IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
DOAÇÃO
MÁ FÉ
Sumário


Sumário1:
Há lugar a recurso de revista do acórdão do Tribunal de Relação que conheça da impugnação da matéria de facto se a questão suscitava se prende com o problema de saber se na apelação foram cumpridos os ónus de impugnação do art.º 640.º e se o Tribunal exerceu os poderes de alteração da matéria de facto com observância do art.º 662.º do CPC.
Na impugnação pauliana de acto gratuito a boa fé nunca impede a procedência do pedido.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. A 12 de julho de 2018, o Novo Banco, S.A. instaurou acção dita de impugnação pauliana contra AA, BB, CC, DD, e EE.

Foi, então, formulado o seguinte pedido:

“a) Ser decretada a ineficácia, em relação ao Autor, da alienação dos imóveis referidos e devidamente identificados no artigo 49.º supra, condenando-se os Reús a reconhecerem o direito ao Autor de executar e prosseguir com a penhora destes imóveis, até integral e efetivo pagamento das quantias peticionadas nas ações executivas para pagamento de quantia certa que contra o 1.º Réu correm termos, com todas as devidas e legais consequências;

b) Serem os Réus condenados em custas.”

Para tal alegou, em síntese, que o 1º Réu foi garante como avalista de dívidas da sociedade S..., Lda, já declarada insolvente, de que foi sócio-gerente, as quais, não pagas, são objeto de acções executivas, nas quais o próprio também é demandado.

Porém, o 1º Réu dispôs gratuitamente de património seu, identificado na p.i., a favor dos ora restantes Réus, seus familiares, com o objetivo de impedir a satisfação do crédito, por esses actos de disposição depauperarem tal património, que serviria para responder pela liquidação das dívidas, pelas quais é pessoalmente responsável.

2. Na sua contestação, os Réus primitivos excepcionaram a caducidade do direito do Autor e o litisconsórcio relativo a todos os beneficiários dos actos de doação ora postos em causa; também impugnaram a generalidade da matéria de facto constitutiva da causa de pedir, alegando também, além do mais, que o Autor não explicita suficientemente os pressupostos em que baseia a existência dos créditos por si peticionados (quer na presente acção, quer na instância executiva), designadamente não esclarecendo a que título foram preenchidas as livranças que foram dadas à execução, designadamente quais os incumprimentos contratuais verificados, no âmbito dos diversos financiamentos que ao longo dos anos foram concedidos à sociedade.

Alegou, também, que o Banco não executou ainda a garantia que tem sobre o imóvel propriedade do Réu, o que já poderia ter feito, sem necessidade de por em causa os atos de disposição a terceiros que, aliás, estão de boa-fé. Pugnou, ainda, pela condenação do Autor como litigante de má-fé, por este ter a obrigação de verificar os factos em que baseou as suas alegações, tendo, assim, deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar.

Terminou formulando diversos pedidos, todos, porém, relacionados com as consequências da improcedência total da acção.

3. Chamado à demanda, o interveniente principal FF deduziu a sua própria contestação, na qual, em síntese, pôs em causa o montante do crédito invocado pelo Autor, o preenchimento das livranças que titulam a dívida do 1º Réu e a respectiva data de vencimento, posterior ao acto ora impugnado – alegando, neste concreto, que, à data da doação, não existia incumprimento do contrato.

Alegou, também, que o 1º Réu, enquanto doador, reservou para si o usufruto dos imóveis, o qual, sendo direito real com valor patrimonial, é também penhorável; e o mesmo é detentor de um conjunto de património mobiliário, igualmente susceptível de responder pelas alegadas dívidas, que o Banco poderia ter dado à execução.

Termina pedido a improcedência total da acção.

4. Houve resposta.

5. Realizou-se audiência prévia, após incidentes de chamamento à demanda, na qual, além do mais, se julgou improcedente a excepção de caducidade deduzida pelo 1º Réu e se proferiu despacho de identificação do objecto do litígio e temas da prova.

6. Foi prolatada Sentença a 20.02.2024 que concluiu com a seguinte Decisão:

“Pelo exposto, o Tribunal julga a presente acção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolve todos os Réus do pedido.

Custas pela Autora, dispensando-se o pagamento do remanescente devido a título de taxa de justiça (artigos 527º, n.º 2 do C.P.C. e 6º, n.º 7 do R.C.P.).

Registe e notifique.”

7. É desta decisão que foi interposto recurso pela A., a qual apresentou as suas Alegações, tudo datado de 02.04.2024, terminando a Recorrente com o pedido de revogação da sentença recorrida, concretamente:

Face ao exposto, e salvo o devido respeito, que é muito, considera o Recorrente que esta última decisão não fez correta nem adequada aplicação do Direito aos factos inequivocamente valorados pelo Tribunal a quo, verificando-se nomeadamente manifesto erro quanto à apreciação da prova documental e testemunhal, devendo, portanto, ser revogada e substituída que considere verificados os elementos constitutivos do direito invocado pelo Autor, sendo os Réus condenados no pedido”.

São estas as Conclusões (que importa transcrever para melhor se poder apreciar o recurso de revista e em que os sublinhados – nossos – permitem, desde já, destacar elementos a considerar adiante):

I. O tribunal a quo, concluiu erradamente, ao valorar prova documental e testemunhal, olvidando que a verdade processual, não é nem pode ser uma verdade ontológica.

II. Resignarmo-nos a uma verdade “possível” no que toca ao preenchimento dos elementos constitutivos de direito invocado pelo Autor, excluindo o acesso desta e um expediente de última ratio.

III. O “erro notório na apreciação da prova” constitui uma insuficiência que se torna flagrante no texto e no contexto da decisão recorrida, verificando-se distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, que se traduziram subsequentemente numa apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta.

IV. Sendo a impugnação pauliana um instituto que visa garantir ao credor que à mesma recorre a possibilidade de fazer regressar ao património do devedor bens que dele saíram em prejuízo da consistência dos seus créditos, de tal forma que os possa eventualmente executar no património dos adquirentes, não pode por erro na apreciação de prova, resultar tal ação improcedente.

V. Encontrando-se plenamente demonstrado pelo ora Recorrente, a anterioridade do seu crédito face ao acto impugnado, que consistia no requisito que mais dúvidas causou no tribunal a quo., deve este primeiro requisito considerar-se verificado pelo tribunal ad quem.

VI. Resultando demonstrado que quanto ao segundo requisito, andou mal o douto tribunal ao considerar que quedou provado “com toda a segurança, a existência de outro património penhorável e de valor suficiente para responder, pelo menos em parte, pela satisfação das dívidas” (sublinhado nosso).

VII. Pois por um lado, o “pelo menos em parte” entendido como suficiente pelo douto tribunal para considerar preenchido este segundo requisito viola gravemente o escopo deste artigo, do próprio instituto e do espírito do legislador.

VIII. Pois o que prevê o art. 610.º do CC, na sua alínea b) é que se existem actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito podem ser impugnados pelo credor, se para além da verificação do primeiro requisito, que já verificámos e que corresponde à alínea a), resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade. (sublinhado nosso)

IX. E no caso sub judice, dúvidas não restam que ao dissipar para outra esfera jurídica o património imobiliário de que era proprietário e que era, com elevado grau de certeza, suficiente para a satisfação dos credores, através da doação dos mesmo a familiares seus, impossibilitou e/ou agravou indubitavelmente a possibilidade dos credores, nomeadamente do Autor ver os créditos perante o 1.º Réu ressarcidos.

X. Não tendo, tão pouco os réus logrado demonstrar a existência de outros bens que à data do acto impugnado fossem efetivamente aptos à satisfação dos créditos do Autor e aqui Recorrente!

XI. E por fim quando ao terceiro e último requisito, por ser um acto gratuito (doação), não tinha de quedar demonstrado a má fé por parte do devedor e do terceiro, apesar de ainda assim ter resultado inequívoca a sua existência.

XII. Assim sendo, tendo quedado cabalmente demonstrado o erro de julgamento, no que toca a apreciação da prova, nomeadamente a documental, e encontrando-se seguramente preenchidos os requisitos do art. 610.º CPC, deve a considerar-se procedente por provada a ação de impugnação pauliana. “

8. Os Recorridos identificados em 1) apresentaram Contra-Alegações a 22.04.2024, concluindo:

“66º Nos termos do art.º 612º do Código Civil a sentença proferida está correcta seja em termos de matéria de facto dada como provada e não provada,

67º Nomeadamente e entre todos os outros aspectos focados, por falta de verificação da má-fé dos Réus,

68º Por que não obstante os contratos de financiamento serem anteriores à doação, não existe má fé,

69º Existiam à data muitos outros bens de valor superior ao suposto crédito, 70º Cujo valor exacto (o do crédito) não foi demonstrado pelo Autor,

71º Assim como todos os factos considerados como não provados por manifesta e evidente falta de prova,

72º Ou seja, a falta dos requisitos legais necessários para que a má fé procedesse e a impugnação pauliana tivesse vencimento,

73º Pelo que deve manter-se na integra a sentença recorrida e, 74º Ser negado provimento ao recurso”.

9. O Recorrido identificado em 2) apresentou Contra-Alegações a 23.04.2024, concluindo pelo acerto da decisão recorrida, porque o património do 1º Réu, à data da doação (18.07.2013) era superior ao valor da dívida reclamada pelo credor.

Mais requereu, a título subsidiário, a ampliação do recurso nos termos do n.º 2 do art.º 636º e 640º, n.º 3 do CPC, para que fique a constar da matéria assente:

- o valor do usufruto constituído a seu favor por ocasião da doação que constitui a causa de pedir nos presentes autos;

- o montante do crédito da recorrente que se mostra o alegado nos art.ºs 41 a 43º e 46º a 48 da contestação.

10. O Tribunal da Relação conheceu do recurso, tendo identificado como seu objecto:

- Da impugnação da decisão da matéria de facto;

- Dos pressupostos da impugnação pauliana;

- Da extensão do recurso, nos termos dos arts. 636º n.º 2 e 640º n.º 2, ambos do CPC.

11. E veio a proferir acórdão que culmina com o seguinte segmento dispositivo:

“Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar totalmente procedente a apelação, revogando a Sentença recorrida, que se substitui pela seguinte:

1) Decreta-se a ineficácia, em relação à Autora, da doação dos seguintes imóveis:

a) Fração autónoma designada pela letra “J”, correspondente ao 5.º andar, habitação, estacionamentos n.ºs 9 e 9.º-A e arrecadação n.º 1, do prédio urbano sito na Av. ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de..., sob o n.º ..27, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..25;

b) Fração autónoma designada pelas letras “AJ”, correspondente ao 3.º andar direito, habitação, do prédio urbano denominado Lotes n.ºs 7, 9 e 11, sito na Urbanização ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..43, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...42.

2) Condenam-se os Réus a reconhecerem o direito da Autora de executar e prosseguir com a penhora destes imóveis, até integral e efetivo pagamento das quantias peticionadas nas ações executivas para pagamento de quantia certa que contra o 1.º Réu correm termos, conforme factos assentes sob os números 5), 10), 14), 18), 24) e 29), com todas as devidas e legais consequências;

Custas a cargo dos Réus.

A responsabilidade pelas custas da apelação recai na totalidade sobre os recorridos.

Notifique e, oportunamente, remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º do CPC).”

12. Não se conformando com o aresto, dele apresentaram recurso de revista os RR., primitivos e o interveniente, formulando as conclusões que se transcrevem.

12.1. Recurso dos primitivos RR:

a) O Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa não pode proceder porque alterou a matéria de facto provada sob os números 44 e 45 passando estes a não provados;

b) Sendo que nos termos do artigo 662º do Cód. Proc. Civil, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” mas;

c) A Recorrente inicial (Novo Banco) procurou em sede de recurso alterar a verdade dos factos considerados provados e não provados que levou à sentença de absolvição dos Réus.

d) O que está escrito nos documentos com os números 12, 13 e 14 e 15 a 22 da contestação do Réu FF, pese embora terem sido emitidos em 31 de Janeiro de 2016, ou seja, em data posterior à doação de bens, que recorde-se, foi celebrada em 18 de Julho de 2013 e, em causa nestes autos;

e) Esses mesmos documentos são referentes à totalidade do património do Recorrente AA a essa mesma data de 18 de Julho de 2013, a data da doação, veja-se com atenção as datas a que se referem esses mesmos extractos:

Está escrito no documento número 12 queé referenteao ano de2013 que, menciona o valor depositado nessa data, a 31 de Dezembro de 2013;

Está escrito no documento número 13 queé referenteao ano de2014 que, menciona o valor depositado nessa data, a 31 de Março de 2014;

Está escrito no documento número 14 queé referenteao ano de2014 que, menciona o valor depositado em 31 de Junho de 2014.

Os documentos têm e devem ser lidos com atenção, incluindo as datas a que se reportam;

f) Foi feita prova nos termos do artigo 610º do Cód. Civil, no sentido que, não obstante as doações feitas, o Recorrente tinha outro património, vasto e quantificável, que, por si só, era superior aos bens doados;

g) O relatório pericial referente à avaliação e valoração dos bens imóveis do Recorrente que, não obstante o relatório pericial ter sido elaborado na pendência do processo judicial, também aqui numa data posterior à doação, uma leitura atenta da página 2 desse relatório, tem de ser tido em conta que o resultado dessa peritagem, os valores nele mencionados quanto ao património imobiliário do Recorrente é à data de Dezembro de 2013;

h) Pelo que a convicção do Tribunal de primeira instância está correcta e, a alteração da matéria de facto que é feita no Acórdão recorrido é destituída de razão e de fundamento.

i) Esteve mal o Tribunal da Relação quando se pronuncia sobre bens imóveis que o Recorrente tinha e se estavam ou não onerados com outros processos judiciais, porquanto se havia, ou não, processos judiciais registados na respectiva inscrição da Conservatória do Registo Predial sobre esses imóveis, é uma questão que não devia nem tinha de ser observada pelo Tribunal da Relação como o fez porque, o que está no registo predial, são factos novos nunca anteriormente invocados e, não foi matéria invocada pelo então Recorrente Novo Banco;

j) Nem consta das suas conclusões de Recurso;

k) Pelo que estamos perante um caso evidente de excesso de pronúncia por parte do Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão que aqui se recorre, até porque;

l) A convicção do Tribunal de primeira instância não se baseou apenas e só na prova documental, por si só, logo bastante esclarecedora mas, de toda e, no seu conjunto (globalidade), prova produzida;

m) Até porque nas alegações do Banco Autor, aqui Recorrido que, ao tempo, colocou em causa a matéria de facto dada como provada sem especificadamente ter indicado qual, que nem podia, porquanto os documentosmencionados não foram, em tempo oportuno, impugnados nos termos do artigo 444º do Cód. Proc. Civil;

n) Tanto assim é que o Tribunal recorrido não demonstra nem invoca ter procedido oficiosamente à alteração da matéria de facto que apenas poderia ter feito nos casos taxativamente previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do art.º 662º do Cód. Proc. Civil ou quando o Tribunal recorrido, ou seja, o de Primeira Instância, tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova ou tenha considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente;

o) O que não aconteceu, pelo que, fora destes normativos, apenas poderia tê-lo feito por iniciativa dos recorrentes sobre quem recai o ónus de impugnação nos termos previstos no art.º 640º do Cód. Proc. Civil, cfr. Acórdão desse douto Tribunal 08.09.2021, proferido no processo n.º 1721/17.4T8VIS-A.C1.S1;

p) Que o Banco Autor eaqui Recorrido, nãodeu cumprimento aesse ónus, verificando-se isso mesmo através das conclusões do seu recurso, porquanto só invocou o “erro notório” naapreciação daprova, massem indicar qual ou quais os concretos pontos de facto que padeciam desse vício porque, “São as conclusões que delimitam o objeto do recurso, não podendo o Tribunal “ad quem” conhecer de questão que delas não conste” – Acórdão desse douto Tribunal de 6 de Fevereiro de 2018, processo número 4691/16.2T8LSB.L1.S1, publicado no Diário da República;

q) Nenhum facto em concreto foi alegado pelo aqui Recorrido como tendo estado erradamente considerado como provado ou como não provado e os documentos que invocou em sede de recurso, os mesmos tinham valor probatório pleno porque nunca foram impugnados nos termos legais;

r) Assim, a matéria de facto nunca poderia ter sido alterada. A alteração da matéria de facto que agora se verificou feita no Acórdão do Tribunal daRelação deLisboa,salvo melhor opinião,violoudeforma clara o art.º 640º, n.º 1 e 2, e o art.º 662º, n.º 1 ambos do Cód. Proc. Civil, por esse facto, agora foi alvo de uma errada interpretação e aplicação do artigo 610º a) do Cód. Proc. Civil, porque não houve uma diminuição do património do Recorrente de forma a não poder cumprir as obrigações;

s) Os factos dados como provados com os números 23, 28, 31, 38, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46 e 47 são representativos do património do Réu á data da doação;

t) A prova testemunhal da Dra. GG, funcionária do Banco, claramente esclarece que pelo contrato denominado “crossdefault” e com base no “protocolo” em caso de incumprimento da empresa mutuada, a S..., Lda., ao valor que estivesse em dívida, tinha de ser descontado o valor proveniente da venda do bem locado, o imóvel precisamente objecto desse contrato, factos provados com os números 33, 34, 35 e 36, porque a Recorrida pretendeu sempre escamotear o teor dosdocumentospor si juntosnaP. I., nomeadamente denominado “protocolo” datado de 6 de Agosto de 2007, ou seja, do produto da venda do imóvel, após o Besleasing e Factoring ser ressarcido do montante que estivesse em dívida asi, o restante era para pagar a dívida ao Credor BES (Recorrido) de que o Recorrente era avalista;

u) Nos pontos números 38 e 39 da matéria de facto dada como provada, o Banco Autor após ter o imóvel na sua posse, vendeu-o cfr. registo predial datado de 4 de Janeiro de 2019, mas não prestou contas referente ao produto dessa venda, “protocolo”, facto número 36 considerado provado e;

v) O valor proveniente da venda do sobredito imóvel que seria para abater à dívida cfr. facto provado número 36 e tinha contratualmente (“protocolo”) a obrigatoriedade através da cláusula denominada “cross default” referente ao financiamento número .......47 de ter liquidado os montantes que estivessem em dívida e que fossem da responsabilidade do Recorrente AA, como provado nos pontos números 33, 34, 35 e 36 dos factos provados;

w) Este “protocolo” é válido e os factos provados, têm de ser aplicados;

x) Tão pouco, se verifica o requisito da má-fé, necessário e imprescindível para poder proceder um processo de impugnação pauliana, artigo 610º Cód. Proc. Civil, como é este o caso, pelo que a falta dos requisitos legais necessários para que a má fé procedesse e a impugnação pauliana tivesse vencimento cfr. acórdão recente de 31 de Outubro de 2024 do Tribunal da Relação de Guimarães processo número 6759/23.0T8GMR.G1.”

12.2. Recurso do interveniente:

a) O Acórdão recorrido alterou a matéria de facto, dando os factos provados sob os n.ºs 44 e 45 pela 1ª instância como não provados;

b) Para tanto, invoca a análise dos documentos 12 a 14 e 15 a 22, concluindo que: “sendo as datas documentadas diversas da pressuposta no facto em apreço – 18.07.2013 -, resulta destruída a convicção sentenciada”;

c) Porém a convicção do Tribunal de 1ª instância não se baseou apenas e só na prova documental, mas sim no conjunto da prova produzida, analisada critica e objetivamente, e especificamente relativamente a estes factos nas declarações de parte e no depoimento de HH, antigo funcionário do “Banque Privée”;

d) O douto Tribunal recorrido não refere ter procedido à audição das declarações de parte e da prova testemunhal, tendo procedido à alteração da matéria de facto apenas e só com a análise da prova documental, análise essa que se revela errada de uma simples leitura desses documentos;

e) Mais o Tribunal recorrido não invoca ter procedido oficiosamente à alteração da matéria de facto;

f) A Relação de Lisboa, só pode alterar oficiosamente a matéria de facto no caso das alíneas a) a c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC ou quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova ou tenha considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente, fora deste contexto apenas pode fazê-lo por iniciativa dos recorrentes sobre quem recai o ónus de impugnação nos termos previstos no art.º 640º do CPC (vd. Acórdão desse douto Tribunal 08.09.2021, proferido no processo n.º 1721/17.4T8VIS-A.C1.S1);

g) A recorrente, aqui recorrida, não deu cumprimento a esse ónus, bastando uma leitura perfunctória das conclusões do seu recurso, para tal se constatar, tendo- se limitado a invocar o “erro notório na apreciação da prova, mas sem indicar qual ou quais os concretos pontos de facto que padeciam desse vício;

h) “São as conclusões que delimitam o objeto do recurso, não podendo o Tribunal “ad quem” conhecer de questão que delas não conste” – Acórdão desse douto Tribunal de 06.02.2018, prolatado no processo: 4691/16.2T8LSB.L1.S1, publicado no Diário da República;

i) Salvo melhor entendimento, a recorrida, nas suas conclusões do recurso que interpôs para o Venerando Tribunal da Ralação de Lisboa, limitou-se na conclusão III a invocar o erro notório na apreciação da prova.

j) Ora, só existe erro notório na apreciação da prova quando resulta do texto da decisão recorrida que se retirou de um dado facto provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras de experiência comum;

k) Não tendo, contudo, a aqui recorrida indicado qual o(s) facto(s) que foi dado como provado e que do texto da sentença resulte uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadoras das regras da experiência comum;

l) Ao invés, referiu apenas no ponto 11 da sua motivação que relativamente aos factos considerados provados “nos arts 40 a 45 da Fundamentação dúvidas se levantam se tais factos atentos o valor probatório de tais documentos simples …”;

m)Não tendo a recorrida no seu recurso para o TRL dado cumprimento ao ónus constante do art.º 640º do CPC, deveria o recurso ter sido liminarmente rejeitado quanto à alteração da matéria de facto;

n) Ao ter apreciado a matéria de facto, o douto Tribunal da Relação de Lisboa, violou o disposto no art.º 640º, n.ºs 1 e 2, e o art.º 662º, n.º 1, do CPC, por indevida aplicação.”

13. A A. respondeu em contra-alegações, onde se conclui:

A. Vieram os Réus recorrer do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, alegando, em síntese, que “não podia o Tribunal da Relação ter alterado a matéria de facto dada como provada da forma como o fez” e que “o Tribunal labora em manifesto erro na análise dos documentos (…)”.

B. Os poderes do Supremo Tribunal de Justiça, em sede de apreciação/alteração da matéria de facto, são muito restritos, existindo situações em que a mesma é possível, pelo que cumpre verificar se estamos perante alguma dessas situações.

C. Em regra, apenas está cometida ao Douto Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação de questões de direito (conforme dispõe o art.º 682.º, n.º 1 CPC).

D. Contudo, mesmo que a invocada restrição não seja absoluta, sempre se dirá que o controlo da aplicação da lei adjetiva em qualquer das tarefas destinadas à enunciação da matéria de facto provada e não provada, nos termos postulados pelo art.º 674.º, n.º 1, al. b) do CPC, se encontra balizado pelo disposto no art.º 662.º, n.º 4, aplicável às situações em que simplesmente está em causa a formação da convicção, por parte do Tribunal da Relação, a partir de meios de prova sujeitos a livre apreciação, casos em que não cabe recurso para o STJ.

E. Que é precisamente o caso que temos sob apreciação!

F. Pelo exposto, dúvidas não subsistem de que o presente recurso não deverá ser admitido, porquanto está em causa uma decisão (neste caso, o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa) que versa sobre a apreciação da matéria de facto, nos termos estabelecidos pelo n.º 3 do artigo 674.º CPC.

G. No entanto, a Autora não pode estar mais de acordo com o decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, na medida em que aquele Tribunal de 2.ª Instância fez uso correto da prerrogativa que lhe é conferida pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil, de reapreciação da prova e de formulação da sua própria convicção relativamente ao caso concreto cuja apreciação lhe foi submetida.

H. Tal como vem sendo jurisprudência dos tribunais superiores, o Tribunal da Relação funciona como um verdadeiro e próprio segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostraram acessíveis com observância do princípio do dispositivo.

I. Ora, se por um lado, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa foi proferida dentro das prerrogativas que lhe são conferidas pela lei, por outro lado, tal decisão não é suscetível de recurso para o STJ, pelo que deverá ser negado provimento ao recurso apresentado pelos Réus.

J. Pelo que caem por terra os argumentos aduzidos pelos Réus, no sentido de considerar que o TRL extrapola as suas competências e que as alegações apresentadas pela Autora não permitem que aquele tribunal superior tome a decisão que tão bem tomou!

K. No entanto, e caso assim não se entenda, sem se dirá que, como bem refere o Tribunal da Relação de Lisboa encontram-se verificados os pressupostos da impugnação pauliana, de onde resulta a procedência da ação.

L. Efetivamente, analisando os elementos constitutivos do direito de impugnação pauliana, e na esteira do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, verificamos o seguinte:

M. O 1.º Réu assumiu, junto do antigo BES, diversas responsabilidades, seja na qualidade de garante da empresa S..., Lda seja na qualidade de mutuário, com datas anteriores à celebração do contrato de doação, pelo que dúvidas não restam quanto ao requisito da existência do crédito.

N. No que respeita à anterioridade do crédito face à doação, também não restam dúvidas à Autora nem ao Tribunal da Relação de Lisboa de que também este pressuposto se encontra verificado, aliás o Tribunal ad quem refere mesmo que “a sua anterioridade à escritura de doação realizada a 18/07/2013 é manifesta” (destaque e sublinhado nossos).

O. Relativamente ao requisito da má fé por parte do devedor e do terceiro, tendo em conta que estamos perante um ato gratuito, está a Autora dispensada de o provar.

P. Não obstante, por toda documentação e prova trazida para o processo, resulta inequívoca a má fé dos Réus no que toca à dissipação de património com vista à diminuição das garantias dos credores quanto ao ressarcimento dos seus créditos, ou mesmo a sua inviabilização.

Q. Quanto à impossibilidade ou agravamento da impossibilidade para o credor de obter a satisfação do seu crédito, entende e bem o Tribunal da Relação de Lisboa que cabia aos devedores, entenda-se aos Réus, a alegação, demonstração e prova de que o seu património, à data da realização do ato de doação, era suficiente para liquidar as responsabilidades existentes à data.

R. Ora, não tendo os Réus logrado demonstrar a suficiência do património para solver as dívidas, nomeadamente a dívida aqui em causa, entendem-se verificados todos os pressupostos para a procedência da ação pauliana.

S. Entendem, ainda, os Réus que as alegações de recurso apresentadas pela Autora não cumprem com o estipulado no artigo 640.º CPC, por, designadamente, não indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e não especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada.

T. Tem sido entendimento do STJ que a faculdade que é concedida ao Tribunal da Relação, no artigo 662.º CPC, não depende de qualquer alegação por parte dos Recorrentes, consubstanciando um poder-dever que pode ser exercido oficiosamente.

U. Não obstante, sempre se dirá que se entende que as alegações apresentadas pela Autora contêm a referência expressa aos pontos que considera incorretamente julgados, especificando os concretos meios probatórios.

V. Assim sendo, encontrando-se seguramente preenchidos os requisitos do artigo 610.º CPC e sendo a decisão do Tribunal da relação de Lisboa sido proferida no rigoroso cumprimento da lei, entende-se que a mesma se deve, considerando-se procedente por provada a presente ação de impugnação pauliana.”

13. O recurso foi admitido no Tribunal da Relação com a prolação do despacho seguinte:

Por serem legítimos e tempestivos, admito os recursos de revista interpostos em 12.11.2024 por FF e por AA e Outros, o qual é de revista, a subir nos próprios autos com efeito meramente devolutivo (Artigos 671º, nº1, 675º, nº1 e 676º, nº1, do Código de Processo Civil).

Subam os autos ao STJ.”

14. Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

De Facto

15. Factos provados (com as alterações introduzidas pelo TR):

1. Operou-se a favor do Novo Banco a transferência de direitos (e ativos) e obrigações do Banco Espírito Santo, S.A., a favor deste banco de transição que, para todos os efeitos, sucedeu ex lege nos direitos (e ativos) e obrigações daquele, mais tendo ficado investido na posição de credor de cada um dos créditos anteriormente detidos pelo BES.

2. No âmbito da sua atividade, em 30.07.2007, o BES celebrou com a sociedade S..., Lda, e com o 1º Réu, enquanto representante da sociedade e prestador da garantia de aval, um Contrato de Financiamento n.º FEC ..89/07, internamente com o n.º ........33 – cf. doc. 1 junto com a p.i..

3. Como caução e garantia do pontual pagamento da quantia mutuada, respetivos juros remuneratórios e moratórios, despesas judiciais e extrajudiciais e demais encargos resultantes do contrato celebrado, a sociedade mutuária entregou ao BES a seguinte livrança por si subscrita e avalizada pelo 1º Réu: livrança n.º A500905479061715999, preenchida pelo montante de € 52.614,09, emitida na ..., a 30.07.2007, e com data de vencimento de 30.01.2015 – cf. doc. 2 com a p.i..

4. Em 09.01.2015, o Autor remeteu missiva à sociedade mutuária e ao 1º Réu, a informar da denúncia do Contrato e do preenchimento da livrança, disponível para pagamento até 30.01.2015 – cf. doc. 3 com a p.i.

5. Essa livrança foi apresentada à execução, relativamente à quantia vencida acrescida dos juros de mora e imposto de selo, a qual corre termos sob o processo n.º 2234 ... no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução de ..., J....

6. Nessa ação executiva, e à data da presente ação, por referência a esta livrança, estava peticionada a cobrança do valor total de € 60.250,38, respeitante a € 52.614,09, a título de capital, € 7.342,59, a título de juros de mora à taxa legal de 4,000%, contabilizados desde a data de apresentação da livrança a pagamento (30.01.2015) até à data da apresentação da presente ação (12.07.2018), montante em relação ao qual acresce o respetivo imposto de selo, no valor de € 293,70.

7. No âmbito da sua atividade, em 23.03.2011, o BES celebrou com a sociedade S..., Lda, e com o 1º Réu, enquanto representante da sociedade e prestador da garantia de aval, um Contrato de Financiamento n.º FEC ...69/11, internamente com o n.º ........47 – cf. doc. 5 junto com a p.i..

8. Como caução e garantia do pontual pagamento da quantia mutuada, respetivos juros remuneratórios e moratórios, despesas judiciais e extrajudiciais e demais encargos resultantes do contrato celebrado, a sociedade mutuária entregou ao BES a seguinte livrança por si subscrita e avalizada pelo 1º Réu: livrança n.º ................58, preenchida pelo montante de € 237.684,75, emitida na ..., a 23.03.2011, e com data de vencimento de 30.01.2015 – cf. doc. 6 com a p.i..

9. Em 09.01.2015, o Autor remeteu missiva à sociedade mutuária e ao 1º Réu, a informar da denúncia do Contrato e do preenchimento da livrança, disponível para pagamento até 30.01.2015 – cf. doc. 7 com a p.i.

10. No âmbito da execução referida em 6., foi esta livrança também apresentada para cobrança coerciva, aí se tendo contemplado um valor totalizado em € 290.831,07, respeitante a € 237.684,75, a título de capital, € 51.102,22, a título de juros de mora à taxa legal de 4,000%, contabilizados desde a data de apresentação da livrança a pagamento (23.03.2013) até à data da apresentação da presente ação (12.07.2018), montante em relação ao qual acresce o respetivo imposto de selo, no valor de € 2.044,10.

11. No âmbito da sua atividade, em 24.05.2011, o BES celebrou com a sociedade S..., Lda, e com o 1º Réu, enquanto representante da sociedade e prestador da garantia de aval, um Contrato de Financiamento n.º FEC ...48/11, internamente com o n.º ........90 – cf. doc. 8 junto com a p.i..

12. Como caução e garantia do pontual pagamento da quantia mutuada, respetivos juros remuneratórios e moratórios, despesas judiciais e extrajudiciais e demais encargos resultantes do contrato celebrado, a sociedade mutuária entregou ao BES a seguinte livrança por si subscrita e avalizada pelo 1º Réu: livrança n.º ................43, preenchida pelo montante de € 148.918,58, emitida em ..., a 24.05.2011, e com data de vencimento de 30.01.2015 – cf. doc. 9 com a p.i..

13. Em 09.01.2015, o Autor remeteu missiva à sociedade mutuária e ao 1º Réu, a informar da denúncia do Contrato e do preenchimento da livrança, disponível para pagamento até 30.01.2015 – cf. doc. 10 com a p.i.

14. No âmbito da execução referida em 6., foi esta livrança também apresentada para cobrança coerciva, aí se tendo contemplado um valor totalizado em € 182.681,43, respeitante a € 148.918,58, a título de capital, € 32.464,25, a título de juros de mora à taxa legal de 4,000%, contabilizados desde a data de apresentação da livrança a pagamento (23.03.2013) até à data da apresentação da presente ação (12.07.2018), montante em relação ao qual acresce o respetivo imposto de selo, no valor de € 1.298,60.

15. No âmbito da sua atividade, em 01.04.2006, o BES celebrou com a sociedade S..., Lda, e com o 1º Réu, enquanto representante da sociedade e prestador da garantia de aval, um Contrato de Financiamento n.º EC ....23/11, internamente com o n.º ..........96 – cf. doc. 11 junto com a p.i..

16. Como caução e garantia do pontual pagamento da quantia mutuada, respetivos juros remuneratórios e moratórios, despesas judiciais e extrajudiciais e demais encargos resultantes do contrato celebrado, a sociedade mutuária entregou ao BES a seguinte livrança por si subscrita e avalizada pelo 1º Réu: livrança n.º ................25, preenchida pelo montante de € 28.623,80, emitida em ..., a 01.04.2006, e com data de vencimento de 30.01.2015 – cf. doc. 12 com a p.i..

17. Em 22.08.2013, 08.03.2014, 09.01.2015 e 29.01.2015, foram pelo Banco remetidas missivas ao 1º Réu e à sociedade mutuária a informar da situação de incumprimento e da denúncia do Contrato e preenchimento da livrança – cf. docs. 13 a 16 com a p.i.

18. Esta livrança foi apresentada à execução, relativamente à quantia vencida acrescida dos juros de mora e imposto de selo, a qual corre termos sob o processo n.º 7526 ... no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução de ..., J... – cf. doc. 17 junto com a p.i..

19. Nessa ação executiva, e à data da presente ação, por referência a esta livrança, estava peticionada a cobrança do valor total de € 32.781,49, respeitante a € 28.623,80, a título de capital, € 3.997,79, a título de juros de mora à taxa legal de 4,000%, contabilizados desde a data de apresentação da livrança a pagamento (30.01.2015) até à data da apresentação da presente ação (12.07.2018), montante em relação ao qual acresce o respetivo imposto de selo, no valor de € 159,90.

20. A S..., Lda foi declarada insolvente em 26.04.2014, no âmbito do processo n.º 2252 ... do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Secção de Comércio, J....

21. Também no exercício da sua atividade bancária, em 19.02.2002, o BES outorgou com o 1º Réu e com a sua mulher, à data, uma escritura pública de mútuo com hipoteca com o n.º ........50– cf. doc. 18 junto com a p.i.

22. Nos termos dessa escritura, os aí mutuários declararam ter recebido do Banco a quantia de € 69.831,71, a qual se comprometeram a reembolsar em 300 prestações mensais constantes e sucessivas, de capital e juros, devendo a primeira prestação ser paga em 02.05.2002.

23. Na mesma escritura, os aí mutuários também constituíram a favor do Banco uma hipoteca voluntária de 1º grau sobre a fração autónoma designada pela letra “D” do prédio urbano sito na Avenida .... 1º esquerdo, freguesia de ..., descrito na 2.ª CRP da ... sob o n.º 62 e inscrita sob o art. 378.º (atual 345.º) da respetiva matriz predial urbana, como garantia do pagamento e liquidação de todas as responsabilidades assumidas no âmbito do empréstimo concedido, incluindo os juros contratuais e juros de mora que se vencerem, a título de cláusula penal, despesas judiciais e extrajudiciais, tudo até ao montante máximo de € 86.429,32 – cf. doc. 8, já referido, doc. 19 juntos com a p.i.

24. Na sequência da penhora decretada no âmbito do processo n.º 2304 ..., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo de Execução de ... – Juiz ..., sobre o referido imóvel, e a correspondente citação do Banco aqui Autor para reclamar créditos, o mesmo apresentou reclamação de créditos nesse processo por referência a todas as responsabilidades garantidas no âmbito daquela hipoteca – cf. doc. 20 com a p.i..

25. Nessa decorrência, o Banco reclamou um crédito no valor total de € 31.301,89, correspondente à soma da quantia de € 30.396,35, a título de capital, a que acresce € 870,74, a título de juros remuneratórios à taxa nominal contratual de 3,527%, resultante da Euribor atualizada, acrescida de 3% de sobretaxa a título de cláusula penal, desde a data do incumprimento (02.02.2018) até à data da apresentação da presente ação, e ainda imposto de selo à taxa de 4% e comissões, tudo no montante de € 34,80; sendo que, à data de 05.06.2022, estava em dívida a quantia de € 16.041,16.

26. No âmbito do mesmo exercício da atividade bancária, em 19.02.2002, o BES outorgou com o 1º Réu e com a sua mulher, à data, uma escritura pública de mútuo com hipoteca com o n.º ........51 – cf. doc. 21 junto com a p.i.

27. Nos termos dessa escritura, os aí mutuários declararam ter recebido do Banco a quantia de € 30.426,67, a qual se comprometeram a reembolsar em 300 prestações mensais constantes e sucessivas, de capital e juros, devendo a primeira prestação ser paga em 02.05.2002.

28. Na mesma escritura, os aí mutuários também constituíram a favor do Banco uma hipoteca voluntária de 2º grau sobre a fração autónoma designada pela letra “D” do prédio urbano sito na Avenida da ..., freguesia de ..., descrito na 2.ª CRP da ... sob o n.º 62 e inscrita sob o art. 378.º (atual 345.º) da respetiva matriz predial urbana, como garantia do pagamento e liquidação de todas as responsabilidades assumidas no âmbito do empréstimo concedido, incluindo os juros contratuais e juros de mora que se vencerem, a título de cláusula penal, despesas judiciais e extrajudiciais, tudo até ao montante máximo de € 37.852,94 – cf. doc. 21 junto com a p.i.

29. Na sequência da penhora, já referida, decretada no âmbito do processo n.º 2304 ..., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo de Execução de Lisboa – Juiz 6, sobre o referido imóvel, e a correspondente citação do Banco aqui Autor para reclamar créditos, o mesmo apresentou reclamação de créditos nesse processo por referência a todas as responsabilidades garantidas no âmbito daquela hipoteca – cf. doc. 20 com a p.i..

30. Nessa decorrência, o Banco reclamou um crédito no valor total de € 13.638,68, correspondente à soma da quantia de € 13.244,09, a título de capital, a que acresce € 379,38, a título de juros remuneratórios à taxa nominal contratual de 3,527%, resultante da Euribor atualizada, acrescida de 3% de sobretaxa a título de cláusula penal, desde a data do incumprimento (02.02.2018) até à data da apresentação da presente ação, e ainda imposto de selo à taxa de 4% e comissões, tudo no montante de € 15,20; sendo que, à data de 05.06.2022, estava em dívida a quantia de € 6.989,30.

31. No âmbito das diligências promovidas pelo Autor com vista ao apuramento da existência de património do 1º Réu suscetível de penhora, foram apurados os seguintes imóveis, como tendo sido de sua propriedade:

a. Fração autónoma designada pela letra “J”, correspondente ao 5.º andar, habitação, estacionamentos n.ºs 9 e 9.º-A e arrecadação n.º 1, do prédio urbano sito na Av. ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..27, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..25;

b. Fração autónoma designada pelas letras “AJ”, correspondente ao 3.º andar direito, habitação, do prédio urbano denominado ..., sito na Urbanização ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..43, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...42.

32. Estes imóveis foram objeto de doação aos aqui 3º, 4º e 5º Réus, filhos do 1º Réu, bem como de usufruto a si próprio e à 2ª Ré, sua ex-mulher, conforme escritura pública de doação com constituição e reserva de usufruto outorgada em 18.07.2013 – docs. 22, 23 e 24 juntos com a p.i.

33. No mesmo contrato de financiamento n.º FEC....89/07 (mencionado em 4.), foi estipulado, além do mais, o seguinte: «14. Outras Estipulações CROSS DEFAULT (C/BESLEASING E FACTORING): 1. As partes acordam e reconhecem que o presente contrato foi celebrado tendo por base e como pressuposto a celebração do contrato de locação financeira imobiliária com a BESLEASING E FACTORING, INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, SA, devendo ambos os contratos ser considerados como um único negócio incindível. 4. A ocorrência de qualquer facto ou circunstância suscetível de conduzir à resolução de um dos contratos, determinará igualmente de modo automático, a resolução do outro.».

34. Entre o BES Leasing e Factoring – IFIC, S.A. e a sociedade S..., Lda, foi celebrado, em 17.04.2004, um acordo escrito denominado “Contrato de Locação Financeira Imobiliária”, referente ao seguinte imóvel: fração autónoma designada pela letra “A”, que corresponde à loja situada na cave, com estacionamento no mesmo piso, pertencente ao prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Alameda dos ..., com traseiras para a Avenida dos ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na CRP da ... sob a ficha n.º 475, da mencionada freguesia, inscrita a propriedade horizontal sob a quota F-2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo .53.

35. Em 06.08.2007, foi este contrato objeto de aditamento, através do financiamento com o n.º FECD...89/07, e ainda de um acordo escrito, denominado “Protocolo”, celebrado entre o BES e o BES Leasing e Factoring, S.A. – cf. doc. 1 junto com a p.i.

36. O “Protocolo” celebrado entre o BES e o BES Leasing teve a prévia aprovação do 1º Réu e do mesmo consta o seguinte, além do mais que ora se dá por reproduzido:

«3. Em virtude do disposto no número anterior, em caso de incumprimento pela SOCIEDADE de qualquer uma das obrigações a que se encontre vinculada, quer na qualidade de mutuária, quer na de locatária, deverão o BES e BESLEASING e FACTORING resolver os respetivos contratos com a sociedade, o que implicará no caso da BESLEASING E FACTORING a restituição do imóvel pela sociedade.

5. Fica acordado que em caso de incumprimento, o produto da venda do imóvel será para ressarcir os montantes em dívida que existam para com a BESLEASING e FACTORING e o BES nas seguintes condições: em primeiro lugar à BESLEASING E FACTORING todos os montantes em dívida; em segundo lugar ao BES o excedente até ao limite da sua dívida.»

37. Em 2009, o BES e o BESLEASING E FACTORING foram objeto de fusão, tendo o imóvel sido transmitido para o BES, como se alcança da certidão permanente do prédio junta com o doc. 1 com a contestação do 7º Réu (vd. Ap. ..11 de 2009/10/12).

38. O imóvel veio a ser transmitido para o Autor na sequência das deliberações do Banco de Portugal emitidas no âmbito da criação do Novo Banco.

39. Em 04.01.2019, foi objeto de registo a venda do imóvel por parte do ora Autor à sociedade B..., Lda” (vd. Ap ..51 desse dia).

40. À data da outorga da escritura de doação, o 1º Réu era detentor dos seguintes produtos financeiros – PPR e Capitalização:

- Apólice BES-Vida n.º ......14, com o valor de € 3.633,58;

- Apólice BES-Vida n.º ......92, com o valor de € 3.559,57;

- Apólice BES-Vida n.º ......11, com o valor de € 3.702,25;

- Apólice BES-Vida n.º ......38, com o valor de € 3.842,03;

41. O 1º Réu era também titular de dois depósitos a prazo nos montantes de € 250 e € 2.548,43 e, ainda, de aplicações financeiras no montante de € 45.042,13.

42. Ainda hoje o 1º Réu é titular, no banco Autor, de um “PPR/PROD: CAPIT./UNIT LINK no montante de € 18.170,53 – doc. 7 com a contestação do 7º Réu.

43. O Réu era e é titular dos seguintes PPR na companhia de seguros G..., conforme os documentos aqui mencionados, juntos com a contestação do 7º Réu:

- 60/15/......14, com o valor atual de € 4.614,33 (doc. 8);

- 60/15/......92, com o valor atual de € 4.571,14 (doc. 9);

- 60/15/......38, com o valor atual de € 4.087,21 (doc. 10);

44. O 1º Réu, até 10.10.2013, era proprietário das frações “R” e “S”, correspondentes ao rés-do-chão, porta 017 e 018, respetivamente, do Lote 5.2.6/1, ..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..05 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...33, as quais tinham um valor de € 124.300,00 e 143.200,00, respetivamente – doc. 23 a 25.

45. A 11.10.2013, foi registada uma doação pela AP. ..62 de 2013/10/11, tendo por objeto as frações “R” e “S”, correspondentes ao rés-do-chão, porta 017 e 018, respetivamente, do Lote 5.2.6/1, ..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..05 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...33, e, por sua vez uma ação por parte do Banco Popular (ora Banco Santander Totta, SA) registada pela AP. ..02 de 2016/12/22, cujo pedido se cingia a ser “decretada a ineficácia, em relação ao sujeito ativo, do referido ato de doação.

46. E era ainda proprietário da fração “D”, correspondente ao primeiro andar esquerdo, do prédio sito na Avenida da ..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 62 da freguesia de ..., que tinha um valor não inferior a € 100.265,10, montante dos créditos do A. que foram garantidos por este imóvel (vd. reclamação de créditos apresentada pelo A. no processo n.º 2304 ...).

47. A fração “D”, correspondente ao primeiro andar esquerdo, do prédio sito na Avenida da ..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 62 da freguesia de ... foi penhorada anterior pelo Credor Barclay´s PLC, conforme AP. ..61 de 2014/07/10 no âmbito do Proc. 2304 ...

48. As cartas de denúncia dos contratos foram enviadas para a sede social da S..., Lda, quando nessa data a mesma havia já sido declarada insolvente no ano anterior.

49. O contrato de locação financeira imobiliária celebrado com o BESLEASING foi resolvido após notificação ao administrador de insolvência para tal efeito.

50. As ações executivas foram declaradas extintas por falta de bens suscetíveis de penhora – cf. doc. n.º 3 junto com o articulado de resposta ref. ......03 (20.09.2022).

51. (ex-a) dos não provados) Para além do imóvel já penhorado no âmbito das ações executivas propostas contra o 1º Réu e dos imóveis que foram objeto de doação aos seus filhos pelo Réu AA, não existem quaisquer outros bens imóveis suscetíveis de garantir o ressarcimento da Autora (art. 56º da p.i.);

52. (ex-b) dos não provados) O 1º Réu, ao realizar as doações a favor dos filhos e a reserva de usufruto a favor da ex-mulher, teve em vista impedir qualquer ganho patrimonial com essas alienações que, certamente, se verificaria com uma possível alienação onerosa, de modo a permitir satisfazer, ainda que parcialmente, as dívidas que pessoalmente haviam garantido.” (art. 58º da p.i.);

16. Factos não provados (com as alterações introduzidas pelo TR):

a) (ex-44 dos provados) Era titular no BANQUE PRIVÉE ESPÍRITO SANTO da conta n.º .......01 na qual se encontravam depositados 346.000 “Fixede Term Deposit” no valor de € 346.457,49 – cf. docs. 12 a 14.

b) (ex-45 dos provados) Era titular no BANCO ECONÓMICO, SA (anteriormente designado BESA, do GES, grupo empresarial que também englobava o BES, até 2014), com sede em ..., Angola, da conta n.º .........23, com um saldo de 47.524.344,80 Kwanzas, correspondendo a cerca de € 372.950,77 – cf. docs. 15 a 22.

c) Que era do conhecimento dos beneficiários das doações a existência dos contratos de financiamento bancário bem como a situação financeira da S..., Lda e da M..., Lda (art. 71º da p.i.);

d) Que os Réus agiram de forma concertada de forma a impedirem que, de imediato ou posteriormente, o Autor pudesse ser pago da dívida contraída pelo 1º Réu (art. 73º da p.i.).

De Direito

17. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

De acordo com as conclusões dos recursos dos RR e do interveniente, as questões colocadas são:

1. Saber se o Tribunal da Relação podia conhecer da impugnação da matéria de facto, nos moldes e termos em que o fez na apelação da A. – esse conhecimento pode ter envolvido excesso de pronúncia? Pode ter havido violação das regras do art.º 640.º do CPC? Pode ter havido ultrapassagem dos limites impostos pelo art.º 662.º do CPC?

2. Saber se as alterações efectuadas, não tendo havido violação das disposições indicadas, devem ser mantidas ou revogadas;

3. recurso de revista dos RR. primitivos é igualmente questionada a solução de direito a que chegou o tribunal, nomeadamente insistindo na falta de má fé, exigida pelo instituto da impugnação pauliana.

18. Nos presentes recursos de revista as questões suscitadas prendem-se com a impugnação da matéria de facto e o modo como o tribunal recorrido realizou alterações dos pontos provados e não provados, determinantes da solução de direito a que chegou – inversa à do tribunal de 1ª instância. Naquela perspectiva as questões suscitadas são de legalidade – observância do art.º 640.º, 662.º e limites ao conhecimento no recurso – (excesso de pronúncia?).

Num certo sentido, parece que os recorrentes também pretendem que, na sequência da primeira análise, este STJ conheça da própria impugnação da matéria de facto, procedendo a alterações.

Avancemos na análise de acordo com a primeira perspectiva.

19. Ao entrar no conhecimento da primeira questão objecto da apelação da A. – e que consistia na impugnação da matéria de facto – o tribunal recorrido adoptou a seguinte estratégia e fundamentação:

- Começou por situar a problemática da impugnação da matéria de facto nos seus poderes de cognição em recurso – aludiu ao art.º 607.º, n.º 5, 662.º do CPC; especificou os ónus que a lei coloca ao recorrente no art.º 640.º do CPC – e aqui disse:

Quando uma parte em sede de recurso pretenda impugnar a matéria de facto, nos termos do artigo 640.º n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de:

1) indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a);

2) especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º 2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos, propondo a decisão alternativa quanto a cada um deles – n.º 1, alíneas b) e c).”

- Seguiram-se considerações justificativas da ratio legis:

Está aqui em causa, como sublinha com pertinência Abrantes Geraldes, o “princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”, sempre temperado pela necessária proporcionalidade e razoabilidade, sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é “a definição do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado pretendido)”.

Como pano de fundo da apreciação a fazer dos factos que estejam em causa, também a circunstância de não se proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objeto de impugnação “não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.)” (Acórdãos da Relação de Guimarães de 15 de Dezembro de 2016, Processo n.º 86/14.0T8AMR.G1-Maria João Matos e Relação de Lisboa de 26 de Setembro de 2019, Processo n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2-Carlos Castelo Branco).”

Assim, caberá ao Tribunal da Relação apreciar a matéria de facto de cuja apreciação o/a Recorrente discorde e impugne (fazendo sobre ela uma nova apreciação, um novo julgamento, após verificar a fundamentação do Tribunal a quo, os elementos e argumentos apresentados no recurso e a sua própria percepção perante a totalidade da prova produzida), continuando a ter presentes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e que “o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta”, pelo que “o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância” (sublinhado nosso).”

- Finalmente debruçou-se sobre a alteração pedida pela A. e sobre o pedido dos RR.

19. No recurso de revista os recorrentes entendem que o TR violou a lei e cometeu excesso de pronúncia, na alteração da matéria de facto, ultrapassando o que foi pedido e os poderes que a lei lhe confere no art.º 662.º do CPC e nos termos do art.º 640.º do CPC.

Analisando.

O TR interpretou as alegações e conclusões da apelação da A. como envolvendo uma impugnação da matéria de facto com o seguinte sentido:

“A A. pretende a modificação da decisão da matéria de facto, passando a figurar os factos 44) a 49) como não provados e os factos não provados sob as alíneas a) a d) como provados.”

Na própria apelação os RR. haviam suscitado a questão de não terem sido cumpridos os ónus do art.º 640.º do CPC, que permitisse ao Tribunal conhecer da referida impugnação da matéria de facto.

O tribunal considerou que os ónus estavam cumpridos e conheceu da impugnação. Na justificação para o seu poder e relativa ao cumprimento dos ónus, o tribunal adoptou uma dupla estratégia – umas vezes, justificando que considerava os ónus cumpridos e a contra-alegação improcedente, outras vezes avançando no conhecimento sem menção clara ao problema; outras vezes afastando o conhecimento por não estar devidamente impugnado.

19.1. Vejamos o entendimento do tribunal na análise dos pontos 44 a 49 dos factos provados.

No âmbito da pretensão de dar como não provados os factos 44) a 49), o cumprimento dos ónus do art.º 640.º significaria:

- não ser necessário indicar uma redacção alternativa dos referidos factos, porquanto os mesmos passariam na íntegra de factos provados/ não provados, para a categoria oposta - não provados/provados;

Já indicação dos meios de prova que sustentariam a alteração propugnada foi assim interpretada – o que envolveu uma analise separada para cada ponto de facto – depois da contextualização.

19.2. Factos provados 44 e 45

A partir do inciso, em que a recorrente diz “29. Como poderá o Tribunal a quo ter considerado como provado a titularidade junto do BANQUE PRIVÉE ESPÍRITO SANTO da conta n.º 850164.01 na qual se encontravam depositados € 346.457,49 “Fixede Term Deposit”– cf. docs. 12 a 14 da douta contestação deduzida pelo 7º RR. FF, quando na verdade, os documentos juntos reportam à data de 31/01/2016”, e “Ou ainda, 30. Era titular no BANCO ECONÓMICO, SA (anteriormente designado BESA, do GES, grupo empresarial que também englobava o BES, até 2014), com sede em ..., Angola, da conta n.º .........23, com um saldo de 47.524.344,80 Kwanzas, correspondendo a cerca de € 372.950,77 – cf. docs. 15 a 22, da douta contestação deduzida pelo RR. FF, quando na verdade estes extratos reportam a Julho de 2013, Agosto de 2013, Janeiro de 2014 e Janeiro de 2015, bold nosso” o Tribunal considerou a necessidade de reanálise dos factos 44 e 45 à luz dos meios de prova documentais apresentados na contestação do interveniente, com os n.º 12, 13 e 14.

Esses factos provados tinham na sentença a seguinte redacção:

44. Era titular no BANQUE PRIVÉE ESPÍRITO SANTO da conta n.º 850164.01 na qual se encontravam depositados 346.000 “Fixede Term Deposit” no valor de € 346.457,49 – cf. docs. 12 a 14.

45. Era titular no BANCO ECONÓMICO, SA (anteriormente designado BESA, do GES, grupo empresarial que também englobava o BES, até 2014), com sede em ..., Angola, da conta n.º .........23, com um saldo de 47.524.344,80 Kwanzas, correspondendo a cerca de € 372.950,77 – cf. docs. 15 a 22.

De seguida o TR analisa a pretensão, dizendo:

“Argumenta a recorrente, quanto aos factos provados sob os n.ºs 44) e 45):

“Não poderá resultar como provado que o depósito “Fixede Term Deposit” no valor de € 346.457,49 supostamente depositado na conta n.º .......01 junto do Banque Privée Espírito Santo, assim como o depósito junto do BESA, com sede em ..., Angola, na conta n.º .........23, com um saldo de 47.524.344,80 Kwanzas, correspondendo a cerca de € 372.950,77 que os mesmos constavam na esfera jurídica do 1ºRR à data do acto impugnado, isto porque da documentação junta com a contestação do 7º RR, facilmente se conclui que a mesma se reporta ao ano de 2016, quanto ao depósito junto do Banque Privée e 2015 quanto ao depósito junto do BESA.”

Analisando os documentos 12 a 14 e 15 a 22 juntos com a contestação do Réu FF de 13.07.2022, conclui-se nos termos transcritos da autoria da recorrente.

No que concerne à convicção probatória da sentença recorrida, a este respeito, escreveu-se que os factos 44 e 45 derivam “diretamente dos documentos aí expressamente mencionados, os quais, de todo o modo e na sua maioria, também já provinham das acções executivas propostas pelo credor contra o 1º Réu.”

Ora, sendo as datas documentadas diversas da pressuposta no facto em apreço – 18.07.2013 –, resulta destruída a convicção sentenciada, pelo que passa tais factos a figurar nos não provados.”

Na análise do TR foram assim tomados em conta o pedido da A. – dar os factos por não provados (pedido que consta da alegação e das conclusões) ; e foram atendidos aos meios de prova oferecidos pela A. no sentido da sua pretensão – tendo sido analisados os documentos 12 a 14 (os pedidos pela A., na sua alegação com maior detalhe e nas conclusões por menção geral a documentos oferecidos na contestação) e 15 a 22 (e os que o tribunal entendeu também reforçarem o entendimento que viria a adoptar e que constavam dos autos) juntos com a contestação do Réu FF de 13.07.2022.

No recurso de revista os recorrentes entendem que o TR violou a lei e cometeu excesso de pronúncia, na alteração da matéria de facto, ultrapassando o que foi pedido e os poderes que a lei lhe confere no art.º 662.º do CPC.

Será assim?

Não acompanhamos o entendimento dos ora recorrentes RR.

Conforme resulta do relato apresentado, consta do requerimento do recurso e das conclusões da apelação a pretensão de ser impugnada a matéria de facto; consta a concreta pretensão envolvida (passar a factos não provados); constam os meios de prova que ditariam a alteração.

Não ocorre igualmente excesso de pronúncia quando o tribunal analisa outros documentos dos autos que, na sua tarefa de compreender e dominar o processo, se apercebeu existiam a apoiavam a sua posição.

19.3. Vejamos agora o Facto 46

46. O 1º Réu era proprietário das fracções “R” e “S”, correspondentes ao rés-dochão, porta 017 e 018, respectivamente, do Lote 5.2.6/1, ..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..05 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...33, as quais tinham um valor de € 124.300,00 e 143.200,00, respectivamente – doc. 23 a 25.”

A A. pretendia que o facto passasse a não provado:

“A este nível, ressalta a recorrente que tais fracções (…) tinham registado também eles uma doação registada pela AP. ..62 de 2013/10/11 e por sua vez uma ação por parte do Banco Popular (ora Banco Santander Totta, SA) registada pela AP. ..02 de 2016/12/22 cujo pedido se cingia a ser “decretada a ineficácia, em relação ao sujeito activo, do acto de doação referido nos arts. 18.º e 19.º da petição (…)” :

Os recorridos identificados sob o n.º 1 contra-alegam quanto “ponto sessenta (60), o facto de ter existido outro processo de impugnação pauliana contra os Réus nenhuma prova foi feita pelo Autor de como terminou esse processo? 46º Foi o mesmo considerado procedente? 47º Os registos que invoca estão todos em vigor? Caducaram ou foram extintos? 48º Prova que competia ao Banco ter feito em sede de Tribunal a quo, para, caso fosse útil, ser objecto de apreciação em sede de sentença e, 49º Não apenas invocar a posterori como o fez em sede de recurso no ponto 60 (sessenta).”

O que disse o tribunal?

Apreciando, dir-se-á que, mais uma vez, tendo sido tal facto alegado e constando o mesmo comprovado na documentação para que expressamente se remete, aos Réus apenas cabia a sua impugnação, sendo do seu interesse aludir, portanto, á data da contestação, ao estado de tal impugnação pauliana.

Mais uma vez, não o fizeram, limitando-se à técnica da criação de dúvidas.

Neste caso, a prova é inclusive vinculada, pelo que seria do seu interesse provar o destino final dos bens em apreço, o que não fez.

Ora, analisados os documentos 23 a 25 juntos com a contestação do Réu FF, constata-se, precisamente, o escrito pela recorrente, pelo que, em nome do rigor prestável à subsunção jurídica, impõe-se reescrever o artigo em questão e desdobrá-lo, nos seguintes termos:

)

O 1º Réu, até 10.10.2013, era proprietário das fracções “R” e “S”, correspondentes ao rés-do-chão, porta 017 e 018, respectivamente, do Lote 5.2.6/1, T....... .. ......., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..05 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...33, as quais tinham um valor de € 124.300,00 e 143.200,00, respectivamente – doc. 23 a 25.

)

A 11.10.2013, foi registada uma doação pela AP. ..62 de 2013/10/11, tendo por objeto as fracções “R” e “S”, correspondentes ao rés-dochão, porta 017 e 018, respectivamente, do Lote 5.2.6/1, T....... .. ......., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..05 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...33, e, por sua ve,z uma ação por parte do Banco Popular (ora Banco Santander Totta, SA) registada pela AP. ..02 de 2016/12/22, cujo pedido se cingia a ser “decretada a ineficácia, em relação ao sujeito activo, do referido acto de doação.”

No recurso de revista os recorrentes entendem que o TR violou a lei e cometeu excesso de pronúncia, na alteração da matéria de facto, ultrapassando o que foi pedido e os poderes que a lei lhe confere no art.º 662.º do CPC.

Que dizer?

Não acompanhamos o entendimento dos ora recorrentes RR.

Conforme resulta do relato apresentado, consta do requerimento do recurso e das conclusões da apelação a pretensão de ser impugnada a matéria de facto; consta a concreta pretensão envolvida (passar a não provados); constam os meios de prova que ditariam a alteração.

Na redação do facto consta igualmente a remissão para os doc. 23 a 25, que o tribunal analisou – e que sustaram a alteração realizada – neste caso, a correcção da redação do ponto de Facto 46.

Improcede a alegação.

19.4. Facto 47

“47. E era ainda proprietário da fracção “D”, correspondente ao primeiro andar esquerdo, do prédio sito na Avenida da ..., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 62 da freguesia de ..., que tinha um valor não inferior a € 100.265,10, montante dos créditos do A. que foram garantidos por este imóvel (vd. reclamação de créditos apresentada pelo A. no processo n.º 2304 ...).”

Ao analisar a pretensão da A. no sentido de este facto ser dado por não provado, o tribunal disse:

“Mais uma vez, em nome do rigor prestável à subsunção jurídica, impõe-se desdobrar este artigo, nos seguintes termos:

) A fracção “D”, correspondente ao primeiro andar esquerdo, do prédio sito na Avenida da ...., em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 62 da freguesia de ... foi penhorada anterior pelo Credor Barclay´s PLC, conforme AP. ..61 de 2014/07/10 no âmbito do Proc. 2304 ...”

Isto é, com base dos mesmos documentos, o Tribunal entendeu que o facto não estaria conforme à informação documentada com o necessário rigor, e por isso, modificou a sua redação. Mas o facto continuou nos factos provados.

Também aqui a atitude do tribunal não tem nada de censurável.

19.5. Factos 48, 49

“48. As cartas de denúncia dos contratos foram enviadas para a sede social da S..., Lda, quando nessa data a mesma havia já sido declarada insolvente no ano anterior.

49. O contrato de locação financeira imobiliária celebrado com o BESLEASING foi resolvido após notificação ao administrador de insolvência para tal efeito.”

Tratava-se de factos compreendidos na pretensão da A. de serem dados por não provados.

O que disse o tribunal?

Não foi impugnada concretamente a matéria respetiva.”

E com essa resposta o Tribunal não conheceu da sua impugnação.

19.6. Continuando a analisar a impugnação da matéria de facto pedida pela A. na apelação, o tribunal também conheceu da pretensão de passar factos não provados a provados, indicando que a A. invocava erro notório na apreciação da prova.

Assim o tribunal começou por explicar o sentido de erro notório. E depois enfrentou a análise de cada facto não provado, iniciando pela consideração da contra-alegação de não terem sido cumpridos os ónus do art.º 640.º do CPC.

Disse:

“Quanto aos não provados, atenta a factualidade assente e os ajustamentos ora introduzidos, concordamos parcialmente com a recorrente, porquanto “um minucioso escrutínio da prova documental junta pelo Autor e uma orientada valoração de prova testemunhal e declarações de parte de acordo com a regras da experiência comum nunca poderia conduzir as conclusões tecidas pelo douto Tribunal.”

Contra-atacam os recorridos que “a recorrente não imputa qualquer erro na apreciação da prova, mas sim um erro de julgamento da matéria de facto. Não se pode olvidar que além da prova documental, existiu nos autos prova testemunhal, declarações de parte e esclarecimentos de Perito.”

Nesta decorrência, entendem os recorridos que a recorrente não deu “cumprimento ao disposto no art.º 640º do CPC, que impõe ao recorrente a obrigatoriedade de especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A recorrente não deu cumprimento a este ónus, pelo que a factualidade provada acima elencada não deve ser objeto de reapreciação.”

Apreciando, dir-se-á que a recorrente identificou os factos cuja prova entende ter sido em sentido diferente do consignado em sede de sentença e adiantou – concretamente em relação aos não provados – que os mesmos deveriam ser considerados provados.

Assim sendo, não se julga procedente a imputada inobservância das formalidades de impugnação da decisão da matéria de facto sentenciada.”

Considerando que na revista se volta a questionar se o Tribunal violou os seus poderes no âmbito do art.º 662.º e se violou o regime do art.º 640.º, impõe-se dizer que não se afigura que o tribunal tenha agido mal.

O cumprimento dos ónus foi tido por suficiente: com a indicação de pretensão de passagem a factos provados; a justificação sobre o meio de prova a avaliar, feita a propósito da concretização de cada facto, é igualmente satisfatória, tendo em consideração que, além da matéria de facto, foi igualmente necessário avaliar o ónus da prova sobre a existência de outros bens na esfera jurídica do devedor, atendendo a que se estaria a discutir o ponto em acção de impugnação pauliana.

Improcede, assim, a alegação.

19.7. Mas também é possível conferir a actuação do tribunal e o correcto exercício dos seus poderes e do cumprimento da lei, tomando por referência cada um dos pontos de facto não provados (e que a A. pedia fossem tidos por provados) – tal como o tribunal fez.

19.8. Vejamos o ponto a) dos factos não provados

a) Que, para além do imóvel já penhorado no âmbito das acções executivas propostas contra o 1º Réu, não existem quaisquer outros bens imóveis susceptíveis de garantir o ressarcimento do Autor, para além dos que foram objecto de doação aos seus filhos (art. 56º da p.i.);

A A. quer que este facto seja tido por provado.

O Tribunal entende que a A. tem razão, considerando que: “Mais uma vez: se existia, os Réus que os identificassem, pois que estavam onerados com o respetivo ónus probatório e o princípio da colaboração em sede declarativa e executiva assim o impõe.

Ora, os indicados não têm valor certo reportado à data de 18.07.2013 (as aplicações financeiras e os alegados depósitos bancários), foram igualmente doados e estão sob a mira da ação de impugnação pauliana por parte de outro credor (imóveis referidos no antigo ponto 46) e encontra-se penhorado (imóvel referido no antigo ponto 47).

Por último, esteia o recorrido FF o usufruto, enquanto direito real com valor económico.

Entronca aqui, porém, o objeto da ampliação do recurso nos termos do n.º 2 do art.º 636º e 640º, n.º 3 do CPC, porquanto, no seu entender, a decisão da matéria de facto é omissa quanto à factualidade por si alegada nesse concernente na sua contestação:

“Na sua contestação o recorrido alegou: - o doador reservou para si o usufruto dos prédios;

- que à data da doação os usufrutos não eram inferiores a:

- € 345.300,00, no respeitante à fração autónoma designada pela letra “J”, correspondente ao quinto andar, habitação, estacionamentos nºs 9 e 9-A na cave menos dois e a arrecadação nº 1 na cave menos três, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida do ..., freguesia de ..., concelho de ..., sob o número dois mil cento e vinte e sete da referida freguesia, inscrito na matriz predial urbana da citada freguesia sob o artigo ..25;

- € 108.400,00, no respeitante à fração autónoma designada pela letra “AJ”, correspondente ao terceiro andar direito, corpo A, loja 7, habitação T2, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado Lotes nºs 7, 9, 11, sito na Urbanização P..... .. ....., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número oito mil e quarenta e três, da referida freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 14942 da citada freguesia.

Para prova dos mesmos o recorrido juntou os doc. 4 e 5 e pelo perito, II, foram prestados esclarecimentos na audiência de julgamento.

Contudo, estes factos não foram dados como provados ou não provados.

Na eventualidade de esse douto Tribunal considerar procedentes os requisitos de anterioridade do crédito e da não necessidade da existência de má fé, torna-se relevante a existência deste património na prova que incumbe ao ora recorrente de não impossibilidade de a recorrente satisfazer integralmente o seu crédito com o património que o devedor era detentor à data dos atos impugnados.

Pelo que, os factos supra devem ser aditados aos factos provados.”

A este propósito, em sede de resposta datada de 20.10.2022, escreve a Autora:

“19. Por último e não menos importante, impugna-se desde já os relatórios de avaliação dos imóveis e usufruto juntos pelo Réu FF com a sua Contestação, tendo em conta que os mesmos não se encontram devidamente credenciados ou certificados por entidade idónea junto da CMVM, devendo o avaliador estar habilitado para o efeito junto da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, cfr. artigo 2.º da Lei n.º 153/2015 de 14 de Setembro.

20. A acrescentar, o perito avaliador de imóveis não pode subcontratar em terceiros as suas funções.”

Vejamos.

Do documento 23 junto com a petição inicial, resulta que sobre o prédio descrito no art. 51º da petição inicial (imóvel da freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana dessa freguesia, sob o art. ..25), mediante a apresentação ..49 de 30.07.2013, foi constituída reserva de usufruto na doação a favor de AA (1º Réu) e BB (2ª Ré).

Por seu lado, do documento 24 junto com a petição inicial, resulta que sobre o prédio descrito no art. 52º da petição inicial (imóvel da freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana dessa freguesia, sob o art. .. .42), mediante a apresentação ..49 de 30.07.2013, foi constituída reserva de usufruto na doação a favor de AA (1º Réu) e BB (2ª Ré)

Em sede de alegações recursais, a Autora escreveu:

“63. E por sua vez, tão pouco o usufruto, enquanto direito real menor, tem o mesmo valor que a propriedade livre de ónus ou encargos.

64. Tão pouco, o valor a atribuir ao usufruto das frações “J” e “AJ”, poderia ser levianamente atirado, sob pena de em erro de julgamento se ver afastada a possibilidade de procedência do instituto aqui em causa, que sendo de ultima ratio, comporta em si uma maior exigência de julgamento.

65. Quanto muito, determinar-se-ia a realização de perícia aos prédios e direitos em discussão nos autos tendente a apurar o seu valor de mercado.

66. O que não aconteceu.

67. Houve apenas e só uma avaliação solicitada pelo 1º e 2ª RR a uma empresa credenciada.”

Perante a impugnação deduzida pela Autora, o único meio de prova apresentado pelo Réu FF foi a audição, como testemunha, do profissional que subscreveu os documentos 4 e 5 juntos com a sua contestação.

É certo, de facto, que não foi definido o valor do usufruto constituído a favor do 1º Réu, não ignorando que, de acordo com os documentos 23 e 24 juntos com a petição inicial, foi igualmente constituído usufruto simultâneo e vitalício a favor da 2ª R..

Sucede que o facto em questão é a inexistência de outros bens imóveis. Ora, nem mesmo os recorridos indicaram quaisquer outros imóveis (livres ou onerados)2.

Logo, e independentemente do que adiante se dirá acerca da densificação jurídico-doutrinal e jurisprudencial da impugnação pauliana, para mais quando o ato lesivo – causa de pedir – é de natureza gratuita, a verdade é que não existem outros bens imóveis.

Porém, a ampliação do recurso nos termos pretendidos pelo Réu FF é subsidiária relativamente à decisão favorável do recurso, pelo que, a final, nos pronunciaremos a tal respeito, efetuada que seja a subsunção jurídica no caso vertente.”

Que dizer sobre a posição do Tribunal?

Estamos em crer que traduz um exercício exigente e completo da função de reapreciação do facto não provado, com integração entre o que é facto e a questão do ónus da prova, que vem a redundar na boa solução da questão, à luz do desenrolar do processo – sendo que para este efeito os meios de prova relevantes seriam exactamente os que o tribunal considerou no contexto da concreta acção e das regras específicas que se lhe aplicam.

Não há violação de lei, nem excesso de pronúncia.

E para justificar este entendimento é igualmente importante deixar aqui expresso o que o tribunal recorrido disse sobre o ponto:

Com especial interesse no caso dos autos, atenta a insistência nesse sentido por parte, em particular, do Réu FF, a regra especial de repartição do ónus da prova prevista no art. 611º do CC.

Aí se estatui que “incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor “.

Deparamo-nos, aí, com um desvio às regras gerais sobre a repartição do ónus da prova (art. 342º do CC), inteiramente justificáveis, atenta a dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar que o devedor não tem bens, enquanto facto negativo.

Logo, o devedor/terceiro adquirente tem que provar que “o devedor possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas.”
Note-se que “não se exige que o devedor esteja em situação de insolvência, pois, apesar de não existir tal situação de insolvência, o acto pode produzir ou agravar a impossibilidade fáctica de o credor obter a satisfação integral do seu crédito, sendo que, nesta circunstância, a acção de impugnação pauliana procederá.
Por conseguinte, alegado e demonstrado pelo credor/impugnante o montante do seu crédito ameaçado com o acto do devedor, tratando-se de um acto de natureza gratuita, a impugnação pauliana somente não procederá caso o devedor ou o terceiro interessado na manutenção do acto façam a prova de que no património daquele ficaram bens de igual ou maior valor do que o crédito existente para com o Autor da impugnação e dos bens que por aquele acto foram alienados, isto é, que à data do acto era possível a satisfação integral do crédito do Autor.

Em resumo: no que concerne às regras da repartição do ónus da prova, o art. 611º do CC estabelece a especialidade de o credor dever provar o seu direito de crédito, incluindo a sua quantificação, e o devedor ou o terceiro interessado na manutenção do acto a existência no património do obrigado de bens penhoráveis de igual ou maior valor, no confronto com o valor do referido acto.

O que significa, em termos práticos, que, provada pelo impugnante a existência e a quantidade do seu direito de crédito e a sua anterioridade em relação ao acto impugnado, se presume a impossibilidade de realização do direito de crédito em causa ou o seu agravamento” (sublinhado nosso).”

19.9. Vejamos o ponto b) dos factos não provados

“b) Que o 1º Réu, ao realizar as doações a favor dos filhos e a reserva de usufruto a favor da ex-mulher, teve em vista impedir qualquer ganho patrimonial com essas alienações (art. 58º da p.i.)”

Vinha pedido a sua passagem a facto provado.

O tribunal disse:

“Em primeiro lugar, a redação não completa da própria alegação em sede de petição inicial.

Com efeito, o artigo 58º da petição inicial não se fica por aí e a segunda parte é complemento necessário da primeira, pelo que se determina o seu aditamento, sendo que os contraditórios processuais se encontram plenamente realizados.

Portanto, a redação do facto assente passará a ser a seguinte:

“O 1º Réu, ao realizar as doações a favor dos filhos e a reserva de usufruto a favor da ex-mulher, teve em vista impedir qualquer ganho patrimonial com essas alienações que, certamente, se verificaria com uma possível alienação onerosa, de modo a permitir satisfazer, ainda que parcialmente, as dívidas que pessoalmente haviam garantido.”

Na verdade, a entrada de contrapartida financeira imanente aos atos onerosos constitui entrada patrimonial suscetível, em abstrato, de permitir a satisfação dos interesses dos credores.

Ora, não se tendo os Réus, sequer, dado ao trabalho de justificar as doações e num quadro em que o 1º Réu tinha assumido diversas responsabilidades financeiras como avalista da S..., Lda e a título particular, tudo relativamente à aqui credora, as regras da experiência vão no sentido que deveria ter sido dado por provado.”

Que dizer sobre a posição do Tribunal?

Estamos em crer que traduz um exercício exigente e completo da função de reapreciação do facto não provado, com integração entre o que é facto e a questão do ónus da prova, que vem a redundar na boa solução da questão, à luz do desenrolar do processo

19.20. Vejamos o ponto c) dos factos não provados

“c) Que era do conhecimento dos beneficiários das doações a existência dos contratos de financiamento bancário bem como a situação financeira da S..., Lda e da M..., Lda (art. 71º da p.i.)”

Vinha pedido a sua passagem a facto provado.

O tribunal disse:

“Neste jaez, pelo menos o 1º Réu, sem sombra de dúvida, tinha esse conhecimento.

Já quanto ao âmbito de conhecimento dos adquirentes, não consta prova realizada, transitando a questão diretamente para o tratamento jurídico.”

Que dizer sobre a posição do Tribunal?

Estamos em crer que traduz um exercício exigente e completo da função de reapreciação do facto não provado, com integração entre o que é facto e a questão do ónus da prova, que vem a redundar na boa solução da questão, à luz do desenrolar do processo

19.21. Vejamos o ponto d) dos factos não provados

“d) Que os Réus agiram de forma concertada de forma a impedirem que, de imediato ou posteriormente, o Autor pudesse ser pago da dívida contraída pelo 1º Réu (art. 73º da p.i.).”

Vinha pedida a sua passagem a facto provado.

O tribunal disse:

Rigorosamente, os juízos da experiência comum não nos permitem dar o salto da concertação de posições para impedir, mas já permitem que se consigne que o 1º Réu pretendia, com a referida doação, pelo menos, dificultar o pagamento da dívida que mantinha para com a Autora.

De todo o modo, o enfoque da alegação é a concertação para o impedimento, o que não se logra, mesmo com recurso às regras da experiência comum.”

Que dizer sobre a posição do Tribunal?

Estamos em crer que traduz um exercício exigente e completo da função de reapreciação do facto não provado, com integração entre o que é facto e como se articula a sua dedução a partir de outros factos provados, com base em regras de experiência comum, que sustentam as presunções judiciais.

20. Nota de enquadramento, anterior à síntese

Na apelação o Tribunal também conheceu da impugnação da matéria de facto suscitada pelos RR, no âmbito da ampliação do recurso.

Mas as alterações introduzidas não comportam problemas que tenham sido suscitados em sede de revista.

21. Nota de síntese

Considerando o extenso trabalho de análise realizado pelo Tribunal da Relação na análise da impugnação da matéria de facto – e que se deixou já retratado – o tribunal recorrido sentiu necessidade de apresentar um quadro esquematizado das alterações propostas e das que realizou.

Com este elemento voltou a justificar o conhecimento da impugnação da matéria de facto, e a sua relação com os ónus do art.º 640.º do CPC, que têm de ser lidos à luz do concreto recurso de apelação (e ampliação do recurso).

Com a leitura completa do acórdão compreende-se igualmente que a análise do cumprimento dos ónus do art.º 640.º do CPC foi adequadamente cumprida, embora em moldes diversos dos muitos casos que tem tratado desta problemática, com a observância dos requisitos e finalidades legais – haver menção nas conclusões das pretensões de alteração pedidas; haver indicação dos meios dos meios de prova que sustentam esses pedidos; haver indicação do objectivo da modificação, que no caso é passar uns factos a provados e outros a não provados; que estas especificações sejam claras para efeitos de contraditório e defesa dos visados pelos pedidos; que as modificações sejam facilmente identificadas e compreendidas pelo Tribunal, não se traduzindo numa impugnação em bloco que envolva um novo julgamento.

Quer isto dizer que não se afigura que na apelação tenham sido violadas as normas jurídicas indicadas pelos recorrentes.

22. Depois de questionar o modo como o tribunal recorrido exerceu os seus poderes e conheceu da apelação da A., os recorrentes na revista também pretendem que este tribunal entre no concreto conhecimento das alterações realizadas para que as mesmas possam ser revertidas.

Contudo, esta pretensão entra em colisão com os poderes que o STJ tem. A este propósito, impõe-se recordar aqui as duas disposições fundamentais relativas aos poderes deste STJ no que se reporta à matéria de facto – art.º 682.º, n.º2 e 674.º, n.º3 do CPC – pois o STJ é um tribunal que só conhece de questões de Direito.

No que respeita às situações elencadas nos art.ºs 682.º, n.º2 e 674.º, n.º3 do CPC, nas presentes revistas, não há elementos que indiquem poderem haver lugar à sua aplicação – não há alegação de terem sido violadas disposições expressas da lei que exijam certa espécie de prova para a existência do facto, ou que fixe a força probatório de um meio de prova que tenha deixado de ser observada.

As referências realizadas a documentos, a depoimentos e perícias são reportadas a meios de prova sujeitos a livre apreciação do tribunal.

Assim, não se toma conhecimento desta problemática.

23. No recurso de revista dos RR. primitivos é igualmente questionada a solução de direito a que chegou o tribunal, nomeadamente insistindo na falta de má fé, exigida pelo instituto da impugnação pauliana.

O ponto foi abordado na apelação dizendo-se:

Má fé por parte do devedor e do terceiro

Este requisito apenas é exigido se estivermos perante um ato oneroso, caso em que se terá de alegar e provar que o devedor e o terceiro agiram de má fé, ou seja, ter-se-ia que demonstrar que tinham consciência do prejuízo que o ato causava ao credor.

Diversamente, tratando-se de um ato gratuito - uma doação - o Autor está dispensado de provar a má fé por parte do devedor e do terceiro.

Ainda assim, no caso concreto, os autos mostram sinais evidentes de má-fé, pelo menos do 1º Réu, “no que toca à dissipação de património com vista à diminuição das garantias dos credores quanto ao ressarcimento dos seus créditos, ou mesmo a sua inviabilização.” (alegações da recorrente)

Com efeito, a S..., Lda foi declarada insolvente a 26.04.2014 (facto 20), o que leva a concluir necessariamente pelo início dos problemas, pelo menos, em 2013, com óbvio conhecimento do 1º Réu.

“O acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé. Entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.”3

Ainda assim, é inócua a contra-alegação do Réu FF, no sentido de que “o incumprimento do contrato pela sociedade M..., Lda ocorreu em 02.09.2013 e também só em Janeiro de 2015 a Autora se digna preencher a livrança. 78º Será que apenas para ter direito a mais juros?”

Rectius: a assunção, por este Réu, de que o incumprimento da sociedade devedora ocorreu em setembro de 2013 é ilustrativa da má fé do próprio enquanto doador, relativamente à ora Autora e em relação a outros credores, como, por exemplo, o Banco Popular, conforme a outra impugnação pauliana incidente sobre a transmissão gratuita das frações identificadas em 46) e 47) dos factos provados ora reformulados, a 11.10.2013.”

Cremos que a leitura do acórdão recorrido por si só responde à questão – a impugnação pauliana de acto gratuito – como a doação – prescinde do requisito da má fé, ou seja, pode sempre ser atacado o acto praticado, mesmo que os visados estejam de boa fé.

Sabendo que nos presentes autos a impugnação pauliana se reporta a actos de doação – gratuitos, em consequência – não se justifica mais considerações sobre o ponto.

Artigo 612.º, n.º1, do CC:

O acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má-fé; se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa-fé”.

Improcede a alegação.

24. Em síntese, com a manutenção da alteração da matéria de facto provada e não provada, a pretensão dos RR. de ver revertida a decisão em conformidade com a estabelecida na sentença, não pode ser sequer equacionado, pelo que é de confirmar o acórdão recorrido.

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, são negadas as revistas dos RR e do interveniente.

As custas da revista são da responsabilidade dos recorrentes, com dispensa do remanescente da taxa de Justiça.

Lisboa, 23 de Abril de 2025

Fátima Gomes (relatora)

Rui Machado e Moura

Maria de Deus Correia

_________


1. Da responsabilidade da relatora.

2. (negrito nosso para dar enfoque ao argumento principal).

3. Cfr. o acórdão do STJ de 03.10.1994, processo 085045 – Torres Paulo, in www.dgsi.pt.