de rodagem, com duas vias no sentido O......-A........, com 6,80 metros de largura, separadas por linha descontínua, e uma via no sentido A........-O......, com 3,40 metros de largura, separada por linha dupla contínua.

8. Na mesma data, hora e local em questão, DD, condutor do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-GF-.., propriedade de EE, circulava ao volante da sua viatura no sentido A........-O......, tendo embatido, com a parte dianteira esquerda do veículo, em CC, que se colocou em frente do veículo quando este por si passava, junto à linha contínua a separar os sentidos de trânsito. ( 6 )

9. CC foi projetado a cerca de 11,30 metros do embate.

10. O veículo foi imobilizado a cerca de 135,20 metros do embate.

11. O tempo estava bom.

12. A visibilidade era boa.

13. O piso da via estava seco.

14. Antes do local onde ocorreu o embate é possível avistar a faixa de rodagem em toda a largura com uma extensão de 120 metros.

15. A velocidade máxima permitida no local é de 90 km/h.

16. Em consequência do sinistro supra aludido, CC faleceu no próprio dia.

17. Em consequência do sinistro, CC sofreu fortes dores.

18. CC mantinha uma relação de grande proximidade existencial com a 1.ª Autora, nutrindo forte respeito, sentimento e entreajuda.

19. CC e a 1.ª Autora eram autónomos, executando em conjunto as tarefas do seu quotidiano.

20. O decesso de CC abalou profundamente o estado emocional da 1.ª Autora, causando-lhe grande tristeza.

21. A 1.ª Autora já apresentava sintomas de demência, estado clínico que se agravou com o falecimento de CC, ficando mais esquecida e confusa, perdendo progressivamente a autonomia, acabando por lhe ser diagnosticada demência de Alzheimer e tendo carecido da contratualização de um serviço de assistência domiciliária nos termos do contrato junto à petição como documento n.º 13, aqui dado por integralmente reproduzido.

22. A despesas da estadia em Portugal da 1.ª Autora e CC ascenderam a € 4.736,00.

23. As despesas do funeral de CC ascenderam a € 7.336,23.

24. As despesas das exéquias de CC ascenderam a € 348,70.

25. As despesas com o discurso fúnebre de CC ascenderam a € 333,20.

26. As despesas com o cartão de condolências de CC ascenderam a € 143,28.

27. As despesas com o enterro de CC ascenderam a € 2.492,00.

28. As despesas com a decoração da campa de CC ascenderam a € 418,75.

29. As despesas com o processo judicial da herança de CC ascenderam a € 106,00.

30. A 1.ª Autora remeteu à Ré, uma missiva, junta à petição como documento n.º 23, aqui dada por integralmente reproduzida, recebida por esta, reclamando o pagamento de € 203.324,15 para indemnização do sinistro e concedendo prazo até ao dia 15 de setembro de 2018.

31. CC era beneficiário da Segurança Social Alemã.

32. A 1.ª Autora requereu à 2.ª Autora o pagamento da pensão de viuvez.

33. A 2.ª Autora pagou, a título de pensões de viuvez da 1.ª Autora, por decesso de CC, os seguintes valores:

De 01/11/2016 a 31/12/2016: € 4.093,74; De 01/01/2017 a 31/01/2017: € 2.046,87; De 01/02/2017 a 30/06/2017: € 6.140,60; De 01/07/2017 a 31/12/2017: € 7.509,06; De 01/01/2018 a 30/06/2018: € 7.509,06; De 01/07/2018 a 31/12/2018: € 7.751,10; De 01/01/2019 a 28/02/2019: € 2.583,70; De 01/03/2019 a 30/06/2019: € 5.167,40; De 01/07/2019 a 30/06/2020: € 15.995,76; De 01/07/2020 a 28/02/2021: € 11.031,68; De 01/03/2021 a 30/06/2021: € 5.515,84; De 01/07/2021 a 31/08/2021: € 2.757,92.

34. A 2.ª Autora pagou, a título de contribuições para o seguro de saúde associado às pensões de viuvez da 1.ª Autora, por decesso de CC, os seguintes valores:

De 01/07/2019 a 30/06/2020: € 1.223,68; De 01/07/2020 a 28/02/2021: € 843,92; De 01/03/2021 a 30/06/2021: € 435,75; De 01/07/2021 a 31/08/2021: € 217,88.

35. A responsabilidade civil emergente de acidentes causados pelo veículo supra aludido encontrava-se, à data do acidente, transferida para a Ré a coberto da apólice n º .........28.

36. O sinistro em causa nos presentes autos foi investigado no inquérito n.º 80/16.7..., do Juízo de Competência Genérica de ..., tendo sido proferido despacho de arquivamento e despacho de não pronúncia, juntos aos autos sob o ofício datado de 31/01/2020 [ref.ª .....35], e acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, transitado em 14/10/2020, junto aos autos sob o ofício datado de 17/05/2023 [ref.ª .....25], peças processuais aqui dadas por reproduzidas.


*


Matéria de facto não provada:

a. Que CC, aquando do atravessamento referido no ponto 7 dos factos provados, tenha parado nas linhas contínuas que separam os dois sentidos de trânsito.

b. Que o embate se tenha dado quando CC ainda se mantinha nas linhas contínuas que separam os dois sentidos de trânsito.

c. Que CC, aquando do atravessamento referido no ponto 7 dos factos provados, tenha olhado para a esquerda e para a direita, esperando para se assegurar que poderia atravessar a via sem qualquer perigo para a sua integridade física.

d. Que DD tenha sido alertado por FF, ocupante do veículo, a cerca de 300 a 400 metros antes do embate, da presença de CC.

g) Qual a velocidade a que DD circulava, designadamente que fosse superior a 90 km/h.

h) Que CC se tenha apercebido da eminência do embate.

i) Que as tarefas desempenhadas por CC, aludidas no ponto 19 dos factos provados, representassem três horas por dia.

j) Que as despesas com a campa de CC hajam ascendido a € 8.044,40.

k) Que as despesas com o cuidado da sepultura de CC para 25 anos hajam ascendido a € 16.505,30.

Fundamentação de direito.

A primeira questão a decidir prende-se com a culpa no acidente. A 1ª instância julgou a vítima única culpada, motivo por que julgou a acção improcedente. Já a Relação entendeu que ambos – condutor do veículo segurado na ré e o peão – tiveram culpas no acidente, que repartiu na proporção de 70% para o condutor e 30% para a vítima.

Escreveu-se no acórdão recorrido:

“ (…) quer o condutor do veículo segurado pela Ré, quer a infeliz vítima contribuíram culposamente para o acidente a que se reportam os autos, desrespeitando o dever de cuidado que um cidadão médio e diligente, na sua concreta situação teria usado (cfr. n.º 2, do art.º 487º, do C.C.), embora se entenda que merece maior censura a actuação do condutor que tinha condições para conseguir evitar o embate, do que a do peão cuja incúria de não ter realizado a devida verificação das condições de tráfego da estrada no momento prévio ao sinistro, apenas por pequena margem determinou a invasão da via por onde circulava o veículo automóvel que, como vimos, em qualquer caso sempre deveria ter guardado maior distância relativamente às linhas separadoras dos sentidos de trânsito, atenta a aproximação do peão em atravessamento da estrada.

Há por isso uma situação de repartição de culpa entre os intervenientes no acidente (cfr. art.º 506º, n.º 2 do C.C.), afigurando-se adequada a fixação em 70% do contributo do condutor e em 30% do contributo do peão para a ocorrência do sinistro.”

Dissentindo do assim decidido, defende o Autor que a responsabilidade do condutor na eclosão do acidente é substancialmente maior que a da vítima, pelo que a repartição de culpas deve ser de 80% e 20%, respectivamente. A Recorrente seguradora defende a culpa exclusiva do peão; assim não se entendendo, deve repartir-se a culpa por ambos, condutor do veículo e vítima na proporção de 30% e 70%, respectivamente.

Vejamos.

O quadro de responsabilidade civil baseada na culpa consta do art. 483º, nº1, do CCivil, segundo o qual, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

A culpa lato sensu exprime um juízo de reprovação pessoal da acção ou omissão do agente que podia e devia ter agido de outro modo e é susceptível de assumir as vertentes de dolo ou de negligência.

A culpa stricto sensu ou mera negligência traduz-se, grosso modo, na omissão pelo agente da diligência ou do cuidado que lhe era exigível, envolvendo por seu turno, as vertentes de consciente ou inconsciente.

No primeiro caso, o agente prevê a realização do facto ilícito como possível, mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação; no segundo, o agente, embora o pudesse e devesse prever, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não o previu.

Na falta de outro critério legal, a culpa, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso (art. 487º, nº2, do CCivil).

O critério legal de apreciação da culpa é, pois, abstracto, ou seja, tendo em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do acidente de viação em causa, tendo por referência um condutor normal.

O ónus de prova dos factos integrantes da culpa no quadro da responsabilidade civil extracontratual, se não houver presunção legal da sua existência, cabe a quem com base nela faz valer o seu direito, designadamente o de crédito indemnizatório (arts. 342º/1 e 487º/1 do CCivil).

Posto isto, recordemos o que se apurou quanto às circunstâncias em que ocorreu o acidente.

- Por volta das 14h40m, do dia ... .10.2016, CC, então com 80 anos e de férias em Portugal, iniciou o atravessamento do lado esquerdo para o lado direito [no sentido A........-O......], no Itinerário Complementar n.º 1 (IC 1), ao Km 696,9, em ..., concelho de ..., constituído por uma faixa de rodagem, com duas vias no sentido O......-A........, com 6,80 metros de largura, separadas por linha descontínua, e uma via no sentido A........-O......, com 3,40 metros de largura, separada por linha dupla contínua;

- Na mesma data, hora e local, DD, condutor do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-GF-.., propriedade de EE, circulava ao volante da sua viatura no sentido A........-O......, tendo embatido, com a parte dianteira esquerda do veículo, em CC, que se colocou em frente do veículo quando este por si passava, junto à linha contínua a separar os sentidos de trânsito;

- CC foi projetado a cerca de 11,30 metros do embate.

- O veículo foi imobilizado a cerca de 135,20 metros do embate.

- O tempo estava bom.

- A visibilidade era boa e o piso da via estava seco;

- Antes do local onde ocorreu o embate é possível avistar a faixa de rodagem em toda a largura com uma extensão de 120 metros.

- A velocidade máxima permitida no local é de 90 km/h.

- Em consequência do sinistro supra aludido, CC faleceu no próprio dia.

À luz dos factos provados, é indiscutível a culpa da vítima, na medida em que iniciou a travessia da via sem se certificar que o podia fazer em segurança, assim incorrendo em violação do disposto no art. 101º do Código da Estrada, que a propósito do atravessamento da faixa de rodagem, prescreve: “os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.”

Quanto ao comportamento do condutor de veículo automóvel, se é certo, conforme entendimento consolidado, que nenhum condutor pode ser censurado pelo facto de inopinadamente, lhe surgir um obstáculo impeditivo da sua livre circulação – escreveu-se no acórdão do STJ de 18.12.2007 (P. 273/07) que , “O utente da via não tem que contar com a negligência ou inconsideração dos outros, excepto tratando-se daqueles com notória normal imprevisibilidade de comportamento (v.g. crianças) ou limitações (v.g. deficientes)”- não parece que seja esse o caso no acidente em apreciação.

Com efeito, no caso não pode falar-se em aparecimento súbito e inesperado da vítima na via pública. Se o condutor conduzisse com a atenção exigível ter-se-ia apercebido do peão, visível a umas boas dezenas de metros, a atravessar a faixa de rodagem e adoptado a manobra que evitaria ou, pelo menos, diminuiria o risco de acidente, afastando-se das linhas separadoras dos sentidos de trânsito e reduzido a velocidade (art. 21º, nº1 do CE).

É certo que não se mostra a violação de normas de legislação estradal, mas tem-se por seguro que, enquanto violador do dever objectivo de cuidado – “do cuidado exigível” – do condutor do segurado da Recorrente é, nessa vertente objectiva, ilícita, porque reprovável em face do concreto circunstancialismo presente (cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral, I,, 9ª edição, pa. 605 e ss). A verificação de ilicitude (agir objectivamente mal) e culpa (agir em termos merecedores de censura) não dependem necessariamente da violação de leis ou regulamentos.

Á imprudência do peão – conduta ilícita e culposa, como vimos – não soube o automobilista responder com a acção adequada a evitar o dano, o que sucedeu por não ter posto na condução o cuidado exigível, sendo-lhe imputável o resultado a título de inconsideração ou negligência.

Continuam bem actuais as palavras de Dario Martins de Almeida, in Manual de Acidentes de Viação, Almedina,3ª edição, pag. 144, da concorrência de culpas:

“A conculpabilidade do lesado pressupõe sempre a concausalidade; e esta deverá ser apreciada pelo método da causalidade adequada; à série causal desencadeada pelo lesante, associa-se para a produção do dano, a causa ou mesmo a simples condição posta pelo lesado.

Daí que, nesta perspectiva, nenhum dos factos - nem o do lesante, nem do lesado – seria de molde a produzir aquele dano só por si, mesmo quando se trate apenas de um simples agravamento desse dano. Nem o automobilista atropelaria o peão sem a condição deste se haver exposto, colocando-se na faixa de rodagem, nem o peão seria atropelado, só por assim transitar, sem a condição de o automobilista não poder, ou não conseguir, parar, no espaço livre e visível à sua frente. Produzido embora na sua materialidade, pela exclusiva violência da viatura, o dano não afasta de si a condição que o lesado lhe associou, interceptando o rumo impetuoso dessa viatura.”

A Relação decidiu bem ao concluir por concorrência de culpas, do peão e do condutor do veículo segurado, mas não acompanhamos o acórdão recorrido no juízo sobre a percentagem de culpas, que distribuímos por igual, 50% para cada, por não vermos que a culpa do condutor do ligeiro supere claramente a do peão.

Dos montantes indemnizatórios.

Vejamos em primeiro lugar as questões suscitadas pelos AA/recorrentes, e que são as seguintes:

- indemnização pelo dano moral próprio da vítima;

- indemnização pelo dano moral sofrido pela Autora AA;

- dano patrimonial futuro, correspondente aos custos com: i) a assistência de terceira pessoa à Autora, necessária até que esta perfizesse 85 anos; ii) o contributo diário do trabalho doméstico realizado pelo marido; iii. Despesas várias com a morte, funeral e sepultura da vítima, no total de €40.463,86;

- Reembolso devido à Deutsche Rentenversicherung Knappschaft-Bahn-See” dos montantes pagos à 1ª Autora a título de pensão de viuvez e de contribuições para o seguro de saúde associado às pensões de viuvez, ambas por morte CC.

A Relação valorou o dano moral próprio da vítima em €15.000,00, defendendo os Recorrentes que a indemnização a este título deve ser fixada em €60.000,00.

O acórdão recorrido justificou a decisão nos seguintes termos:

Está provado que em virtude das extensas e graves lesões sofridas no embate, CC faleceu no próprio dia acidente, não sem antes sofrer fortes dores devidas às lesões provocadas pelo embate da viatura no seu corpo.

Assim, em conformidade com o critério seguido no citado acórdão do STJ de 27.09.2022, fixa-se em € 15.000,00 o montante dos danos morais próprios sofridos pela infeliz vítima no período de tempo que mediou o acidente e o seu óbito.”

Os Recorrentes não têm razão e a decisão recorrida deve ser confirmada.

É facto notório que quem morre em consequência de lesões resultantes de acidente de viação sofre um dano não patrimonial, quer pela angústia advinda da consciência do risco de lesão iminente, quer pelas lesões corporais sofridas (acórdão do STJ de 29.10.2020, P. 05/05.TBPTS.L1.S1).

Ponto é fixar o quantum indemnizatório, também aqui com recurso à equidade (art. 496º, nº4, do CCivil)

Não é fácil quantificar o montante adequado ao ressarcimento dos danos sofridos pela própria vítima, e que pela sua morte se transmite mortis causa para os seus sucessores.

Perante a escassa matéria de facto apurada – apenas que a vítima, com o embate, foi projectado a 11,30 metros, que sofreu fortes dores, vindo a falecer no próprio dia – e os critérios jurisprudenciais do STJ em casos análogos, a indemnização fixada no acórdão recorrido mostra-se adequada, e a pretensão do Recorrente claramente excessiva.

Veja-se a título de exemplo o acórdão do STJ de 25.02.2025, (P.2707/22), considerou adequada a indemnização fixada nas instância de €5.000,00 por dano não patrimonial sofrido pela vitima, com 64 anos de idade, atropelado por camião, com morte quase imediata.

Da indemnização pelos danos morais próprios da Autora, cônjuge do falecido, com respaldo no nº2 do art. 496º do CCivil.

Provou-se que existia uma relação de proximidade afectiva entre a Autora e a vítima, que executavam em conjunto as tarefas quotidianas, e que a morte do CC abalou profundamente o estado emocional da 1.ª Autora, causando-lhe grande tristeza. Que a Autora já apresentava sintomas de demência, estado clínico que se agravou com o falecimento do marido, ficando mais esquecida e confusa, perdendo progressivamente a autonomia, acabando por lhe ser diagnosticada demência de Alzheimer. A Autora faleceu no decurso da acção.

O acórdão recorrido fixou a indemnização a este título em €25.000,00, defendendo o Recorrente a subida do quantum indemnizatório para €35.000,00.

Sendo inquestionável a existência de um dano indemnizável, não se vê razão para alterar o juízo da Relação.

Como decidiu o acórdão do STJ de 06.06.2023, P. 9934/17, “de acordo com a orientação reiterada da jurisprudência do STJ, sendo a indemnização fixada segundo juízos de equidade – art. 566º, nº3, do CCivil – não compete ao STJ a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, mas tão somente verificar os limites e pressupostos dentro dos quais se situou o juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística do caso concreto.”

Não se vê que o valor de indemnização não respeita os critérios habituais da jurisprudência do STJ em casos análogos, motivo por que se confirma.

Quanto ao dano patrimonial relativo à despesa com a necessidade de auxílio de terceira pessoa e com a perda do contributo do falecido, não há factos que suportem esta pretensão indemnizatória, pelo que bem decidiu a Relação ao julgar improcedente o pedido nesta parte.

A acção apenas procede quanto à indemnização pelos encargos provados com funeral, no valor total de €11.178,16, não merecendo também censura o arbitramento da compensação de € 1.000,00 a título de reparação parcial das despesas da estadia em Portugal, prematuramente interrompida, indemnizações, aliás, não impugnadas no recurso.


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A revista da Ré Caravela, S.A.

Como supra referido, a Ré questiona o juízo sobre a culpa no acidente e os valores indemnizatórios fixados pelo dano morte e pelo dano moral da Autora com a morte do marido.

A questão da culpa no acidente já foi apreciada, restando apenas apreciar o recurso na parte das indemnizações.

A Recorrente reputa de “exagerada” a indemnização de €70.000,00, fixada a título de dano morte.

Mas sem qualquer razão, com o devido respeito

É indiscutível que o dano pela perda da vida é indemnizável – art. 496º, nº2, do CCivil – nem isso é questionado.

A jurisprudência mais recente do STJ tem valorado a perda do bem vida em valores próximos do valor fixado pela Relação.

No acórdão do STJ de 19.01.2023, P. 347/21.8T8PNF.P1.S1, escreveu-se o seguinte: “Na fixação da indemnização do dano da perda da vida, tendo em consideração que não é o lesado que vai beneficiar da quantia indemnizatória, o valor a atribuir deve reflectir uma censura à conduta do lesante e sinalizar a importância do bem jurídico supremo sacrificado, conferindo-lhe uma tutela que satisfaça as exigências de um Estado de direito democrático, necessariamente atento à reparação dos danos injustamente provocados pela conduta de outrem, sendo aconselhável seguir-se uma orientação padronizadora; o valor padrão desta indemnização que nos últimos tempos tem norteados a jurisprudência dos tribunais superiores tem rondado os €80.000,00, avultando como critério diferenciados o grau de culpa do lesante.”

Donde, o acórdão recorrido ao fixar em €70.000,00 a compensação pelo dano morte decidiu em linha com os critérios jurisprudenciais mais recentes, não sofrendo do exagero que a Recorrente lhe imputa.

Insurge-se também quanto à indemnização de €25.000,00 fixada no acórdão por perda de cônjuge, que reputa também de “manifestamente exagerado, desproporcional, e sem respaldo na jurisprudência, devendo ser substancialmente reduzido.”

Também nesta parte lhe falece toda a razão.

Já na apreciação da revista das AA dos nos pronunciámos sobre esta questão e concluímos pela justeza do quantum indemnizatório fixado na Relação, o que é confirmado pela própria jurisprudência citada pela Recorrente. Na verdade, na série de acórdãos do STJ invocados pela Recorrente, o primeiro datado de 30.10.2001 e o último de 12.02.2009, (P. 07B4125), verifica-se que neste último foi atribuída indemnização de €20.000,00 pelo desgosto do marido com a morte da mulher de 46 anos, vítima de atropelamento, e no acórdão também citado de 05.06.2008 (P. 08A1177), valorou-se o mesmo dano em €25.000,00.

É quanto basta para evidenciar a falta de fundamento do recurso nesta parte.

O acórdão recorrido condenou também a Ré a reembolsar a Autora “Deutsche Rentenversicherung Knappschaft-Bahn-See” pelos pagamentos a título de pensão de viuvez e de seguro de saúde à 1ª Autora, aspecto da condenação que não foi impugnado, com a alteração de a condenação ser de 50% do valor despendido e não 70%, em face da alteração da medida de culpa na produção do acidente.

Ascendendo a compensação dos danos sofridos pela 1ª Autora a €122.178,16, a medida da culpa da vítima no acidente determina a redução a metade daquele valor, tendo pois direito à indemnização global de €61.089,00. Pelo mesma razão, a Ré é condenada a reembolsar a 2ª Autora em €40.411,98, metade do valor que despendeu com a pensão de viuvez e seguro de saúde.

Decisão.

Em face do exposto, decide-se:

Negar provimento ao recurso das Autoras;

Conceder em parte a revista da Ré e condenar a pagar:

- ao habilitado na posição processual da Autora AA, a quantia de €61.089,00 (sessenta e um mil, e oitenta e nove euros) acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados sobre a quantia de € 6.089,00 (seis mil, e oitenta e nove euros) desde a citação e contados sobre a quantia de € 55.009,00 (cinquenta e cinco mil e nove euros) desde a data do acórdão recorrido até efectivo e integral pagamento;

• à Autora “Deutsche Rentenversicherung Knappschaft-Bahn-See”, a quantia de € 40.412,00 (quarenta mil e quatrocentos e doze euros) acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Condenar em custas as Recorrentes e a Recorrida, na proporção do respectivo decaimento.

Notifique.

Lisboa, 23.04.2025

Ferreira Lopes (relator)

Arlindo Oliveira

Fátima Gomes