NULIDADE PROCESSUAL
RECURSO
GESTÃO PROCESSUAL E ADEQUAÇÃO PROCESSUAL
PRÉVIA AUDIÇÃO DAS PARTES
Sumário


I - A nulidade deve ser objeto de reclamação perante o tribunal onde a mesma foi cometida, ficando o recurso reservado para a impugnação da decisão que a apreciou. Todavia, se a nulidade estiver coberta por uma decisão judicial, que a praticou ou acolheu, quer de forma explícita, quer de forma implícita, então a mesma deve ser invocada no âmbito do recurso interposto dessa decisão.
Isto porque, “se, em vez de se recorrer do despacho, se reclamasse contra a nulidade, ir-se-ia pedir ao juiz que alterasse ou revogasse o seu próprio despacho, o que é contrário ao princípio de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional de quem decidiu”.
II - Deve presumir-se que a tramitação processual estabelecida pela lei, desde que não seja inconstitucional, é a fonte normativa que melhor cumpre o dever de justa composição do litígio.
Por isso, como regra e princípio geral, a adequação formal não deve ser utilizada para suprimir uma fase da tramitação processual tão importante como seja a fase de alegações e apresentação de meios de prova constante do art. 39º, nº 4 do RGPTC.
III - Embora seja possível, ao abrigo da adequação formal, “a dispensa da prática de atos que se revelem concretamente desnecessários ou a sua substituição por outros tidos por mais convenientes às especificidades da causa”, esta alteração da tramitação processual, em nome dos princípios do processo equitativo e da garantia e segurança jurídicas, tem sempre de ser precedida da auscultação prévia das partes, assim o impondo expressamente o nº 1 do art. 6º do CPC.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

AA veio, nos termos do artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), deduzir contra BB incidente de incumprimento do exercício das responsabilidades parentais relativamente ao jovem CC, filho de ambos.

Alegou, em síntese, que, desde o dia ../../2023, por única e exclusiva atuação da requerida, o requerente não contactou pessoalmente com o filho em nenhum dos dias a que tinha direito, nem o mesmo pernoitou qualquer dia em sua casa, encontrando-se a requerida em total desrespeito pela regulação das responsabilidades parentais em vigor; também por única e exclusiva atuação da requerida, o requerente não consegue contactar o filho diariamente entre as 17:00 horas e as 20:00 horas, por telemóvel ou meios informáticos, e não tem conhecimento dos dias em que o filho treina, de forma a ir buscá-lo à escola e levá-lo ao treino de futebol, atividade que este pratica em ...; nomeadamente, no dia 5 de outubro de 2023, o CC não jantou com o irmão germano no seu aniversário, porque a requerida não o permitiu, não tendo igualmente permitido que o CC fosse ao casamento da irmã germana no dia 7 de outubro e que no dia 19 de outubro, dia do aniversário do jovem, este estivesse com o requerente e com a irmã DD.

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Realizou-se a conferência de pais a que alude o art. 41º, nº 3, do RGPTC, na qual os progenitores não chegaram a acordo, pelo que a conferência foi suspensa por dois meses e foi determinada a remessa das partes e do jovem para audição técnica especializada, pelo período de dois meses, nos termos do disposto nos arts. 23.º e 38.º, al. a) do RGPTC.
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Em 11.12.2023 foi proferido despacho que, perante a eventual verificação de vários indicadores do fenómeno sociológico vulgarmente designado por Síndrome de Alienação Parental, determinou que:
- se solicitasse a avaliação psicológica do jovem e dos progenitores ao INML, devendo a avaliação incidir em particular sobre a verificação de indicadores do SAP.
- se solicitasse ao CAFAP que, em colaboração com o Tribunal, providenciasse pelo acompanhamento psicológico urgente do jovem, através de profissional neutro, sem ligação com qualquer dos progenitores, por forma a ajudar a desconstruir a ideia negativa que o jovem tem do progenitor, porventura fruto de SAP, levando o menor a aceitar os convívios com o progenitor.
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Em 11.6.2024, foram juntos aos autos os relatórios de perícia psicológica referentes ao jovem CC e aos seus progenitores.
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Os progenitores solicitaram esclarecimentos quantos aos relatórios, os quais vieram a ser prestados em 13.11.2024.
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Em 15.11.2024, foi junto aos autos o relatório referente à audição técnica especializada.
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Foi designada data para a conferência a que alude o artº 39º, nº 1 do RGPTC.
Nessa conferência, que teve lugar em 30.1.2025 e na qual estiveram presentes os progenitores e respetivos mandatários, a Sr.ª Juiz efetuou uma súmula dos atos praticados e das posições assumidas pelos progenitores quer no presente apenso H, quer nos apensos J e K, referindo que, por os mesmos estarem interligados, seriam apreciados em conjunto.

Os progenitores não chegaram a acordo relativamente às questões objeto dos presentes autos e dos apensos J e K, tendo o Ministério Público promovido que as partes fossem notificadas para os termos do disposto no art. 39º, nº 4, do RGPTC.

A Sr.ª Juiz determinou que os autos lhe fossem conclusos.
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Em 31.1.2025, foi proferida decisão na qual foi considerado que “apesar da Digna Magistrada do M.P., ter promovido o prosseguimento dos autos, com o cumprimento do art. 39º/4 do RGPTC, face à posição das partes consignada nos articulados, à posição das partes manifestada no decurso de várias diligências, às perícias realizadas aos progenitores e ao menor e demais prova testemunhal[1], o Tribunal está habilitado a decidir sobre a existência/inexistência de incumprimento.
Também quanto aos apensos de alteração do regime das responsabilidades parentais – apensos J) e K) – a circunstância do tribunal ter designado data para conferência e desta ter ficado a aguardar o resultado da audição técnica especializada no âmbito do apenso H), não obsta a que o tribunal juntas que se mostram as alegações das partes, nos termos do art. 42º/4 do RGPTC, as posições das partes e do menor nas conferências realizadas, juntos os relatórios periciais realizados aos progenitores e menor e demais prova documental junta aos autos, possa decidir nesta oportunidade, sobre o carácter fundado e necessário ou infundado e desnecessário das pretendidas alterações, sem necessidade de prosseguir com os autos, como pugna a Digna Magistrada do M.P., ao abrigo dos deveres de gestão processual e de adequação do processado, artigos 6.º e 547.º do C.P.C.[2]

A referida decisão julgou manifestamente infundados e desnecessários os pedidos de alteração das responsabilidades parentais formulados nos apensos J e K e, no que concerne ao presente apenso H, contém o seguinte dispositivo:

“Por outro lado, nos termos do art. 41º/1 do RGPTC, julgo verificados os incumprimentos suscitados pelo progenitor no âmbito do apenso H, ocorridos a partir do dia 29 de setembro, altura em que a Requerida não mais permitiu que o Requerente visse ou estivesse com o filho, para além de, desde o dia 03/10, contrariamente ao que ficou estipulado na ultima alteração das responsabilidades parentais, nem a Requerida nem o CC atendem o telefone durante o período das 17 h às 20 h, impossibilitando o progenitor de comunicar de qualquer forma com o filho.
Julgo ainda verificados os incumprimentos ocorridos no dia 05 de outubro, pois que, ao contrário do que consta do acordo, o CC não jantou com o irmão germano no seu aniversário, porque a requerida não o permitiu, como não permitiu que o CC fosse ao casamento da irmã germana no dia ../../2023, apesar deste ter manifestado vontade de o fazer, como consta das mensagens trocadas por whatsapp com a companheira do Requerente e com a irmã DD, o mesmo sucedendo no dia 19/10, dia do aniversário do menor, data em que não esteve, nem com o Requerente, nem com a irmã DD que faz anos no mesmo dia.
Assim, dado o longo período de privação - 1 ano e 4 meses -, o elevado grau de culpa e de ilicitude da progenitora remissa, bem patenteado no caracter grave da alineação parental por si protagonizada, com os malefícios acima identificados, condeno a mesma em 10 Ucs de multa- art. 41º/1 do RGPTC.
Não se procede ao arbitramento de indemnização a favor de ambos nos termos do mesmo normativo, porquanto tal indemnização não foi peticionada.
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A requerida não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. Nos presentes autos de incumprimento das responsabilidades parentais convocou o Tribunal a conferência prevista no artigo 41.º do RGPTC.
2. Em tal conferência não chegaram Recorrente e Recorrido a qualquer acordo.
3. Pelo que, o Tribunal a quo veio a proceder de acordo com o disposto nos artigos 38.º e 39.º do RGPTC, ou seja, encaminhar os autos para mediação ou para audição técnica especializada.
4. No âmbito da audição técnica especializada as partes não lograram obter acordo.
5. Após, deveria ter agendado nos termos do n.º 1 ou 3 do artigo 39.º RGPTC, a continuação da conferência, o que foi feito.
6. Nessa mesma conferência, os pais não chegaram a acordo, pelo que, deveria o Tribunal, nos termos do n.º 4 do artigo 39.º do RGPTC, e tal como promovida pelo Ministério Público, notificado as partes para apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos, o que t não fez.
7. Só após o cumprimento da referida fase processual e caso não fossem apresentadas alegações ou arrolada prova é que poderia o Tribunal proferir sentença, nos termos do n.º 6 do artigo 39.º do RGPTC, sendo certo que se as partes apresentassem alegações ou arrolassem prova teria o Tribunal que agendar obrigatoriamente a audiência de discussão e julgamento, nos termos do n.º 7 do artigo 39.º do RGPTC, proferindo sentença posteriormente.
8. Assim, nunca a Recorrente foi notificada para exercer o contraditório e para alegar, tal como decorre de Lei, violando o Tribunal a quo de modo grosseiro e gritante tal direito da Recorrente impedindo que a mesma exercesse cabalmente o seu direito ao contraditório e impedindo que arrolasse prova.
9. Desta forma, o Tribunal recorrido decidiu sem estar habilitado a fazê-lo, estando a sentença proferida ferida de nulidade, porquanto omitiu o Tribunal actos e formalidades que a lei prescreve - notificar as partes para alegarem e arrolarem prova, caso inexista novamente acordo, e, a ser o caso, realizar a audiência de discussão e julgamento - que manifestamente influi no exame ou na decisão da causa.
10. Termos em que, o Tribunal proferiu sentença neste apenso H logo após a segunda conferência, violando o disposto no artigo 39.º do RGPTC, o que consubstancia uma nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195.º do CPC, que aqui expressamente se invoca para todos os devidos e consequentes efeitos legais.
11. A Recorrente não foi notificada, neste apenso H, para exercer o contraditório e para alegar, tal como decorre de Lei, violando e impedindo o Tribunal o direito ao contraditório da Recorrente e impedindo que arrolasse prova, o que consubstancia uma nulidade nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195.º do CPC, que aqui expressamente se invoca para todos os devidos e consequentes efeitos legais.
Caso assim não entenda,
12. Resulta da douta sentença que, o tribunal a quo formou a sua convicção “face à posição das partes consignada nos articulados, à posição das partes manifestada no decurso de várias diligências, às perícias realizadas aos progenitores e ao menor e demais prova testemunhal, o Tribunal está habilitado a decidir sobre a existência/ inexistência de incumprimento.”
13.Sucede que, em momento algum no presente apenso H e nos demais apensos foi ouvida qualquer testemunha, e consequentemente, nunca o tribunal poderia ter formulado a sua convicção com base em prova testemunhal.
14. Do presente apenso resultam provados 13 factos, sendo que, só da a petição inicial intentada pelo recorrido no âmbito do Apenso H resulta enunciados 67 factos.
15.Da sentença não resultam enunciados quaisquer factos não provados.
16.Pelo que, e nesta medida, também não resulta efetuada nenhuma apreciação critica quanto aos mesmos.
17. Preceitua o nº 4 do artigo 607 do Código de Processo Civil que, “ Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
18. Por sua vez, dispõe o nº 5 do artigo 607º do Código de Processo Civil que “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”
19 Ademais que, quanto à factualidade dada como provada o tribunal a quo não faz qualquer apreciação critica limitando-se a indicar os factos dados como provados, sem que, para tanto, tenha explanada quais os meios de prova, e respetiva apreciação que levaram o tribunal a concluir naquele sentindo.
20 Ora, a fundamentação da matéria de facto provada e não provada, com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clara, objectiva e discriminada, de modo que as partes, destinatárias da decisão, saibam o que o Tribunal considerou como provado e não provado e qual a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal.
21 A necessidade imposta pela decisão, no que respeita ao apuramento claro do completo elenco dos factos não provados, para lá de ser totalmente omissa a fundamentação quanto a eles, consubstancia nulidade, nos termos dos arts. 607º, nº4, e 615º, nº1, als .b), c) e d) do Código de Processo Civil.
22 Na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjectivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável, pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível, habilitando ao cumprimento dos ónus impostos ao recorrente impugnante da matéria de facto, mormente, quanto à concreta indicação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e os concretos meios de prova, nos termos das als. a) e b) do nº1 do art. 640º do Código de Processo Civil.
23. Uma deficiente ou obscura alusão aos factos provados ou não provados pode comprometer o direito ao recurso da matéria de facto e, nessa perspectiva, contender com o acesso à Justiça e à tutela efectiva, consagrada como direito fundamental no art. 20º da Constituição da República.
24 Termos em que, o Tribunal proferiu sentença neste apenso H violando o disposto no artigo 607º nº 4 e 5 do CPC, o que consubstancia uma nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615º b), c) e d) º do CPC, que aqui expressamente se invoca para todos os devidos e consequentes efeitos legais.
25 Nestes termos violou o tribunal a quo, as seguintes disposições legais, artigo 39º nº 4 do RGPTC, artigo 607º nº 4 e 5 CPC e artigo 20º do CRP.
26. As presentes alegações de recurso encontram conforto legal nos artigos 39.º n.º 4, 6 e 7, 40.º e 41.º todos do RGPTC e nos artigos 638.º, 640.º e 662.º todos do Código do Processo Civil.”
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O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Pese embora na 1ª instância não tenha sido proferido o despacho referido no art. 617º, nº 1 do CPC, não se determinou a baixa dos autos para pronúncia sobre a nulidade invocada, por não se verificar a situação de indispensabilidade referida no nº 5 do mesmo artigo.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I - saber se ocorre nulidade processual, nos termos do art. 195º do CPC, por o tribunal a quo ter proferido decisão logo após a realização da conferência, na qual não foi alcançado acordo dos progenitores, sem previamente ter ordenado o cumprimento do disposto no art. 39º, nº 4 do RGPTC;
II - concluindo-se pela inexistência de nulidade processual, saber se a decisão recorrida padece de nulidade, nos termos do art. 615º, nº 1, als. b), c) e d) do CPC.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados, por acordo das partes e pela prova documental, relativamente aos apensos H, J e K, os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos, com exceção da numeração que foi por nós introduzida:

1 - No dia 19/09/2023, dia em que na economia do acordo de regulação das responsabilidades parentais cabia ao progenitor, o Requerente foi com os filhos CC e EE e irmão da DD, irmã germana do CC, que iria casar em 07/10/2023, ao ... no ..., para comprarem a roupa para a aludida cerimónia, resultando do acordo que a entrega deveria ser feita em ..., pelas 21 horas.
2 - Ainda em ..., na casa do Requerente, este sugeriu ao filho que, caso a mãe estivesse de acordo, o poderia ir buscar ao ... no ..., para evitar que o menor fizesse duas viagens ( ... e ...), sugerindo que a recolha pudesse ocorrer pelas 19h30, tendo o menor informado a mãe.
3 - Entretanto, após confirmar que a mãe não se tinha deslocado ao ..., porque surgiu um convite para jantar em casa da irmã do CC, o pai propôs ao CC manterem o propósito inicial da entrega ter lugar em ..., tendo dito ao filho para iria ligar à mãe para a avisar que poderia ir busca-lo a ... pelas 20h30, sempre dentro da hora de entrega que era pelas 21 horas, tendo o filho pedido para ser ele (filho) a ligar, o que fez.
4 - Por razões não apuradas, porque as versões das partes são distintas, relacionadas com o jantar e com o local e hora de entrega, os progenitores do CC desentenderam-se ao telefone.
5 - Quando o Requerente e o CC chegaram a ... pelas 20h45, a Requerida já se encontrava à porta de casa do Requerente, tendo aí ocorrido novo desentendimento verbal de contornos não apurados, mas sem qualquer tipo de agressão.
6 - Entre os dias 17 e 26 de Setembro, para além dos vários telefonemas e mensagens trocados entre ambos, o Requerente esteve com o filho no final do treino de futebol no dia 22 de setembro, tendo-se despedido deste de forma carinhosa.
7 - Ainda no dia 26 de setembro de 2023, o CC telefonou ao pai a pedir que o fosse buscar à escola porque queria estar com ele, tendo o progenitor enviado mensagem à progenitora, atendendo que não era dia que coubesse ao progenitor, sem que esta tivesse enviado qualquer resposta.
8 - A partir do dia 29 de setembro, não mais a Requerida permitiu que o Requerente visse ou estivesse com o filho, pois que nesse dia, a Requerida enviou mensagem ao Requerente do seguinte teor: “ eu não entrego o meu filho à sua namoradinha”, tendo o Requerente informado que o recolheria dia 30, tendo recebido como resposta: “ele não irá com você”.
9 - A queixa que a progenitora apresentou contra o progenitor por violência doméstica, tem subjacente o episódio de 17/09.
10 - Desde o dia 03/10, contrariamente ao que ficou estipulado na ultima alteração das responsabilidades parentais, nem a Requerida nem o CC atendem o telefone durante o período das 17 h às 20 h, impossibilitando-o de comunicar de qualquer forma com o filho.
11 - Igualmente no dia 05 de outubro, ao contrário do que consta do acordo, o CC não jantou com o irmão germano no seu aniversário, porque a requerida não o permitiu.
12 -Também não permitiu a mãe do CC que o CC fosse ao casamento da irmã germana no dia ../../2023, apesar deste ter manifestado vontade de o fazer, como consta das mensagens trocadas por whatsapp com a companheira do Requerente e com a irmã DD.
13 - A Requerida não permitiu que no dia 19/10, dia do aniversário do menor, este estivesse, como não esteve, nem com o Requerente, nem com a irmã DD que faz anos no mesmo dia.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I - (In)existência de nulidade processual, nos termos do art. 195º do CPC, por não ter sido dado cumprimento ao disposto no art. 39º, nº 4 do RGPTC

Como resulta dos atos descritos no relatório supra, em 30.1.2025, realizou-se a conferência a que alude o artº 39º, nº 1 do RGPTC, na qual estiveram presentes os progenitores e respetivos mandatários.
Os progenitores não chegaram a acordo relativamente às questões objeto dos presentes autos e dos apensos J e K, tendo o Ministério Público promovido que as partes fossem notificadas para os termos do disposto no art. 39º, nº 4 do RGPTC.
A Sr.ª Juiz determinou que os autos lhe fossem conclusos e, em 31.1.2025, proferiu decisão julgando manifestamente infundados e desnecessários os pedidos de alteração das responsabilidades parentais formulados nos apensos J e K e verificados os incumprimentos suscitados pelo progenitor no âmbito do apenso H.

Por conseguinte, é incontroverso que não foi dado cumprimento ao disposto no art. 39º, nº 4, do RGPTC, o qual estatui que se os pais não chegarem a acordo, o juiz notifica as partes para, em 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos.
A recorrente entende que o não cumprimento deste normativo constitui uma nulidade processual.
O Ministério Público defende que, nos termos do art. 199º do CPC, essa nulidade deveria ter sido invocada até ao termo da conferência que teve lugar em 30.1.2025, na qual estiveram presentes a recorrente e a sua mandatária, e não o foi, só o tendo sido no recurso interposto em 25.2.2025.

Comecemos por analisar a questão da tempestividade da arguição da nulidade processual.

O regime legal das nulidades processuais consta dos arts. 186º a 202º do CPC (diploma ao qual pertencem as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente proveniência) os quais integram a secção VII referente à nulidade dos atos.

Constituem nulidades principais ou típicas:

a) a ineptidão da petição inicial (art. 186º);
b) a falta de citação (art. 188º);
c) a nulidade da citação (art. 191º);
d) o erro na forma de processo (art. 193º);
e) a falta de vista ou exame ao Ministério Público, quando a lei exija a sua intervenção como parte acessória (art. 194º).

Para além das enunciadas nulidades, existem as denominadas nulidades secundárias, inominadas ou atípicas traduzidas em irregularidades processuais genericamente definidas no art. 195º como a prática de um ato que a lei não admita ou a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, as quais só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

As nulidades enquadráveis no art. 195º só podem ser conhecidas mediante reclamação dos interessados, salvo os casos especiais em que a lei permite o conhecimento oficioso (art. 196º, 2ª parte).
A nulidade só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato, não podendo ser arguida pela parte que lhe deu causa ou que, expressa ou tacitamente, renunciou à sua arguição (art 197º).
No que respeita ao prazo de arguição das nulidades secundárias, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (art. 199º, nº 1).
O prazo de arguição é o prazo geral de 10 dias previsto no art. 149º, nº 1.

No caso em apreço, diversamente do que propugna o Ministério Público, entende-se que a omissão de cumprimento do disposto no art. 39º, nº 4 do RGPTC não teve lugar na conferência ocorrida em 30.1.2025.
Na verdade, nessa conferência o Ministério Público promoveu o cumprimento desse normativo, mas o tribunal a quo não proferiu qualquer despacho deferindo ou indeferindo essa promoção, tendo-se limitado a determinar que os autos lhe fossem conclusos, sem especificar para que efeito, nomeadamente não referiu que essa conclusão se destinaria a ser proferida decisão.
Por conseguinte, não era possível a recorrente arguir a omissão do cumprimento do disposto no art. 39º, nº 4 do RGPTC na conferência porquanto nessa diligência a mesma ainda não tinha ocorrido.
Só em 31.1.2025, com a prolação da decisão final, é que se verificou que o ato foi omitido, pelo que só a partir da notificação dessa decisão seria possível à parte arguir a nulidade.
E, aqui chegados, importa saber se essa nulidade deveria ter sido arguida no prazo de 10 dias, contados da notificação da decisão de 31.1.2025, ou se pode ser arguida em sede de recurso interposto dessa decisão, como ocorreu no caso sub judice.
Isto porque, como é consabido, os recursos visam reapreciar decisões proferidas e desfavoráveis ao recorrente, e não analisar questões que não foram anteriormente suscitadas pelas partes, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de questões novas, não comportando o recurso o ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria que não tenha sido submetida à apreciação do tribunal a quo.
Nesta linha de ideias, escreve António Santos Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 119) que “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não analisar questões novas, salvo quando (...) estas sejam de conhecimento oficioso (...). Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.
Como tal, e não tendo havido qualquer decisão do tribunal de 1ª instância quanto à nulidade, coloca-se a questão de saber se a mesma pode ser invocada em sede de recurso ou se tinha que ser invocada por via de reclamação no tribunal de 1ª instância, ficando o recurso reservado para a decisão que a apreciasse.

Sobre esta matéria, quer a doutrina quer a jurisprudência têm entendido que a nulidade deve ser objeto de reclamação perante o tribunal onde a mesma foi cometida, ficando o recurso reservado para a impugnação da decisão que a apreciou. Todavia, se a nulidade estiver coberta por uma decisão judicial, que a praticou ou acolheu, quer de forma explícita, quer de forma implícita, então a mesma deve ser invocada no âmbito do recurso interposto dessa decisão.
É neste figurino processual que surge o conhecido brocardo que das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se.
Assim, refere o Prof. Alberto dos Reis (in Comentário ao Código de Processo Civil, II, págs. 507 e 508) que “a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente”.
Isto porque, esclarece o mesmo autor (in ob. loc. cit.) “se, em vez de se recorrer do despacho, se reclamasse contra a nulidade, ir-se-ia pedir ao juiz que alterasse ou revogasse o seu próprio despacho, o que é contrário ao princípio de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional de quem decidiu”.
De forma ainda mais impressiva, refere o mesmo autor (Alberto dos Reis in CPC Anotado, Vol. V, pág. 424) que “a reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão do tribunal, se é o tribunal que profere decisão ou acórdão com infração de lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora, as decisões impugnam-se por meio de recurso (...) e não por meio de arguição de nulidade de processo.
Também o Professor Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 183) sufraga este entendimento dizendo que “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, autorizou ou sancionou o respetivo ato ou omissão em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo”.
Na mesma linha de pensamento, o Professor Antunes Varela (in Manual de Processo Civil, pág. 372 e segs.) afirma que “se, entretanto, o ato afetado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão.
Também Artur Anselmo de Castro (in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, 1982, pág. 134) sufraga este entendimento afirmando que “tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por um qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso”.
Também a nível da jurisprudência se tem seguido maioritariamente esta orientação, de admitir a invocação da nulidade por meio de recurso sempre que a nulidade cometida se encontra coberta ou é acolhida, quer de forma expressa, quer de forma implícita, pela prolação de uma decisão judicial.
Nesse sentido, vejam-se, entre muitos outros, os acórdãos da Relação de Lisboa, de 4.6.2009 e de 11.7.2019, da Relação do Porto, de 27.1.2015 e de 12.9.2019, da Relação de Guimarães de 4.10.2011 e de 12.11.2020, da Relação de Évora, de 20.12.2012 e do STJ, de 22.2.2017 (todos disponíveis in www.dgsi.pt).

No caso em apreço, a recorrente invoca que foi cometida uma nulidade processual porque a decisão final foi proferida sem prévio cumprimento do disposto no art. 39º, nº 4, do RGPTC.
Esta nulidade, a ocorrer, é cometida pela própria decisão, pois a mesma pronuncia-se sobre o mérito dos autos sem cumprimento de uma prévia formalidade processual. Por conseguinte, trata-se de nulidade que, a existir, é consequência de decisão do tribunal, proferida em infração da lei, estando coberta por uma decisão judicial, pelo que o meio correto de a impugnar é precisamente a via do recurso.
Conclui-se, assim, que nada obsta à apreciação da nulidade invocada em sede de recurso.

Importa agora determinar se o não cumprimento do disposto no art. 39º, nº 4 do RGPTC configura uma nulidade processual, como defende a recorrente.

A decisão recorrida não deu cumprimento ao disposto no citado normativo, de forma assumida e fundamentada.
A decisão refere que, “estando os apensos H, J e K todos relacionados com o evento do dia 19/9/2023, o tribunal está em condições de os apreciar em conjunto”.
Menciona que, “apesar da Digna Magistrada do M.P., ter promovido o prosseguimento dos autos com o cumprimento do art. 39º/4 do RGPTC, face à posição das partes consignada nos articulados, à posição das partes manifestada no decurso de várias diligências, às perícias realizadas aos progenitores e ao menor e demais prova testemunhal[3], o tribunal está habilitado a decidir sobre a existência/inexistência do cumprimento.
Tece idênticas considerações quanto aos apensos J e K relativos à alteração do regime das responsabilidades parentais e considera que “juntas que estão as alegações das partes, nos termos do art. 42º/4 do RGPTC, o tribunal tem condições para decidir sobre o caráter fundado e necessário ou infundado e desnecessário das pretendidas alterações, sem necessidade de prosseguir com os autos como pugna a Digna Magistrada do M.P., ao abrigo dos deveres de gestão processual e adequação do processado, artigos 6.º e 547.º do C.P.C.”.

Após esta fundamentação, considerou provados, por acordo das partes e prova documental, a factualidade supra transcrita relativa aos apensos H, J e K e, com base na mesma, por um lado, considerou verificado o incumprimento do apenso H e, por outro lado, julgou manifestamente infundados e desnecessários os pedidos de alteração das responsabilidades parentais formulados nos apensos J e K.

Importa aferir se os deveres de gestão processual e adequação processual permitem a dispensa de cumprimento do disposto no art. 39º, nº 4, do RGPTC.

Dispõe o art. 547º, sob a epígrafe “adequação formal”, que o juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.

O dever de adequação formal previsto neste artigo é uma manifestação do dever de gestão processual do art. 6º o qual dispõe, no seu nº 1, que cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

Se aquele artigo 6º autoriza o decretamento da realização ou da dispensa de certo ato processual, este artigo 547º autoriza o decretamento de sequências inovatórias de atos processuais permitindo adequar o procedimento ‘integralmente a possíveis especificidades ou peculiaridades da relação controvertida’ ” (Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 13).

Porém, o uso pelo juiz dos poderes-deveres dados pelo artigo 547º é fortemente restrito e o princípio da adequação formal deve ser aplicado casuisticamente e com cuidado, sob pena de indisciplina e insegurança (cf. Rui Pinto, in CPC Anotado, Vol. II, pág. 14).

Nesta linha de ideias, considerou o acórdão da Relação de Coimbra, de 14.10.2014 (P 507/10.1T2AVR-C.C1 in www.dgsi.pt) que “[o] princípio da adequação formal, consagrado no art. 547.º, não transforma o juiz em legislador, ou seja, o ritualismo processual não é apenas aplicável quando aquele não decida, a seu belo prazer, adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais, sob a invocação de, desse modo, assegurar um processo equitativo. Os juízes continuam obrigados a julgar segundo a lei vigente e a respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas (art. 4.°-2 da Lei n.º 21/85, de 30-7), e, daí, que o poder-dever que lhes confere o preceito em causa deva ser usado tão somente quando o modelo legal se mostre de todo inadequado ás especificidades da causa, e, em decorrência, colida frontalmente com o atingir de um processo equitativo. Trata-se de uma válvula de escape, e não de um instrumento de utilização corrente, sob pena de subverter os princípios essenciais da certeza e da segurança jurídica” (sublinhado e negrito nossos).

Rui Pinto (in ob. cit. pág. 14) defende que “existem, pelo menos, quatro limites que devem ser respeitados sob pena de nulidade processual do despacho de adequação formal”, limites que são “o processo equitativo, a segurança jurídica, a aquisição processual dos factos e o princípio do dispositivo”.
Refere ainda (in ob. cit. pág. 15) que “o princípio geral do processo equitativo impõe a produção do despacho de adequação formal com prévia audição das partes, nos termos do artigo 3º, sem que isso signifique necessidade de assentimento das mesmas. Se assim não suceder, os concretos atos do juiz de adequação do procedimento serão nulos por falta de audição das partes e por configurarem decisões-surpresa, nos termos dos artigos 3º e 195.” E conclui afirmando que “estamos perante um poder de adequação formal restrita, fundamentada e participada.”

Deve presumir-se que a tramitação processual estabelecida pela lei, desde que não seja inconstitucional, é a fonte normativa que melhor cumpre o dever de justa composição do litígio (cf. Rui Pinto in ob cit, pág. 14).
Por isso, como regra e princípio geral, a adequação formal não deve ser utilizada para suprimir uma fase da tramitação processual tão importante como seja a fase de alegações e apresentação de meios de prova constante do art. 39º, nº 4 do RGPTC. Não obstante, no caso concreto, tendo em conta que há uma íntima e estreita conexão entre os apensos H, J e K, os quais se baseiam essencialmente na mesma factualidade, até se poderia conceder que não se desse cumprimento ao disposto no art. 39º, nº 4, aproveitando-se as alegações já apresentadas nos apensos J e K a propósito dos pedidos de alteração, por nos mesmos já ter ocorrido pronúncia sobre a matéria que é também objeto do apenso H.
Porém, embora seja possível, ao abrigo da adequação formal, “a dispensa da prática de atos que se revelem concretamente desnecessários ou a sua substituição por outros tidos por mais convenientes às especificidades da causa” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa in CPC Anotado, Vol. I, 2ª ed., pág. 621), esta alteração da tramitação processual tem sempre de ser precedida da auscultação prévia das partes, assim o impondo expressamente o nº 1 do art. 6º.
Compreende-se que assim seja: a forma legal do processo constitui uma garantia das partes; estas devem ser ouvidas antes de essa garantia ser, ainda que só formalmente, reduzida, tanto mais quanto o seu direito a recorrer da decisão que o juiz venha a proferir é limitada (art. 630-2); justifica-se assim que a exceção do art. 3-3 (“manifesta desnecessidade”), que de outro modo operaria, seja neste caso inadmissível” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in CPC Anotado, Vol. 2º, 4ª ed., pág. 471).

No caso em apreço, ao abrigo dos deveres de gestão processual e adequação do processado constantes dos artigos 6.º e 547.º do C.P.C., o tribunal a quo decidiu não dar cumprimento ao disposto no art. 39º, nº 4, do RGTPC, bem como à subsequente tramitação prevista nesse normativo, e proferir de imediato decisão final.
Fê-lo sem previamente ter ouvido as partes, pelo que exerceu os poderes-deveres de gestão processual e adequação do processado fora do condicionalismo legal posto que, como explanado, em nome dos princípios do processo equitativo e da garantia e segurança jurídicas, a alteração da tramitação processual supõe sempre necessariamente a prévia audição das partes. Consequentemente, o não cumprimento do disposto no art. 39º, nº 4 do RGPTC, determinado ao abrigo dos deveres de gestão processual e adequação do processado, nos termos dos arts. 6.º e 547.º do CPC, sem prévia audição das partes, constitui uma nulidade processual que tem como consequência a anulação da decisão recorrida.

Por conseguinte, procede esta questão recursiva.
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Perante a anterior conclusão fica prejudicado o conhecimento da nulidade da decisão por violação do disposto no art. 615º, nº 1, als. b), c) e d) do CPC.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Embora o recurso tenha sido julgado procedente, a recorrente é responsável pelo pagamento das custas, atento o critério do proveito, visto que a parte contrária não se pode considerar vencida, porquanto não contra-alegou nem sustentou nos autos posição que tenha contribuído para a existência da nulidade processual. Naturalmente que com ressalva do apoio judiciário de que beneficia.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, declaram a existência de nulidade processual, por a decisão recorrida ter sido proferida sem cumprimento da tramitação processual constante do art. 39º, nº 4, do RGTPC e sem que a dispensa dessa tramitação se possa considerar validamente fundamentada no uso dos poderes-deveres de gestão processual e adequação do processado, anulando a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
Notifique.
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Guimarães, 24 de abril de 2025

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) José Alberto Martins Moreira Dias
(2º/ª Adjunto/a) Gonçalo Oliveira Magalhães


[1] A alusão feita à prova testemunhal constitui um manifesto lapso de escrita, conforme infra melhor se explicará, devendo a mesma considerar-se efetuada relativamente à demais prova documental.
[2] Na transcrição da decisão corrigiram-se evidentes e manifestos lapsos de escrita, com exceção do referido na nota anterior.
[3] A alusão que é feita no 1º parágrafo da pág. 20 da decisão recorrida à prova testemunhal resulta de um manifesto lapso de escrita pois seguramente pretendia-se aludir a prova documental. Chega-se a esta conclusão, por um lado, porque não foi produzida qualquer prova testemunhal e, por outro lado, porque, estando os apensos H, J e K a ser apreciados conjuntamente, logo no 2º parágrafo da pág. 20 da decisão, onde se faz uma afirmação similar à do 1º parágrafo, mas agora a propósito dos apensos J e K com vista a justificar a circunstância de os autos já conterem os elementos necessários à prolação de decisão, aí já é referida “a demais prova documental”, e não testemunhal.