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ACÇÃO DE DESPEJO
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
HERANÇA INDIVISA
LEGITIMIDADE DO CABEÇA DE CASAL
ARRENDAMENTO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
DENÚNCIA
COMUNICAÇÃO
EFICÁCIA
LEI APLICÁVEL
Sumário
I- A regra da concentração da defesa na contestação conhece as limitações referidas no n.º 2, do artigo 573.º do Código de Processo Civil, ao permitir a dedução após a apresentação da contestação dos meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente, como sucede com quase todas as exceções dilatórias (artigo 578.º), embora já não seja conferida ao réu a possibilidade de articular novos factos que as sustentem, direito que, em regra, preclude com a apresentação da contestação. Destarte, não está o réu obrigado a invocar a exceção dilatória de ilegitimidade, ativa ou passiva na contestação, sob pena de preclusão, podendo fazê-lo em momento posterior, por se tratar de meio de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente. II- Só assim não será se, em sede de despacho saneador, a respetiva questão tiver sido concretamente apreciada, pois nesse caso o despacho produz o efeito de caso julgado formal (artigos 595.º, n.º 3 e 620.º, do Código de Processo Civil). III- O critério geral fixado na lei para se saber quem tem personalidade judiciária é o da correspondência (coincidência ou equiparação) entre a personalidade jurídica (ou capacidade de gozo de direitos) e a personalidade judiciária. Há, todavia, exceções ao princípio da correspondência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária, orientadas no sentido de estender a personalidade judiciária a quem não goza de personalidade jurídica. Entre essas exceções, a lei adjetiva confere personalidade judiciária à herança jacente, o que significa que, embora carecida de personalidade jurídica, pode propor ações em juízo, sendo a herança a verdadeira parte na ação e não o sucessível chamado, o herdeiro, o curador ad hoc ou o Ministério Público que aja em nome dela. IV- Com a aceitação pelos herdeiros, a herança indivisa ou não partilhada deixa de estar na situação de jacente e, como tal, deixa de gozar de personalidade judiciária, e já não pode propor ações em juízo e desempenhar, em seu próprio nome, o papel de parte processual, porquanto quem passa a poder intervir na ação como parte são os respetivos titulares, enquanto herdeiros do de cujus, ou o cabeça-de-casal nas situações em que a lei expressamente o prevê. V- Vem sendo pacificamente entendido que a instauração de uma ação de despejo constitui um ato de administração que se justifica no âmbito dos poderes gerais conferidos ao cabeça-de-casal, o qual detém legitimidade para, por si só, deduzir oposição à renovação do contrato de arrendamento. VI- A falta de personalidade judiciária da autora herança ilíquida e indivisa configura uma exceção dilatória típica e insuprível, de conhecimento oficioso e que dá lugar à absolvição do réu da instância. VII- Não obstante, estando em causa a proteção dos interesses dos herdeiros da autora e nenhum outro motivo obstando ao conhecimento do mérito da causa, a subsistente exceção dilatória de falta de personalidade judiciária da autora não deverá determinar a absolvição da instância, antes devendo os autos prosseguir os seus termos, em prol da prolação de uma decisão de mérito em detrimento de uma decisão de natureza formal, visando-se impedir que a real possibilidade de resolução do litígio seja prejudicada por uma questão de ordem formal que desnecessariamente impeça a obtenção da justiça material, quando a decisão deve ser inteiramente favorável à parte a favor de quem é estabelecida a absolvição da instância. VIII- Os poderes conferidos ao tribunal de recurso para alterar a matéria de facto apenas deverão ser exercidos nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente (em termos de convicção autónoma) para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância e já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum. IX- O facto extintivo do contrato de arrendamento, e que produz a respetiva denúncia, é a declaração de denúncia, que, no caso sub judice, ocorreu com o envio de comunicação pelo senhorio em momento anterior ao da entrada em vigor da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, ainda que o prazo de pré-aviso não se tivesse completado aquando do início de vigência da referida lei. X- Pese embora a Lei n.º 13/2019 se aplicar aos contratos de arrendamento que subsistem à data da sua entrada em vigor, e, por conseguinte, ao direito de denúncia de contratos anteriormente celebrados que venha a ser exercido depois do seu início de vigência, por força do disposto no artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil, não se aplica, porém, aos factos extintivos verificados antes do seu início de vigência (como é o caso da comunicação da denúncia do contrato pelo senhorio, pois quando a referida lei entrou em vigor, já se havia constituído na esfera jurídica do senhorio o direito de denúncia do contrato, e este já o tinha adequadamente exercido), pelo que a denúncia se rege pela lei em vigor ao tempo da sua comunicação ao arrendatário.
Texto Integral
Acordam as Juízas Desembargadoras da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte: I- RELATÓRIO
Herança aberta por óbito de AA, com o NIF ...10, representada pelo cabeça de casal BB, residente na Rua ..., ... Porto, intentou procedimento especial de despejo contra CC, residente em Rua ..., ..., ..., ... ..., por oposição à renovação do contrato de arrendamento que tem por objeto o imóvel pertencente à herança de AA e mulher DD, nos termos do artigo 1110.º, n.º 2.º ex vi artigo 1097.º, n.º 1, al. b) do Código Civil[1] (na redação anterior à entrada em vigor da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro).
O réu deduziu oposição, por exceção, invocando uma incapacidade acidental que o impediu de compreender o sentido e o alcance da declaração negocial por si reproduzida na carta que redigiu em 22 de janeiro de 2014 e, subsidiariamente, a ineficácia da denúncia operada pelo senhorio, por falta de confirmação da oposição à renovação do contrato de arrendamento e extemporaneidade da comunicação.
Termina pedindo que seja declarada anulada a comunicação por si efetuada a BB, por carta datada de 22.01.2014, nos termos do artigo 257.º do Código Civil, pedindo ainda, subsidiariamente, a improcedência do procedimento especial de despejo.
A autora pronunciou-se sobre a matéria de exceção alegada pelo réu.
Foi proferido despacho saneador tabelar, no qual se identificou o objeto do litígio e se fixou o único tema de prova.
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Realizou-se audiência final e veio a ser proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo o presente procedimentos especial de despejo totalmente procedente, porque provado, e, em consequência: 6.1. Declara-se que a missiva constante do artigo 3.1.5. dos factos provados, emitida pelo Réu é válida e como tal o contrato de arrendamento, constante em 3.1.1. dos factos provados, transitou para o regime do NRAU- Lei n.º 6/2006 de 27 de outubro na sua redação atualizada, cumprindo o período de antecedência mínimo legalmente imposto na alínea a) do n.º1 do art. 1097.º do Código Civil, conforme ditava a sua redação, à data da remessa. 6.2. Declara-se resolvido o contrato de arrendamento referido em 3.1.1. dos factos provados. 6.3. Condena-se o Réu CC a entregar ao Autor o prédio descrito em 3.1.1. dos factos provados.»
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Não se conformando com o assim decidido, o réu interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES: «I – DA DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO 1. Por via do presente recurso, o Recorrente, discorda da decisão, por: 1.1. NULIDADE DAS COMUNICAÇÕES/CARTAS E DOS EFEITOS JURÍDICOS PRETENDIDOS DIRIGIDAS PELO BB AO RECORRENTE E A DESCONFORMIDADE COM A PARTE (A HERANÇA ABERTA E INDIVISA REPRESENTADA PELO CABEÇA-DE-CASAL) QUE INSTAURA A PRESENTE ACÇÃO DE DESPEJO; 1.2. FALTA DOS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS – PERSONALIDADE, CAPACIDADE JUDICIÁRIA E ILEGITIMIDADE ACTIVA DA HERANÇA ABERTA E INDIVISA REPRESENTADA APENAS PELO CABEÇA-DE-CASAL PARA INSTAURAR A ACÇÃO DE DESPEJO; 1.3. ERRO DE JULGAMENTO e consequente; 1.3.1. Reapreciação da prova gravada; a) Depoimento de parte do R.; b) Depoimento da testemunha arrolada pela A.: - EE; c) Depoimentos das testemunhas arroladas pelo R.: Dr. FF; GG GG; HH. 1.4. ERRO DE DIREITO, por o tribunal a quo, não aplicar ao caso vertente, a Lei n.º 13/2019, de 19 de Fevereiro. 2. Não acompanhamos, ressalvando todo o respeito que nos merece, posição contrária, o entendimento plasmado na sentença pelo tribunal a quo. 3. É com o objecto assim delimitado, que o Recorrente impugna a decisão aqui recorrida – artigos, 627º, n.º 1 e n.º 2 (primeira parte), 629º, n.º 3, alínea a), 631º, 637º, n.º 1 e n.º 2, 638º, n.º 1 e n.º 7, 644º, n.º 1, alínea a), 645º, n.º 1, alínea a) e 647º, n.º 3, alínea b) do CPC. 4. As comunicações remetidas pelo herdeiro, BB, ao Recorrente, são nulas e de nenhum efeito, por aquele, não ter legitimidade por si só, para o fazer. 5. Por falta de personalidade, capacidade judiciária, e ilegitimidade activa do BB, para por si só, reclamar a transição do contrato de arrendamento para o NRAU e opor-se à renovação do contrato, na qualidade de Cabeça de Casal. 6. A “HERANÇA ABERTA E INDIVISA, representada pelo Cabeça-de-Casal, não tem legitimidade, para demandar o Recorrente (pedir a resolução do contrato de arrendamento e o consequente despejo), por preterição do litisconsórcio necessário activo. 7. Existe nos autos, uma desconformidade substancial entre as comunicações (cartas) de oposição à renovação do contrato de arrendamento e o requerimento inicial de despejo dirigido ao Balcão Nacional de Arrendamento. 8. Do requerimento inicial de despejo, constata-se que: 1. o despejo, este é instaurado pelo BB, na qualidade de Cabeça de Casal, da HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE AA, 2. e ainda que: “Mais se informa que o referido imóvel pertence à herança de AA e mulher DD, casados em regime de comunhão geral de bens, por ainda não partilhado, e que as rendas (frutos) que dele emergem são automaticamente partilhadas, repartidas e fiscalmente declaradas por cada um dos herdeiros na proporção que lhes cabe, conforme documentos de declaração de IRS respetivos aos anexos F dos anos 2016, 2017, 2018 e 2020, adiante juntos sob o Doc. 10 , sendo que os rendimentos são tributados por todos os herdeiros autonomamente na sua proporção, respetivamente. - 1/2 - BB - ...80 - 1/2*808,80€ = 404,40€ - 1/2 - BB - ...34, herança de ...71 a partir de 1-01- 2015 por óbito em ../../2014: -1/3*1/2= 1/6 - II ...18 - > 1/6*808.80€ =134,80€. - 1/3*1/2= 1/6 - JJ ...18 - > 1/6*808.80€ = =134,80€. - 1/3*1/2= 1/6 - KK ...22 – > 1/6*808.80€ =134,80€.”. 9. Assim sendo, podemos concluir que, o BB, será, senhorio do imóvel (na proporção de ½, sem determinação de parte e direito), cujo despejo é objecto destes autos, pelo que, não é o único senhorio! 10. Pelo que, as comunicações/cartas, dirigidas ao Recorrente, apenas pelo BB, deveriam ter sido subscritas e assinadas por todos os proprietários/senhorios. 11. Logo, as comunicações/cartas, dirigidas ao Recorrente, subscritas apenas, pelo BB, e os efeitos pretendidos com as declarações produzidas, não podem servir de fundamento à presente acção de despejo, por serem nulas e de nenhum efeito. 12. A presente acção de despejo, deveria ter sido ser interposta, ou por todos os herdeiros, em obediência ao disposto no artigo 2091º, n.º 1 do CC, ou por todos os proprietários/senhorios. 13. Excepção esta de direito material que aqui, para os devidos e legais efeitos se invoca.
Subsidiariamente, 14. O BB, não tem legitimidade activa, na qualidade de Cabeça de Casal, da herança aberta e indivisa, por óbito de AA, para nestes autos, por si só, demandar o R., pedir a resolução do contrato de arrendamento e o consequente despejo. – Veja-se o requerimento inicial de despejo dirigido ao Balcão Nacional de Arrendamento, junto aos autos no dia 13/07/2021, ref.ª Citius n.º 1821740. 15. A herança que o BB, representa na qualidade de Cabeça-de- Casal, é uma “HERANÇA ABERTA E INDIVISA” e não uma herança jacente. 16. Logo, a herança aberta e indivisa, aqui representada pelo Cabeça de Casal, não tem personalidade e capacidade judiciária, uma vez que, [1. Actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, n.º 1 do CC.], conforme Ac. do TRC, de 26/02/2019, proc. n.º 1222/16.8VIS-C.C1, disponível em www.dgsi.pt. 17. Esta excepção dilatória, importa a absolvição da instância e não consente suprimento 18. A sentença recorrida, violou assim, os artigos 576º, n.º 1 e n.º 2 e artigo 577, alínea c) do CPC. 19. A invocada execpção, é de conhecimento oficioso (artigo 578º do CPC) e gera a absolvição da instância do R. (artigo 576º, n.º 2 do CPC). 20. Nos termos do artigo 2091º, n.º 1 do CC, [Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.]. 21. Pelo que, a acção despejo, deveria ter sido proposta por todos os herdeiros contra o R., assim não sendo, verifica-se a ilegitimidade do Cabeça-de-Casal, por preterição de litisconsórcio necessário activo – artigo 33º, e artigo 2091º, n.º 1 do CC. A aqui invocada, execpção da ilegitimidade, é uma excepção dilatória, que obsta [(…) a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (…)] – artigos 576, n.º 1 e n.º 2 e artigo 577º, alínea e) do CPC. 22. Nos termos do artigo 578º do CPC, [O tribunal deve conhecer oficiosamente das execpções dilatórias (…)] – artigo 578º do CPC. Excepção esta de direito material, que aqui para os devidos e legais efeitos se invoca. 23. A sentença recorrida, violou o disposto no artigo 2091º, n.º 1 do CC. 24. Veja-se, o Ac. do TRP, de 08/02/2021, proc. n.º 5674/19.6T8VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt, ao qual aderimos por completo: [II – A previsão do artigo 2078.º do Código Civil só faculta ao cabeça-de-casal, por si só e nessa qualidade, legitimidade para pedir a entrega de bens da herança e para usar de acções possessórias. III – A instauração de despejo visando a declaração da resolução do contrato de arrendamento, respeitante a imóvel pertencente à herança indivisa, constitui acto de administração da competência do cabeça-de-casal, podendo este proceder à sua instauração se estiver acompanhado dos restantes herdeiros.] (O sublinhado e o negrito são nossos). Subsidiariamente, 25. O Recorrente, concorda na íntegra com a matéria de facto considerada provada pelo tribunal a quo. 26. Com especial relevância para os factos considerados provados em 3.1.10. a 3.1.15. 27. O Recorrente, à data dos factos estava “Incapacitado Acidentalmente” – artigo 257º do CC. 28. O tribunal a quo, não sopesou devidamente, quer as declarações de parte, quer os depoimentos das testemunhas, em particular do médico-psiquiatra, segundo as regras, mas, salvo o devido respeito, incompreensivelmente, no limite do arbitrário e imponderadamente. 29. O Requerente, não se conforma e por isso se insurge, contra a matéria de facto considerada não assente pelo tribunal a quo, constante dos pontos 3.2.1. a 3.2.22. e aqui pugna pela sua alteração. 30. Existe contradição, entre os factos provados, 3.1.10. a 3.1.15. com particular relevância para este último, [O sobressalto causado pela doença grave detectada no requerido, causou neste, um estremecimento na vida e na saúde.], com os factos não provados (3.2.1. a 3.2.22.), mais concretamente com o facto não provado3.2.1., [O sobressalto causado pela doença grave detectada no requerido, causou neste, um estremecimento (…) nas capacidades mentais do requerido.]. 31. O tribunal a quo, tem por verdadeiro que a doença (oncológica) do Recorrente é grave, causou-lhe um estremecimento na vida e na saúde, excepto nas capacidades mentais do requerido (3.2.1. dos factos não provados)! 32. O tribunal a quo, arrasa injustificadamente as declarações de parte prestadas pelo Recorrente: 33. Tal julgamento, quanto à matéria de facto não provada, denota, salvo o devido respeito, uma indelével, mas pressentida discricionariedade impossível. 34. O tribunal a quo, sem critério, pura e simplesmente rejeitou tudo quanto o Recorrente declarou em audiência de julgamento. 35. A decisão sobre a veracidade dos factos não se poderá basear em critérios irracionais, isto é, em intuições, palpites ou crenças; o julgador terá que decidir tendo em conta a prova produzida no processo. 36. Não pode ir buscar outras provas, nem pode decidir contraprova; os raciocínios ou inferências assentes, pela relação dos meios de prova entre si (análise) e pela relação destes com os factos (especificação), deverão ser articulados de forma lógica e coerente. 37. Os raciocínios devem apelar a um consenso, isto é, apelar a máximas comummente aceites, por forma a que possam ser considerados verdadeiros fundamentos; o julgador deverá fazer uma valoração conjunta ou ponderação dos diferentes meios de prova, confrontando-os, por forma a que, ainda que de sentido contrário, daí resulte uma decisão linear e unívoca; o que, não sucedeu no caso vertente. 38. O que vem alegado, aplica-se a toda a apreciação que o tribunal a quo, faz relativamente a toda a prova testemunhal, bem como à prova documental junta aos autos – em particular, o relatório médico, cuja, correcta análise, não podemos deixar de salientar e propugnar. 39. À data dos factos, o Recorrente, devido à doença grave que o assaltou, estava limitado na sua capacidade de discernimento e entendimento. 40. A testemunha EE, arrolada pela A., relativamente à qual, o tribunal a quo, se pronunciou nos seguintes termos que passamos a transcrever: “(…) sendo a sua razão de ciência ser amigo do Réu e comerciante refere que costumava almoçar com o Réu que partilhavam um grupo de amigos, que falavam todos os dias atento ao facto de as usas lojas serem muito próximas e que nunca notou nada de diferente no Réu; testemunho considerado credível porque calmo e coerente.”; [testemunho considerado credível] pelo tribunal [porque calmo e coerente]. 41. Seguindo o mesmo critério de aferição da verdade dos depoimentos, podemos afirmar que, os testemunhos prestados em audiência, pelas testemunhas arroladas pelo R., foram também, testemunhos, prestados com calma e coerência! 42. O tribunal a quo, omite na sentença um facto relatado pela testemunha EE, com especial relevância para descoberta da verdade e boa decisão da causa. Esta testemunha, afirmou em audiência de julgamento, a instâncias do mandatário do R., que assinou a carta/resposta, à carta que o Cabeça de Casal lhe enviou SEM PENSAR! […sem pensar assinei…], foram as palavras da referida testemunha! 43. Com o devido respeito por este Venerando tribunal, ousamos perguntar, se este testemunho é [credível porque calmo e coerente], afirma, que assinou sem pensar, apelando às regras da experiência comum, não será verdade, que tendo em conta o estado de saúde do Recorrente, à data, este tenha também assinado sem pensar…sem discernir o sentido e alcance da declaração que emitia? 44. A testemunha EE [credível porque calmo e coerente], à data de boa saúde, assinou…sem pensar! 45. Por isso, é plausível, verosímil, que o Recorrente, à data, tendo em conta o seu estado de saúde (grave – veja-se 3.1.15 dos factos provados), quando assinou as cartas/resposta à carta do Cabeça de Casal de oposição à renovação do contrato de arrendamento, atendendo ao seu estado de saúde, estaria condições menos favoráveis para assinar conscientemente, por não estar no pleno gozo das suas faculdades mentais de ânimo e de entendimento. 46. As declarações das testemunhas GG e HH, para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, têm apenas a relevância de naquela data (envio das cartas/resposta ao Cabeça de Casal), referir que o Recorrente em 2012/2014, [(…) andava mais calado, mais triste e abatido (…) – afirmou a GG. E o HH, que afirmou que, [(…) à data da declaração (…) estava perturbado e em baixo;] 47. Não obstante, o comentário (parece-nos depreciativo), que o tribunal a quo faz, ao facto da testemunha GG, se referir à data relevante para os autos! Demonstrando assim, a pouca ou nenhuma credibilidade que terá dado ao depoimento da referida testemunha. 48. Porém, a nosso ver, injustificadamente. Na verdade, a senhora, além de ser pessoa de idade avançada, respondeu com educação, muito respeito pelo tribunal e com conhecimento de causa, por [(…) ter sido sempre cliente do Réu e que o conhece desde que o réu abriu a loja;]. 49. Por fim, a testemunha, Dr. FF – médico psiquiatra. Novamente, o tribunal a quo arrasa injustificadamente, com o depoimento prestado em audiência por esta testemunha. 50. O Recorrente, bateu-se e provou, a sua incapacidade acidental – artigo 257º do CC; tão só, pela correspondência com a verdade dos factos. 51. O Tribunal a quo, erradamente, andou mal, por não considerar provados os factos constitutivos do direito invocado pelo Recorrente. 52. Vale aqui, mutatis mutandis, tudo quanto foi alegado supra, quanto às regras de apreciação da prova impostas ao julgador – artigo 607º, n.º 4 e n.º 5 do CPC. Norma esta, no caso sub judice, violada ostensivamente pelo tribunal a quo, com consequências graves, por determinar o despejo do Recorrente, do arrendado – o seu estabelecimento comercial, a sua fonte de rendimento, o seu ganha pão. 53. A sentença, não espelha a verdade da prova testemunhal produzida em julgamento e não deduz da prova documental junta aos autos – o Relatório Médico – as reais e legais consequências jurídicas. 54. A audição da prova gravada, e a prudente apreciação do relatório médico junto aos autos, permite considerar provados os factos que o tribunal a quo considerou não provados, alterar a matéria de facto e julgar a presente acção improcedente por não provada. 55. É da mais elementar justiça que assim seja! 56. É particularmente relevante o depoimento da testemunha, Dr. FF – médico-psiquiatra e o relatório por si subscrito. 57. O seu depoimento, foi prestado, com verdade, idoneidade, absolutamente desprendido, sereno, calmo (não obstante as constantes interrupções, no limite do intimidatório, feitas pelo Mtm.º Juiz), razão de ciência, conhecimento médico, experiência profissional e factual (do “caso clínico”). Veja-se a gravação do seu depoimento! 58. O depoimento desta testemunha foi íntegro, honesto, sério, esclarecedor, não podendo de todo, causar no tribunal uma impressão tão desfasada e descontextualizada da verdade e acima de tudo, prestado com muita educação, muita elevação e muito respeito pelo tribunal. 59. Primeiro, Relatório Médico, junto aos autos no dia 13/06/2022, ref.ª Citius n.º 42554000, para o qual nos remetemos. 60. Tal documento, deve ser visto com cuidado e isenção; trata-se de um documento subscrito por médico psiquiatra que segue o Recorrente em consulta há vários anos (pouco tempo após o surgimento da doença oncológica), não merecendo, por ser injusto que o Mtm.º Juiz a quo, afirme [(…) não ficou com qualquer dúvida que o relatório foi solicitado e realizado à medida destes autos (…)]. – Veja-se fls. 7, último parágrafo e fls. 8 da sentença. 61. Quem mais, e melhor, para além do médico psiquiatra do Recorrente, poderia atestar quanto à saúde mental do Recorrente? Não será normal e das regras da lógica que, o Recorrente em consulta, transmita ao seu psiquiatra os seus dramas, aquilo que o aflige, inclusive o processo judicial e o receio de ser despejado do seu estabelecimento comercial? 62. O tribunal, não coloca em causa o quadro clínico retratado no relatório, sendo certo que, o mesmo é demonstrativo do drama e do sofrimento psicológico do Recorrente. 63. A apreciação subjectiva, para não dizer especulativa, que o tribunal a quo faz do relatório médico, inscreve-se no princípio da livre apreciação das provas, [(…) não ficou com qualquer dúvida que o relatório foi solicitado e realizado à medida destes autos (…)], porém, exorbita do âmbito da verdade médica plasmada no documento, nunca em circunstância alguma, contraditado nestes autos por junta médica, ou outra prova pericial - cuja contraprova, caberia à Recorrida a sua arguição. 64. Tal prova documental (o Relatório Médico), ao contrário do que sentença afirma a fls. 8, primeiro parágrafo [(…) de acordo com as regras da repartição do ónus da prova plasmado no artigo 342º, do Cód. Civil, competia ao Réu apresentar provas de tal factualidade, o que não sucedeu.], prova a falta de discernimento e da capacidade do Recorrente, entender o conteúdo e o alcance das cartas (na altura que as assinou), que remeteu ao BB. 65. Não podendo e não devendo o tribunal a quo, ao abrigo do princípio da livre apreciação das provas, substituir-se à parte, ou, sem critério, atribui-lhe efeitos perversos. Veja-se o Ac. do TRG, de 20/04/2023, proc. n.º 451/21/T8MNG.G1, disponível em www.dgsi.pt: 66. O Recorrente refuta (por impensável e inadmissível), e o seu médico (por honradez, probidade e dignidade profissional), jamais, pretenderem induzir em erro grave o tribunal e com essa intenção, obnubilar o espírito do julgador, por isso, o Recorrente, pugna neste tribunal, pela bondade, seriedade e verdade plasmada no relatório médico e consequente, prova da incapacidade acidental do Recorrente, à data em que subscreveu as cartas enviadas ao BB. 67. O contrário, será beneficiar, quem, sabendo do estado de saúde do Recorrente, se aproveita da sua inferioridade mental, à data, por o Recorrente, estar a lutar contra um cancro. 68. Segundo, o depoimento testemunhal prestado pela testemunha Dr. FF – médico psiquiatra. 69. A testemunha Dr. FF – médico psiquiatra, quer em instância do Mtm.º Juiz, quer em instância do mandatário do Recorrente, confirmou que [O sobressalto causado pela doença grave detectada no requerido, causou neste, um estremecimento (…) nas capacidades mentais do requerido.] – ponto 3.2.1. dos factos não provados, pelo que, a audição do seu depoimento, permite considerar este e os seguintes factos provados. 70. A referida testemunha, referiu-se ao facto da [rejeição inicial à medicação e ao tratamento, agudizaram as reações de medo, desespero e de descontrole mental no requerido.] - ponto 3.2.2. dos factos não provados. 71. Referiu ainda que, [se repercutiram no seu bem-estar físico e mental até meados de Setembro de 2020.] - ponto 3.2.3. dos factos não provados. 72. A testemunha Dr. FF, sublinhou que [A doença (…) diagnosticada ao requerido, a cirurgia, e a rejeição ao tratamento com quimioterapia, causaram no requerido, um sentimento de pouca esperança de vida e uma consequente depressão profunda.] - ponto 3.2.4. dos factos não provados. 73. Bem como, [O requerido, tornou-se num homem doente física e mentalmente e dependente de medicação.] - ponto 3.2.6. dos factos não provados. Quanto a este facto, ainda, sublinhe-se que, instada pelo Mtm.º Juiz, a testemunha referiu a medicação que prescreve ao Recorrente. – a audição do seu depoimento, permite constatar verdade deste facto! 74. A testemunha Dr. FF, sublinhou nas suas declarações que, [Psicologicamente, o requerido denotava, por vezes grande alienação da realidade.] - ponto 3.2.8. dos factos não provados. 75. A referida testemunha, referiu ainda que, [Não obstante a ajuda médica e medicamentosa ao longo dos anos, certo é que o seu estado de saúde, até Setembro de 2020 não apresentava melhoras significativas.] - ponto 3.2.9. dos factos não provados. 76. Referiu também que, [O estado de saúde do requerido era grave, com fortes repercussões na sua capacidade mental.] - ponto 3.2.11. dos factos não provados. 77. A testemunha, nas suas declarações, sublinhou que, o Recorrente, estava [Psicológica e emocionalmente muito fragilizado.] - ponto 3.2.11. dos factos não provados. 78. A testemunha Dr. FF, sublinhou nas suas declarações com particular enfase os factos 3.2.13., 3.2.14., 3.2.15., 3.2.16., 3.2.17., 3.2.18., 3.2.19., 3.2.20., 3.2.21., 3.2.22. dos factos considerados não provados, devendo por isso, serem considerados provados. 79. Por tudo quanto vem alegado nesta parte (depoimentos das testemunhas prestados em audiência de julgamento e pelo relatório médico junto aos autos – não contraditado), a matéria de facto julgada não provada, deverá ser alterada e julgados provados os factos aí constantes. 80. E consequentemente, ser julgada por provada a alegada incapacidade acidental do Recorrente e anulada a sua declaração negocial – artigo 257º, n.º do CC. Subsidiariamente, 81. Quanto à questão de direito, conforme doc. 8, junto com o requerimento de despejo, por carta datada de 05/11/2019, o Recorrente, opôs-se à denúncia do contrato de arrendamento e à data de 01/02/2020, como data do termo do contrato. 82. Invocando, nessa data (05/11/2019), e agora, o disposto nos artigos 1110º-A e 1101º, alíneas b) e c) do CC. 83. De facto, o contrato de arrendamento aqui em discussão, destina-se a fins não habitacionais. 84. Nos termos do artigo 1110º-A do CC, a Recorrida, podia denunciar o contrato de arrendamento não habitacional, mediante comunicação ao inquilino com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretende a cessação do arrendado. 85. Devendo ainda para o efeito, sob pena de ineficácia, confirmar a denúncia, mediante comunicação ao arrendatário, com a antecedência máxima de quinze (15) meses e mínima de um (1) ano à data da sua efectivação. 86. A Lei n.º 13/2019 de 12 de fevereiro, aplica-se ao caso sub judice. 87. Nos termos do artigo 14º, n.º 5 da suprarreferida lei, [As comunicações do senhorio de oposição à renovação do contrato de arrendamento enviadas durante a vigência da Lei n.º 30/2018 de 14 de Junho, aos arrendatários por ela abrangidos, que não tenham fundamento previsto na alínea a) do artigo 1101º do Código Civil, com a redação dada pela presente lei, não produzem quaisquer efeitos]. 88. Pelo que, nos contratos de arrendamento não habitacional, o senhorio apenas pode denunciar o contrato nos casos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 1101º do CC. 89. No caso sub judice, a referida comunicação e a referida confirmação, não foi feita pela Recorrida, dentro do prazo legalmente previsto. 90. Uma vez que, a comunicação da não renovação do contrato de arrendamento, foi feita em novembro de 2018, quando deveria ter sido feita antes de fevereiro de 2015. 91. E assim, eventualmente, produzir efeitos a partir de fevereiro de 2020. 92. Pelo que, o tribunal a quo, violou as normas legais suprarreferidas. 93. É o nosso humilde entendimento, pelo qual pugnamos e assim submetemos ao crivo da vossa superior apreciação – a bem da Justiça! REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA 1. Assim, pretende o Recorrente ver impugnados e reapreciados os pontos 3.2.1. a 3.2.22., da matéria de facto não provada, devendo tais factos, serem tidos como provados. 2. Impondo-se, para tanto, a reapreciação apenas da seguinte prova testemunhal em audiência de julgamento, nomeadamente: - Do Recorrente: - As suas declarações de parte - dia 04/10/2023, das 10h 27m 44s às 10h 45m 56s - E das testemunhas: 2.1. Dr. FF – dia 04/10/2023, das 10h 51m 04s às 11h 39m 56s 2.2. GG – dia 04/10/2023, das 11h 51m 08s às 11h 56m29s 2.3. HH – dia 04/10/2023, das 11h 57m 24s às 12h 06m 24s - Da Recorrida 2.4. EE – dia 04/10/2023, das 11h 41m 28s às 11h 50m 16s TERMOS EM QUE, com o d.s., de V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência: a) Ser julgada procedente por provada, a excepção de direito material da nulidade das cartas/comunicações e dos efeitos jurídicos pretendidos, pelo BB ao recorrente e a desconformidade com a parte (a Herança aberta e Indivisa, representada pelo Cabeça-de-Casal) que instaura a presente acção de despejo; Subsidiariamente, b) Se assim, não se entender, ser julgada procedente por provada, a excepção do litisconsórcio necessário activo, por preterição dos pressupostos processuais da falta de personalidade, personalidade judiciária da Herança Aberta e Indivisa, representada nestes autos pelo Cabeça-de Casal, para demandar o Recorrente, e em consequência, ser o Recorrente, absolvido da Instância; Subsidiariamente, c) Se assim, não se entender, ser julgada procedente por provada, a excepção da ilegitimidade activa da Herança Aberta e Indivisa, representada nestes autos pelo Cabeça-de Casal, para demandar o Recorrente, e em consequência, ser o Recorrente, absolvido da Instância; Subsidiariamente, d) Se assim, não se entender, ser julgada procedente por provada a reapreciação da matéria de facto constante dos factos não provados, e em consequência ter-se por verificado o erro de julgamento e os factos não provados, passarem a ser considerados factos provados e ser a sentença, revogada por outra, que absolva o Recorrente do pedido; Subsidiariamente, e) Se assim, não se entender, ser julgado procedente por provado o erro de direito e em consequência, ser a sentença revogada por outra que absolva o Recorrente do pedido. A BEM DA JUSTIÇA E DA LEGALIDADE!»
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Foram apresentadas contra-alegações, formulando a requerente, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
«1. nos presentes autos realizou-se, não só uma tentativa de conciliação, como também uma audiência prévia onde se fixou o objeto do litígio bem como os temas da prova, foi admitida a prova e designou-se data para audiência de discussão e julgamento (a 18 de Janeiro de 2023). 2. Na sequência de tal diligência, foi então proferido douto despacho saneador, datado de 25 de Março de 2023, onde foi proferido, entre outros, o seguinte despacho: “I. SANEAMENTO O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia. O processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem totalmente. As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade quanto ao pedido formulado e estão devidamente patrocinadas. Inexistem quaisquer outras nulidades, excepções dilatórias ou questões prévias de que cumpra conhecer por ora. “ 3. Tal despacho não foi objeto de qualquer censura processual, fosse em forma de reclamação, aclaração ou interposição de recurso. 4. O Recorrente não alegou - em qualquer momento processual até à alegação à qual se responde – qualquer exceção dilatória ou perentória. 5. Da articulação do disposto no n.º 3 do art.º 595.º, do CPC, com os artgs. 620.º, n.º 1 e 628.º desse diploma, podemos concluir que havendo uma decisão proferida em sede de despacho saneador que tenha apreciado em concreto uma excepção dilatória (no caso a ilegitimidade) tal decisão terá força de caso julgado formal, logo que transite. 6. Ao abrigo do que presentemente dispõe o CPC, o momento processual próprio para impugnar uma decisão processual no que tange à ilegitimidade e outros pressupostos processuais é, efetivamente, o momento de recurso da decisão final. 7. Contudo, e salvo o devido respeito sobre diversa opinião, é imperioso que a parte que dela(s) se queira fazer valer as haja efetivamente alegado nos autos previamente. 8. Caso assim não fosse entendido, aliás, frustrar-se-ia, de todo, a fase de saneamento do processo, permitindo-se a qualquer parte ignorar por completo o saneamento efetuado em primeira instância, sem qualquer consequência processual. 9. Ao alegar, pela primeira vez e em situação de surpresa processual (para as partes e para o douto tribunal de primeira instância) tais exceções em sede de recurso da decisão final, o que o Recorrente empreende é uma absoluta frustração da estabilidade da instância, e do saneamento que, efetivamente, foi efetuado pelo meritíssimo juiz a quo. 10. Conduzindo assim a que o saneamento, conforme é entendido pelo CPC, passe a ser, no que às partes diz respeito, uma fase absolutamente vazia de qualquer utilidade ou sentido, pois a permitir-se tal entendimento, o momento processual, sequer, para alegar tais exceções passa a ser ... a todo o tempo. 11. O que não é de todo a intenção do legislador. 12. O art.º 595.º, n.º 1, al. a) do CPC estipula que o juiz deverá conhecer (entre outras) das excepções dilatórias suscitadas pelas partes ou de que deva apreciar oficiosamente, face aos elementos que os autos lhe forneçam, sendo que o seu n.º 3, refere que esse despacho «constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas.» 13. Consubstanciando o que esse n.º 3 do art.º 595.º consagra, temos, por um lado, o art.º 620.º, n.º 1 do CPC, que nos dá a noção de caso julgado formal, ao referir que «As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo»; e, por outro, o art.º 628.º que nos diz que «A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação.» 14. Havendo uma decisão proferida em sede de despacho saneador que tenha apreciado em concreto uma excepção dilatória, tal decisão terá força de caso julgado formal, logo que transite. 15. No despacho saneador, foi decidido que a Autora era parte legítima na ação, sem que nenhuma das partes colocasse – antes ou após - tal legitimidade em causa. 16. Em tese, a decisão sobre tal exceção dilatória, constante do saneador, era passível de ser impugnada no recurso a interpor da decisão que pôs termo à causa, posto que não se enquadra em nenhuma das situações previstas nos n.ºs, 1 e 2 do art.º 644.º do CPC, onde se preveem os casos de recurso autónomo. 17. A ser assim, a decisão concretamente apreciada sobre a legitimidade do Autor, proferida no despacho saneador, não teria ainda transitado em julgado pois que a oportunidade do Réu se insurgir contra tal decisão apenas surgiu com a apelação da decisão final que pôs termo à causa. Contudo, 18. Tal entendimento tem de assentar num pressuposto básico: a de que tal exceção seja arguida, em momento próprio, nos autos, e sobre tal alegação recaia, de facto, uma decisão judicial de resposta à alegação da parte. 19. Por força do princípio da estabilidade da instância consagrado no art. 260º, do CPC, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei. 20. Por outra banda, o princípio da concentração da defesa na contestação impõe ao réu o ónus de, nesse articulado, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória, salvo os casos excecionais legalmente previstos – exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes ou que a lei expressamente admita passado esse momento ou de que se deva conhecer oficiosamente –, com sujeição a efeito preclusivo – artigo 573.º do CPC. 21. O princípio da preclusão ou da eventualidade é um dos princípios enformadores do processo civil, decorre da formulação da doutrina e encontra acolhimento nos institutos da litispendência e do caso julgado – artigo 580.º nº2, do CPC – e nos preceitos de onde decorre o postulado da concentração dos meios de alegação dos factos essenciais da causa de pedir e as razões de direito – art. 552º, nº1, d) – e das excepções, quanto à defesa – artigo 573.º, n.º 1 do CPC. 22. Uma das limitações à regra da concentração da defesa na contestação consiste na defesa posterior/superveniente, ao abrigo do disposto nos artigos 588.º e 589.º, do CPC. 23. Porém, no caso, como vimos, a questão em causa nem sequer é superveniente, objectiva ou subjectivamente dado que, como vemos, a materialidade em causa e a parte ativa do litígio constavam já, e mantiveram-se, desde a petição inicial. 24. Admitir-se que o réu pudesse invocar/alegar, apenas agora, tais exceções, seria contornar o efeito preclusivo da invocação factual e de todos os meios de defesa, desconsiderando-se o princípio da concentração da defesa. 25. Ainda que se considere que se trata apenas de subsumir determinada factualidade já constante dos autos ao direito aplicável, tal matéria ou juízo qualificativo sobre a mesma nunca poderia deixar de ser oportunamente alegada, dado que se trata de matéria de excepção tout court, obrigando o princípio da preclusão à necessidade (ónus) da alegação de todos os meios de defesa na contestação, sob de impossibilidade de valoração. 26. A regra da concentração dos meios de defesa tanto vale para a alegação de factualidade e conexa subsunção jurídica no plano das excepções, como para a mera alegação de verificação desta ou daquela excepção, sem mais, a reboque até dos próprios termos da alegação da parte contrária. 27. Se assim não for, fica não só beliscado o princípio da preclusão, como o próprio princípio do contraditório, dado que se o réu não alegar a verificação dalguma excepção, o autor nem sequer tem o ensejo processual de responder à excepção em causa, designadamente no quadro do artigo 3.º/4, do CPC, não tendo, por conseguinte, o ensejo processual de, designadamente, contra-alegar as suas razões de direito, como até de alegar factualidade tendente a afastar a verificação da excepção em causa”. 28. Frustrando-se assim, também, a hipótese processual que qualquer parte tem de, ainda em primeira instância, eventualmente proceder à sanação do alegado vício por via do incidente de intervenção de terceiros, conforme decorre do art.º 316º, nº1, do CPC, impondo-se ao juiz o dever de providenciar pela sanação dessa excepção, através de convite às partes para deduzir o incidente adequado à intervenção dos herdeiros eventualmente em falta (cf. art.º 6º, nº2, do CPC). 29. Em reforço de tal entendimento, exige a lei que o juiz “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – n.º 2 do artigo 608.º do CPC. 30. Para que uma questão possa ser avaliada, torna-se necessário que se confira uma identidade entre o que é pedido e o que é julgado, entre o que o tribunal elegeu e definiu, na interpretação que fez do conjunto de factos alinhados pelos sujeitos nas respetivas peças processuais, com o que a final veio a tomar conhecimento e a dar pronúncia. Na eleição das questões de direito o juiz não pode ir além do que está contido nos factos aportados pelos sujeitos, não estando, porém limitado pela enunciação que delas façam as parte. 31. Deve, pois, na decisão ocorrer uma congruência entre as questões que o sujeito trouxe a juízo para obter uma resolução jurisdicional e aquelas que efetivamente devem ser resolvidas pelo tribunal. Esta congruência ou necessidade de coincidência significativa entre o que é pedido e o que é solucionado traduz-se numa concordância de decisão jus processual que torna o veredicto assumido conforme às exigências que devem vertidas numa sentença. 32. Incumbe ao tribunal proceder a qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido. 33. Assim o exige o princípio da concentração da defesa na contestação consagrado no artigo 573º, nº 1, do Código Processo Civil – 1 -Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado; 2 - Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente. 34. Esta norma, faz recair “sobre os ombros do réu” o ónus de, na contestação, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória, que são aquelas que importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, sob pena de preclusão da possibilidade de o fazer posteriormente – neste sentido, por ex., o Acórdão do STJ de 11-03-2021, pesquisável em www.dgsi.pt. /tem o ónus de apresentar em juízo todos os seus argumentos de defesa, na primeira oportunidade que lhe seja concedida para o efeito. Se o não fizer, já não o pode realizar mais tarde. 35. A concentração dos meios de defesa e a obrigatoriedade de os alegar, sob pena de perda do direito de invocação, preclusão, estão ligados à estabilidade das decisões, o que tem a ver com o instituto do caso julgado, e como o dever de lealdade e de litigar de boa fé (processual). 36. Não faria sentido admitir-se que o Réu, mantendo-se estrategicamente em silêncio relativamente às exceções que invoca agora durante toda a 1.ª instância, delas se possa aproveitar (apenas) em sede de recurso sem que as tivesse, sequer, alegado. 37. Se assim for admitido, ficam violados em definitivo os artigos 3.º, n.º 4, 5.º, n.º 3, 552.º, n.º 1 al. F), 573.º, n.º 1, 580.º, n.º 2, 588.º, 589.º e 608.º do CPC. 38. Mais se frustrando o disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, por violação dos princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo – inconstitucionalidade que expressamente se invoca.
Sem prescindir, 39. Não ocorre qualquer ilegitimidade ativa nos autos, nem tampouco falta de capacidade ou de personalidade judiciárias. 40. Como consta da petição inicial, e documentos anexos, é Autora a Herança representada em juízo pelo cabeça-de-casal. Ora, 41. A instauração de despejo visando a declaração da resolução do contrato de arrendamento, respeitante a imóvel pertencente a herança indivisa, constitui acto de administração da competência do cabeça-de-casal, podendo este proceder à sua instauração sem estar acompanhado dos restantes herdeiros. 42. Legitimidade que se mantém ainda que o respetivo contrato de arrendamento tenha sido celebrado com o de cujus ou com outro herdeiro - estatui o artigo 2091.º, nº 1 do Código Civil. 43. Como se sabe a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal (artigo 2079.º do Código Civil). 44. A lei qualifica a locação como acto de administração ordinária (artigo 1024.º, nº 1 do Código Civil). 45. Nos poderes de administração incluem-se aqueles que visam a valorização e proteção do património, que são os objetivos principalmente visados com a ação de despejo, sobretudo quando radica em violações contratuais por parte do arrendatário, como as apontadas ao réu. 46. Pelo que improcedem, in totum, todas as exceções alegadas. 47. A resposta aos pontos 3.2.1. a 3.2.22 deve manter-se como assente. 48. A tese pretendida pelo Recorrente não tem qualquer correspondência com a prova carreada para os autos. 49. Pretende o Recorrente, genericamente, infirmar que padecia de incapacidade acidental aquando da troca de documentação com a Recorrida, em Janeiro de 2014 e durante 10 (dez) anos, praticamente até hoje (por referência à data de realização de audiência de discussão e julgamento). 50. Sendo que os autos são abundantes em prova que infirma exatamente o contrário. 51. O Réu chega a informar o Tribunal que a carta redigida em Janeiro de 2014 e, assinada por si, foi redigida por uma sua sobrinha que à época era estagiária em direito mas que não lhe explicou o teor nem o alcance da mesma; contudo o Réu, não arrolou a referida sobrinha como testemunha nos presentes autos, tendo sido até desmentido em sede de prova testemunhal – vide supra os testemunhos elencados. 52. EE, comerciante e vizinho de negócio do réu há décadas foi perentório quando afirmou que convivia com o réu diariamente, e nunca o achou incapaz para a sua vida diária, fosse pessoal (jantares e almoços de amigos) quer profissional (gestão das suas lojas). 53. A testemunha GG soube apenas dizer que o réu terá andado triste e abatido, sem nada saber acerca do objeto da lide. 54. A testemunha HH – sobrinho do réu – apenas soube atestar, igualmente, um estado de tristeza do réu, sem nada referir acerca de qualquer incapacidade para manter 3 lojas em funcionamento. 55. Quanto ao Sr. Dr. FF, é evidente que não tem qualquer razão de ciência para, em 2022, elaborar um relatório acerca de uma incapacidade do réu, ocorrida 10 anos antes, e antes de ter sequer conhecido o réu. 56. Mais manifestou que não realizou exames, não conhecia os documentos do arrendamento, e foi absolutamente contraditório acerca de quem lhe pediu tal relatório – primeiro refere ter tido conhecimento direto, depois através do réu, e depois através de um seu sobrinho. 57. De acordo com as regras de repartição do ónus da prova plasmado no artigo 342º, do Cód. Civil, competia ao Réu apresentar provas da factualidade que pretende ver agora considerada provada, mas tal não sucedeu. 58. Da carta remetida pelo réu em 22 de Janeiro de 2014, antes se alcança – com todo o grau de certeza – que o réu entendeu perfeitamente o seu conteúdo. 59. E não só entendeu o que recebeu, como nitidamente se aconselhou com um jurista, e que este jurista lhe efetuou a resposta, nos termos esclarecidos e pretendidos pelo réu. 60. Ali o recorrente refere que recebeu a carta e deu-lhe a melhor atenção; comunicou que o contrato passaria a vigorar por 5 anos; comunicou que não haveria aumento de renda; tudo ao abrigo dos artigos 31.o, n.o 7, por remissão do n.o 7 do artigo 61. O réu sabia os termos legais para a negociação do regime do seu contrato de arrendamento, escolheu conferir prazo certo ao contrato, ao invés de tentar negociar uma nova renda que evitasse a caducidade do contrato; 62. O réu foi informado, e entendeu, a consequência da sua resposta através do conselho de um profissional. Ora, e sempre sem prescindir 63. Alguém que vive numa situação de “profundo sofrimento e desespero incontrolado, a lutar pela vida com as poucas forças que lhe restam” nem sequer teria capacidade para responder à carta redigida pela recorrida. 64. O réu definiu a sua resposta após aconselhamento técnico, imprimiu-a, assinou-a, deslocou-se aos correios para a enviar, tendo ainda a noção da salvaguarda do aviso de receção aposto. 65. Sem prescindir, para poder invocar a incapacidade acidental era necessário que o facto (que, repita-se, não ocorreu) fosse notório ou conhecido do declaratário – artigo 257.o do Código Civil – o que não foi, sequer, alegado. 66. No caso dos autos, face à resposta endereçada pelo réu, nenhuma pessoa, ainda que especialmente diligente e de boa-fé, adivinharia a existência de qualquer incapacidade. 67. Antes concluindo, sem qualquer razão para dúvida, que o réu bem sabia o que escreveu. 68. A carta emitida pelo Requerido é válida e por isso o contrato de arrendamento transitou para o regime do NRAU- Lei n.o 6/2006 de 27 de outubro na sua redação atualizada, cumprindo o período de antecedência mínimo legalmente imposto na alínea a) do n.o1 do art. 1097.o do Código Civil, conforme ditava a sua redação, à data da remessa. 69. É facto que a Lei 13/2019, de 12 de Fevereiro estabeleceu, para determinado tipo de contratos, uma aplicação dita retroativa. 70. Tal aparente retroatividade resulta da redação do n.o 5 do artigo 14.o (disposições transitórias) que dita que “5 - As comunicações do senhorio de oposição à renovação do contrato de arrendamento enviadas durante a vigência da Lei n.o 30/2018, de 14 de junho, aos arrendatários por ela abrangidos, que não tenham como fundamento o previsto na alínea a) do artigo 1101.o do Código Civil, com a redação dada pela presente lei, não produzem quaisquer efeitos”. 71.º Tal disposição transitória apenas é aplicável aos contratos de arrendamento previstos na Lei n.o 30/2018 de 14 de Junho, a saber, aos contratos de arrendamento habitacional em vigor há mais de 15 anos. 72.º Sendo o caso dos autos atinente a um contrato de arrendamento não habitacional, é errado considerar que a disposição em análise se aplicará a todos os contratos cuja não renovação se prevê na generalidade do Código, mas apenas aos habitacionais, e quanto a estes, apenas àqueles cuja não renovação se inseria no âmbito da aplicação do artigo 1101.o do Código Civil (aos contratos de duração indeterminada – que não é o caso face à transição de regime operada, e dentro destes apenas aos das alíneas b) e c) do artigo 1101.o). 73. No caso dos autos, a Lei n.o 13/2019 não aplicou qualquer alteração com eficácia retroativa. 74. Antes introduzindo alterações, sim, no seu artigo 1110.o-A, mas que apenas se aplicam para o futuro. 75. Sem prescindir, mesmo que assim não fosse – que é – sempre seria de atender que a carta remetida em Novembro de 2018 o foi muito antes sequer da Lei 13/2019 ser aprovada e/ou publicada. 76. Para efeitos de determinação da lei aplicável à denúncia do contrato, afigura-se decisiva a data da sua comunicação pelo senhorio ao arrendatário. É o que resulta do art. 12.o, n.os 1 e 2, do CC, pois o facto que desencadeia o efeito extintivo do contrato de arrendamento não é o decurso do prazo de pré-aviso, mas antes a comunicação da denúncia pelo senhorio ao arrendatário. 77.º Assim sendo, mesmo que tal retroatividade fosse prevista para o contrato dos autos, não operaria, ainda assim, qualquer efeito. 78.º Porquanto independentemente de o contrato de arrendamento, àquela data, permanecer em vigor aquando da entrada em vigor da Lei n.o 13/2019, o efeito extintivo do mesmo – comunicação de não renovação – produziu efeitos (muito) antes da sua entrada em vigor. Nestes termos e nos melhores de direito deve a douta sentença ser confirmada, Assim se fazendo a costumeira justiça».
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A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1ª parte e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil – sendo que o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de apreciar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo Apelante, são as seguintes as questões solvendas, que conheceremos por ordem de precedência lógica, pese embora a subsidiariedade com que as mesmas foram invocadas:
. Da invocação das exceções dilatórias da falta de personalidade jurídica e judiciária da Herança autora, representada pelo cabeça-de-casal, e da preterição de litisconsórcio necessário ativo, em desrespeito pelo princípio da concentração da defesa consagrado no artigo 573º, nº 1, do Código Processo Civil, e pelo disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, por violação dos princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz;
. Da falta de personalidade jurídica e judiciária da Herança autora, representada pelo cabeça-de-casal, e das consequências da subsistência de tal exceção dilatória;
. Da preterição de litisconsórcio necessário ativo;
. Da ilegitimidade activa da Herança Aberta e Indivisa, representada nestes autos pelo Cabeça-de Casal;
. Da «nulidade das cartas/comunicações e dos efeitos jurídicos pretendidos, pelo BB ao recorrente e a desconformidade com a parte (a Herança aberta e Indivisa, representada pelo Cabeça-de-Casal) que instaura a presente acção de despejo»;
. Do (alegado) erro de julgamento por deficiente avaliação ou apreciação das provas e, assim, na decisão da matéria de facto;
. Do mérito da sentença em função da alteração, ou não, da decisão da matéria de facto, e do (alegado) erro de julgamento, por não aplicação ao caso sub judice da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro.
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2. Dainvocação das exceções dilatórias da falta de personalidade jurídica e judiciária da Herança autora, representada pelo cabeça-de-casal, e da preterição de litisconsórcio necessário ativo, em desrespeito pelo princípio da concentração da defesa consagrado no artigo 573.º, n.º 1, do Código Processo Civil, e pelo disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, por violação dos princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz; da falta de personalidade jurídica e judiciária da Herança autora, representada pelo cabeça-de-casal e das consequências da subsistência de tal exceção dilatória; da preterição de litisconsórcio necessário ativo; da ilegitimidade ativa da Herança Aberta e Indivisa, representada nestes autos pelo cabeça-de casal, e da «nulidade das cartas/comunicações e dos efeitos jurídicos pretendidos, pelo BB ao recorrente e a desconformidade com a parte (a Herança aberta e Indivisa, representada pelo Cabeça-de-Casal) que instaura a presente acção de despejo»
Alega o recorrente, em síntese, que:
As cartas dirigidas ao recorrente, por BB, no dia 30.12.2013 (a comunicar a sua intenção, do arrendamento transitar para o regime do NRAU), no dia 14.11.2018 (a comunicar que o arrendamento transitou para o regime do NRAU) e no dia 10.01.2020, são subscritas e assinadas pelo referido BB, na qualidade de senhorio, conforme documentos 6, 7 e 9, juntos aos autos no dia 13.07.2021, e o despejo do imóvel objeto dos autos, subscrito pelo ilustre advogado, LL, é instaurado pela Herança aberta por óbito de AA.
As comunicações/cartas dirigidas ao Recorrente apenas pelo BB deveriam ter sido subscritas e assinadas por todos os proprietários/senhorios, pelo que os efeitos pretendidos com as declarações produzidas não podem servir de fundamento à presente ação de despejo, por serem nulos e de nenhum efeito.
A presente ação de despejo deveria ter sido interposta, ou por todos os herdeiros, em obediência ao disposto no artigo 2091.º, n.º 1, ou por todos os proprietários/senhorios, nunca pelo cabeça-de-casal, em representação da Herança Aberta e Indivisa por óbito de AA.
O referido BB não tem legitimidade ativa, na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta e indivisa por óbito de AA, para nestes autos, por si só, demandar o requerido, pedir a resolução do contrato de arrendamento e o consequente despejo.
A “Herança” que o BB representa na qualidade de cabeça-de-casal, é uma “Herança aberta e indivisa” e não de uma herança jacente.
Foi aceite pelos seus herdeiros, desde logo por o cabeça-de-casal vir a juízo instaurar a presente ação, invocando a qualidade de cabeça-de-casal da dita herança, e não tem personalidade e capacidade judiciárias.
Mais, o contrato de arrendamento foi celebrado com o de cujos Dr. AA e o requerido, no dia 23.03.1974, não tendo por isso, BB qualquer participação na celebração do aludido contrato, como parte, muito menos como cabeça-de-casal.
Ora, nos termos do artigo 2091.º, n.º 1, fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.
Logo, a ação despejo deveria ter sido proposta por todos os herdeiros contra o requerido.
A recorrida pronunciou-se contra a invocação de tais exceções pelo recorrente apenas em sede de recurso, sob pena de, se assim for admitido, se contornar o efeito preclusivo da invocação factual e de todos os meios de defesa, desconsiderando-se o princípio da concentração da defesa consagrado no artigo 573.º, n.º 1, do Código Processo Civil, ficando violados em definitivo os artigos 3.º, n.º 4, 5.º, n.º 3, 552.º, n.º 1 al. f), 573.º, n.º 1, 580.º, n.º 2, 588.º, 589.º e 608.º do Código de Processo Civil; e mais se frustrando o disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, por violação dos princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo – inconstitucionalidade que expressamente invoca.
Sem prescindir, acrescenta que não ocorre qualquer ilegitimidade ativa nos autos, nem tampouco falta de capacidade ou de personalidade judiciárias, pois como consta da petição inicial, e documentos anexos, é autora a Herança representada em juízo pelo cabeça-de-casal; e a instauração de despejo visando a declaração da resolução do contrato de arrendamento, respeitante a imóvel pertencente a herança indivisa, constitui ato de administração da competência do cabeça-de-casal, podendo este proceder à sua instauração sem estar acompanhado dos restantes herdeiros, legitimidade que se mantém ainda que o respetivo contrato de arrendamento tenha sido celebrado com o de cujus ou com outro herdeiro.
Que dizer?
Prescreve o artigo 573.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que “[t]oda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.”
Estabelece o preceito o princípio da concentração da defesa, em obediência ao qual todos os meios de defesa (impugnações e exceções) que o réu tenha contra a pretensão formulada pelo autor devem, em princípio, ser deduzidos na contestação.
O n.º 2, do referido preceito, exceciona, no entanto, que “[d]epois da contestação (…) podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.”
O princípio da concentração tem como corolário o princípio da preclusão, tendo o réu, na contestação, o ónus de impugnar os factos alegados pelo autor, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória, com exceção das que forem supervenientes, e deduzir as exceções não previstas no n.º 2, sob pena de precludir a possibilidade de o fazer.
Deve, assim, o réu, deduzir na contestação toda a sua defesa, seja a defesa direta (impugnação), seja a defesa indireta (exceções dilatórias e perentórias), sob pena de preclusão, ou seja, sob pena de não o poder fazer mais tarde.
A regra da concentração da defesa na contestação conhece, no entanto, as limitações referidas no n.º 2, do artigo 573.º, ao permitir a dedução após a apresentação da contestação dos meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente, como sucede com quase todas as exceções dilatórias (artigo 578.º), embora já não seja conferida ao réu a possibilidade de articular novos factos que as sustentem, direito que, em regra, preclude com a apresentação da contestação[2].
Destarte, não está o réu obrigado a invocar a exceção dilatória de ilegitimidade, ativa ou passiva, na contestação sob pena de preclusão, podendo fazê-lo em momento posterior, por se tratar de meio de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente.
Só assim não será se, em sede de despacho saneador, a respetiva questão tiver sido concretamente apreciada, pois nesse caso o despacho produz o efeito de caso julgado formal (artigos 595.º, n.º 3 e 620.º, do Código de Processo Civil).
Não o tendo sido, o despacho saneador tabelar que apenas enuncie, sem concretamente apreciar, a respetiva questão, v.g. referindo genericamente que se verifica a legitimidade das partes, não constitui caso julgado formal, pelo que continua a ser possível a apreciação duma questão concreta de que resulte que o pressuposto genericamente referido afinal não ocorre; e podendo o Juiz voltar a pronunciar-se, a título oficioso, sobre a exceção que, no saneador, não tenha sido objeto de apreciação fundada e, por conseguinte, pode o réu invocar a exceção de ilegitimidade, inclusivamente em sede de recurso de apelação[3].
No caso que nos ocupa, verifica-se que o despacho saneador proferido nos autos, em 25.03.2023, refere genericamente que as partes «têm legitimidade», pelo que não constitui tal despacho, nessa parte, caso julgado formal. Nessa medida, nada impede o recorrente de invocar, nesta sede, a exceção dilatória de ilegitimidade ativa por preterição de litisconsórcio necessário e de ilegitimidade da Herança Aberta e Indivisa, representada pelo cabeça-de-casal, por se tratar de meio de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente, ainda que não lhe seja conferida a possibilidade de articular novos factos que a sustentem.
Prescreve o artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, que “[t]odos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.”
O princípio do processo equitativo tem subjacente o direito de defesa, o direito ao contraditório e o direito à prova, com igualdade de oportunidades para as partes e com regras pré-definidas.
Nos termos do artigo 277.º, n.º 1, do referido diploma legal, “[s]ão inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.
Sustenta a recorrida que a invocação pelo recorrente, apenas em sede de recurso, das aludidas exceções frusta o disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, por violação dos princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo.
Não vislumbramos, no entanto, em que medida a invocação pelo recorrente, apenas em sede de recurso, das aludidas exceções, viola o princípio do dispositivo, consagrado no artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, segundo o qual “às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas”, preceito este atinente a factos; como já referido, o n.º 2, do artigo 573.º, permite a dedução após a apresentação da contestação, dos meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente, como sucede com quase todas as exceções dilatórias (artigo 578.º), embora já não seja conferida ao réu a possibilidade de articular novos factos que as sustentem, direito que, em regra, preclude com a apresentação da contestação.
Também não vislumbramos em que medida a invocação pelo recorrente, apenas em sede de recurso, das aludidas exceções, viola o princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, na vertente proibitiva da decisão-surpresa (segundo o qual “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”) e n.º 4, no aspeto da alegação dos factos da causa (segundo o qual “[à]s exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final”).
Como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[4], estes preceitos resultam «duma conceção moderna do princípio do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior à sua introdução no nosso ordenamento. Não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.»
Ora, no caso que nos ocupa, as exceções dilatórias em causa, questões de direito oficiosamente cognoscíveis, foram suscitadas pelo recorrente, e sobre as mesmas pôde a recorrida exercer o seu direito de resposta nas respetivas contra-alegações.
De igual modo, não vislumbramos em que medida a invocação pelo recorrente, apenas em sede de recurso, das aludidas exceções, viola o princípio da igualdade das partes, consagrado no artigo 4.º, do Código de Processo Civil, segundo o qual “[o] tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais”, dado que a recorrida pôde exercer, como efetivamente exerceu, a faculdade de apresentar a sua defesa, nas respetivas contra-alegações.
Assim como não vislumbramos, por não ter sido sequer alegado, em que medida foi violado o princípio da imparcialidade do juiz.
A possibilidade de invocação pelo recorrente, em qualquer estado da causa, inclusivamente em sede de recurso, das aludidas exceções, posto que respeitados aqueles princípios, insere-se no âmbito dos poderes de modelação do processo que a Constituição da República lhe reconhece.
3. Da falta de personalidade jurídica e judiciária da Herança autora, representada pelo cabeça-de-casal e das consequências da subsistência de tal exceção dilatória
Vejamos então, e antes de mais, se a autora Herança aberta por óbito de AA dispõe de personalidade judiciária.
Dispõe o artigo 11.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que “[a] personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte”, acrescentando o n.º 2 do mesmo preceito que “[q]uem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária.”
O critério geral fixado na lei para se saber quem tem personalidade judiciária é o da correspondência (coincidência ou equiparação) entre a personalidade jurídica (ou capacidade de gozo de direitos) e a personalidade judiciária.
Há, todavia, exceções ao princípio da correspondência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária, orientadas no sentido de estender a personalidade judiciária a quem não goza de personalidade jurídica, como uma «forma expedita de acautelar a defesa judiciária de legítimos interesses em crise, nos casos em que haja qualquer situação de carência em relação à titularidade dos respectivos direitos (ou dos deveres correlativos)».[5]
Entre essas exceções, a lei adjetiva, no artigo 12.º, al. a), confere personalidade judiciária à herança jacente, o que significa que, embora carecida de personalidade jurídica, pode propor ações em juízo, sendo a herança a verdadeira parte na ação e não o sucessível chamado, o herdeiro, o curador ad hoc ou o Ministério Público que aja em nome dela.
A herança jacente (artigo 2046.º), é a herança aberta mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado (artigo 938.º), por desconhecimento da existência de herdeiros, por existência de herdeiros legítimos ou testamentários que ainda não aceitaram a herança ou pelo facto de ter sido deixada a favor de nascituro ou de conceturo.
A herança jacente assume provisoriamente o lugar do de cujus na relação jurídica litigada, e não se confunde com os herdeiros que venham a habilitar-se (artigos 2050.º). Corresponde a uma fase transitória de relativa indefinição jurídica no fenómeno sucessório que, contudo, não se confunde com a herança indivisa.
Toda a herança jacente é indivisa. A herança indivisa deixa de o ser com a aceitação e/ou com o repúdio pelos herdeiros.
Assim, determinados os sucessores e aceita a herança, os interesses passam a ser encabeçados, segundo as circunstâncias, pelo respetivo cabeça-de-casal ou pelos herdeiros (artigo 2091.º).[6]
A aceitação da herança pode ser expressa ou tácita – artigo 2056.º, n.º 1.
A aceitação é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir (n.º 2).
A aceitação é irrevogável e, na modalidade de expressa, não está sujeita à forma exigida para a alienação da herança – cf. artigos 2056.º e 2063.º a contrario sensu, e 2061.º.
Será, no entanto, de considerar aceitação tácita da herança aquela que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelem ou que não poderiam ser praticados senão nesse pressuposto (a aceitação), embora se excluam os atos de administração praticados pelo sucessível (artigo 2056.º, n.º 3), na medida em que estes podem traduzir o cuidado em acautelar ou defender os bens da herança, sem significarem a defesa de um direito próprio.
Segundo MM[7], a aceitação «é tácita, quando o herdeiro pratica algum facto de que necessariamente se deduz a intenção de aceitar, ou de tal natureza, que ele não poderia praticá-lo senão na qualidade de herdeiro».
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 20.04.2021[8], «Temos para nós que a existência de “cabeça-de-casal” [ou, sob outro ponto de vista, a aceitação desse cargo], não pressupõe, só por si, a aceitação da vocação sucessória. Na verdade, já foi a este propósito sublinhado o seguinte em douto aresto: «(…) A lei não define o momento em que se inicia a administração da herança, ao invés do que sucede quanto ao seu termo (artigo 2079.º do Civil). Como refere Capelo de Sousa a melhor solução para esta questão será o de atender a que a administração em causa está intimamente ligada à figura do cabeçalato e a que o cargo de cabeça-de-casal prioritariamente se defere ex lege (nº 1 do artigo 2080.º do CCivil) a certas categorias de pessoas (que não são necessariamente herdeiras) independentemente quer da sua aceitação de tal cargo quer da aceitação de eventual vocação hereditária. Existe, pois, aí, uma forma de administração legal de bens com vista à conservação e frutificação e a todos os demais actos de administração ordinária dos bens da herança assim como à realização de interesses de matiz pública, como por exemplo, a satisfação dos credores da herança, o que torna, portanto, o mecanismo administrativo previsto no artigo 2079.º e ss. operacional a partir da data da abertura da sucessão.».
Com a aceitação pelos herdeiros, a herança indivisa ou não partilhada deixa de estar na situação de jacente e, como tal, deixa de gozar de personalidade judiciária, e já não pode propor ações em juízo e desempenhar, em seu próprio nome, o papel de parte processual, porquanto quem passa a poder intervir na ação como parte são os respetivos titulares, enquanto herdeiros do de cujus, ou o cabeça-de-casal nas situações em que a lei expressamente o prevê.
Com efeito, prescreve o artigo 2091.º, n.º 1, que “[f]ora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.”
Assim, fora dos casos em que se poderá verificar a intervenção do cabeça-de-casal, ou de qualquer herdeiro ou mesmo terceiro, casos esses previstos nos artigos 2075.º, 2078.º e 2087.º a 2089.º, as ações com interesses respeitantes ao acervo hereditário ainda por partilhar terão de ser intentadas por ou contra a totalidade dos herdeiros, atuando estes em litisconsórcio necessário, ativo ou passivo – cf. artigo 33.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.[9]
Nos termos do disposto no artigo 2079.º, “[a] administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal”.
O cabeça-de-casal administra os bens próprios do falecido (artigo 2087º, n.º 1, 1ª parte).
A locação é qualificada no artigo 1024.º, n.º 1 como um ato de administração ordinária, exceto quando for celebrada por prazo superior a seis anos.
Vem sendo pacificamente entendido que a instauração de uma ação de despejo constitui um ato de administração que se justifica no âmbito dos poderes gerais conferidos pelo artigo 2079.º, porquanto, «[n]os poderes de administração incluem-se aqueles que visam a valorização e protecção do património, que são os objectivos principalmente visados com a acção de despejo».[10]
Como referia Lopes Cardoso[11], no âmbito da situação temporária de administrador de bens em que tem mera parte ideal (e até em que não tem parte nenhuma) ao cabeça-de-casal compete «praticar os actos que sejam indispensáveis à conservação do património em partilha, exercer aquele conjunto de direitos que a lei lhe outorga especificamente com vista a essa conservação e cumprir as tarefas que diplomas vários lhe impõem em atenção à qualidade em que foi investido ou a que tem potencial direito.» E entre essas tarefas e direitos aquele autor enuncia, a título exemplificativo e entre muitos outros, o de «dar de arrendamento os bens da herança»[12] e «propor acções de despejo contra os arrendatários dos bens da herança»[13].
Atento o que vem de ser dito, verifica-se que, no caso em análise, os autos fornecem elementos probatórios de que a Herança autora foi aceite pelos respetivos herdeiros, não só de forma tácita (artigo 217.º, n.º 1), mas também de forma expressa.
Com efeito, verifica-se que BB outorgou escritura de habilitação de herdeiros a 27 de abril de 1999, no extinto Cartório Notarial do concelho ..., a fls. 60, do Livro ...00-A, por falecimento de AA, no estado de casado de primeiras e recíprocas núpcias e no regime da comunhão geral de bens com DD.
Posteriormente, outorgou escritura de habilitação de herdeiros a 23 de maio de 2000, no extinto Cartório Notarial do concelho ..., a fls. 36, do Livro ...4-D, por falecimento de DD.
Conforme consta do Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registos n.º 2064/2016 do Arquivo Central do Porto, no dia ../../2014, por falecimento de BB, sucederam-lhe como únicos herdeiros KK, II e JJ.
Por escritura de Partilha de 1 de fevereiro de 2017, os referidos BB e mulher NN, KK, viúva, II e mulher OO e JJ, solteiro, procederam à partilha de diversos bens das heranças abertas por óbito de AA e DD, nos quais, todavia, não se incluiu o imóvel arrendado ao réu, tudo conforme resulta da escritura de partilha de 01.02.2017 junta com o requerimento inicial como Doc. 2.
O referido BB, na qualidade de senhorio, enviou missivas ao réu (em 14.11.2018 e 10.01.2020), e, por fim, propôs a presente ação, na qualidade de cabeça-de-casal, outorgando, em nome próprio e naquela assumida qualidade, procuração forense ao Ilustre Mandatário da autora.
Verificou-se, assim, uma aceitação da herança, que tem já herdeiros conhecidos certos e determinados (atualmente, e para além do referido BB, II, JJ e KK), do que resulta que a Herança autora não é jacente e, como tal, não dispõe de personalidade judiciária.
Como tal, teria de ser o cabeça-de-casal, incluindo-se a questão no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição ativa no âmbito da presente ação.
A falta de personalidade judiciária da autora Herança Ilíquida e Indivisa configura uma exceção dilatória típica e insuprível, de conhecimento oficioso e que dá lugar à absolvição do réu da instância (cf. artigos 278.º, n.º 1, alínea c), 576.º, n.º 2, 577.º, alínea c) e 578.º, todos do Código de Processo Civil).
Sob a epígrafe de “Casos de absolvição da instância”, dispõe o artigo 278.º, do Código de Processo Civil, o seguinte:
“1- O juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância:
(…)
c) Quando entenda que alguma das partes é destituída de personalidade judiciária (…).”.
Acrescenta o n.º 3, do referido normativo, que “[a]s exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.”
Pressupõe esta norma, desde logo, que, no momento em que o tribunal se certifica da falta de um pressuposto processual, verifica que os elementos do processo são suficientes para conhecer do mérito da causa.
Miguel Teixeira de Sousa[14], a propósito do artigo 288.º do Código de Processo Civil, na redação do DL. n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, correspondente ao atual artigo 278.º, à questão sobre se, neste caso, é admissível que o tribunal conheça do mérito apesar da falta do pressuposto, refere que «[a] resposta a esta questão depende da função do pressuposto que não está preenchido. Em geral, os pressupostos processuais podem realizar uma de duas funções: esses pressupostos podem destinar-se quer a assegurar o interesse público na boa administração da justiça, quer a garantir o interesse das partes na obtenção de uma tutela adequada e útil.»
(…)
«(…) a generalidade dos pressupostos processuais visa acautelar os interesses das partes, ou seja, assegurar que a parte possa defender convenientemente os seus interesses em juízo e não seja indevidamente incomodada com a propositura de acções inúteis ou destituídas de objeto. É para estas situações que o novo artº 288°, n° 3 2ª parte, estipula que, ainda que a excepção dilatória subsista, não deverá ser proferida a absolvição da instância quando, destinando-se o pressuposto em falta a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da sua apreciação, a que se conheça do mérito da causa e a decisão possa ser integralmente favorável a essa parte. Note-se que, segundo o sentido literal, o art° 288°, nº 3, parece só se referir às excepções dilatórias sanáveis que se procurou sanar e não foram efectivamente sanadas. Todavia, a doutrina definida nesse preceito deve valer para qualquer excepção dilatória: não é pelo facto de a excepção não ser sanável que, quando se verificarem as condições nele definidas, se deve obstar ao conhecimento do mérito da causa; além disso, mesmo que a excepção seja sanável, não importa procurar a sua sanação antes do proferimento da decisão de mérito, se a parte beneficiada com essa sanação for a mesma que pode obter uma decisão de mérito favorável.»
(…)
«Se, (…), não se encontra preenchido um pressuposto processual destinado a proteger interesses das partes, importa verificar se o conhecimento do mérito pode ser favorável à parte que seria beneficiada com a protecção que resultaria do preenchimento do pressuposto.»
(…)
«Nalguns casos, a falta do pressuposto processual não prejudica a parte, porque ela, mesmo que aquele se encontrasse preenchido, não poderia obter uma tutela jurisdicional mais favorável. E isso que sucede sempre que falte um pressuposto que protege os interesses do autor, mas a acção possa ser julgada procedente, e sempre que não se encontre preenchido um pressuposto favorável ao réu, mas o tribunal possa julgar a acção improcedente. Em qualquer destas situações, segundo o disposto no artº 288°, n° 3 2ª parte, o tribunal pode conhecer do mérito apesar da falta do pressuposto processual. Por exemplo: se falta a capacidade judiciária do autor, o tribunal pode proferir uma decisão de procedência, porque, mesmo que essa incapacidade fosse sanada, o autor não poderia obter uma tutela mais favorável».
Conforme observam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[15], a norma do n.º 3, do referido normativo, que segue a doutrina defendida por Miguel Teixeira de Sousa[16], pode evitar a absolvição da instância, na perspetiva da prevalência da decisão de mérito sobre a decisão baseada em questões processuais.
No mesmo sentido, enfatizam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[17] que «[o] n.º 3 constitui expressão evidente da prevalência do direito material, preconizando que a persistência de uma exceção dilatória não obsta à prolação de uma decisão de mérito desde que: a função desse pressuposto processual seja apenas a de tutela dos interesses da parte e não a defesa do interesse público na boa administração da justiça; o juiz esteja em condições de proferir decisão de mérito de imediato, sendo desnecessária a realização de outros atos processuais; a decisão de mérito a proferir seja integralmente favorável à parte que seria beneficiada com o preenchimento do pressuposto em falta».
Como se escreve no Acórdão da Relação de Coimbra de 23.02.2021[18], «[a] filosofia subjacente ao Código de Processo Civil visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, visando que o processo e a respectiva tramitação tenham a maleabilidade necessária para funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes, como claramente se evidencia no preâmbulo do DL n.º 329-A/95 de 12/12[17] e vemos reafirmado e até reforçado no CPC vigente.».
No caso em análise, verifica-se que BB, entretanto falecido em ../../2014, e BB (filhos de AA e DD), na qualidade de senhorios, enviaram ao réu as cartas/comunicações supra referidas, com data de 30.12.2013, 14.11.2018 e 10.01.2020.
E assim tinha efetivamente de ser, pois tal como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 10.01.2023[19], «[a] herança indivisa não é titular de direitos, pois titulares dos direitos e deveres da herança aceite mas que se mantém indivisa, em comum e sem determinação de parte, são os herdeiros/sucessores do autor daquela herança, não a própria herança aceite, mas indivisa. Logo, a herança indivisa não pode ter a qualidade de senhoria, pois para um senhorio ou locador decorrem os direitos e os deveres inerentes a uma relação arrendatícia ou locatícia.»
Enquanto cabeça-de-casal da herança indivisa, o referido BB tinha legitimidade para, por si só, deduzir oposição à renovação do contrato de arrendamento.
Com efeito, dispõe o artigo 11.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que “[h]avendo pluralidade de senhorios, as comunicações devem, sob pena de ineficácia, ser subscritas por todos, ou por quem a todos represente, (…)”.
Ora, sendo o referido BB cabeça-de-casal da Herança aberta por óbito de AA e cabendo-lhe, nessa qualidade, a administração desse património, no qual se integra o imóvel locado, representa o mesmo todos os senhorios, encontrando-se, assim, preenchido o requisito previsto no n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 6/2006, para os casos de pluralidade de senhorios. Efetivamente, a comunicação enviada ao réu, arrendatário, apesar de não ter sido subscrita por todos os senhorios, foi-o por quem a todos representa (qualidade que o réu implicitamente reconheceu nas suas comunicações de 05.11.2019 e 21.01.2020[20]), dispondo o referido BB de legitimidade substantiva para, por si só, efetuar as comunicações em apreciação, que servem de fundamento à presente ação de despejo, destinadas a impedir a renovação automática do contrato no termo do prazo estipulado e, assim, fazer caducar o mesmo.
Tratando-se de uma ação de despejo, por oposição à renovação do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1110.º, n.º 2 ex vi 1097.º, n.º 1, al. b) (na redação anterior à entrada em vigor da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro), caso o cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de AA se apresentasse a litigar nessa qualidade, disporia o mesmo de legitimidade para, desacompanhado dos restantes herdeiros, intentar ação de despejo relativamente a um imóvel da herança arrendado pelo falecido, porquanto nos seus poderes de administração incluem-se aqueles que visam a proteção do património e, por conseguinte, a instauração da ação de despejo.[21]
Assim sendo, e pese embora a Herança autora não dispor de personalidade judiciária, tendo a ação sido proposta pelo herdeiro que alegou ser o respetivo cabeça-de-casal, atento o respetivo objeto (o despejo de imóvel arrendado pertencente à herança), a intervenção do referido herdeiro, face ao disposto nos artigos 1024.º, n. 1 e 2079.º, assegura de forma eficaz a regularidade daquela representação, mostrando-se salvaguardados os interesses que o cabeça-de-casal deveria prosseguir caso a ação tivesse sido por si instaurada. Ou seja, estando em causa a proteção dos interesses dos herdeiros da autora e nenhum outro motivo obstando ao conhecimento do mérito da causa, a subsistente exceção dilatória de falta de personalidade judiciária da autora não deverá determinar a absolvição da instância (artigo 278.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), antes devendo os autos prosseguir os seus termos, em prol da prolação de uma decisão de mérito, em detrimento de uma decisão de natureza formal, visando-se impedir que a real possibilidade de resolução do litígio seja prejudicada por uma questão de ordem formal que desnecessariamente impeça a obtenção da justiça material, porquanto o presente recurso deve ser inteiramente favorável à parte a favor de quem é estabelecida a absolvição da instância (ou seja, à parte que seria beneficiada com a proteção que resultaria do preenchimento do pressuposto em falta), como se demonstrará adiante.[22]
Considera-se, assim, prejudicado o conhecimento das demais exceções invocadas pelo recorrente, que não se encontrem já implicitamente apreciadas.
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4. Recurso da matéria de facto 4.1. Factualidade considerada provada na sentença O Tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia ../../1974,no cartório de ..., outorgaram um contrato epigrafado de “arrendamento”, AA casado com DD no regime de comunhão de bens, e CC, solteiro, maior, sobre uma parte do rés do chão, formada por duas divisões e com estrada pelo numero 102 de polícia da Rua ... da freguesia ..., do prédio urbano de altos e baixos no mesmo lugar e limites, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...52 e descrito na respetiva conservatória do registo predial ... sob o n.º ...76, parte do Rés do Chão que se destina a ser exercido o comércio a retalho de tecidos e fazendas, venda de artigos de “pronto a vestir”, e bem assim a indústria de confeção de vestuário, ou qualquer outra do ramo de comércio ou industria a que o arrendatário decida e seja legal; (cf. contrato de arrendamento de fls. 3 e ss). 2. O contrato referido em 3.1.1. teve o seu início em 1 de abril de 1974, com o prazo de um ano renovável; (cf. contrato de arrendamento de fls. 3 e ss). 3. O imóvel descrito em 3.1.1. pertence à herança aberta por óbito de AA, com o NIF ...10 (cf. termo de autenticação de partilha de fls. 4 e ss; e certidão permanente de fls. 11 e caderneta predial de fls. 13). 4. Por missiva datada de 30 de dezembro de 2013,BB, na qualidade de senhorio, enviou ao Réu e foi recebida por este uma comunicação onde refere que: “Atento o facto de o contrato de arrendamento acima identificado ter sido celebrado antes da entrada em vigou do DL n.º 321/B-90 de 15 de Outubro, venho pela presente, ao abrigo do disposto no artigo 50.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro, na redacção conferida pela Lei n.º 31/2012 de 14 de Agosto, comunicar a intenção de que o referido contrato transite para o regime do NRAU. Mais informo que terá um prazo de 30 dias para responder ao proposto.” (cf. documento de fls. 13e AR de fls. 13 v). 5. Por missiva datada de 22 de janeiro de 2014, CC, na qualidade de arrendatário, enviou a BB, foi recebida por este uma comunicação onde refere:
“Assunto: Transição para o NRAU Acuso a Recepção da carta de Vª a Exª que mereceu a minha melhor opção. Em resposta à comunicação de Vªa Exª comunico que o contrato de arrendamento passará a vigorar com prazo certo pelo período de 5 anos(n.º 7 do artigo 31.º por remissão do n.º 7 do artigo 51.º) não havendo por este modo, lugar ao aumento de renda” (cf. documento de fls. 14e AR de fls. 14 v). 6. Por missiva datada de 14 de novembro de 2018, BB[23], na qualidade de senhorio, enviou ao Réu e foi recebida por este uma comunicação onde refere: “Assunto: oposição à Renovação do contrato de arrendamento Na sequência da missiva de 30 de dezembro de 2013, (…) uma vez que não houve acordo entre as partes acerca do tipo e duração, nos termos legais em vigou, o contrato transitou para o NRAU no dia 1 de Fevereiro de 2014. Comunicamos assim a Vª Exª, que nos termos do artigo 1097.º n.º 1 a) do CC, opomo-nos à renovação do contrato de arrendamento pelo que o mesmo terá o termo, definitivo e improrrogável, no dia 1 de Fevereiro de 2020, respeitando o período de antecedência mínima legalmente imposto. (…)” (cf. documento de fls. 15 e AR de fls. 15 v). 7. Por missiva datada de 5 de novembro de 2019, o Réu envia ao Senhorio, onde se opõe à data de 1 de fevereiro de 2020 como termo de contrato. (cf. documento de fls. 16). 8. Por missiva datada de 10 de janeiro de 2020, o senhorio envia ao Réu, uma comunicação onde refere que o Réu não se pode opor à não renovação (cf. documento de fls. 17 e talão de registo de fls. 18). 9. Por missiva datada de 21 de janeiro de 2020, o Réu envia ao Senhorio, uma comunicação onde refere que Senhorio não comunicou nem confirmou a denúncia do contrato no prazo legalmente previsto (cf. documento de fls. 19). 10. O requerido, no dia 26/08/2012, foi submetido a Colectomia subtotal por Adenocarcionoma do colon em oclusão.: T3N1(+2/17)M0;v(+) (cf. Relatório Médico do Serviço de Oncologia do Centro Hospitalar ...). 11. Em consulta multidisciplinar de Oncologia foi decidido realizar quimioterapia com folfox6, 12 ciclos, durante seis meses (cf. Relatório Médico do Serviço de Oncologia do Centro Hospitalar ...). 12. O requerido, apresentou má tolerância com mucosite logo após o 1º ciclo (cf. Relatório Médico do Serviço de Oncologia do Centro Hospitalar ...). 13. E foi medicamente dispensado da atividade laboral (cf. Relatório Médico do Serviço de Oncologia do Centro Hospitalar ...). 14. Mantendo tratamento e vigilância no serviço de Oncologia, no Centro Hospital do Porto(cf. Relatório Médico do Serviço de Oncologia do Centro Hospitalar ...). 15. O sobressalto causado pela doença grave detetada no requerido, causou neste, um estremecimento na vida, na sua saúde.
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4.2. Factualidade considerada não provada na sentença
O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos: 1. O sobressalto causado pela doença grave detetada no requerido, causou neste, um estremecimento nas capacidades mentais do requerido. 2. A rejeição inicial à medicação e ao tratamento, agudizaram as reações de medo, desespero e de descontrole mental no requerido. 3. Que se repercutiram no seu bem-estar físico e mental até meados de setembro de 2020. 4. A doença diagnosticada ao requerido, a cirurgia, e a rejeição ao tratamento com quimioterapia, causaram no requerido, um sentimento de pouca esperança de vida e uma consequente depressão profunda. 5. A sua saúde, com o avançar da idade, foi-se degradando. 6. O requerido, tornou-se num homem doente física e mentalmente e dependente de medicação. 7. Apresentava um especto físico, magro. 8. Psicologicamente, o requerido denotava, por vezes grande alienação da realidade. 9. Não obstante a ajuda médica e medicamentosa ao longo dos anos, certo é que o seu estado de saúde, até setembro de 2020 não apresentava melhoras significativas. 10. Ignorava por vezes a medicação, faltava às consultas médicas e fracassava a recuperação. 11. O estado de saúde do requerido era grave, com fortes repercussões na sua capacidade mental. 12. Psicológica e emocionalmente muito fragilizado. 13. Com a capacidade mental afetada, agravada pelos efeitos dos medicamentos que tomava. 14. O requerido, à data da comunicação vivia uma situação de profundo sofrimento e desespero incontrolado, a lutar pela vida, com as poucas forças que lhe restavam. 15. Incapaz de adequada reação à situação de sofrimento de que padecia. 16. Com as capacidades de entendimento, discernimento e de raciocínio, fortemente limitadas desmotivado da vida e de viver. 17. O requerido, naquela data (22/01/2014), estava desorientado no tempo, indiferente de si, das outras pessoas, das coisas e da vida. 18. Estado este que, não permitia ao requerido compreender o alcance dos seus atos. 19. Nem compreender o seu significado. 20. Razão pela qual, não teve, consciência do que declarou. 21. Nem do significado dos atos, por não compreender o sentido e alcance das palavras utilizadas na carta que redigiu no dia 22/01/2014. 22. Situação esta, a que se manteve praticamente até meados de setembro de 2020.
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4.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto
Nas suas alegações recursivas o recorrente veio requerer a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, com fundamento na existência de factos incorretamente dados como “não provados”.
O artigo 640.º, do Código de Processo Civil, estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos: “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”.
No presente processo, a audiência final processou-se com gravação dos depoimentos prestados nesse ato processual, e encontram-se reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto estabelecidos no citado artigo 640.º, na medida em que o recorrente: identifica, nas conclusões de recurso, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; discrimina, na motivação do recurso, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, na sua perspetiva, impõem decisão sobre os pontos da matéria de fato impugnados diversa da recorrida; indica, na motivação e nas conclusões do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; e, finalmente, quanto aos meios probatórios que invoca como fundamento do erro na apreciação das provas que foram objeto de gravação, indica, na motivação de recurso, o início e o termo dos excertos em que funda o recurso.
De acordo com o que dispõe o n.º 1, do artigo 662.º do Código de Processo Civil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Conforme salienta António Santos Abrantes Geraldes[24], pretendeu-se, com a redação do artigo 662.º, «que, sem embargo da correção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afetam a decisão da matéria de facto (v.g. contradição) e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art.º 640.º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência.»
Através do n.º 1, do artigo 662.º, fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia[25], e, desse modo, alterar a matéria de facto, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
Como observa Ana Luísa Geraldes[26], «[e]m caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.»
Cumpre então reapreciar os pontos de facto que foram impugnados pelo Réu/recorrente, a fim de descortinar se existem os fundamentos invocados para a sua alteração nos termos pretendidos.
Pretende o recorrente a alteração para provada da matéria dada como não provada constante dos pontos 3.2.1 a 3.2.22
São os seguintes, os factos constantes dos pontos 3.2.1 a 3.2.22 do elenco dos factos não provados: 3.2.1. O sobressalto causado pela doença grave detetada no requerido, causou neste, um estremecimento nas capacidades mentais do requerido. 3.2.2. A rejeição inicial à medicação e ao tratamento, agudizaram as reações de medo, desespero e de descontrole mental no requerido. .2.3. Que se repercutiram no seu bem-estar físico e mental até meados de setembro de 2020. 3.2.4. A doença diagnosticada ao requerido, a cirurgia, e a rejeição ao tratamento com quimioterapia, causaram no requerido, um sentimento de pouca esperança de vida e uma consequente depressão profunda. 3.2.5. A sua saúde, com o avançar da idade, foi-se degradando. 3.2.6. O requerido, tornou-se num homem doente física e mentalmente e dependente de medicação. 3.2.7. Apresentava um especto físico, magro. 3.2.8. Psicologicamente, o requerido denotava, por vezes grande alienação da realidade. 3.2.9. Não obstante a ajuda médica e medicamentosa ao longo dos anos, certo é que o seu estado de saúde, até setembro de 2020 não apresentava melhoras significativas. 3.2.10. Ignorava por vezes a medicação, faltava às consultas médicas e fracassava a recuperação. 3.2.11. O estado de saúde do requerido era grave, com fortes repercussões na sua capacidade mental. 3.2.12. Psicológica e emocionalmente muito fragilizado. 3.2.13. Com a capacidade mental afetada, agravada pelos efeitos dos medicamentos que tomava. 3.2.14. O requerido, à data da comunicação vivia uma situação de profundo sofrimento e desespero incontrolado, a lutar pela vida, com as poucas forças que lhe restavam. 3.2.15. Incapaz de adequada reação à situação de sofrimento de que padecia. 3.2.16. Com as capacidades de entendimento, discernimento e de raciocínio, fortemente limitadas desmotivado da vida e de viver. 3.2.17. O requerido, naquela data (22/01/2014), estava desorientado no tempo, indiferente de si, das outras pessoas, das coisas e da vida. 3.2.18. Estado este que, não permitia ao requerido compreender o alcance dos seus atos. 3.2.19. Nem compreender o seu significado. 3.2.20. Razão pela qual, não teve, consciência do que declarou. 3.2.21. Nem do significado dos atos, por não compreender o sentido e alcance das palavras utilizadas na carta que redigiu no dia 22/01/2014. 3.2.22. Situação esta, a que se manteve praticamente até meados de setembro de 2020.
Fundamenta o recorrente a sua impugnação nas suas declarações de parte e nos depoimentos das testemunhas Dr. FF, GG, HH e EE, bem como no teor do Relatório Clínico junto aos autos em 13.06.2022.
O Tribunal a quo formou o respetivo juízo probatório sobre estes factos nos seguintes termos:
«Quanto aos demais factos que resultaram como nãoprovadosa convicção do Tribunal resultou de ausência de prova minimamente credível e consistente de nos convencer acerca da verificação dessa realidade e nomeadamente da ausência de qualquer prova documental ou testemunhal que confirme aquela. Assim, no seu depoimento o Réu CC, tenta sustentar a versão plasmada na sua oposição sem sucesso; o Réu chega a informar o Tribunal que a carta redigida em Janeiro de 2014 e, assinada por si, foi redigida por uma sua sobrinha que à época era estagiária em direito mas que não lhe explicou o teor nem o alcance da mesma; contudo o Réu, não arrolou a referida sobrinha como testemunha nos presentes autos, sendo que tal facto também contribuiu para que o seu depoimento tenha sido considerado não credível porque parcial, titubeante na forma como o fez, e desmentido por demais prova testemunhal conforme infra. A testemunha EE, sendo a sua razão de ciência ser amigo do Réu e comerciante refere que costumava almoçar com o Réu que partilhavam um grupo de amigos, que falavam todos os dias atento ao facto de as suas lojas serem muito próximas e que nunca notou nada de diferente no Réu; testemunho considerado credível porque calmo e coerente. A testemunha GG, sendo a sua razão de ciência ter sido sempre cliente do Réu e que o conhece desde que o Réu abriu a loja; refere que na data de 2012/2014 o Réu andava mais calado, mais triste e abatido; e mais não disse, sendo que não soube explicar ao Tribunal como é que, sem ninguém lhe perguntar, avançou de forma imediata no seu depoimento a data relevante para os presentes autos; A testemunha HH, sendo a razão de ciência ser sobrinho do Réu refere que à data da declaração este estava perturbado e em baixo; Por fim a testemunha FF, sendo a sua razão de ciência, ser médico, e quem subscreveu o relatório clínico datado de Junho de 2022 e junto aos autos; tal relatório descreve determinados factos que deverão ter sido contados pelo Réu à testemunha e esta, depois de extensa adjetivação clínica, conclui que atento o descrito o Réu, “não teria o capital cognitivo remanescente suficiente ao acesso/disponibilidade de discernir ou compreender o alcance, a totalidade e o sentido das tomadas de decisão, nomeadamente documentos que assinou relativos ao arrendamento da loja onde trabalha”;ora tal referência directa e especificadamente, 8 anos mais tarde, a “documentos relativos ao arrendamento da loja onde trabalha” o Réu, levou o Tribunal a conclui pela falta de credibilidade do teor do mesmo; acrescendo ainda que a testemunha que, supostamente começou a acompanhar o Réu desde 2014, - sendo que tal acompanhamento nunca foi referido/alegado na oposição pelo Réu-; conjuntamente com o facto de que a testemunha ter referido que nunca fez qualquer exame técnico ao Réu porque não ter considerado necessário; e por fim referir que receitou medicamentos ao Réu,- sendo que também não ter referido tal facto no seu relatório nem, o Réu juntou qualquer prescrição médica aos autos ou alegado tal circunstância- não ficou o Tribunal com qualquer dúvida que o relatório foi solicitado e realizado à medida destes autos o que aumentou ainda mais a falta de credibilidade do teor do mesmo e consequentemente da versão do Réu. Com efeito, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova plasmadas no artigo 342º, do Cód. Civil, competia ao Réu apresentar provas de tal factualidade, o que não sucedeu. Em conclusão, feita a apreciação crítica da prova, não podia o Tribunal apreciar a matéria de facto de modo diferente daquele que se deixou expresso.»
O Tribunal ad quem pode e deve analisar criticamente a prova produzida, de acordo com o princípio da livre convicção, formulando ele próprio uma nova e autónoma convicção e efetuar, se formar uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, as correções na decisão de facto que a sua convicção lhe imponham.
Importa, porém, não esquecer, como se enfatiza no Acórdão desta Relação de 05.03.2020[27], que «mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.”»
Isto posto, cumpre proceder à reapreciação dos pontos de facto que foram impugnados pelo réu/recorrente.
Como ponto prévio, deixa-se aqui expressamente consignado que foram integralmente ouvidas as declarações de parte do réu, bem como todos os depoimentos prestados pelas testemunhas.
O réu CC referiu que, em 2012, teve um problema oncológico. Fez uma cirurgia, em agosto de 2012. Vivenciou um período muito mau em termos psicológicos. Foi a fase mais difícil da sua vida. Uma fase muito grave até 2016.
Esteve ausente da loja durante muito tempo. A recuperação foi bastante difícil.
Na sua ausência, venderam-lhe menos cento e oito mil euros, e não conseguia dar a volta à situação. Tinha três lojas, 4 ou 5 pessoas a trabalhar. Entretanto teve de fechar uma. Não estava com cabeça para gerir aquela situação.
Juntaram-se as coisas todas.
Apareceram muitas penhoras. Não estava com cabeça para resolver essas situações.
Questionado sobre a carta de 22 de janeiro de 2014, respondeu que foi a sua sobrinha que a fez, depois de lhe terem dado a carta (do senhorio) que já lá estava há uns dias. Não tem consciência do que assinou. Não tem presente ter assinado a carta.
Não mandou carta nenhuma. A sua sobrinha tinha acabado o curso de direito e era estagiária.
Juntou-se ali muita coisa, mesmo das Finanças.
Na vida diária, tinha dificuldades. Esquecia-se de coisas.
Decidiu passar a ter consultas de psiquiatria. Tomava medicação.
Trabalhou aqueles anos todos e viu-se com aquelas dificuldades todas.
Foi uma altura muito difícil. Juntou-se muita coisa e não se sentia capaz de dar a volta.
A testemunha FF, médico, especialista em psiquiatria, referiu que começou a consultar o réu em 2014.
Contou-lhe que foi sujeito a quimioterapia e da sua falência económica.
Confrontado com o Relatório que elaborou, referiu que elaborou tal relatório apenas com base na observação clínica.
Prescreveu medicação ao réu: antidepressivos e sedativos.
Questionado sobre a menção que faz naquele relatório aos documentos que o réu assinou relativos ao arrendamento da loja onde trabalha, referiu que tal menção decorreu de um elemento que lhe foi dito, mais recentemente.
Acrescentou, por último, que houve períodos em que o réu esteve incapaz.
A testemunha EE, comerciante, conhecido do réu há cerca de vinte anos, referiu que o seu estabelecimento fica perto do estabelecimento do réu.
Via o réu quase todos os dias e, de vez em quando, jantavam com os amigos.
Falavam normalmente.
Acha que o réu estava capaz para os negócios. Nunca notou que o mesmo estivesse baralhado da cabeça e nunca o viu com lapsos de memória.
Não teve conhecimento que o réu teve um cancro.
A testemunha GG, reformada, ex-inquilina do representante da autora, BB, referiu conhecer o réu desde 1965, altura em que o mesmo abriu a loja. Foi sempre cliente dele.
Referiu que o réu teve um problema de saúde, 2012/2013/2014, e andou um bocado em baixo.
Foi operado, segundo sabe, em oncologia.
Quase não falava com as pessoas. Dizia que não andava cá a fazer nada, que queria desaparecer. Via-o muito em baixo. Não era a pessoa ativa que era antes. Viu-o muito triste e abatido.
Teve sempre uma ou duas empregadas na loja. Só há pouco tempo está sozinho na loja.
A testemunha HH, comerciante, sobrinho do réu, referiu que há 10/11/12 anos atrás, o seu tio esteve muito doente, com uma doença oncológica.
Foi operado.
Ficou muito perturbado com essa doença. Já não sabia o que é que havia de fazer. Estava com alguma perturbação psicológica. Não tinha a conversa fluida que tinha anteriormente. Dizia que estava farto da vida que estava a levar, que estava muito difícil.
O trabalho estava a ser difícil. Tinha duas ou três lojas. O negócio correu muito mal, devido à doença. Houve um período em que não esteve a trabalhar. Quem geria eram os funcionários que estavam na loja.
Sentia-o muito em baixo. Aconselhou-o no que podia e deu-lhe força moral.
Não tinha contacto diário com ele.
Verifica-se, assim, que em relação à matéria de facto objeto de impugnação foram produzidos declarações e depoimentos vagos/imprecisos, e mesmo de sinal contrário.
Nas suas declarações de parte, o réu alude a uma fase muito grave até 2016, sem precisar, no entanto, o período de tempo em que esteve ausente das lojas, e a data em que teve de vender uma delas, por não estar com cabeça para gerir a situação.
Refere que se juntaram as coisas todas; que apareceram muitas penhoras, sem concretizar quando recebeu a notícia das mesmas.
Refere ainda que foi a sua sobrinha que redigiu a carta de 22 de janeiro de 2014, carta essa que não tem consciência de ter assinado, e acrescenta que não mandou carta nenhuma.
Contudo, não se mostra credível que a sua sobrinha tivesse redigido uma carta de resposta à carta do senhorio sem antes ter falado com o tio sobre o teor da mesma e, por conseguinte, sem o seu conhecimento e o consentimento, assim como não se mostra credível que alguém tivesse enviado a carta de 22 de janeiro de 2014, sem o conhecimento e o consentimento do réu.
A testemunha FF referiu ter começado a consultar o réu em 2014, sem, no entanto, precisar quando teve lugar a primeira consulta.
Referiu, de forma vaga, que houve períodos em que o réu esteve incapaz.
No Relatório Clínico que a testemunha elaborou em 8 de junho de 2022, pode ler-se o seguinte:
«Refere um cancro do colon em 2012 (tratamento cirúrgico e quimio-terapêutico), e em 2014, surgem problemas financeiros muito graves, ligados à crise económica e na sua área de negócio particularmente. Estes dois eventos, de alto valor depressiógeno / ansiógeno e afundaram a estrutura e a expectativa vital que vinha conseguindo manter e fundear ao longo da sua decorrência vital.»
(…)
«O conjunto de limitações apontadas ao nível do aparelho mental e decorrentes do exposto, empobrecem-no significativamente no acesso as variáveis da tendo estado, a espaços, afastado do sistema da realidade e atingido no mais nobre tem a Pessoa, não sendo o capital cognitivo remanescente suficiente ao acesso/disponibilidade de discernir ou compreender o alcance, a totalidade e o sentido das tomadas de decisão, nomeadamente, documentos que assinou relativos ao arrendamento da loja onde trabalha.»
Tal Relatório Clínico não concretiza, no entanto, o momento, no ano de 2014, em que surgiram os graves problemas financeiros que, aliados ao problema de saúde que atingiu o réu em 2012, «afundaram a estrutura e a expectativa vital que vinha conseguindo manter e fundear ao longo da sua decorrência vital», pelo que não esclarece sobre a (in)capacidade mental do réu à data de 22 de janeiro de 2014.
Questionada a testemunha FF relativamente à menção que é feita no aludido Relatório aos documentos que (o réu) assinou relativos ao arrendamento da loja onde trabalha, respondeu que decorre do que lhe foi dito, mais recentemente.
A testemunha EE, comerciante amigo do réu há cerca de vinte anos, com quem se encontra quase todos os dias, referiu nunca ter notado que o réu estivesse «baralhado da cabeça», e nunca o viu com lapsos de memória.
A testemunha GG, cliente da loja do réu desde 1965, referiu, no essencial, que nos anos de 2012/2013/2014, viu o réu muito em baixo, triste e abatido, e que o mesmo dizia que não andava cá a fazer nada, e que queria desaparecer.
A testemunha HH, sobrinho do réu, referiu, no essencial, que há 10/11/12 anos atrás, o seu tio esteve muito doente, com uma doença oncológica, que o deixou com alguma perturbação psicológica, que não tinha a conversa fluida que tinha anteriormente, que estava farto da vida que estava a levar, que o sentia muito em baixo e que o aconselhava no que podia e lhe dava força moral.
Acrescentou que o réu esteve um período sem trabalhar, sem precisar tal período.
Não tinha, no entanto, contacto diário com o réu.
Isto posto, ponderando os referidos elementos probatórios – vagos/imprecisos, em termos de localização temporal, nomeadamente que respeita à data em que o réu começou a ter consultas de psiquiatria e a tomar medicação, bem como ao período em que, segundo a testemunha FF, esteve incapaz –, e conjugando os mesmos com as regras da experiência e da verosimilhança dos factos, a convicção que este Tribunal ad quem extrai das provas produzidas, pese embora os condicionalismos em que delas conheceu, marcados pela ausência de mediação, coincide com a convicção da 1.ª Instância.
Nessa conformidade, não podemos deixar de acompanhar os fundamentos que levaram o Tribunal a quo a decidir pela inclusão dos pontos de facto em análise no elenco dos factos não provados, por ausência de prova minimamente credível e consistente que permita formar uma convicção, segura e objetiva, acerca da verificação dessa realidade.
Como já anteriormente referimos, os poderes conferidos ao tribunal de recurso para alterar a matéria de facto, apenas deverão ser exercidos nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente (em termos de convicção autónoma) para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância e já não naqueles (como é o caso) em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, assumindo uma opção que justificou de forma que reputamos consonante com toda a prova produzida no âmbito do presente processo.
Ora, relativamente aos pontos de facto em análise, o Sr. Juiz a quo indicou, de forma que reputamos adequada e coerente, as razões que fundaram a sua convicção, sendo certo que o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, conforme estatuído no n.º 5, do artigo 607.º, do Código de Processo Civil, desde que essa opção seja explicitada e convincente.
Daí que não se vislumbre razão bastante para divergir do sentido decisório seguido pelo julgador de 1ª instância relativamente a essa materialidade, já que nenhuma argumentação consistente foi aportada aos autos no sentido de desconstruir a motivação adrede tecida na decisão recorrida.
Por conseguinte, não há motivo para concluir que o tribunal da 1.ª instância, ao decidir julgar não provada a facticidade vertida nos referidos pontos de facto 3.2.1 a 3.2.22 tenha incorrido – por violação das regras da ciência, da lógica ou da experiência – em qualquer error in iudicando, por erro na avaliação das provas, que deva corrigir-se.
Sustenta o recorrente que existe uma contradição entre os factos provados 3.1.10 a 3.1.15, com particular relevância para este último (o sobressalto causado pela doença grave detetada no requerido, causou neste um estremecimento na vida e na saúde) com os factos não provados 3.2.1 a 3.2.22, mais concretamente com o facto provado 3.2.1 (o sobressalto causado pela doença grave detetada no requerido, causou neste um estremecimento nas capacidades mentais do requerido).
A propósito da contradição entre respostas positivas e negativas, refere Tiago Caiado Milheiro[28], que «um facto dado provado pode ser contraditório com um facto dado como não provado, pois a existência de tal facto pressuporia o facto dado como não provado. A contradição tanto pode ocorrer entre respostas positivas, respostas negativas, ou respostas positivas e negativas. Quanto a esta última situação é controversa, no entanto, não se pode afirmar em abstracto que tal contradição não possa suceder. Deverá analisar-se casuisticamente, porque o encadeamento de tais factos poderão determinar que as duas realidades, mesmo que uma positiva e outra negativa não possam coexistir. Por exemplo, será o caso, de se dar como provado que o veículo não invadiu a faixa contrária e dar como provado que o embate se deu na faixa contrária fruto da ultrapassagem desse mesmo veículo. Outra situação pode ser a enunciada por Lebre de Freitas (CPC Anotado, Volume II, pág. 631, citando o TRC em 10.12.92, BMJ, 422, p. 442) “quando não tenha sido acolhido na resposta negativa facto que constitua antecedente lógico necessário da resposta afirmativa.”»
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.11.2021[29] considerou-se que «[e]m regra, não há contradição entre “respostas” positivas e negativas, pois, no que respeita a estas, seria como se não existissem ou tivessem sido alegadas. Mas, excepcionalmente, há casos em que pode haver contradição, como sucede na situação em que as respostas negativas não acolham facto que integra antecedente lógico necessário de resposta afirmativa ou a resposta negativa tenha conteúdo sobreponível ao da resposta positiva.»
Ora, do cotejo dos factos provados 3.1.10 a 3.1.15, com particular relevância para este último (o sobressalto causado pela doença grave detetada no requerido, causou neste um estremecimento na vida e na saúde) com os factos não provados 3.2.1 a 3.2.22, mais concretamente com o facto provado 3.2.1 (o sobressalto causado pela doença grave detetada no requerido, causou neste um estremecimento nas capacidades mentais do requerido), não resulta a invocada contradição, porquanto não se inclui naquelas respostas negativas facto que constitua antecedente lógico necessário daquelas respostas afirmativas; e nem é possível concluir que aquelas respostas negativas têm um conteúdo sobreponível ao daquelas respostas positivas, nomeadamente no que respeita aos pontos 3.1.15 da matéria de facto provada e 3.2.1 da matéria de facto não provada, por se desconhecer, em concreto, de que forma o estremecimento causado pelo sobressalto resultante da deteção da doença grave se manifestou na saúde do réu.
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5. Fundamentos de Direito
Através do presente recurso visa o recorrente, em primeira linha, a alteração do decidido na sentença recorrida no que respeita à questão da anulabilidade da declaração negocial do réu, de concordância com a transferência do contrato de arrendamento para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, substanciada na sua missiva datada de 22 de janeiro de 2014, por padecer do vício de incapacidade acidental, previsto no artigo 257.º.
Porque nenhuma alteração foi introduzida na decisão da matéria de facto, tendo o Tribunal a quo feito uma correta aplicação das regras do ónus da prova, fica necessariamente prejudicado o conhecimento da pretendida alteração em sede de Direito, no que respeita àquela questão, o que aqui se declara, nos termos do artigo 608.º, n.º 2, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, do Código de Processo Civil.
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Subsidiariamente, visa o recorrente a alteração do decidido na sentença recorrida no que respeita à questão da (in)eficácia da denúncia atenta a falta de confirmação à renovação e extemporaneidade da mesma.
Argumenta o recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de direito porquanto, no seu entender, a Lei n.º 13/2019 de 12 de fevereiro, aplica-se ao caso sub judice, nos termos do seu artigo 14.º, n.º 5, pelo que, nos contratos de arrendamento não habitacional, o senhorio apenas pode denunciar o contrato nos casos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 1101.º; e, no caso sub judice, a comunicação da não renovação do contrato de arrendamento e respetiva confirmação, não foram feitas pela recorrida, dentro do prazo legalmente previsto, uma vez que a referida comunicação foi feita em novembro de 2018 quando deveria ter sido feita antes de fevereiro de 2015, e assim, eventualmente, produzir efeitos a partir de fevereiro de 2020.
Vejamos se lhe assiste razão.
O ajuizado contrato de arrendamento, outorgado no dia ../../1974, tendo por objeto uma parte do rés do chão, formada por duas divisões e com entrada pelo número ...02 de polícia da Rua ... da freguesia ..., parte do rés do chão essa destinada ao exercido do comércio a retalho de tecidos e fazendas, venda de artigos de “pronto a vestir”, e, bem assim, a indústria de confeção de vestuário, ou qualquer outra do ramo de comércio ou indústria que o arrendatário decida e seja legal, teve o seu início em 1 de abril de 1974, com o prazo de um ano renovável.
Na sequência da missiva datada de 22 de janeiro de 2014, enviada pelo recorrente ao senhorio, o referido contrato de arrendamento transitou para o NRAU, e passou a vigorar com prazo certo pelo período de 5 anos.
Prescreve o artigo 1110.º, n.º 1, na redação da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que não sofreu alteração com a entrada em vigor da Lei 13/2019, de 12 de fevereiro, em 13 de fevereiro, que “[a]s regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação (…)”.
Prescreve por sua vez o artigo 1097.º, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, que igualmente não sofreu alteração com a entrada em vigor da Lei 13/2019, de 12 de fevereiro, o seguinte:
“1 - O senhorio pode impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência mínima seguinte:
(…)
b) 120 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos;
(…)
2 - A antecedência a que se refere o número anterior reporta-se ao termo do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação.”.
Por missiva datada de 14 de novembro de 2018, BB, na qualidade de senhorio, enviou ao réu e foi recebida por este uma comunicação onde refere: «Assunto: oposição à Renovação do contrato de arrendamento Na sequência da missiva de 30 de Dezembro de 2013, (…) uma vez que não houve acordo entre as partes acerca do tipo e duração, nos termos legais em vigou, o contrato transitou para o NRAU no dia 1 de Fevereiro de 2014. Comunicamos assim a Vª Exª, que nos termos do artigo 1097.º n.º 1 a) do CC, opomo-nos à renovação do contrato de arrendamento pelo que o mesmo terá o termo, definitivo e improrrogável, no dia 1 de Fevereiro de 2020, respeitando o período de antecedência mínima legalmente imposto.»
Sustenta o recorrente que a Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, se aplica ao caso sub judice, e que nos termos do seu artigo 14.º, n.º 5, “[a]s comunicações do senhorio de oposição à renovação do contrato de arrendamento enviadas durante a vigência da Lei n.º 30/2018, de 14 de junho, aos arrendatários por ela abrangidos, que não tenham fundamento previsto na alínea a) do artigo 1101.º do Código Civil, com a redação dada pela presente lei, não produzem quaisquer efeitos.”
Todavia, não lhe assiste razão, pois que, conforme judiciosamente se escreve na sentença recorrida, aquela disposição transitória apenas é aplicável aos contratos de arrendamento previstos na Lei n.º 30/2018, de 14 de junho, ou seja, aos contratos de arrendamento habitacional em vigor há mais de 15 anos, conforme resulta do seu artigo 2.º.
A Lei n.º 13/2019 alterou a al. c) do artigo 1101.º, preceito que estabelece agora que o senhorio apenas pode denunciar o contrato de arrendamento habitacional de duração indeterminada mediante comunicação ao arrendatário com uma antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação.
O artigo 1104.º, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, entretanto revogado pelo artigo 13.º, al. a), da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, atinente à confirmação da denúncia, foi repristinado pelo artigo 13.º da Lei n.º 13/2019, e prescreve que, “[n]o caso previsto na alínea c) do artigo 1101.º, a denúncia deve ser confirmada, sob pena de ineficácia, por comunicação com a antecedência máxima de 15 meses e mínima de um ano relativamente à data da sua efetivação.”.
No que respeita aos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, o senhorio apenas pode denunciar o contrato nos casos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 1101.º, tal como prevê o artigo 1110.º-A, n.º 1, aditado pela Lei n.º 13/2019.
Sobre a questão de saber qual o regime aplicável à denúncia, pelo senhorio, do contrato de arrendamento, efetuada por carta recebida pelo arrendatário muito antes da entrada em vigor da Lei n.º 13/2019, mas para produzir efeitos extintivos do contrato após o seu início da vigência, pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2021[30].
Discorre-se, no mencionado aresto, que «[a] denúncia é uma figura privativa dos contratos de execução duradoura (i.e., execução que se prolonga no tempo), como o contrato de arrendamento – que é também de execução continuada -, que se renovam por vontade (real ou presumida) das partes ou por determinação da lei, ou que foram celebrados por tempo indeterminado, visando satisfazer necessidades não transitórias das partes. O interesse das partes é dessa forma realizado. A denúncia consiste precisamente na declaração feita por uma das partes à outra, em regra com certa antecedência sobre o termo do período negocial em curso, de que não quer a renovação ou a continuação do contrato renovável ou fixado por tempo indeterminado. Permite, pois, fazer cessar unilateralmente um contrato de duração indeterminada, ou evitar a sua renovação automática. Extingue a relação obrigacional complexa derivada do contrato cuja renovação ou continuação impede. Denunciado o arrendamento, cessam, a partir do momento em que a declaração opera os seus efeitos, as obrigações, tanto do locador como do locatário. Em síntese, uma das partes comunica à outra que deseja pôr termo ao contrato. A relação contratual não pode, todavia, ser extinta ex abrupto, independentemente de um pré-aviso. A denúncia tem, pois, que ser tempestiva, por parte do senhorio, isto é, com observância do prazo não inferior àquele para o efeito legalmente previsto. A indicação da data concreta em que se extingue a relação contratual constitui apenas um efeito necessário dessa denúncia.».
Acrescenta-se, no mesmo aresto, que «[o]facto que produz a denúncia do contrato e é, portanto, o facto extintivo do contrato de arrendamento é a declaração de denúncia. A cessação do arrendamento é o efeito ou consequência da comunicação feita pelo senhorio ao arrendatário. Assim, para efeitos de determinação da lei aplicável à denúncia do contrato, afigura-se decisiva a data da sua comunicação pelo senhorio ao arrendatário, o que, no caso dos autos, sucedeu a 22 de fevereiro de 2017, antes da entrada em vigor da Lei 13/2019 (13 de fevereiro de 2019). É o que resulta do art. 12.º, n.os 1 e 2, do CC, pois o facto que desencadeia o efeito extintivo do contrato de arrendamento não é o decurso do prazo de pré-aviso (de dois anos, conforme o art. 1101.º, al.c), na redação da Lei n.º 31/2012, ou de cinco anos, segundo o mesmo preceito, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2019), mas antes, reitere-se, a comunicação da denúncia pelo senhorio ao arrendatário. Logo, não se traduzindo o decurso do prazo de pré-aviso num facto extintivo (constitutivo ou modificativo) de uma situação jurídica, afigura-se irrelevante saber se esse prazo ainda não se havia completado aquando do início de vigência da lei nova (13 de fevereiro de 2019).»
Conclui-se, assim, no mesmo aresto, que «sem prejuízo de se aplicar aos contratos de arrendamento que subsistam à data da sua entrada em vigor, a Lei n.º13/2019, de acordo com o art. 12.º, n.º 1 e n.º 2, 1.ª parte, assim como da 2.ª parte a contrario, não se aplica a factos extintivos (constitutivos ou modificativos) verificados antes do seu início de vigência, como é o caso da comunicação da denúncia do contrato pelo senhorio ao arrendatário. Quando a Lei n.º 13/2019 entrou em vigor, já se havia constituído na esfera jurídica do senhorio o direito de denúncia do contrato, e este já o tinha adequadamente exercido. A denúncia rege-se, pois, pela lei em vigor ao tempo da sua comunicação ao arrendatário (art. 1101.º, al. c), na redação da Lei n.º 31/2012). Portanto, o contrato de arrendamento cessa após o decurso do período de dois anos subsequente àquela comunicação. O art. 1101.º, al. c), na redação da Lei13/2019, aplica-se, conforme referido supra, ao direito de denúncia, também de contratos anteriormente celebrados, que venha a ser exercido depois do seu início de vigência, mas não ao direito de denúncia exercido antes da sua entrada em vigor.»
No mesmo sentido, escreve-se no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.09.2023[31] que «I – A denúncia de um contrato de arrendamento como forma típica de cessação do contrato consiste na comunicação de uma parte à outra da sua intenção de pôr lhe pôr termos a partir de determinada data; II – Tal comunicação tem natureza unilateral e receptícia e produz efeitos logo que chega ao conhecimento da outra parte, sendo-lhe aplicáveis os requisitos formais e substanciais vigentes nessa data, irrelevando as alterações legislativas posteriores quanto à exigência de prazo mais longo de pré-aviso ou de confirmação da intenção de fazer cessar o contrato na data anteriormente comunicada.»
Atentemos agora ao caso que nos ocupa.
O facto extintivo do contrato de arrendamento, e que produz a respetiva denúncia, é a declaração de denúncia, que, no caso, ocorreu com o envio pelo senhorio da carta datada de 14 de novembro de 2018, antes da entrada em vigor da Lei n.º 13/2019, pelo que não releva que o prazo de pré-aviso ainda não se tivesse completado aquando do início de vigência da lei nova, em 13 de fevereiro de 2019.
Pese embora a lei nova se aplicar aos contratos de arrendamento que subsistem à data da sua entrada em vigor e, por conseguinte, ao direito de denúncia de contratos anteriormente celebrados, que venha a ser exercido depois do seu início de vigência, por força do disposto no artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte, não se aplica aos factos extintivos verificados antes do seu início de vigência, como é o caso da comunicação da denúncia do contrato pelo senhorio, pois quando a Lei n.º 13/2019 entrou em vigor, já se havia constituído na esfera jurídica do senhorio o direito de denúncia do contrato, e este já o tinha adequadamente exercido, pelo que a denúncia se rege pela lei em vigor ao tempo da sua comunicação ao arrendatário (artigo 1097.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, aplicável por força do disposto no artigo 1110.º, n.º 1).
Assim, atendendo a que o ajuizado contrato de arrendamento transitou para o NRAU no dia 1 de fevereiro de 2014, na sequência da missiva do réu datada de 22 de janeiro de 2014, tendo-se renovado em 1 de fevereiro de 2019, resta-nos concluir que o senhorio logrou impedir a renovação automática do contrato em 1 de fevereiro de 2020, com a sua comunicação de 14 de novembro de 2018, que respeitou a antecedência não inferior a 120 dias sobre a data da renovação do contrato.
Posto isto, temos de concluir que o Tribunal a quo apreciou a questão de forma correta, não incorrendo em qualquer erro jurídico.
Como tal, deverá decidir-se em conformidade, pela total improcedência do recurso de apelação interposto pelo recorrente, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
***
III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam as Juízas Desembargadoras da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
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Custas pelo recorrente (cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Guimarães, 24 de abril de 2025
Susana Raquel Sousa Pereira – Relatora
Maria João Marques Pinto de Matos – 1ª Adjunta
Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade – 2ª Adjunta
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem. [2] Assim, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição, reimpressão, Almedina, p. 698, nota 5. [3] Assim, José Lebre de Freitas Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, Almedina, p. 657 e, inter alia, o Acórdão do STJ de 19.05.2021 (processo n.º 713/19.3T8BJA.E1.S1, Relator Chambel Mourisco). [4] Obra citada, Volume 1.º, p. 29, nota 5. [5] Assim, ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO e NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição Revista e Actualizada de acordo com o Dec.-Lei 242/85, Coimbra Editora, Limitada, pp. 109-111. [6] Assim ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2024, 3.ª edição, Reimpressão, Almedina, p. 47, nota 2. [7]Partilhas Judiciais (Teoria e Prática), 4.ª edição, Volume I, Livraria Almedina, Coimbra 1990, p. 17, nota 35. [8] Processo n.º 6575/19.3T8CBR.C1, Relator Luís Cravo. [9] Vide, neste sentido, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 19.05.2010 (processo n.º 16/1999.P1, Relatora Sílvia Pires). [10] Vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 27.04.2006 (processo n.º 1567/2006-6, Relatora Maria Manuela Gomes). [11] Obra citada, p. 323. [12] Obra citada, p. 324. [13] Obra citada, p. 332. [14] Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª Edição, Lex, Lisboa 1997, pp. 84-86. [15]Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª Edição, Almedina, p. 565, nota 5. [16]Introdução ao processo civil, Lisboa, Lex, 1993, pp. 85-86. [17]Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2024, 3.ª edição, Reimpressão, Almedina, p. 360, nota 15. No mesmo sentido, os Acórdãos do STJ de 12.09.2013 (processo n.º 1300/05.9TBTMR.C1.S1, Relator Fernandes do Vale) e de 24.01.2019 (processo n.º 1250/12.2TBVCD-A.P1.S1, Relatora Rosa Ribeiro Coelho), a propósito da norma constante da parte final do n.º 3 do artigo 288.º do Código de Processo Civil anterior à Lei n.º 41/2013, equivalente ao n.º 3 do artigo 278, do atual Código. [18] Processo n.º 1088/19.6T8LRA.C1, Relator Fonte Ramos. [19] Processo n.º 11273/20.2T8LSB.L1-7, Relator José Capacete. [20] Vd. o Acórdão da Relação do Porto de 10.05.2021 (processo n.º 14453/18.7T8PRT.P1, Relator Jorge Seabra). [21] Vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 27.04.2006, supra referido, e da Relação do Porto de 08.02.2021 (processo n.º 5674/19.6T8VNG.P1, Relator Manuel Domingos Fernandes). [22] No mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra de 24.09.2019 (processo n.º 348/18.8T8FND-A.C1, Relator Fonte Ramos). [23] Retifica-se o manifesto lapso de escrita em que incorreu o Tribunal a quo, uma vez que a missiva datada de 14 de novembro de 2018, junta com a petição inicial como Doc. 7, foi subscrita por BB, na qualidade de senhorio, e não por BB. [24]Recursos em Processo Civil, 2022, 7.ª Edição Atualizada, Almedina, p. 333. [25] Assim, autor e obra citados, p. 334. [26] «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, p. 609. [27] Processo n.º 848/18.0T8CHV.G1. No mesmo sentido, o Acórdão desta Relação de 19.12.2023 (processo n.º 1526/22.0T8VRL.G1, Relatora Maria João Matos, aqui 1.ª Adjunta). [28]Nulidades da Decisão da Matéria de Facto, Julgar on line, no endereço eletrónico:
chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://julgar.pt/wp-content/uploads/2014/07/Tiago-Caiado-Milheiro-Nulidades-da-decis%C3%A3o-da-mat%C3%A9ria-de-facto.pdf, pp. 27 e 28. [29] Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1.S1, Relator Tibério Nunes da Silva. [30] Processo n.º 6208/19.8T8PRT.P1.S1, Relatora Maria João Vaz Tomé. [31] Processo n.º 2230/21.2T8BRG.G1.S1, Relatora Manuela Aguiar Pereira.