JUNÇÃO DE DOCUMENTOS EM FASE DE RECURSO
FALTA DE FUNDAMENTOS DE FACTO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CÁLCULO DO RENDIMENTO INDISPONÍVEL
PERÍODO DE CESSÃO
SUBSÍDIOS DE FÉRIAS E DE NATAL
DESPESAS COM FILHOS MAIORES
Sumário


I- A falta absoluta de fundamentação, por total ausência de fundamentos de facto em que assenta a decisão, integra a causa de nulidade prevista na alínea b), do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
A declaração de nulidade da decisão não obsta, no entanto, a que este Tribunal ad quem conheça do objeto da apelação, antes o obriga a fazê-lo, quando se encontra habilitado a extrair dos autos os factos provados, relevantes para a fixação do rendimento indisponível, auferido pelo devedor insolvente.
II- Em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida, salvo tratando-se de factos supervenientes.
No caso em análise, os novos factos, atinentes ao rendimento do insolvente e às despesas do próprio, podiam e deviam ter sido alegados na instância recorrida, pelo que não o tendo sido, ficou precludida a alegação dos mesmos em sede de recurso.
III- Na fixação do rendimento indisponível, o juiz deve considerar como limite mínimo a quantia correspondente a um salário mínimo nacional (hoje retribuição mensal mínima garantida), por constituir o montante mínimo de referência quanto à subsistência em condições de dignidade.
IV- Na falta de prova das reais despesas do insolvente, deve o tribunal decidir com base na presunção de que o insolvente precisa, para viver com um mínimo de dignidade, pelo menos, do valor correspondente àquele montante.
V- O CIRE não impõe que o critério temporal para o cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea i), seja mensal, podendo adotar-se um critério anual, tendo como referência cada um dos anos do período da cessão, tendo em atenção as particularidades do caso concreto, a fim de assegurar que, durante o período de cessão de rendimentos, o insolvente usufrua, todos os meses, do valor fixado como sendo o quantum indispensável à sua sobrevivência.
VI- Tal critério salvaguarda soluções conformes com os princípios constitucionais do respeito pela dignidade da pessoa humana e da igualdade, consagrados nos artigos 1.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa, e em nada prejudica os credores da insolvência, que só anualmente receberão as quantias a que têm direito, tal como resulta do artigo 241.º, n.º 1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
VII- Na medida em que o insolvente apenas tem direito ao montante razoavelmente necessário para o seu sustento, fixado no valor correspondente a uma retribuição mínima mensal garantida, os valores dos subsídios de férias e de Natal que eventualmente lhe venham a ser atribuídos, podem incluir-se no (ou excluir-se do) rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência (artigo 239.º, n.º 3), quando, englobados no rendimento total anual, e este dividido pelos 12 meses do ano, ultrapassem (ou não), em cada mês, o valor do rendimento mensal indisponível fixado.
VIII- As despesas do insolvente com o sustento, a segurança, a saúde e a educação do seu filho, já maior, que ficou a residir com a progenitora, despesas que o insolvente se obrigou a pagar em momento anterior ao da declaração de insolvência, por acordo homologado no âmbito de processo de divórcio por mútuo consentimento, não integram o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, e deverão incluir-se nas “outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial” a que alude o n.º 3, alínea b), subalínea iii), do artigo 239.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.

Texto Integral


Acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

I. RELATÓRIO

BB, divorciado, residente na Rua ..., ... ..., apresentou-se à insolvência, alegando encontrar-se impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Requereu a exoneração do passivo restante.
Por sentença proferida em 14.12.2021, transitada em julgado, declarou-se a insolvência do requerente, fixou-se a sua residência, nomeou-se Administrador da Insolvência, determinou-se a entrega imediata ao Administrador da Insolvência dos documentos a que alude o artigo 24.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas[1], que ainda não se mostrassem juntos aos autos, bem como a imediata apreensão de todos os bens do insolvente, fixou-se o prazo de trinta dias para a reclamação de créditos, dispensou-se a realização da Assembleia de Apreciação do Relatório a que alude o artigo 156.º e foi decidido, por ora, não declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência.
O Administrador da Insolvência apresentou o relatório a que alude o artigo 155.º, no qual conclui que se está perante uma situação de insolvência irreversível, e emitiu parecer no sentido de se passar de imediato à liquidação do ativo e do deferimento da exoneração do passivo restante dos créditos sobre a insolvência, requerida pelo insolvente.
O credor CC pronunciou-se no sentido do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, por, no seu entender, existirem elementos que indiciam, com toda a probabilidade, a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do disposto no artigo 238.º, n.º 1, alínea e).
O insolvente pronunciou-se no sentido da inexistência de motivo para indeferimento do pedido de exoneração.
Por despacho de 08.01.2025, foi o processo de insolvência declarado encerrado, por insuficiência da massa insolvente, nos termos dos artigos 230.º, n.º 1, alínea d) e 232.º, n.º 2.

Foi ainda proferido o seguinte despacho:
«Prescreve o artigo 235 CIRE que “Se o credor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.
Pela sua natureza, este mecanismo posto pela lei à disposição do devedor, terá que ser aplicado sempre com bastantes cautelas e tendo sempre em conta que se trata de um mecanismo de carácter residual e excepcional, já que, é uma prerrogativa sempre favorável ao devedor e contrária aos interesses dos credores.
Como defende o douto aresto da Relação do Porto, datado de 19/01/2010 “…A intenção do legislador só pode ter sido a de, verificado que o devedor já fez um significativo esforço durante um certo tempo para pagar o que deve – e pague mesmo –, permitir que volte a ‘levantar a cabeça’ e possa regressar à actividade económica, também a bem do País, sem o referido ‘passivo restante’ a entorpecer-lhe decisivamente tal recomeço. Daí que se trate efectivamente de um perdão, mas de um ‘passivo restante’, não de todas as dívidas de quem não se apresenta a fazer esforço algum para as pagar ou atenuar...” e, ainda, “Efectivamente, o incidente de exoneração do passivo restante não pode redundar num ‘instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à actividade económica, no fundo o interesse social prosseguido’, sendo por isso que logo na fase liminar de apreciação do pedido se instituem ‘os requisitos mais apertados a preencher e a provar’, devendo a conduta do devedor ser ‘analisada através da ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta’…” (Ac. da Relação do Porto de 19/95/2010).
Admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial (art. 239º nº 1 e 2 do C.I.R.E.) determinando que, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (o período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para os fins do art. 241º do C.I.R.E. (ou seja, pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência).
No final do período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração (art. 244º, nº 1 do C.I.R.E.) e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados (art. 245º do C.I.R.E.) – exceptuados apenas os créditos previstos no nº 2 do art. 245º do C.I.R.E.” (Acórdão da Relação do Porto de 19/05/2010).
De acordo com o disposto no artigo 236.º, nº 1 do C.I.R.E., o pedido de exoneração do passivo restante, deverá ser feito no âmbito da petição inicial, ou no caso de não ter sido o próprio devedor a apresentar-se à insolvência, a menção desta possibilidade deverá ser feita no acto de citação do devedor pessoa singular.
Cumpre, pois, aferir se o pedido formulado se enquadra em alguma das hipóteses legais de indeferimento liminar previstos no artigo 238.º do CIRE.
Não se verifica nenhuma das hipóteses aludidas no referido artigo, tendo o Adm. De Insolvência dado parecer favorável ao deferimento liminar.
Consequentemente, não se pode deixar de concluir, não se verificando, no caso concreto, pressupostos para indeferir in limine o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo do artigo 238.º do C.I.R.E., há que deferir o mesmo.
Assim, e nos termos do disposto no art.º 239,2 CIRE, determino que nos 3 anos subsequentes à presente data, ou período de cessão, o rendimento que exceda o valor de 1 salário mínimo nacional (contado12 vezes por ano), auferido pelo insolvente, seja cedido ao fiduciário que aqui se designa na pessoa do Sr. AI, que fica incumbido da fiscalização do cumprimento dos deveres a que o devedor se encontra sujeito.
No mais, notifique nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 239 CIRE

***
Não se conformando com o assim decidido, o insolvente interpôs o presente recurso concluindo as suas alegações nos seguintes termos:

«I. Vem o presente recurso interposto do despacho inicial de exoneração do passivo restante, datado de 08.01.2025 com a ref.ª citius 194149634, o qual fixou em 1 SMN o rendimento intangível do insolvente contado 12 vezes por ano.
II. O despacho que antecede padece de nulidade por falta de fundamentação na medida em que não refere quais os factos relevantes que teve em consideração para fixar em 1 SMN o rendimento intangível do insolvente,
III. Com efeito, o despacho que antecede é totalmente omisso quanto à concreta factualidade que considerou para fixar ao insolvente um rendimento intangível equivalente a 1 SMN, o que impede o insolvente de conhecer e sindicar a factualidade que esteve na base de tal decisão.
IV. Termos em que, atendendo à falta de especificação dos fundamentos de facto, deverá ser declarado nulo o despacho que antecede nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 615º do CPC, com as legais consequências.
V. Sem prejuízo do exposto, volvidos mais de 3 anos desde a apresentação do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, as condições de vida do insolvente alteraram-se, sendo atualmente diversas das retratadas nos autos em 2021, pelo que se impõe que o rendimento intangível do insolvente seja fixado tendo em conta as suas atuais condições de vida.
VI. O insolvente, nascido em ../../1976, tem atualmente 48 anos de idade;
VII. Contraiu matrimónio em 2012 com DD, no regime da comunhão de adquiridos, tendo o casamento sido dissolvido em ../../2020 através de divórcio por mútuo consentimento decretado pela Sra. Conservadora do Registo Civil ....
VIII. Dessa união matrimonial resultou um filho, EE, nascido em ../../2005, relativamente ao qual foi celebrado acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais mediante o qual, entre outros e com relevância para o presente, o menor ficou a residir com a progenitora, e a quem o progenitor (insolvente) ficou obrigado a pagar a quantia de 150,00 € mensais a título de pensão alimentícia, acrescida de metade das despesas médicas e medicamentosas não cobertas pelo SNS e metade das despesas com educação e escolares.
IX. Em virtude das sucessivas atualizações, o valor da prestação alimentícia ascende, atualmente, a 175,00 € (cento e setenta e cinco euros) mensais.
X. O filho do insolvente, EE, pese embora tenha completado 20 anos no passado dia 18 de janeiro, encontra-se a frequentar o ensino superior, estando inscrito na Universidade ..., liquidando o insolvente o valor mensal de 34,85 € (trinta e quatro euros e oitenta e cinco cêntimos) a título de propinas.
XI. Para além do valor da prestação alimentícia (175,00 €) e de metade da propina do ensino superior (34,85 €), o insolvente suporta ainda metade das despesas médicas, medicamentosas e demais despesas de educação do seu filho, no valor mensal médio de 50,00 € (cinquenta euros), e comparticipa ainda no alojamento estudantil do seu filho com o valor de 150,00 € (cento e cinquenta euros) mensais.
XII. Somente com o seu filho EE, a frequentar o ensino superior, o insolvente tem uma despesa mensal não inferior a 410,00 € (quatrocentos e dez euros) mensais.
XIII. No que concerne a rendimentos, e contrariamente ao que sucedia em 2021, em que o insolvente se encontrava desempregado, este encontra-se atualmente a trabalhar, concretamente na designada “EMP01... Lda., pessoa coletiva ...25, onde desempenha as funções de servente de armazém e aufere o salário mensal base equivalente ao SMN, fixado em 870,00 € a partir de janeiro de 2025.
XIV. Com exceção do seu salário, o insolvente não possui quaisquer bens ou rendimentos, nomeadamente móveis, imóveis ou veículos.
XV. Pese embora o insolvente continue a residir, como sucedia em 2021, com a sua irmã FF, contribui atualmente com a quantia mensal de 400,00 € (quatrocentos euros) para fazer face às despesas da habitação, nomeadamente comparticipação na renda e despesas gerais como eletricidade, gás, água e alimentação.
XVI. Às referidas despesas acrescem as despesas médicas e medicamentosas do próprio insolvente, no valor mensal médio de 50,00 €, despesas de telefone no valor mensal de 30,00 €, despesas de transporte no médio mensal de 150,00 €, bem como as despesas pessoais com vestuário e de higiene pessoal de valor mensal nunca inferior a 100,00 € (cem euros).
XVII. Sopesados os rendimentos (SMN) e as despesas mensais descritas, com especial relevo para as relativas ao seu filho que se encontra atualmente a frequentar o ensino superior, e ainda as relativas aos encargos com a habitação onde reside com a sua irmã, daí resulta que o rendimento intangível de 1 SMN se mostra manifestamente insuficiente para o insolvente fazer face a todas as suas despesas mensais.
XVIII. Considerando o rendimento atual do insolvente, equivalente ao SMN, e as suas despesas normais e regulares, manifestamente superiores a tal montante, os subsídios de férias e de natal mostram-se absolutamente essenciais para que o insolvente consiga cumprir com todas as suas obrigações e responsabilidades, pelo que o rendimento intangível deverá ter em conta o valor anual global auferido pelo insolvente e dividido por 12 meses.
XIX. Tendo em conta as atuais condições de vida do insolvente, deverá o despacho que antecede ser revogado e substituído por outro que fixe o rendimento intangível do insolvente no equivalente a 1,5 SMN, determinando ainda que o rendimento intangível deverá ser apurado tendo em conta o valor anual global auferido pelo insolvente e dividido por 12 meses.
Termos em que, concedendo provimento ao recurso, farão Vossas Excelências Justiça
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Em 24.02.2025, foi proferido o seguinte despacho:
«Nas suas alegações de recurso, é demonstrada uma situação de facto diferente daquela constante do relatório do Sr. AI, a que alude o art.º 155 CIRE.
Parece, portanto, ser de alterar o quantum fixado em termos de rendimento de cessão, tendo em consideração as despesas ora alegadas com o filho maior, em idade escolar.
Assim ao valor fixado de 1 SMN por mês, somar-se-à o valor efectivamente pago com despesas do filho maior, despesas essas documentalmente comprovadas.
Notifique, devendo o recorrente informar o tribunal se mantem interesse no recurso
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O insolvente pronunciou-se, por requerimento de 10.03.2025, no sentido de manter interesse no recurso, porquanto o valor fixado de 1 SMN somado do valor das despesas efetivamente pagas ao filho maior se mostra, ainda assim, exíguo face às suas necessidades essenciais, e que lhe deverá ser fixado um rendimento intangível fixo equivalente a 1,5 SMN. Acrescenta que o despacho que antecede não dá resposta ao pedido recursório de se determinar que o rendimento intangível deva ser apurado tendo em conta o valor anual global auferido pelo insolvente e dividido por 12 meses.
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A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1ª parte e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC) – sendo que o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de apreciar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo Apelante, são as seguintes as questões solvendas:
I. Da admissibilidade de apresentação de documentos com o requerimento de recurso.
II. Da nulidade do despacho recorrido por não especificar quaisquer fundamentos (de facto) que justifiquem a decisão (artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC).
III. Da superação do vício da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentos (de facto) que justifiquem a decisão.
IV. Da quantificação do rendimento indisponível.
V. Do critério ou referência temporal para determinação da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea i), e da forma como se devem contabilizar os valores dos subsídios de férias e de Natal que eventualmente lhe venham a ser atribuídos, para efeitos de cessão desse rendimento.
VI. Das despesas do insolvente com o sustento, a segurança, a saúde e a educação do seu filho, já maior, EE, que ficou a residir com a progenitora.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

No despacho recorrido a 1.ª instância não fixou os factos que julgou provados e não provados que foram alegados pelo recorrente no requerimento inicial, em que requereu a exoneração do passivo restante.

IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

IV.1. Da admissibilidade da apresentação de documentos com o requerimento de recurso

O recorrente juntou com as alegações de recurso quatro documentos destinados, além do mais, a demonstrar o rendimento por si auferido e as despesas, próprias e com o seu filho EE.
Como é consabido, a admissibilidade da apresentação de documentos em sede recursiva obedece a regras particularmente restritivas.
Como emerge dos artigos 425.º e 651.º, n.º 1, 2ª parte, do CPC, com as suas alegações de recurso as partes só podem juntar documentos, subjetiva ou objetivamente, supervenientes – isto é, “cuja apresentação não tenha sido possível” até ao encerramento da discussão – ou cuja junção se torne necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
 Do exposto resulta que a possibilidade de junção de documentos não compreende, em hipótese alguma, o caso de a parte pretender oferecer um documento que poderia – e deveria – ter oferecido em 1ª instância[2].
A superveniência pode ser objetiva ou subjetiva: é objetiva quando o documento foi produzido posteriormente ao momento do encerramento da discussão; é subjetiva quando a parte só tiver conhecimento da existência desse documento depois daquele momento.
A parte que pretenda, nas condições apontadas, oferecer o documento deve, portanto, demonstrar a impossibilidade da junção do documento no momento normal, ou seja, alegando e demonstrando o carácter objetivo ou subjetivamente superveniente desse mesmo documento.
No caso, o recorrente não justifica nem demonstra a impossibilidade da junção dos documentos em causa até ao momento do encerramento da discussão.
É manifesto que os documentos em causa não são objetivamente supervenientes, dado que, todos eles, foram produzidos em momento anterior à prolação da decisão recorrida e, por conseguinte, podiam e deviam ter sido juntos ao processo de insolvência.
Portanto, a admissibilidade dessa apresentação somente poderá estar adjetivamente legitimada à luz do disposto no artigo 651.º, n.º 1, 2ª parte, ou seja, por essa junção “se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”, segmento normativo que tem sido alvo de interpretações não inteiramente consonantes.
Conforme se refere no acórdão da Relação do Porto de 29.09.2022[3], «[a] parte final do nº 1 do art.º 651º do Código de Processo Civil tem o seu âmbito de aplicação circunscrito às situações em que a decisão da 1ª instância cria, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento.»
Segundo uns, a junção do documento será admissível sempre que a decisão se baseie numa norma jurídica com cuja aplicação as partes não tivessem contado[4].
Outros[5] advogam que a admissibilidade da junção dos documentos, pela razão apontada, está ordenada pela finalidade de contraditar, pelo documento, meios probatórios introduzidos de surpresa no processo, que venham a pesar na decisão, que determinem, embora não necessariamente de forma exclusiva, o seu sentido.
Uma terceira posição defende que o legislador quis cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário fazer a prova de um facto ou factos com cuja relevância a parte não podia, razoavelmente, contar antes do proferimento da decisão[6].
 Há, no entanto, um ponto em que todas estas orientações são consonantes: o de que a aludida previsão normativa não abrange o caso de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da causa e visar, com esse fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter oferecido na 1ª instância[7].
Tal é, precisamente, a situação vertente, posto que os documentos em causa foram produzidos em momento anterior à prolação da decisão recorrida, sendo certo que os mesmos se revelam pertinentes ab initio, porquanto na alegação do recorrente, tais documentos relacionam-se de forma direta e ostensiva com a questão (pedido de exoneração) suscitada nos autos desde o primeiro momento.
Conclui-se, assim, que, atento o critério plasmado no n.º 1 do artigo 651.º, a requerida junção de documentos carece de fundamento legal, motivo pelo qual se determina o seu desentranhamento e devolução ao apresentante.
O incidente gerado está sujeito a tributação, nos termos do artigo 443.º, n.º 1, do CPC e artigo 27.º, n.º 1 do Regulamento das Custas Processuais.

IV.2. Da nulidade do despacho recorrido por não especificar quaisquer fundamentos (de facto) que justifiquem a decisão (artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC)

As nulidades da decisão (sentença ou despacho), taxativamente enunciadas no artigo 615.º do CPC, «reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito»[8], e diferem dos erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com erros ocorridos ao nível do julgamento da matéria de facto ou ao nível da decisão de mérito proferida na decisão recorrida decorrentes de uma distorção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error iuris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa.

Prescreve o citado artigo 615.º que:
1 - É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

(…)”.

A imposição de fundamentação, cuja falta integra a causa de nulidade prevista na alínea b), do mencionado preceito, está consagrada no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), segundo o qual, “[a]s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Na lei adjetiva, a obrigação geral de fundamentação, imposta no n.º 1 do artigo 154.º, do CPC, segundo o qual “[a]s decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, encontra-se especificamente regulamentada no artigo 606.º, do mesmo diploma, que impõe a obrigação de fundamentar a decisão, de facto e de direito, respetivamente no seu n.º 4, segundo o qual, “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”, e no seu n.º 3, segundo o qual, deve “o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”.
A necessidade de fundamentação das decisões judiciais constitui uma condição da sua própria legitimação e da verificação de um processo equitativo (exigência esta que decorre, a nível constitucional, do estipulado no artigo 20.º, n.º 4, da CRP).

Como escreve José Lebre de Freitas[9], «[a] exigência de fundamentação exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional».
A causa de nulidade prevista na alínea b), do citado artigo 615.º, respeita apenas à falta absoluta de fundamentação, entendendo-se como tal a total ausência de fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão. Não abrange a fundamentação deficiente, incompleta ou insuficiente, errada e/ou não convincente, que configura apenas uma causa de recurso por erro de julgamento, de facto ou de direito, que afeta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, se este for admissível, mas não constitui causa de nulidade da sentença.[10]
Como ensinava Alberto os Reis[11], «[h]á que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade

No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.03.2021[12] decidiu-se que «[s]ó a absoluta falta de fundamentação - e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação - integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil».
Tal interpretação tem, de resto, inteira aplicação aos despachos[13].

Porém, ainda que a Relação confirme a arguição da nulidade da sentença ou despacho, nomeadamente, no que para o caso releva, da que se manifeste através da falta de especificação dos fundamentos de facto, deverá suprir tal vício, nos termos dos artigos 662.º, n.ºs 1, 2, alínea c), a contrario, e 665.º do CPC, sempre que disponha de todos os elementos probatórios que lhe permitam efetuar com a necessária segurança o julgamento da matéria de facto omitido pelo tribunal a quo, fazendo uso dos seus poderes de substituição, proceder à valoração autónoma desses meios de prova e realizar esse julgamento de facto e motivá-lo.

No recurso, o recorrente arguiu a nulidade do despacho recorrido, que admitiu liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante, por não especificar os fundamentos de facto que justificam a fixação ao insolvente de um rendimento intangível equivalente a 1 SMN.
Compulsado o despacho em causa, verifica-se, efetivamente, que no mesmo se omitiram completamente os fundamentos de facto que o Tribunal a quo considerou relevantes para a decisão de mérito.
Ora, tal falta absoluta de fundamentação, por total ausência de fundamentos de facto em que assenta a decisão, integra a causa de nulidade prevista na alínea b), do citado artigo 615.º, que assim se tem por verificada.

IV.3. Da superação do vício da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentos (de facto) que justifiquem a decisão

A declaração de nulidade da decisão não obsta, no entanto, a que este Tribunal ad quem conheça do objeto da apelação, estando, na verdade, obrigado a fazê-lo, já que se encontra habilitado a extrair dos autos os factos provados (cuja alegação assenta, apenas, em prova documental), relevantes para a fixação do rendimento indisponível, a auferir pelo insolvente.
Com efeito, considerando o teor da Ata da conferência que teve lugar no dia ../../2020, no processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 2543/2020, que correu termos na Conservatória do Registo Civil ..., e que integra o Doc. 1, e da certidão de nascimento n.º ...  do ano de 2011  da Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de ..., juntos com a petição inicial no processo principal, dos quais decorre que o insolvente é divorciado, bem como o teor do acordo relativo ao exercício das responsabilidades parentais relativo ao, então, menor EE, homologado no processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 2543/2020, que correu termos na Conservatória do Registo Civil ..., e que integra o Doc. 1 junto com a petição inicial no processo principal, do qual decorre que o insolvente tem um filho, EE, nascido a ../../2005, que ficou a residir com a progenitora, a quem o progenitor ficou obrigado a pagar, a título de alimentos, as quantias discriminadas no aludido acordo, temos que esses elementos probatórios permitem ao tribunal ad quem efetuar com a necessária segurança o julgamento de facto quanto à aludida facticidade e, assim, suprir o vício da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.

Destarte, suprindo o vício da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação, julgam-se provados os seguintes factos:

1- O insolvente é divorciado, conforme Doc. 1 e certidão de nascimento n.º ... do ano de 2011 da Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de ..., juntos com a petição inicial no processo principal.
2- O insolvente tem um filho, EE, nascido a ../../2005, que ficou a residir com a progenitora, a quem o progenitor ficou obrigado a pagar, a título de alimentos, a quantia mensal de € 150,00, quantia essa que será anualmente atualizada, em janeiro, em função da variação da taxa de inflação, incluindo a habitação, a publicar pelo Instituto Nacional de Estatística, mas nunca inferior a 3%, acrescida das despesas escolares no início do ano escolar (livros e material escolar) e atividades extracurriculares e as relativas à assistência médica e medicamentosa do seu filho na parte não comparticipada por seguro de saúde ou SNS ou qualquer outro sistema de que o seu filho seja beneficiário, despesas estas que serão suportadas em partes iguais por ambos os progenitores, conforme Doc. 1 junto com a petição inicial no processo principal.
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IV.4.  Da quantificação do rendimento indisponível

Cumpre, então, apreciar a questão de saber se o valor do “rendimento indisponível” do insolvente deve ser fixado em 1,5 SMN, e se deve ser determinando que tal rendimento seja apurado tendo em conta o valor anual global auferido pelo insolvente e dividido por 12 meses, por os subsídios de férias e de natal se mostrarem absolutamente essenciais para que o insolvente consiga cumprir todas as suas obrigações.
           
Diz-nos o artigo 235.º que “[s]e o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste”.
Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, que determina que, “durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, (…) designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, (…) designada por fiduciário”, conforme resulta do disposto no artigo 239.º, n.º 2.

Quanto ao que se deve entender por rendimento disponível do devedor, prescreve o n.º 3, do referido normativo, que “[i]ntegram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”

Decorrido o período de cessão, se o procedimento de exoneração não terminar antecipadamente por verificação de qualquer uma das hipóteses previstas no artigo 243.º, o juiz deverá, então, decidir pela concessão, ou não, da exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 244.º, tendo a exoneração, como efeito típico, a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenha sido reclamados e verificados, nos termos do artigo 245.º, n.º 1, não abrangendo, porém, certos créditos enumerados no n.º 2, do referido normativo.

Conforme se refere na exposição de motivos que consta do diploma preambular do Dec. Lei n.º 53/2004, de 18.03 (ponto 45) «[o] Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da ‘exoneração do passivo restante’.».
A exoneração traduz-se na libertação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante[14].
            Como refere Marco Carvalho Gonçalves[15], «[o] regime da exoneração do passivo restante visa conceder ao devedor um fresh start ou uma segunda “oportunidade”, ou seja, destina-se dar-lhe a chance ou a possibilidade de “começar uma nova vida”, do ponto de vista económico e financeiro, e libertá-lo do estigma da insolvência, mediante um perdão da totalidade ou de parte das suas dívidas que não sejam integralmente satisfeitas no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento.
Trata-se, por isso, de um importante instrumento de recuperação do devedor e de reabilitação económica, bem como de proteção do devedor em relação aos seus credores, já que a subsistência das dívidas não satisfeitas no âmbito do processo de insolvência, após o termo deste processo, poderia representar para ele a manifesta impossibilidade de voltar a conseguir atingir o desejável equilíbrio económico-financeiro – considerando, desde logo, o prazo geral de prescrição de 20 anos e a consequente possibilidade de propositura de ações executivas pelos credores cujos créditos não tivessem sido satisfeitos no âmbito do processo de insolvência – equilíbrio esse que, no limite, só lograria atingir após a prescrição das dívidas não satisfeitas
Todavia, como enfatiza o mesmo autor[16], «este regime não deixa de ser particularmente gravoso para os credores do devedor, já que a recuperação deste é feita à custa do património dos seus credores.
Neste enquadramento, a exoneração do passivo restante implica uma colisão entre dois direitos constitucionalmente consagrados: de um lado, o direito do devedor à “proteção da liberdade económica” e ao “desenvolvimento da personalidade”; do outro lado, o direito do credor à proteção do seu crédito ou, em termos mais amplos, do seu património.
Exatamente por isso, este regime, enquanto incidente do processo de insolvência, compreende um conjunto de etapas, de pendor manifestamente judicial – maxime o despacho inicial, o período de cessão do rendimento disponível do devedor aos seus credores e o despacho de exoneração – no decurso das quais o devedor carece de demonstrar que é, efetivamente, merecedor de uma segunda oportunidade

No caso que nos ocupa, sustenta o recorrente que, volvidos mais de 3 anos desde a apresentação do relatório a que alude o artigo 155.º, as suas condições de vida alteraram-se, sendo atualmente diversas das retratadas nos autos em 2021, pelo que se impõe que o rendimento intangível seja fixado, tendo em conta as suas atuais condições de vida, em 1,5 SMN, determinando-se ainda que o rendimento intangível seja apurado tendo em conta o valor anual global por si auferido e dividido por 12 meses, porquanto os subsídios de férias e de natal se mostram absolutamente essenciais para que consiga cumprir com todas as suas obrigações.
Alega, em síntese, que, em virtude das sucessivas atualizações, o valor da prestação alimentícia devida ao seu filho, EE, nascido em ../../2005, ascende, atualmente, a 175,00 € mensais; que o seu filho se encontra a frequentar o ensino superior, estando inscrito na Universidade ..., liquidando o insolvente o valor mensal de 34,85 € a título de propinas; que para além do valor da prestação alimentícia (175,00 €) e de metade da propina do ensino superior (34,85 €), suporta ainda metade das despesas médicas, medicamentosas e demais despesas de educação do seu filho, no valor mensal médio de 50,00 €, e comparticipa ainda no alojamento estudantil do seu filho com o valor de 150,00 € mensais.
Acrescenta que, contrariamente ao que sucedia em 2021, em que se encontrava desempregado, encontra-se atualmente a trabalhar, concretamente na designada “EMP01... Lda., pessoa coletiva ...25, onde desempenha as funções de servente de armazém e aufere o salário mensal base equivalente ao SMN, e que, pese embora continue a residir, como sucedia em 2021, com a sua irmã FF, contribui atualmente com a quantia mensal de 400,00 € para fazer face às despesas da habitação, nomeadamente comparticipação na renda e despesas gerais como eletricidade, gás, água e alimentação. Às referidas despesas acrescem as suas despesas médicas e medicamentosas, no valor mensal médio de 50,00 €, despesas de telefone no valor mensal de 30,00 €, despesas de transporte no médio mensal de 150,00 €, bem como as despesas com vestuário e de higiene pessoal de valor mensal nunca inferior a 100,00 €.

Deixando de parte, por ora, as despesas inerentes às responsabilidades parentais, que, como veremos adiante, não integram o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, mas “outras despesas a ressalvar pelo juiz no despacho inicial”, todas as restantes despesas alegadas pelo insolvente, assim como o rendimento auferido, substanciam a alegação de factos novos, que, como tal, não poderão ser considerados no presente recurso.
Conforme refere Miguel Teixeira de Sousa[17], «[n]o direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas (cfr., v. g., STJ – 15/4/1993, CJ/S 93/2, 62; RL – 2/11/1995, CJ 95/5, 98). Excluída está, por isso, a possibilidade de alegação de factos novos (ius novorum; nova) na instância de recurso, embora isso não resulte de qualquer proibição legal, mas antes da ausência de qualquer permissão expressa.»
Já quanto aos factos supervenientes, isto é, aos factos que ocorreram depois do encerramento da discussão na 1.ª instância, e que, por isso, não podiam ter sido invocados pelas partes naquela instância, vem sendo entendido que é possível a sua invocação na instância de recurso[18].
Ora, os novos factos atinentes às despesas do próprio insolvente, de resto indocumentados, bem como ao seu rendimento, podiam e deviam ter sido alegados na instância recorrida, porquanto não constituem factos supervenientes. Não o tendo sido, ficou precludida a alegação dos mesmos em sede de recurso.
  
Sobre o que se deve entender por “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, o legislador adotou, quanto ao limite máximo, um critério objetivamente quantificável – ou seja, o montante equivalente a três salários mínimos nacionais – e deixou ao Juiz a tarefa de, caso a caso e atentas as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar e quantificar o limite mínimo.
A exclusão, do rendimento disponível, do necessário para o sustento minimamente digno do devedor e dos membros do seu agregado familiar fundamenta-se na salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal, princípio que tem acolhimento universal, no artigo 1.º da Declaração dos Direitos Humanos), e na nossa própria Lei Fundamental, no artigo 59.º da CRP.
À luz da jurisprudência constitucional, «ao fixar o regime do salário mínimo nacional o legislador teve presente a intenção de garantir a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador»[19].
Temos, assim, o valor do salário mínimo nacional (hoje retribuição mínima mensal garantida) como o valor de referência, que garante, à partida, a subsistência, com o mínimo de dignidade.

Como refere Marco Carvalho Gonçalves[20], «[n]a ponderação do montante que seja necessário para garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar – isto é, o rendimento indisponível – o julgador, sem descurar a necessária proteção dos direitos dos credores – o que poderá, nomeadamente, implicar que o devedor “reduza as suas despesas até ao patamar do mínimo que seja indispensável à sua sobrevivência em condições mínimas de dignidade e que suporte o sacrifício inerente a tal redução”, até porque o “devedor não pode ter a expectativa de, durante o período da cessão, manter o nível de vida a que ele e o seu agregado familiar estavam habituados antes da declaração de insolvência” – deverá ter em atenção as particularidades do caso em concreto, maxime “a idade do insolvente, a composição do seu familiar, as suas despesas normais, quaisquer despesas especiais relativas à sua saúde ou encargos com ascendentes ou descendentes, etc., e respectivos rendimentos”, sendo que recai sobre o devedor o ónus de demonstrar as suas reais necessidades económico-financeiras».

No caso que nos ocupa, não resultaram provadas as reais despesas do insolvente com habitação, alimentação, vestuário e saúde, assim como os respetivos rendimentos.
Todavia, não pode o tribunal deixar de decidir, devendo fazê-lo, na falta de demonstração de despesas especiais relativas à habitação, saúde ou outras, desde logo, com base na presunção de que o insolvente precisa, para viver com um mínimo de dignidade, pelo menos, do valor correspondente a uma remuneração mínima mensal garantida.

Conforme se escreve no acórdão da Relação do Porto de 08.03.2019[21], «[a] fixação do rendimento indisponível para satisfazer o “que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” (art. 239/3-b/i do CIRE) deve ser feita tendo em conta as concretas possibilidades e necessidades do insolvente.
Mas, finda a produção de prova, se não existem elementos nos autos que permitam saber, em concreto, aquilo que o insolvente precisa (tendo em conta as suas concretas possibilidades e necessidades), o tribunal, tendo na mesma que decidir (art. 8/1 do Código Civil: “O tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio.”), tê-lo-á que fazer com base em presunções daquilo que, no caso, um insolvente precisará.
Aquela presunção que tem sido utilizada pelos tribunais para o efeito, é a de que qualquer adulto, salvo circunstâncias excepcionais, precisa, pelo menos, para viver, de um SMN que representa o mínimo dos mínimos do necessário para um sustento minimamente digno.»
Pode igualmente servir de contraponto o regime dos limites de impenhorabilidade das execuções (artigo 783.º, n.ºs 1 e 3 do CPC) que estabelece que a impenhorabilidade de parte dos vencimentos, salários e prestações equivalentes “tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional”, pois tal como se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 09.02.2017[22], «a situação de um insolvente que tem dívidas para pagar é, neste aspecto, muito semelhante a um qualquer outro devedor que fosse executado (o processo de insolvência é, grosso modo, uma execução com mais de que um credor)».
Entende-se, assim, como razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do insolvente, na falta de elementos que justifiquem a fixação de um montante superior, fixar o montante do rendimento indisponível no correspondente a uma remuneração mínima mensal garantida[23], assim se conciliando, por um lado, os interesses do insolvente no fresh start e, por outro, os interesses dos credores na recuperação, ainda que parcial, dos seus créditos.
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IV.5. Do critério ou referência temporal para determinação da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea i), e da forma como se devem contabilizar os valores dos subsídios de férias e de Natal para efeitos de cessão desse rendimento

Pretende o recorrente que seja determinado que o rendimento indisponível seja apurado tendo em conta o valor anual global por si auferido e dividido por 12 meses.
Alega, para o efeito, que, considerando o seu rendimento atual, equivalente ao SMN, e as suas despesas normais e regulares, manifestamente superiores a tal montante, os subsídios de férias e de Natal mostram-se absolutamente essenciais para que consiga cumprir com todas as suas obrigações.
Que dizer?
A jurisprudência diverge no que respeita à questão de saber se o apuramento do que excede o rendimento indisponível do insolvente deve ser feito mensalmente, já que a unidade temporal pela qual se afere o salário mínimo nacional é o mês[24], ou se tal apuramento deve ser feito anualmente[25].
No sentido da primeira orientação, pode ler-se no sumário do acórdão da Relação de Coimbra de 22.10.2019, que «I- O apuramento dos rendimentos objecto de cessão para efeitos da alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE deve ser feita por referência ao período de um mês. II- Nos meses em que não advierem rendimentos ao devedor ou advierem rendimentos inferiores ao que foi considerado necessário para o sustento minimamente digno dele e da sua família, não há cessão de rendimentos, mas também não nasce, a favor dele, o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como o razoavelmente necessário para o sustento dele e da família
A alínea c) do artigo 239.º, n.º 4, prevê que durante o período de cessão, o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão.
Como observam Lilian Almeida Curvo / Maria João Machado[26], «[e]xtrai-se deste preceito, pela presença da palavra “imediatamente” e levando em consideração que grande parte da população portuguesa é trabalhador por conta de outrem e aufere rendimentos mensais, que o cálculo do rendimento disponível deverá ser feito, por norma, levando em consideração o mês
Casos há, no entanto, em que o rendimento do insolvente, em determinados meses, não chega a alcançar o valor fixado como o mínimo de subsistência, ou em que nem sequer há rendimento, e que justificam que o apuramento do que excede o rendimento indisponível do insolvente possa ser feito anualmente, por forma a permitir compensar, nos meses em que o seu rendimento excedeu o valor do rendimento mensal indisponível fixado, os meses em que o seu rendimento não atingiu esse valor, sob pena de ficar comprometido o seu “sustento minimamente digno”.
No sentido desta segunda orientação, lê-se no sumário do acórdão da Relação do Évora de 17.01.2019, que «I- Nos casos em que o rendimento do insolvente, em determinados meses, não chega a alcançar o valor fixado como o mínimo de subsistência ou nem sequer há rendimento, terá necessariamente de ocorrer uma compensação relativamente aqueles em que o exceda, sob pena de aquela ficar comprometida. II- Para esse efeito, terá de apurar-se o montante mensal médio dos rendimentos auferidos pelo insolvente num determinado ano fiscal e cotejá-lo com valor mensal fixado pelo Tribunal. III- Se tal montante mensal médio não exceder o valor mensal fixado pelo Tribunal, a obrigação de entrega ao fiduciário a que alude a alínea c) do nº4 do art.º 239º do C.I.R.E. é inexistente
No mesmo sentido, lê-se no sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 22.09.2020 que «II - Do facto de o salário mínimo mensal nacional constituir um critério referência para fixação do montante necessário ao sustento minimamente condigno dos exonerandos, daí não decorre que o legislador pretendeu e previu o cálculo ou apuramento dos rendimentos disponíveis vinculado a uma cadência mensal, por referência estanque aos rendimentos auferidos em cada mês de cada ano do período de cessão, tando mais que, conforme art. 240º, nº 2 do CIRE, é anual a periodicidade para a elaboração e apresentação do relatório do período de cessão pelo Fiduciário.
III – Perante a irregularidade dos montantes mensais dos rendimentos auferidos pelos exonerandos, com inclusão de meses com rendimentos de montante inferior ao judicialmente excluído da cessão de rendimentos, só através do apuramento dos rendimentos objeto de cessão por referência aos rendimentos anualmente auferidos é possível garantir aos devedores disporem, em cada mês de cada ano do período de cessão e por recurso aos rendimentos que ao longo do ano vão auferindo, de rendimentos de montante não inferior, ou de valor o mais aproximado possível, ao rendimento mensal indisponível fixado.
IV - Os valores de subsistência minimamente condigna associados à fixação do montante dos rendimentos dos devedores excluídos da cessão, merecem tutela legal e constitucional prevalecente sobre o interesse dos credores na cessão do rendimento disponível sucessiva e isoladamente determinado por referência aos rendimentos por aqueles auferidos em cada mês
Ainda no mesmo sentido, lê-se no sumário do acórdão da Relação de Évora de 07.04.2022, que «1 – O CIRE não impõe que o critério temporal para o cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i), do CIRE, seja mensal.
2 – Esse cálculo deverá ser feito em conformidade com o critério temporal que tenha sido fixado pelo juiz.
3 – Na falta dessa fixação, deverá o mesmo cálculo ser feito segundo um critério anual, tendo como referência cada um dos anos do período da cessão
Conforme se observa neste último aresto, a rigidez do critério mensal «torna-o cego em relação a situações em que, (…), os rendimentos do insolvente são variáveis, impedindo este último de fazer uma coisa tão simples como poupar em meses melhores para poder gastar em meses piores e assim pondo em causa o sustento minimamente digno daquele e do seu agregado familiar.»
Acrescenta-se, no mesmo aresto, que o critério mensal também produz resultados inadmissíveis quando os rendimentos do insolvente provenham de trabalho por conta própria.
Ali se refere que «[t]ambém o rendimento mensal de um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode variar. Mesmo pondo de lado a questão resultante da percepção dos subsídios de Natal e de férias (cuja análise, tendo em conta a abundante jurisprudência existente sobre a matéria, nos levaria longe demais, tendo em conta o objecto deste recurso), um insolvente que trabalhe por conta de outrem pode ver o seu salário variar de mês para mês em função de situações como, por exemplo, períodos de desemprego ou de baixa por doença, a prestação de trabalho suplementar ou salários em atraso. Imaginemos, por exemplo, um insolvente a quem não são pagos os salários durante 3 meses seguidos, sendo esse pagamento efectuado no mês seguinte, juntamente com o salário que a esse mês respeita. Em consequência de um facto que, em si mesmo, é altamente penalizador para um trabalhador como é ter salários em atraso, a situação do insolvente poderia ser agravada pela circunstância, a que ele é alheio e que em nada o beneficiou, de receber 4 salários num só mês e ver uma parte desse rendimento integrada no rendimento disponível.»

Entendemos igualmente que o CIRE não impõe que o critério temporal para o cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea i), seja mensal, podendo adotar-se um critério anual, tendo como referência cada um dos anos do período da cessão, tendo em atenção as particularidades do caso concreto, considerando a rigidez do critério mensal, que pode levar a que o “sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar” seja posto em causa – quer nas situações em que os seus rendimentos são variáveis, quer nas situações em que o insolvente trabalha por conta de outrem, mas vê o seu salário variar de mês para mês em função de situações como, por exemplo, períodos de desemprego ou de baixa por doença, prestação de trabalho suplementar ou salários em atraso – a fim de assegurar o efetivo recebimento, pelo insolvente, do valor fixado de “sustento minimamente digno” durante o período de cessão.
Como se observa no acórdão desta Relação de 31.10.2024[27], «não passando a cessão de uma fictio iuris, posto que os rendimentos são efetivamente recebidos pelo insolvente e depois entregues ao fiduciário, que os afeta, no final de cada ano, aos pagamentos e reembolsos previstos no n.º 1 do art. 241 do CIRE, a sua concretização pressupõe, a montante, a definição do rendimento disponível, a qual é feita por via da exclusão do que seja indisponível. É nesse momento que o juiz tem de definir o critério a atender para esse efeito. Nesta perspetiva, o advérbio de modo imediatamente que é utilizado na alínea c) do n.º 4 do art. 239 do CIRE mais não significa que o rendimento disponível, aquele que é objeto de cessão, deve ser entregue assim que realizada a dita operação de liquidação, sem necessidade de qualquer interpelação para esse efeito

No caso em análise, atenta a escassa factualidade apurada, propendemos no sentido de se adotar o critério anual, tendo como referência cada um dos anos da cessão, como forma de assegurar que, durante o período de cessão de rendimentos, o insolvente usufrua, todos os meses, do valor fixado como sendo o quantum indispensável à sua sobrevivência, e, desse modo, salvaguardar soluções conformes com os princípios constitucionais do respeito pela dignidade da pessoa humana e da igualdade, consagrados nos artigos 1.º e 13.º da CRP, o que em nada prejudica os credores da insolvência, que só anualmente receberão as quantias a que têm direito, tal como resulta do artigo 241.º, n.º 1.
Para o efeito, terá de apurar-se o montante médio dos rendimentos que o insolvente venha a auferir num determinado ano fiscal e cotejá-lo com o valor mensal fixado pelo tribunal[28], devendo ser entregue ao fiduciário, nos termos do artigo 239.º, n.º 4, alínea c), o que, desse montante mensal médio, exceder o valor mensal fixado pelo tribunal, inexistindo tal obrigação, se tal montante mensal médio não exceder esse valor.

No que respeita aos subsídios de férias e de Natal, na medida em que tais prestações não revestem a mesma natureza dos vencimentos e salários, conforme se extrai do art.º 263.º, n.º 1 (segundo o qual “[o] trabalhador tem direito a subsídio de Natal de valor igual a um mês de retribuição, que deve ser pago até 15 de Dezembro de cada ano.”) e do art.º 264.º, n.º 2 (segundo o qual “o trabalhador tem direito a subsídio de férias, compreendendo a retribuição base e outras prestações retributivas que sejam contrapartida do modo específico da execução do trabalho, correspondentes à duração mínima das férias.”) do Código do Trabalho, constituindo mero complemento desses rendimentos[29], nada obsta a que sejam incluídos no rendimento disponível a ceder ao fiduciário na parte em que, nos meses do respetivo pagamento, excederem o rendimento indisponível fixado para 12 meses.
Porém, nas situações em que o rendimento mensalmente auferido pelo insolvente, sem os subsídios de férias e de Natal, fica aquém do valor fixado pelo tribunal, os referidos subsídios tornam-se necessários para assegurar o “sustento minimamente digno do insolvente”[30], caso em que deverão ser imputados no rendimento indisponível.
No caso que nos ocupa, na medida em que o insolvente apenas tem direito ao montante razoavelmente necessário para o seu sustento, fixado no valor correspondente a uma remuneração mensal mínima garantida, os valores dos subsídios de férias e de Natal que eventualmente lhe venham a ser atribuídos poderão incluir-se no (ou excluir-se do) rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência (artigo 239.º, n.º 3), quando, englobados no rendimento total anual, e este dividido pelos 12 meses do ano, ultrapassem (ou não), em cada mês, o valor do rendimento mensal indisponível fixado[31].
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IV.6. Das despesas do insolvente com o sustento, a segurança, a saúde e a educação do seu filho, já maior, EE, que ficou a residir com a progenitora

Resulta do elenco dos factos provados que o insolvente se encontra constituído na obrigação de prestar alimentos a favor do seu filho, já maior, EE, que ficou a residir com a progenitora.
As responsabilidades parentais encontram-se reguladas no artigo 1877.º e ss do Código Civil.
Prescreve o artigo 1878.º, n.º 1, que “[c]ompete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”.
Sobre as despesas com o sustento, segurança, saúde e educação dos filhos, dispõe o artigo 1879.º que “[o]s pais ficam desobrigados de prover ao sustento dos filhos e de assumir as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação na medida em que os filhos estejam em condições de suportar, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, aqueles encargos”.
Sobre as despesas com os filhos maiores, dispõe o artigo 1880.º que “[s]e no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete”. 
Por sua vez, estatui o n.º 2 do artigo 1905.º que “[p]ara efeitos do disposto no artigo 1880.º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da exigência”.
Este normativo não prevê um direito novo, mas uma extensão do dever de prestar alimentos dos pais para com os filhos, que se projeta na maioridade, não cessando automaticamente com a maioridade[32].
No caso que nos ocupa, as despesas do insolvente com o sustento, a segurança, a saúde e a educação do seu filho, já maior, EE, que ficou a residir com a progenitora, que o insolvente se obrigou a pagar em momento anterior ao da declaração de insolvência, por acordo homologado no processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos na Conservatória do Registo Civil ..., não integram o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” e deverão incluir-se nas “outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial” a que alude o n.º 3, alínea b), subalínea iii), do artigo 239.º[33].
Por conseguinte, encontram-se tais despesas excluídas do rendimento disponível, desde que documentalmente comprovadas.
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Isto posto, importa decidir em conformidade, pela parcial procedência e parcial improcedência do recurso de apelação interposto pelo insolvente e, assim, declarar nulo o despacho recorrido, por falta de fundamentação de facto; fixar o montante do rendimento indisponível em uma remuneração mensal mínima garantida, contado doze vezes por ano, e excluir do rendimento disponível o valor das despesas, documentalmente comprovadas, com o sustento, a segurança, a saúde e a educação do filho maior do insolvente.
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V. DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar parcialmente procedente e parcialmente improcedente o recurso de apelação interposto pelo devedor insolvente e, na sequência, em declarar nulo, por falta de fundamentação de facto, o despacho recorrido que admitiu liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante, na parte em que ficou o rendimento indisponível no valor de “1 salário mínimo nacional”; em fixar o montante do rendimento indisponível em uma remuneração mensal mínima garantida, contado doze vezes por ano, e em excluir do rendimento disponível o valor das despesas, documentalmente comprovadas, com o sustento, a segurança, a saúde e a educação do filho do insolvente, EE, confirmando-se, no mais, o decidido.
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Em conformidade com o disposto no artigo 443.º, n.º 1 e no artigo 27.º do Regulamento das Custas Processuais, determina-se o desentranhamento e a devolução ao apresentante dos documentos que ofereceu com as suas alegações, condenando-se o mesmo na multa de uma UC pelo incidente a que deu causa.
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Custas a cargo do recorrente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.
Notifique.                  
                                              
Guimarães, 24 de abril de 2025

Susana Raquel Sousa Pereira – Relatora   
João Peres Coelho – 1º Adjunto
Gonçalo Oliveira Magalhães – 2º Adjunto


[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Cf., neste sentido, acórdão do STJ de 3.03.89, BMJ n.º 385, p. 545 e JOÃO ESPÍRITO SANTO, O documento superveniente para efeitos de recurso ordinário e extraordinário, 2ª edição, Almedina, p. 47 e ss.
[3] Processo n.º 17360/21.2T8PRT.P1, Relator Filipe Caroço.
[4] Neste sentido, ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 115.º, p. 95.
[5] Assim JOÃO ESPÍRITO SANTO, obra citada, p. 50. Na jurisprudência, vejam-se acórdãos do STJ de 12.01.94, BMJ n.º 433, p. 467 e de 26.09.12 (processo n.º 174/08.2TTVFX.L1.S1, Relator Gonçalves Rocha).
[6] Neste sentido, ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO e NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição, revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pp. 533-534.
[7] Vd. o acórdão da Relação do Porto de 10.03.2025 (processo n.º 3366/23.0T8PRT.P1, Relator Miguel Baldaia de Morais).
[8] Vd. o acórdão do STJ de 03.03.2021 (processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, Relatora Leonor Cruz Rodrigues).
[9] A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, p. 317.
[10] Assim, ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, p. 140; ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO e NORA, obra citada, p. 687; RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, III, p. 194; MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Processo Civil, p. 221, e TOMÉ GOMES, Da Sentença Cível, p. 39. Na jurisprudência, vejam-se, entre ouros, os acórdãos do STJ de 15.05.2019 (processo n.º 835/15.0T8LRA.C3.S1, Relator Ribeiro Cardoso) e de 03.03.2021 (processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, supra referido), e desta Relação de 17.11.2004 (processo n.º 1887/04-1, Relator Vieira e Cunha).
[11] Obra citada, p. 140.
[12] Processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, supra referido.
[13] Vd. o acórdão desta Relação de 21.05.2015 (processo n.º 1/08.0TJVNF-EK.G1, Relatora Ana Cristina Duarte).
[14] Assim, LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, 2015, p. 848. A obra em referência é, no entanto, anterior à alteração do artigo 235.º do CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, que alterou o período de cessão de 5 para 3 anos.
[15] Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, 2023, Almedina, pp. 613-614.
[16] Obra citada, pp. 616-617.
[17] Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª Edição, Lex, 1997, p. 395.
[18] Assim, ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra Editora, Lim., 1984, p. 85 e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, obra citada, p. 457. Na jurisprudência, vd. o acórdão desta Relação de 06.03.2025 (processo n.º 4655/20.1T8GMR, Relator José Carlos Pereira Duarte), em cujo sumário pode ler-se que «II- É admissível a invocação no recurso de factos supervenientes ao encerramento da discussão em 1ª instância, tendo em consideração o principio da economia processual, que o processo civil não é um fim em si mesmo - deve estar ao serviço da realização do direito material e, assim, da vida –, a remissão do art.º 663º, n.º 2 do CPC para o art.º 611º, na parte aplicável e o disposto no art.º 651º, n.º 1 do CPC.III – Tal admissibilidade depende da verificação das seguintes condições:- seja dada a oportunidade à contraparte de exercer o contraditório, o que se cumpre com a notificação das alegações, podendo o apelado responder nas contra-alegações;- deve ser apresentado documento que permita provar os factos alegados sem uma indagação mais alargada.».
[19] Vd. o acórdão n.º 177/02, do Pleno, Processo n.º 546/01, Relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, publicado no DR, 1.ª Série A, de 02.07.2004. Neste aresto, foi declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do artigo 824.º, n.ºs 1 e 2 do então vigente CPC de 1961, que permitia a penhora até um terço quer de vencimentos ou salários auferidos pelo executado, quando estes fossem de valor não superior ao salário mínimo nacional em vigor, quer de pensões de aposentação ou de pensões sociais por doença, velhice, invalidez e viuvez, cujo valor não alcançasse aquele mínimo remuneratório, por a mesma contrariar o princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a), e 63.º, n.ºs 1 e 3 da CRP.
[20] Obra citada, pp. 635-642.
[21] Processo n.º 5017/3T8OAZ-B.P1, Relatora Francisca Mota Vieira.
[22] Processo n.º 2849/15.7T8SNT-B, Relatora Isabel Lima.
[23] Atualmente fixada em € 870,00, pelo Decreto-Lei n.º 112/2024, de 19 de dezembro.
[24] Neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 09.03.2021 (processo n.º 11855/16.7T8SNT.L1.S1, Relator José Rainho), desta Relação de 14.05.2020 (processo n.º 4225/18.4T8GMR-D.G1),  da Relação do Porto de 30.04.2020 (processo n.º 2441/16.2T8AVR-D.P1, Relator Carlos Gil), da Relação de Coimbra de 22.10.2019 (processo n.º 2455/11.9TJCBR.C1, Relator Emídio Santos), da Relação de Lisboa de 06.09.2022 (processo n.º 3612/20.2T8FNC-C.L1-1, Relator Nuno Teixeira, com o voto de vencido de Manuel Marques) e da Relação de Évora de 12.05.2022 (processo n.º 2955/20.0TBSTB.E1, Relator Tomé de Carvalho). No acórdão da Relação do Porto de 08.10.2020 (processo n.º 9/20.8T8STS.P1, Relator Joaquim Correia Gomes), é seguido o entendimento de que «[o] “sustento minimamente digno” da devedora/insolvente deve ser aferido em função da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), sendo, por isso, contabilizado mensalmente e não anualmente», pelo que «[s]empre que em tal período seja ultrapassado o limite máximo do valor disponível fixado para a insolvente, tal excesso será entregue à fiduciária», mas que «[t]al não invalida que exista uma ponderação corretiva sempre que o rendimento mensal retido para a insolvente não atinja a retribuição mínima mensal garantida (RMMG), podendo para o efeito ponderar-se qualquer acréscimo de rendimentos posterior, como sejam os subsídios de férias ou de Natal ou qualquer outro rendimento extra, de modo a encontrar-se um constante e consistente “sustento minimamente digno”.»
[25] Neste sentido, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa de 22.09.2020 (processo n.º 6074/13.7TBVFX.L1-1, Relatora Amélia Sofia Rebelo) e da Relação de Évora de 17.01.2019 (processo n.º 344/16.0T8OLH.E1, Relatora Maria João Sousa e Faro) e de 07.04.2022 (processo n.º 78/13.7TBMAC.E1, Relator Vítor Sequinho dos Santos).
[26]  “A exoneração do passivo restante – algumas questões acerca da fixação do rendimento disponível”, Julgar Online, março de 2022, p. 14, disponível em https://julgar.pt/.
[27] Processo n.º 4180/23.9T8GMR.G1, no qual foi Relator Gonçalo Oliveira Magalhães, aqui 2.ª Adjunto, e Adjunto João Peres Coelho, aqui 1.º Adjunto.
[28] Vd. o acórdão da Relação de Évora de 344/16.0T8OLH.E1, Relatora Maria João Sousa e Faro.
[29] Assim, LUÍS MANUEL MENEZES LEITÃO, Direito do Trabalho, 5.ª Edição, Almedina, 2016, p. 346.
[30] Vd. o acórdão desta Relação de 31.10.2024, supra referido.
[31] Vd. o acórdão da Relação do Porto de 01.03.2021 (processo n.º 1784/19.8T8STS.P1, Relator Filipe Caroço).
[32] Vd. o acórdão da Relação de Coimbra de 26.09.2017 (processo n.º 1092/16.6T8LMG.C1, Relatora Maria João Areias).
[33] Vd., neste sentido, o acórdão da Relação do Porto de 16.01.2018 (processo n.º 2559/14.6T8VNG-G.P1, Relator Rui Moreira).