INSOLVÊNCIA
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
MORATÓRIA
TERCEIRO
FIADOR
BOA FÉ
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DA PREVALÊNCIA DA SUBSTÂNCIA SOBRE A FORMA
Sumário


— A moratória prevista em plano de revitalização não coloca em causa nem o montante nem (muito menos) a existência dos direitos dos credores da insolvência.
— Em consequência, o n.º 4 do artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não opõe um obstáculo a que aproveite aos garantes pessoais.

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Recorrentes: AA e BB

Recorrida: Andorinha de Pedra – Imobiliária, Lda.

I. — RELATÓRIO

1. Andorinha de Pedra – Imobiliária, Lda., propôs a presente acção contra AA e mulher, BB, pedindo a condenação dos Réus a pagar à Autora a quantia de 195.000,00 euros, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação e até efectivo pagamento.

2. Os Réus contestaram, defendendo-se por impugnação e por excepção, deduziram reconvenção e requereram a intervenção principal provocada da F..., Lda.

3. A Autora replicou, pugnando pela improcedência das excepções e da reconvenção.

4. Em despacho saneador, decidiu-se não admitir a reconvenção.

5. O Tribunal de 1.ª instância julgou a acção totalmente procedente, condenando solidariamente os Réus a pagar à Autora da quantia de 195.000,00 euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a citação.

6. Inconformados, os Réus AA e mulher, BB, interpuseram recurso de apelação.

7. A Autora Andorinha de Pedra – Imobiliária, Lda. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

8. O Tribunal da Relação julgou, por maioria, o recurso de apelação totalmente improcedente.

9. Inconformados, os Réus AA e mulher, BB, interpuseram recurso de revista.

10. Finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

(1) Considerando que o objeto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º, nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), vêm os recorrentes apresentar as mesmas.

(2) Na base e como pressuposto deste litígio, está um contrato de arrendamento para fins não habitacionais, outorgado entre a autora e a chamada e, que cessou por denúncia da arrendatária com efeitos a partir de 18 de março de 2021, data em que a chamada entregou o locado à autora. Sendo que, quando o contrato de arrendamento cessou, estavam rendas por pagar.

(3) A chamada instaurou um processo especial de revitalização, em que a autora participou e reclamou créditos resultantes da falta de pagamento das rendas, tendo-lhe sido reconhecido um crédito, reportado à data do reconhecimento dos créditos, de € 105.000,00 (centos mil euros).

(4) O crédito da autora foi classificado como crédito comum e, de acordo com o plano de revitalização aprovado e homologado por sentença, foi objeto de um perdão de 70%, com um período de carência de 12 meses, estando a chamada obrigada ao pagamento dos restantes 30% em 60 prestações.

(5) A chamada está a cumprir com o plano prestacional, escrupulosamente.

(6) A Autora deu entrada do presente litígio com a finalidade de ser ressarcida do crédito global reclamado no PER da chamada junto dos Réus, na qualidade fiadores.

(7) O presente recurso de revista vem interposto do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que julgou improcedente a apelação, que confirmou a decisão recorrida do tribunal de primeira instância, que condenou solidariamente os Réus no pagamento à Autora da quantia peticionada de €195.000,00 acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%.

(8) Neste sentido, vêm os recorrentes, socorrer-se do presente recurso tendo como objeto a análise da aplicação do art.º 217.º, n.º 4, do CIRE ao regime da fiança, questionando-se a sua compatibilidade com o regime geral do Código Civil e o princípio da acessoriedade da fiança previsto no artigo 627.º do CC, bem como a possibilidade de inconstitucionalidade da norma por violação do princípio da confiança e da segurança jurídica por violação do artigo 11.º do Código Civil e dos artigos 2.º, 13.º, 18.º, 20.º, 32.º n.ºs 1 e 10, 202.º n.º 2 e 203.º a 205.º da Constituição da Républica Portuguesa.

(9) O regime jurídico da fiança encontra-se previsto no Código Civil, nos artigos 627º a 655º, constituindo este a lei geral em matéria de garantias pessoais.

(10) O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), por sua vez, é um regime especial, aplicável exclusivamente aos casos expressamente previstos.

(11) Nos termos do artigo 627.º, n.º 2, do Código Civil, a fiança é uma garantia acessória e, portanto, vinculada e subordinada à obrigação principal em todos os seus aspetos.

(12) A acessoriedade traduz-se numa dependência unilateral de um direito em relação a outro, ou seja, o destino do direito acessório é determinado pelo destino do direito principal. Este princípio encontra plena aplicação no instituto da fiança, tal como decorre do artigo 628.º do Código Civil, o qual dispõe que uma fiança deve revestir a mesma forma que a obrigação principal. A ligação entre o direito principal e o direito acessório reflete-se em diversos aspetos essenciais da relação jurídica.

(13) O artigo 631.º, n.º 2, do Código Civil impõe que as modificações da obrigação principal, como a redução ou perdão de dívida no âmbito de um PER, repercutam-se na fiança. É inadmissível que a obrigação fidejussória seja mais gravosa que a obrigação principal.

(14) Assim, no caso de uma dívida principal (afiançada) ser reduzida, a fiança é, consequentemente, redutível aos novos termos da obrigação principal.

(15) A redução da divida principal implica uma adaptação automática das obrigações do fiador, de modo que a sua responsabilidade se mantenha proporcional à nova dimensão da dívida garantida.

(16) Essa ligação dinâmica entre a fiança e a obrigação principal é uma garantia de proteção tanto para o fiador como para o credor, evitando que a responsabilidade do fiador ultrapasse os limites daquilo que é juridicamente admissível.

(17) O princípio da acessoriedade consubstancia uma base de equilíbrio e justiça nas relações jurídicas obrigacionais, prevenindo desproporções ou abusos.

(18) Tal como defende Francisco Cortez, a acessoriedade implica que “a existência, a validade e o conteúdo da obrigação principal condicionam a existência, a validade e o conteúdo da obrigação de fiança, no sentido de que, se a primeira se extingue, a segunda também se extingue, se a primeira é inválida a segunda também o é, e que o conteúdo desta não pode ser mais amplo que o da primeira”.

(19) Cremos que a Lei Espanhola reflete o nosso sistema legislativo mas de forma mais clarificada e sem margem para julgamento, vejamos:

(20) Ela diz-nos que aquando da aprovação do plano de recuperação da empresa as execuções judicias ficam suspensas mesmo quanto aos garantes.

(21) Ora, se a maioria dos credores pretende uma revitalização da empresa e concorda com eventuais alterações à configuração dos seus créditos, então concorda igualmente com as limitações inerentes ao plano e não poderão executar os garantes até que seja cumprido o plano de revitalização. Só assim é possível à empresa celebrar o plano de revitalização, sem ser perturbado pelo pagamento intrínseco ao direito de regresso/sub-rogação; o credor sujeita-se às limitações do plano que aprovou, podendo executar o garante se findo o plano de revitalização o seu crédito não se encontrar já satisfeito; e o garante mantém a obrigação de garantia nos termos inicialmente acordados.

(22) Como vimos, no presente caso a dívida principal foi objeto de redução no âmbito do Processo Especial de Revitalização (PER), pelo que, o cerne da questão não reside na existência ou exigibilidade da dívida, mas sim na modificação do conteúdo da obrigação.

(23) Sendo a dívida principal reduzida, por força do princípio da acessoriedade que caracteriza a fiança, a mesma deverá necessariamente ajustar-se aos termos em que subsiste a dívida afiançada, nos termos previstos no artigo 631.º, n.º 2, do Código Civil.

(24) O tribunal ao não reconhecer esta redução está a violar o princípio da acessoriedade da fiança e a criar um desfasamento inadmissível entre a obrigação principal e a acessória.

(25) A solução terá de ser, necessariamente esta, uma vez que existe uma desproporção violadora dos ditames da boa-fé entre o âmbito da vinculação e a capacidade de cumprimento, tornando, irremediavelmente, a fiança ineficaz.

(26) Face ao exposto, é juridicamente inadmissível que a redução da dívida principal no âmbito do PER não repercuta proporcionalmente na fiança do Recorrentes. Tal posição violará não só o princípio da acessoriedade como também os direitos do fiador, que não pode ser onerado além dos limites do vínculo principal. Assim, a modificação da obrigação principal deverá traduzir-se, necessariamente, numa redução correspondente da obrigação do fiador, sob pena de nulidade parcial da obrigação acessória.

(27) Da aplicabilidade do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE: este artigo foi expressamente concebido para o plano de insolvência, regulando situações próprias de um quadro de liquidação. sua aplicação ao Processo Especial de Revitalização (PER) contraria a lógica e os objetivos específicos deste último, que é preventivo e contratual.

(28) O Processo Especial de Revitalização (PER), regulado de forma distinta nos artigos 17.º-A a 17.º-I do CIRE, distingue-se claramente do processo de insolvência no que respeita aos seus objetivos, natureza jurídica e regime de aplicação. Embora ambos os regimes constem do mesmo diploma, o PER foi concebido como um mecanismo autónomo de recuperação de empresas em situação económica difícil, não sendo equiparável a uma liquidação ou reestruturação forçada típica dos processos de insolvência.

(29) O artigo 17.º-F, n.º 7, do CIRE elenca de forma taxativa as disposições do regime de insolvência aplicáveis ao PER, não incluindo o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE. Assim, a sua aplicação ao PER constitui uma extensão ilegal e violadora do princípio da autonomia legislativa.

“Assim, pelas regras da hermenêutica e face ao teor da letra da lei (que constitui o ponto de partida da interpretação, art.º 9º nº 1 do CC), ao elemento histórico (antecedentes legislativo do plano de insolvência face ao processo de revitalização) ao elemento sistemático (unidade do sistema jurídico, estarmos perante 2 processos especiais, a inserção sistemática do art.º 217º, sua epígrafe e a ausência de remissão pelo art.º 17º-F) não encontramos razão justificativa para a aplicação do art.º 217º ao processo especial de revitalização.” In Voto vencido

(30) A ausência de remissões expressas para o artigo 217.º,n.º 4 no regime do PER demonstra que o legislador quis preservar a autonomia negocial e evitar a imposição de regras que poderiam desincentivar o apoio dos garantes a processos de revitalização.

(31) Aqui chegados importa arguir o princípio da unidade do sistema jurídico, consagrado no artigo 11.º, n.º 2, do Código Civil, que exige que a aplicação das normas jurídicas respeite a coerência global do ordenamento jurídico.

(32) Ora, a aplicação extensiva do artigo 217.º ao PER criaria uma contradição entre os regimes do processo de insolvência e do PER, ao impor aos garantes de um PER obrigações que não foram deliberadamente previstas nos artigos 17.º-A a 17.º-I do CIRE.

(33) A norma do art.º 217.º, n.º 4, do CIRE não se limita a regular as relações entre o devedor e os credores no contexto do plano de insolvência, mas interfere diretamente na esfera jurídica dos fiadores ao estabelecer que estes apenas podem exercer o direito de regresso nos mesmos termos que o credor principal poderia exigir do devedor.

(34) Este regime contraria o regime geral da fiança previsto no Código Civil, especialmente os princípios da sub-rogação (art.º 644.º do CC) e da acessoriedade (art.º 627.º, n.º 2, do CC)

(35) As normas de direito especial destinam-se a regular situações específicas, com regras que derrogam o regime geral apenas para os casos por elas expressamente previstos. Por sua vez, as normas de direito geral têm aplicação residual, sendo subsidiárias às normas especiais.

(36) O art.º 217.º, n.º 4, do CIRE, por ser uma norma de direito especial e de caráter excecional, regula apenas uma parcela muito restrita das situações relacionadas com o direito de regresso do fiador, limitando o montante que este pode exigir ao devedor ao valor constante do plano de insolvência.

(37) A sua aplicação, portanto, está circunscrita exclusivamente ao contexto do plano de recuperação aprovado no âmbito de processos de insolvência ou revitalização, e não pode ser alargada, por analogia, a outras situações.

(38) Estender os efeitos desta norma a casos que não sejam estritamente abrangidos pelo CIRE seria subverter a hierarquia normativa e o papel delimitado das normas especiais, comprometendo a estrutura sistemática do ordenamento jurídico.

(39) A interpretação literal e sistemática do artigo 217.º do CIRE, à luz do artigo 11.º do Código Civil, é corroborada pela doutrina.

(40) Menezes Leitão refere que “a extensão de efeitos a terceiros no contexto de planos de recuperação ou insolvência deve ser expressamente prevista, sob pena de violar princípios basilares do Direito Civil, como a autonomia da vontade e a proteção da confiança.”

(41) Na jurisprudência, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14 de junho de 2017 (Proc. n.º 325/15.7T8PVZ) sublinha que “a interpretação das normas do CIRE deve ser guiada pela sua finalidade específica, não sendo admissível aplicar regimes destinados ao processo de insolvência em contexto de PER, salvo previsão expressa.”

(42) Já o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18 de setembro de 2019 (Proc. n.º 470/17.3T8STS), sublinha a necessidade de respeitar os limites contratuais no PER, afastando interpretações extensivas que desvirtuem o princípio do consenso entre as partes envolvidas.

(43) "A proibição de analogia prevista no art.º 11.º do Código Civil é uma garantia contra interpretações arbitrárias ou extensivas de normas excecionais, como é o caso do art.º 217.º, n.º 4, do CIRE. 'Admitir a aplicação analógica desta norma ao regime geral da fiança implicaria uma violação clara do princípio da hierarquia normativa, desrespeitando a estrutura sistemática do ordenamento jurídico’."

(44) António Menezes Cordeiro reforça, sublinhando que "Normas especiais ou excecionais não têm vocação para regular situações que não estejam expressamente previstas no seu âmbito de aplicação, sob pena de violação da hierarquia normativa..

(45) Decorre do acima exposto a menção aos princípios da boa-fé na figura Venire Contra Factum Proprium, da Confiança e da Segurança Jurídica.

(46) O princípio da boa-fé, consagrado no artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil, impõe que as partes atuem com lealdade e respeito pelas legítimas expectativas criadas no decurso das relações jurídicas. Uma manifestação concreta deste princípio é a figura do venire contra factum proprium.

(47) "O venire contra factum proprium visa assegurar a lealdade e estabilidade das relações jurídicas, especialmente em contextos em que decisões coletivas criam expectativas legítimas para todos os envolvidos.”

(48) No caso da fiança, a boa-fé impede que o credor se beneficie de condições mais detalhadas no PER (como o perdão parcial da dívida) e, ao mesmo tempo, exija dos fiadores valores superiores ao montante ajustado.

(49) "A limitação imposta pelo art.º 217.º, n.º 4, do CIRE, ao direito de regresso do fiador, deve ser interpretada estritamente, de forma a evitar um desequilíbrio grave e desproporcional que desvirtue a natureza acessória da fiança.”

(50) A interpretação vencedora não atinge uma perspetivação e defesa equilibradas dos interesses em presença: dos credores, do devedor e dos terceiros garantes deste.

(51) Importa assim, analisar a inconstitucionalidade da norma por violação do princípio da confiança.

(52) O princípio da confiança, integrado no conceito de Estado de Direito democrático, encontra consagração implícita no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que garante a estabilidade e previsibilidade das normas e das decisões do Estado.

(53) Este princípio protege as legítimas expectativas criadas nos cidadãos, impedindo alterações ou imposições que sejam arbitrárias, desproporcionais ou inesperadas.

(54) O Acórdão do STJ de 27/03/2007 (Proc. n.º 07A760) clarifica que: "O princípio da confiança postula uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, razão pela qual é inconstitucional a norma que, por sua natureza, obvie de forma intolerável ou arbitrária àquele mínimo de certeza e segurança que os cidadãos, a comunidade e o direito têm de respeitar.”

(55) O comportamento contraditório dos credores pode inviabilizar a execução bem-sucedida do PER, prejudicando a recuperação do devedor e, em última análise, a proteção dos interesses coletivos dos credores. Como salienta Catarina Serra: "O PER depende da confiança recíproca entre os intervenientes. A quebra dessa confiança mina a função revitalizadora do plano e coloca em risco o sucesso da recuperação empresarial.”

(56) A fiança é um negócio de risco que pressupõe uma avaliação prévia por parte do fiador quanto à extensão da sua responsabilidade, com base nas condições contratuais acordadas no momento da sua constituição.

(57) "A cláusula de agravamento do risco fidejussório deve ser expressa, respeitando a possibilidade de consulta e avaliação do nível de risco pelo fiador.”

(58) “Num tal quadro, seria caso de se pensar em inconstitucionalidade da norma por violação do princípio da confiança, como se refere no acórdão do STJ de 27/03/2007, processo nº 07A760: «O princípio da confiança postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, razão pela qual é inconstitucional a norma que, por sua natureza, obvie de forma intolerável ou arbitrária àquele mínimo de certeza e segurança que os cidadãos, a comunidade e o direito têm de respeitar.»” Do voto vencido

(59) A aplicação do artigo 217.º, n.º 4, ao PER compromete o equilíbrio contratual ao transformar os fiadores em devedores diretos, sem qualquer possibilidade de recuperar integralmente os valores pagos, violando os princípios da acessoriedade e da sub-rogação consagrados nos artigos 627.º e 644.º do Código Civil.

(60) Como vimos o art.º 11.º do Código Civil consagra a proibição de analogias com normas excecionais, como é o caso do art.º 217.º, n.º 4, do CIRE. A aplicação de regras do plano de insolvência ao PER, por analogia, violaria este princípio, desvirtuando a natureza distinta destes dois regimes:

(61) "A analogia com normas excecionais é vedada porque compromete a estabilidade e previsibilidade do sistema jurídico, especialmente em regimes de caráter especial como o PER.”

(62) A distinção entre PER e plano de insolvência é deliberada e possui uma razão de ser: o PER é preventivo e foca-se na revitalização da empresa, enquanto o plano de insolvência opera num contexto de falência declarada. Tratar ambos como equivalentes seria subverter a intenção legislativa e comprometer a funcionalidade do PER como solução autónoma e viável.

(63) No caso concreto, a dívida principal reconhecida no PER, no montante de €105.000,00, foi reduzida para €31.500,00, através de um perdão de 70% aprovado no plano. Este perdão altera diretamente o quantum da obrigação principal, o que necessariamente impacta a obrigação fidejussória,nos termos da acessoriedade consagrada no art.º627.º, n.º 2, do Código Civil.

(64) Em virtude da acessoriedade da fiança, sendo a dívida principal reduzida no âmbito do plano de revitalização da devedora principal, a fiança terá de ser, necessariamente, reduzida aos precisos termos da dívida afiançada, nos termos do disposto no artigo 631.º, n.º 2, do CC.

(65) Posto que, decorre do Plano de revitalização da devedora principal uma modificação da obrigação principal e, esta só se podia repercutir na fiança se fosse mais favorável para o fiador, o que notoriamente é o caso.

(66) Tal como defendido pelo voto vencido a obrigação do devedor principal, tal como definida no PER, encontra-se subordinada à verificação de uma de três possibilidades:

o Cumprimento integral do PER: Neste caso, o devedor satisfaz integralmente as condições acordadas no plano, resultando na extinção da obrigação principal e, consequentemente, da obrigação fidejussória.

o Incumprimento do PER: Caso o devedor não cumpra as condições estipuladas, o art.º 17.º-F, n.º 13, do CIRE prevê a aplicação do art.º 218.º, n.º 1, do mesmo diploma, segundo o qual a moratória ou o perdão deixam de produzir efeitos, retomando-se as condições originais da dívida.

o Cumprimento parcial do PER: Se o devedor cumprir parcialmente o plano, os montantes pagos deverão ser abatidos à dívida global, ajustando-se proporcionalmente a obrigação do fiador.

(67) Estas condições dependem de circunstâncias futuras e incertas, tornando impossível uma condenação atual que tenha como pressuposto a execução do PER em moldes definitivos.

(68) Ora, o art.º 610.º do Código de Processo Civil apenas contempla situações de inexigibilidade, não abrangendo a definição de uma obrigação dependente de condições futuras e incertas.

(69) Uma condenação baseada em suposições futuras constituiria uma sentença condicional, algo que o sistema jurídico português não admite, por violação do princípio da segurança jurídica e da certeza das decisões judicias.

(70) A sentença deve resolver o litígio tal como ele se apresenta no momento da decisão, não podendo subordinar os efeitos da condenação a eventos futuros e incertos, sob pena de violação do princípio da segurança jurídica.

(71) Neste contexto, o Tribunal deve abster-se de proferir qualquer condenação definitiva que dependa do cumprimento futuro do PER, limitando-se a apreciar as obrigações conforme se apresentam no momento da decisão.

(72) Neste sentido, diz-nos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1563/16.4T8AMT.P1.S2 que a “ aprovação do plano de revitalização tem, precisamente, entre os seus objetivos, permitir o cumprimento dos contratos, adequando o programa debitório às concretas possibilidades do devedor. Este plano de modelação dos débitos pode, em concreto, comportar uma variante quantitativa (de perdão ou redução do capital ou juros), expressamente prevista no art.217º, n.4, (que não aproveita aos garantes do devedor).” Itálico nosso

(73) Ainda, à diferenciação do plano de insolvência e o plano de revitalização diz-nos o acórdão que “Efetivamente, os diferentes contextos financeiros dos devedores e os diferentes objetivos destes dois tipos de planos não são, em regra, valorativamente equiparáveis. Se o plano de insolvência se desenvolve, muitas vezes, num quadro de “liquidação” de uma atividade e/ou de um património, e tem entre os seus objetivos a ordenação dessa “liquidação”, o plano de revitalização tem um propósito distinto, sendo tipicamente um instrumento transitório destinado à superação de uma fase de crise económico-financeira do devedor, tendo em vista evitar a sua insolvência. Deste modo, a moratória ou o novo prazo de pagamento que os credores concedem ao devedor com a aprovação do plano de revitalização deverá aproveitar aos terceiros que pessoalmente garantem o crédito, enquanto o devedor continuar a cumprir o plano acordado.” Itálico nosso

(74) Ainda, no mesmo sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8520/20.4T8PRT-B.P2.S1 de 15/09/2022: “Por outro lado, a extinção da obrigação principal acarreta a extinção da fiança – art.º 651.º CCiv. Como escreve Manuel Januário da Costa Gomes, Estudos de Direito das Garantias, I, pg. 23, cit. in Ac. R.P. 31/3/07 Col .I/166 (rel. Marques Pereira), “o regime da fiança leva a que se fale dela como um negócio de risco”. “Trata-se de achar um compromisso entre segurança do credor e a defesa do fiador.” “Esclarece aliás aquele citado Autor (Assunção Fidejussória de Dívida, 2000, pgs. 744 e 745) que o problema da interpretação da declaração do garante é um problema mais geral de interpretação da declaração negocial, resolvido, em potência, pelo disposto no art.º 236.ºss. CCiv.”.

“Mas destacando a especificidade do negócio jurídico fiança, deve ela ter consequências específicas a nível da interpretação da declaração do fiador.”.

“Assim, o facto de a fiança ser um negócio de risco, determina a necessidade de a declaração fidejussória dever ser interpretada de forma estrita.”.

“Na dúvida sobre o sentido da declaração, não será directamente relevante o critério subsidiário do art.º 237.º CCiv - “dicotomizado” entre os negócios gratuitos e os onerosos - mas, antes, o critério do carácter menos gravoso para o declarante. Assim resulta, natural e razoavelmente, do facto de a fiança ser um negócio de risco, donde decorre que deve ser o credor, beneficiário da garantia, a curar no sentido de a declaração “cobrir”, inequivocamente, todas as situações que pretende ver resguardadas.” .

“Uma vez firmado que a garantia em causa é uma fiança, as dúvidas (internas) que poderão surgir na interpretação da declaração deverão, de acordo com o mesmo critério, ser resolvidas por estoutro princípio: in dubio pro fideiussore. As dúvidas que possam surgir, neste particular - não dúvidas subjectivas, mas, antes, dúvidas com suporte objectivo, após a interpretação dadeclaração nos termos legais (art.º 236.ºnºs 1e 2 CCiv) - podem dizer respeito a qualquer aspecto da vinculação fidejussória, desde o tempo de vinculação, ao âmbito da responsabilidade, passando pelo sentido de qualquer cláusula acessória”.” Itálico nosso

(75) Não sendo aplicável o artigo 217.º n.º 4 do CIRE, o plano de revitalização aprovado em relação ao devedor é extensível ao fiador por força do preceituado no art.º 631º nº 2 do CC que impõe a redução da fiança “aos precisos termos da dívida afiançada” e por força da acessoriedade da fiança (art.º 627º nº 2 CC).

(76) Ou seja, a modificação da obrigação principal acarreta a modificação da obrigação fidejussória na mesma medida.

(77) Não se tendo ainda vencido a obrigação do devedor principal (por força das modificações introduzidas no PER), consequentemente, face à acessoriedade da fiança, opera a procedência da exceção perentória da inexigibilidade da obrigação fidejussória.

(78) Somente esta interpretação garante a proteção do fiador contra critérios desproporcionais, mantendo o equilíbrio contratual.

(79) A inexigibilidade da obrigação fidejussória decorre do princípio da acessoriedade e das modificações impostas pelo plano de recuperação no PER. Requer-se que o Tribunal reconheça esta exceção perentória e declare que a responsabilidade dos fiadores está limitada aos termos ajustados no plano homologado, garantindo o respeito pela ordem jurídica.

(80) Deverá ser dado provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido e substituindo-o por decisão que determine a absolvição dos Recorrentes, com fundamento na inexigibilidade da obrigação fidejussória, em conformidade com os princípios da acessoriedade, da boa-fé e da confiança.

NESTES TERMOS, e nos demais de Direito que V/Exas. doutamente suprirão, deve ser concedido provimento à presente Revista e, consequentemente, ser revogado o Acórdão proferido, e substituído por outro que, determine a absolvição dos Recorrentes com fundamento na inexigibilidade da obrigação fidejussória e, assim se fazendo a costumada Justiça!

11. A Autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

12. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigo 608.º, n.º 2, por remissão do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), a questões a decidir, in casu, é tão-só a seguinte: se o plano de revitalização aprovado e homologado no processo n.º 2052/20.8... exclui ou limita o direito de a Autora, agora Recorrida, exigir dos os Réus, agora Recorrentes, o cumprimento imediato das obrigações da Chamada F..., Lda

II. — FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

13. O Tribunal de 1.ª instância deu como provados os factos seguintes:

1º A autora é uma sociedade comercial que se dedica, designadamente, à administração e arrendamento de imóveis.

2º A autora tem inscrita a seu favor a aquisição de um prédio urbano sito na rua de ..., n.ºs 247 a 255 e na rua ..., n.ºs 282 a 290-A, descrito na Conservatória do Registo Predial ... na ficha n.º 1600/....

3º Os réus são gerentes comerciais, gerindo e administrando sociedades comerciais.

4.º Em 17 de dezembro de 2018, os réus eram os sócios e gerentes da sociedade F..., Lda (adiante, F..., Lda)

5.º Em 17 de dezembro de 2018, a autora, na qualidade de senhoria, a F..., Lda, na qualidade de arrendatária e os réus, na qualidade de fiadores, subscreveram o documento intitulado “contrato de arrendamento para fins não habitacional com prazo certo”, junto aos autos a fls. 2, no qual consta, além do mais que aqui se dá por transcrito, o seguinte:

CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA FINS NÃO HABITACIONAL COM PRAZO CERTO

PRIMEIRA CONTRATANTE: ANDORINHA DE PEDRA – IMOBILIÁRIA.LDA” (…), adiante designada por Senhoria,

SEGUNDA CONTRATANTE:F..., Lda (…), adiante designado por Arrendatária,

TERCEIROS OUTORGANTES: AA (…) e BB (…), adiante designados por fiadores. (…)

Cláusula Primeira

(Objeto)

Pelo presente Contrato, a Senhoria dá de arrendamento à Arrendatária, que aceita, imóvel, correspondente ao prédio urbano composto por divisões suscetíveis de utilização Independente sitas no R/Chão (lojas), com entrada pelo n.º 247 da Rua de ... e pelo n.º 288 da Rua ..., bem como composto pelas salas 1, 2 e 3 no 1.º andar, salas 2, 3, 4 e 5 do 2.º andar e, ainda, composto por escritório no 3.º andar, com entrada pelo n.º 251 da Rua ..., que fazem parte do prédio urbano, em propriedade total, sito na Rua ..., n.º 247 a 255 e Rua ..., n.º 282 a 290-A (…).

Cláusula Segunda

(Finalidade)

l. O Local Arrendado destina-se exclusivamente ao exercício da atividade desenvolvida pela arrendatária. (…)

Cláusula Terceira

(Prazo)

1. O prazo de duração do contrato de arrendamento é de 3 (anos) anos, renovável automaticamente por igual período, salvo se alguma das partes se opuser à renovação no fim do prazo em curso, de acordo com os respetivos termos legais.

2. O presente Contrato terá início a 01 de Janeiro de 2019. (…)

Cláusula Quarta

(Renda)

1. Acordam as Partes que, nos primeiros dois anos de execução do presente contrato a renda mensal a pagar será no valor de € 15.000,00 (…) e, subsequentemente, no último e terceiro ano a renda a pagar será no valor de € 16.000,00 (…).

2. Nos termos do número anterior, a Arrendatária obriga-se a pagar a renda à Senhoria, até ao oitavo dia útil do mês anterior a que respeitar, por transferência bancária para a conta da titularidade do Senhorio a indicar pela Primeira Outorgante, ou por quem lhe suceder na propriedade e na posse do imóvel locado.

3. A renda será atualizada anualmente de acordo com o coeficiente legal, ocorrendo a primeira atualização um ano após o inicio da vigência do contrato e as seguintes, sucessivamente, após a atualização anterior.

4. A senhoria comunicará, por escrito, e com a antecedência mínima de 30 dias, o coeficiente de atualização e a nova renda dele resultante.

Cláusula Quinta

(Obras)

(…)

2. Todas as obras que, devidamente autorizadas nos termos do número anterior, forem realizadas pela Arrendatária no Local Arrendado, bem como todas as benfeitorias que nela forem introduzidas, incluindo a instalação de equipamentos, e que pela sua natureza e características, não possam ser removidas sem que tal remoção seja suscetível de provocar danos no Local Arrendado, ficarão a fazer parte integrante do Local Arrendando, não conferindo à Arrendatária o direito a qualquer indemnização findo o arrendamento e correrão, exclusivamente, por conta e risco da Arrendatária. (…)

Cláusula sétima

(Obrigações da Arrendatária)

(…)

2.º Todos os problemas que possam advir no arrendado e que respeitem ao funcionamento do estabelecimento que a Arrendatária lá vai instalar serão da sua exclusiva responsabilidade.

(…)

Cláusula Décima

(Fiadores)

Os Terceiros Outorgantes, renunciando ao benefício da excussão prévia, são fiadores da arrendatária, responsabilizando-se, solidariamente com esta, pelo cumprimento de todas as obrigações decorrentes deste contrato, seus aditamentos e renovações até a efetiva restituição do arrendado livre de pessoas e bens, pelo que declaram que a fiança que acabam de prestar subsistirá ainda que haja alterações da renda agora fixada, e mesmo depois de decorrido o prazo de duração do contrato.

(Notificações)

1. Exceto se de outro modo for previsto, (…) quaisquer comunicações (…) a realizar no âmbito do presente Contrato serão efetuadas por carta registada com aviso de receção para as moradas das Partes constantes no cabeçalho do presente contrato e ter-se-ão por realizadas na data da assinatura do aviso de receção. (…)

• AA e BB. Rua da ..., n.º 23, 3.º esquerdo, ..., ...

2. Qualquer das Partes pode, mediante notificação da outra parte efetuada nos termos da presente cláusula, alterar as moradas indicadas.

6.º A F..., Lda não pagou a renda referente ao mês de fevereiro de 2020 nem as seguintes.

7.º Em 1 de julho de 2020, a autora remeteu aos réus a carta, por estes recebida, cuja cópia se encontra junta a fls. 4 v., onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito, o seguinte:

Assunto: RENDAS EM ATRASO

Exmo(a) Senhor(a),

Na qualidade de fiadores do contrato de arrendamento, celebrado com a empresa F..., Lda (…) vimos, pela presente, comunicar a Vossas Exas, enquanto fiadores do Arrendatário, que se encontra em débito e mora o pagamento da renda dos meses de Fevereiro, Março e Abril de 2020, no valor bruto de 45.000,00 €. (…)

Solicita-se proceda ao pagamento das rendas em débito, impreterivelmente, até o próximo dia 08 de Julho.

Aproveito para informar que não se encontram pagas as rendas de maio, Junho e Julho 2020, suspensas o seu pagamento durante o período de pandemia. (…)

8.º Com data de 18 de novembro de 2020, a F..., Lda remeteu à autora a carta, por esta recebida, cuja cópia se encontra junta a fls. 7, na qual consta, além do mais que aqui se dá por transcrito, o seguinte:

Assunto: Denúncia de contrato de arrendamento não habitacional celebrado em 17/12/2018, ao abrigo e para efeitos do artigo 1098.º, n.º 3, alínea a), aplicável ex vi do artigo 1110.º, n.º 1, ambos do Código Civil. (…)

Na condição de arrendatária do imóvel correspondente a prédio urbano composto por divisões suscetíveis de utilização independentes sitas no r/c (lojas), (…) vimos pelo presente meio comunicar a V. Ex.ª, nos termos e para efeitos do artigo 1098.º, n.º 3, alínea a), aplicável ex vi do artigo 1110.º, n.º 1, ambos do Código Civil., a denúncia do contrato de arrendamento, celebrado cm 17 de dezembro de 2018, com inicio cm 01 de janeiro de 2019, pelo que no dia 18 de Março de 2021, lhe será entregue o locado completamente desocupado de pessoas e bens.

9.º Em 5 de janeiro de 2021, a autora, por meio de mandatário, remeteu aos réus a carta, por estes recebida, cuja cópia se encontra junta a fls. 7 v., onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:

Assunto: Contrato de arrendamento Andorinha de Pedra - Imobiliária, Lda / F..., Lda datado de 17/12/2018.

Regularização de rendas em atraso. (…)

Conforme é do v/ inteiro conhecimento apenas foram regularizados os pagamentos referentes às rendas de fevereiro de 2020 (metade do valor em 27/07/2020 e a outra metade em 04/08/2020) e de março de 2020 (metade do valor em 20/08/2020 e a outra metade em08/09/2020) mantendo-se por pagar todas as rendas que, entretanto, e até ao momento atual, se venceram (de abril de 2020 a janeiro de 2021), e que importam no valor global de € 150.000,00.

Certo que V. Exas. honrarão os compromissos que contratualmente assumiram, fico a aguardar que até ao dia 31 do corrente mês promovam à regularização do indicado valor.

10.º Em 29 de novembro de 2019, a F..., Lda remeteu à autora a carta, por esta recebida, cuja cópia se encontra junta a fls. 34, na qual consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:

Acusamos a receção de v/carta datada de 22 do corrente mês. O atraso no pagamento das rendas deve-se muito à redução das vendas, causadas pelos problemas que derivaram das infiltrações de água que na loja ocorreram. Das mesmas fomos dando conhecimento nos vários e-mails que enviamos ao v/cuidado, na pessoa da Enga. CC.

Como sabem o n/seguro não assumiu a responsabilidade pelos prejuízos, por entender que os danos foram provocados por deficiências de ordem estrutural, cuja reparação /manutenção são da responsabilidade do locador.

Os prejuízos contabilizados rondam no mínimo os € 17.000,00 (dezassete mil euros), aos quais acresce ainda, perdas de exploração. Os prejuízos, estão devidamente documentados e disponíveis, caso pretendam analisá-los. Gostaríamos que tivessem os mesmos em conta, de modo a podermos efetuar a compensação desse valor, com parte das rendas em atraso.

Quanto ao pagamento do valor remanescente, iremos envidar todos os esforços para ir liquidando semanalmente.

11.º Em 27 de julho de 2020, a F..., Lda apresentou-se a um processo especial de revitalização (processo n.º 2052/20.8..., J1, Juízo de Comércio de ... da Comarca do Porto).

12.º Com data de 12 de agosto de 2020, a F..., Lda remeteu à autora a carta, por esta recebida, cuja cópia se encontra junta a fls. 5 v., comunicando-lhe, além do mais que aqui se dá por transcrito, a pendência do Processo Especial de Revitalização n.º 2052/20.8..., tendo por objeto a sua revitalização.

13.º Em 25 de janeiro de 2021, no processo n.º 2052/20.8..., foi proferida decisão (transitada em julgado) com o seguinte teor:

Homologo por sentença, nos termos do 17.º-F/7 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, o plano de revitalização da devedora F..., Lda, com sede na Rua ..., 59, em ..., constante do requerimento de 28.12.2020.

14.º De acordo com o plano de revitalização homologado, os créditos comuns reconhecidos devem ser liquidados em 60 prestações, com uma redução (perdão) de 70% e com um período de carência de 12 meses a contar da data do trânsito em julgado da sentença de homologação.

15.º O crédito da autora invocado nesta ação foi reclamado, contra a F..., Lda, no processo n.º 2052/20.8..., sendo reconhecido o valor de € 105.000,00 (capital).

16.º A F..., Lda liquidou as sete primeiras prestações previstas no plano de revitalização homologado, no valor de € 525,00 cada, conforme documentos juntos a fls. 49 e segs.

17º. A arrendatária fez a entrega do arrendado, que a Autora recebeu, na aludida data de 18/03/2021.

18.º Por documento denominado por contrato de arrendamento para fins não habitacionais, outorgado no dia 8 de Fevereiro de 2018, a chamada, F..., Lda, à data ainda sob a forma de sociedade anónima, na qualidade de segunda outorgante e arrendatários e os réus, na qualidade de fiadores e terceiros outorgantes, outorgaram com a primeira outorgante, melhor identificada no documento constante de fls. 33 a 41 e cujo conteúdo de dá por integralmente reproduzido, na qualidade de proprietária e senhoria, que deu de arrendamento à segunda outorgante a fracção autónoma designada pela letra G, com a identificação de “loja 2” do prédio urbano com entrada pelo n.º 59, da Rua ..., sita em ... e ..., que se destinou a escritório da segunda outorgante;

19.º Foi fixado o prazo de dois anos, com início em Fevereiro de 2018, termo em Janeiro de 2020 e renovável por períodos de um ano (cláusula terceira);

20.º A chamada tem o seu escritório na fracção identificada nos dois artigos anteriores pelo menos desde a data da outorga do contrato (cláusula sexta do contrato) e que é anterior à outorga do contrato identificado no ponto 5º;

21.º O imóvel identificado no ponto 5.º era da propriedade da F..., Lda, tendo sido adquirido pela autora à chamada, à data sob a forma de sociedade anónima, por contrato de compra e venda outorgado no dia 14 de Janeiro de 2011 (fls. 42 a 44)

22º. Em novembro de 2019, ocorreram inundações, tendo-se registado danos em diversos bens, sendo a água proveniente de infiltrações através da cobertura do edifício, decorrentes da perda das características impermeabilizadoras da mesma.

23º. A autora foi informada pela chamada sobre as inundações ocorridas;

24º. À data em que o contrato de arrendamento de Dezembro de 2018 foi outorgado, quer a autora, quer a chamada, quer os réus, sócios da chamada, tinham conhecimentos dos problemas de humidade e infiltrações do imóvel;

25º. A autora foi procedendo a reparações pontuais, como trocar caleiras, substituir telhas que se partiam, colocar vidros nas claraboias;

26º. Na sequência das inundações a autora solicitou à Camara Municipal ... licença para colocação de andaimes de acesso ao telhado, o que lhe foi concedido, tendo, ainda em 2019, em data não concretamente apurada e durante o ano de 2020, realizado obras de reabilitação do telhado, com colocação de um telhado novo, foram reparadas as fachadas do edifício, tendo também procedido à substituição das caixilharias das janelas.

14. Em contrapartida, o Tribunal de 1.ª instância deu como não provados os factos seguintes:

Da contestação

33º. Tendo culminado na impossibilidade por parte da F..., Lda na utilização do 2.º andar, do 3.º andar e ainda do sótão, tal era o estado de degradação.

34º. Vendo-se obrigada a arrendar outro espaço para instalar o escritório da sociedade, com uma renda mensal de 900,00€.

41º. Posto que, desde o ano de 2019 que a F..., Lda se viu privada do uso parcial do locado, só e unicamente usufruía de 3 divisões das 6 de que era arrendatária.

44º. Não provado que: a autora quando outorgou o contrato comprometeu-se de “que iria proceder à reabilitação do locado, devido ao seu estado de degradação e de forma, a que naquele inverno já não sofresse mais nenhuma inundação.”

45º. Donde se conclui que a Autora tinha também perfeita consciência que as obrigações que pendiam sobre a arrendatária previstas na cláusula quarta do contrato, seriam desrazoáveis, desadequadas e desproporcionais tendo em conta o mau estado do imóvel, e a inutilização de 50% do locado descrito na cláusula primeira.

49.º: provado apenas que a chamada denunciou o contrato.

Da réplica

20º. Os réus sempre transmitiram à autora que quando o prédio carecia de reparações, era a arrendatária quem as realizava.

21º. Nas negociações para a venda do imóvel à autora o réu referiu que tinha feito uma grande obra na cave, com a realização de paredes de betão armado e com drenagem de águas por meio de bombas, e que na qualidade de arrendatária efetuava, quando necessário, a limpeza do telhado e as manutenções quando alguma telha partia.

38º. Os danos verificados no telhado apenas afetaram o piso superior.

15. O acórdão recorrido julgou improcedente a impugnação da matéria de facto.

O DIREITO

16. O artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas é do seguinte teor:

1. — Com a sentença de homologação produzem-se as alterações dos créditos sobre a insolvência introduzidas pelo plano de insolvência, independentemente de tais créditos terem sido, ou não, reclamados ou verificados.

2. — A sentença homologatória confere eficácia a quaisquer actos ou negócios jurídicos previstos no plano de insolvência, independentemente da forma legalmente prevista, desde que constem do processo, por escrito, as necessárias declarações de vontade de terceiros e dos credores que o não tenham votado favoravelmente, ou que, nos termos do plano, devessem ser emitidas posteriormente à aprovação, mas prescindindo-se das declarações de vontade do devedor cujo consentimento não seja obrigatório nos termos das disposições deste Código e da nova sociedade ou sociedades a constituir.

3. — A sentença homologatória constitui, designadamente, título bastante para:

a) A constituição da nova sociedade ou sociedades e para a transmissão em seu benefício dos bens e direitos que deva adquirir, bem como para a realização dos respectivos registos;

b) A redução de capital, aumento de capital, modificação dos estatutos, transformação, exclusão de sócios e alteração dos órgãos sociais da sociedade devedora, bem como para a realização dos respectivos registos.

4. — As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência, designadamente os que votem favoravelmente o plano, contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.

5. — A sentença homologatória produz de imediato os efeitos referidos nos n.os 1 a 3, ainda que seja interposto recurso.

17. Os Réus, agora Recorrentes, AA, e mulher, BB, deduzem argumentos contra a aplicação do artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ao processo especial de revitalização — e, em consequência, a aplicação do artigo 217.º do Código da Insolvência ao caso sub judice 1.

18. Os argumentos deduzidos pelos Réus, agora Recorrentes, não colhem.

19. O artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas deve aplicar-se, ainda que indirectamente — por analogia — ao processo especial de revitalização.

20. Entre os planos de recuperação em processo de insolvência e em processo especial de revitalização há uma relação de semelhança ou de similitude, estrutural e funcional; ora,

“[t]endo em vista a similitude entre o plano de recuperação no âmbito do [processo especial de revitalização] e o plano de recuperação no âmbito do processo de insolvência ao nível da natureza jurídica e das funções, mais do que simplesmente não ser incompatível com o regime do [processo especial de revitalização], a norma do artigo 217.º, n.º 4, apresenta-se como a regra própria ou adequada para regular a situação” 2.

21. Esclarecida a aplicação, por analogia, do artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ao caso sub judice, deve fazer-se duas distinções:

22. Em primeiro lugar, deve distinguir-se a dívida de 105 000 euros, reclamada pela Autora, agora Recorrente, e reconhecida no processo especial de revitalização, e a dívida de 90 000 euros, correspondente às rendas de seis meses, vencidas depois da reclamação de créditos — a dívida de 90 000 euros, correspondente às rendas de seis meses, vencidas depois da reclamação de créditos, nunca seria afectada pelo processo especial de revitalização.

24. Em segundo lugar, em relação à dívida de 105 000 euros, reclamada pela Autora, agora Recorrente, deve distinguir-se as duas providências previstas no plano de recuperação homologado:

25. O plano prevê a redução da dívida da F..., Lda em 70%. e, em relação aos 30% restantes, prevê a aplicação de um período de carência de 12 meses “a contar da data do trânsito em julgado da sentença de homologação”, e a liquidação da dívida em 60 prestações 3.

26. Quanto aos 70% da dívida atingidos pela redução, entende-se que os Réus, agora Recorrentes, AA, e mulher, BB não podem opor à Autora, agora Recorrida, Andorinha de Pedra – Imobiliária, Lda., as providências previstas no plano de recuperação.

27. O n.º 4 do artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas determina expressamente que a redução da dívida em 70% não afecta os direitos dos credores da insolvência contra os terceiros garantes da obrigação — logo, que a redução da dívida em 70% não afecta o direito da Autora, agora Recorrida, contra os Réus, agora Recorrentes.

28. Está aqui em causa o montante dos direitos dos credores da insolvência — logo, uma providência do plano de recuperação expressamente referida no n.º 4 do artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

29. Em consequência, a Autora, agora Recorrida, pode exigir dos Réus, agora Recorrentes, como garantes, o pagamento da dívida na parte em que o seu montante foi afectado pela providência de recuperação.

30. Quanto aos 30% da dívida não atingidos pela redução, entende-se que os Réus AA, e mulher, BB podem opor à Autora Andorinha de Pedra – Imobiliária, Lda., as providências “com efeitos menos drásticos” 4 previstas no plano de recuperação.

31. Não está aqui em causa nem o montante nem (muito menos!) a existência dos direitos dos credores da insolvência — logo, não está aqui em causa nenhuma das providências do plano de recuperação expressamente referidas no n.º 4 do artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

32. Em lugar das providências típicas referidas no n.º 4, estão em causa, tão-só, a aplicação de um período de carência e a liquidação da dívida em 60 prestações.

33. Independentemente da controvérsia sobre a interpretação do n.º 4 do artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, entende-se que a Autora, agora Recorrida, não pode exigir dos garantes o pagamento imediato da dívida na parte em que o seu montante não foi afectado pela providência de recuperação.

34. Entre a Autora, agora Recorrida, e os Réus, agora Recorrentes, existia uma relação corrente de negócios 5:

I. — Os Réus, agora Recorrentes, eram sócios da M..., Lda, declarada insolvente em 2017 6, e são sócios-gerentes da Chamada F..., Lda 7.

II. — A M..., Lda., exercia a sua actividade comercial em estabelecimento instalado em imóvel da F..., Lda 8.

III. — Em 2011, a Chamada F..., Lda, “à data sob a forma de sociedade anónima”, vendeu à Autora, agora Recorrida, Andorinha de Pedra – Imobiliária, Lda., o imóvel em causa 9.

IV. — A Autora, agora Recorrida, Andorinha de Pedra – Imobiliária arrendou-o inicialmente à M..., Lda 10, e, em 2018, à F..., Lda 11.

35. Em consequência dos contratos de arrendamento, a M..., Lda. e a F..., Lda continuaram a exercer a sua actividade comercial no mesmo imóvel.

36. Os Réus, agora Recorrentes, obrigaram-se como fiadores perante a Autora, agora Recorrida, nos termos da Cláusula décima do contrato de arrendamento:

Os Terceiros Outorgantes, renunciando ao benefício da excussão prévia, são fiadores da arrendatária, responsabilizando-se, solidariamente com esta, pelo cumprimento de todas as obrigações decorrentes deste contrato, seus aditamentos e renovações até a efetiva restituição do arrendado livre de pessoas e bens, pelo que declaram que a fiança que acabam de prestar subsistirá ainda que haja alterações da renda agora fixada, e mesmo depois de decorrido o prazo de duração do contrato.

37. Existindo uma relação corrente de negócios, o princípio da boa fé devia aplicar-se, com uma intensidade acrescida ou reforçada, às relações entre a Autora, agora Recorrida, e os Réus, agora Recorrentes.

38. O caso está em averiguar se o comportamento da Autora, agora Recorrida, ao exigir dos garantes o pagamento imediato da dívida na parte em que o seu montante não foi afectado pela providência de recuperação, é um comportamento conforme ao princípio da boa fé.

39. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Janeiro de 2019 — processo n.º 1563/16.4T8AMT.P1.S2 12 — chama a atenção para que “[o] princípio da relatividade dos contratos, consagrado no artigo 406.º, n.º 2 do Código Civil, não é um princípio absoluto e hermético” e, para que, em consequência,

“… a eficácia vinculativa do plano de revitalização não tem de se confinar, de forma absoluta, apenas aos sujeitos daquela estrutura negocial (os credores e o devedor ‘revitalizado’), ignorando completamente aqueles que prestam garantias pessoais ao devedor”.

40. Entre os desvios ao princípio da relatividade estão os contratos com eficácia de protecção para terceiros 13.

41. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Janeiro de 2019 constata que “[se] encontram na ordem jurídica várias figuras contratuais, em cujo regime legal se identifica uma eficácia de proteção para terceiros (como nos contratos que permitem o gozo ou o aproveitamento de faculdades de um bem de terceiro)” e que os argumentos deduzidos em favor de uma eficácia de protecção para terceiro dos contratos (de alguns contratos) são comparáveis aos argumentos deduzidos em favor de alguma eficácia em relação aos garantes do plano de revitalização:

“… a ideia de irradiação externa do plano de revitalização não é estranha ao legislador do CIRE, quando estabelece os limites que estão expressos no artigo 217.º, n.º 4”.

42. Ora, em concreto, considera-se que o comportamento da Autora, agora Recorrida, conflitua com o princípio da boa fé, como concretizado seja no princípio da confiança seja no princípio da prioridade da substância sobre sobre a forma (da primazia da materialidade subjacente).

43. Os factos dados como provados são adequados e suficientes para que se conclua que o comportamento da Autora, agora Recorrida, Andorinha de Pedra — Imobiliária, Lida., constituiu nos Réus, agora Recorrentes, AA e mulher, BB uma situação (objectiva) de confiança em que o montante da dívida afectado fosse pago nos prazos previstos pelo plano de revitalização 14.

44. Em primeiro lugar, a Autora, agora Recorrida concordou com as providências do plano de recuperação da Chamada F..., Lda., por que se previa a aplicação de um período de carência e a liquidação da dívida em 60 prestações.

45. O princípio de que os credores que não sejam afectados estão impedidos de votar o plano de recuperação 15 tem como correlato — lógico — que os credores que votam o plano estejam impedidos de frustrar a sia finalidade, para não serem afectados pelo plano que votaram 16:

“Impedir a extensão das modificações dos créditos aos garantes levaria, em alguns casos, a consentir num abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium. Não obstante o seu voto ser favorável ou mesmo decisivo para a aprovação do plano de recuperação, dificilmente algum credor com garantia pessoal se empenharia na recuperação; havendo a possibilidade de satisfazer o seu crédito incondicionalmente às custas do garante, ele concentrar-se-ia na perseguição do garante, o que é contraditório” 17.

46. Em segundo lugar, depois da homologação do plano de recuperação, a Autora, agora Recorrida, comportou-se de acordo com a finalidade do período de carência.

47. Enquanto durou o período de carência, a Autora, agora Recorrida, não exigiu aos Réus, agora Recorrentes, nem o pagamento da parte em que o montante da dívida foi afectado pelas providências do plano de recuperação — 70 ‰ —, nem, tão-pouco, o pagamento da parte em que o montante da dívida não foi afectado pelas providências do plano — 30%.

48. Em terceiro lugar, depois do período de carência, a Autora, agora Recorrida, comportou-se de acordo com a finalidade do plano de liquidação da dívida em 60 prestações.

49. O facto dado como provado sob o n.º 16 é do seguinte teor:

“A F..., Lda liquidou as sete primeiras prestações previstas no plano de revitalização homologado, no valor de € 525,00 cada […]”.

50. Finalmente, sobre o requisito da imputação da confiança:

51. A Autora, agora Recorrida, conhecia ou devia conhece a relação entre a Chamada F..., Lda., e os Réus, agora Recorrentes, seus sócios, gerentes e fiadores.

52. Como conhecesse ou devesse conhecer a relação entre a Chamada F..., Lda., e os Réus, agora Recorrentes, a Autora, agora Recorrida, tinha ou devia ter consciência de que os Réus, agora Recorrentes, confiavam ou podiam confiar no pagamento de parte da dívida nos prazos previstos pelo plano de revitalização 18.

53. Em termos em tudo semelhantes aos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Janeiro de 2019 — processo n.º 1563/16.4T8AMT.P1.S2 —, dir-se-á que

“… a moratória ou o novo prazo de pagamento que os credores concedem ao devedor com a aprovação do plano de revitalização deverá aproveitar aos terceiros que pessoalmente garantem o crédito, enquanto o devedor continuar a cumprir o plano acordado.

Não existindo, no caso concreto, […] incumprimento de obrigações […], deverá entender-se que a aprovada modificação temporal aproveita aos terceiros que garantem o cumprimento das obrigações, sobretudo porque a dilação do tempo de execução da obrigação modificada não é irrazoavelmente excessivo ou desequilibrado face à capacidade económico-financeira dos sujeitos envolvidos (credor e garantes)”.

54. Em todo o caso, ainda que os factos dados como provados não fossem suficiente para que se concluísse que o comportamento da Autora, agora Recorrida, conflituava com o princípio da confiança, sempre seriam suficientes para que se concluísse que conflituava com o princípio da prioridade da substância sobre a forma (da primazia da materialidade subjacente) 19.

55. O objectivo que as partes pretendiam atingir negocialmente 20 com o plano de revitalização e, em especial, com a moratória estava em proporcionar ao devedor uma oportunidade razoável para cumprir, ainda que parcialmente, as suas obrigações.

56. Ora, em concreto, o comportamento da Autora, agora Recorrida, ao exigir dos Réus, agora Recorrentes, o cumprimento imediato das obrigações que a devedora, agora Chamada, estava a cumprir nos prazos previstos pelo plano de revitalização frustra o objectivo que as partes pretendiam atingir negocialmente.

Em suma:

I. — a Autora, agora Recorrida, pode exigir aos Réus, agora Recorrentes, o montante das dívidas vencidas depois da reclamação de créditos — in casu, de 90000 euros;

II. — a Autora, agora Recorrida, pode exigir aos Réus, agora Recorrentes, o montante das dívidas vencidas antes da reclamação de créditos, desde que tenham sido afectadas pelas providências do plano de revitalização referidas no n.º 4 do artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresasin casu, de 70% de 105.000 euros, logo de 73.500 euros;

III. — a Autora, agora Recorrida, não pode exigir aos Réus, agora Recorrentes, o montante das dívidas vencidas antes da reclamação de créditos, desde que só tenham sido afectadas por providências do plano de recuperação diferentes das referidas no n.º 4 do artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, concede-se parcial provimento ao recurso, condenando-se os Réus AA, e mulher, BB, a pagar à Autora Andorinha de Pedra – Imobiliária, Lda., a quantia de 163500 euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a citação.

Custas por Recorrentes e Recorrida, na proporção do respectivo decaimento.

Lisboa, 23 de Abril de 2025

Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

Arlindo Oliveira

Maria de Deus Correia

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1. Cf. conclusões 27 a 44 do recurso de revista.

2. Catarina Serra, Lições de direito da insolvência, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2025, págs. 580-581.

3. Cf. facto dado como provado sob o n.º 14.

4. Expressão de Catarina Serra, Lições de direito da insolvência, cit., pág. 581.

5. Sobre o conceito de relação corrente de negócios, vide por todos João Baptista Machado, “Tutela da confiança e venire contra factum proprium”, in: Obra dispersa, vol. I — Direito privado. Direito internacional privado, Scientia Juridica, Braga, 1991, págs. 345-423 (380-384); Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Livraria Almedina, Coimbra, 1989, págs. 513-518; ou Manuel Carneiro da Frada, Tutela da confiança e responsabilidade civil, Livraria Almedina, Coimbra, 2004, págs. 574-579.

6. Cf. fundamentação da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

7. Cf. factos dados como provados sob os n.ºs 3 e 4.

8. Cf. fundamentação da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

9. Cf. facto dado como provado sob o n.º 21.

10. Cf. fundamentação da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

11. Cf. facto dado como provado sob o n.º 5.

12. Cujo conteúdo é objecto de “particular destaque” em Catarina Serra, Lições de direito da insolvência, cit., pág. 579 (nota n.º 985).

13. Sobre os contratos com eficácia de protecção para terceiros, vide por todos Carlos Alberto da Mota Pinto, Cessão da posição contratual, Livraria Almedina, Coimbra, 1982 (reimpressão), págs. 419-426; António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Livraria Almedina, Coimbra, 1997 (reimpressão), págs. 619-625; Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Livraria Almedina, Coimbra, 1989, págs. 518-535; João Calvão da Silva, Responsabilidade civil do produtor, Livraria Almedina, Coimbra, 1990, págs. 302-309; Jorge Ferreira Sinde Monteiro, “Responsabilidade por informações face a terceiros”, in: Boletim da Faculdade de Direito [da Universidade de Coimbra], vol. LXXIII (1997), págs. 35-60; Manuel Carneiro da Frada, Contrato e deveres de protecção, Coimbra, 1994, págs. 103-106; E. Santos Júnior, Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, Livraria Almedina, Coimbra, 2003, págs. 166-168; Manuel Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Livraria Almedina, Coimbra, 2004, págs. 115-180.

14. Sobre o princípio da confiança, vide por todos João Baptista Machado, “Tutela da confiança e venire contra factum proprium”, cit., págs. 345-423, ou "A cláusula do razoável", in: Obra dispersa, vol. I — Direito privado. Direito internacional privado, Scientia Juridica, Braga, 1991, págs. 457-621; António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Livraria Almedina, Coimbra, 1997 (reimpressão) págs. 1234-1251; Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, cit., págs. 478-508; Manuel Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Livraria Almedina, Coimbra, 2004, págs. 345 ss.; ou Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil”, in: Boletim da Faculdade de Direito [da Universidade de Coimbra] – Volume comemorativo do 75.º tomo, Coimbra, 2003, págs. 269-322.

15. Cf. artigo 212.º, n.º 2, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

16. Cf. Catarina Serra, Lições de direito da insolvência, cit., pág. 583.

17. Cf. Catarina Serra, Lições de direito da insolvência, cit., págs. 582-583.

18. Sobre a imputação da confiança, como requisito da tutela, vide por exemplo Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 177-179.

19. Sobre o princípio da primazia da materialidade subjacente, vide por todos António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, cit., págs. 1252-1257.

20. Expressão do artigo 16.º, alínea b), da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais.