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SUCESSÃO POR MORTE
LEI APLICÁVEL
REGULAMENTO (UE) N.º 650/2012 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO
DE 4/7/2012
Sumário
I - Numa situação plurilocalizada, ou seja, com conexão com várias ordens jurídicas, devemos lançar mão das normas de conflitos que constam dos Regulamentos internacionais e das normas de conflitos constantes do Código Civil – arts. 14.º a 65.º. II - A sucessão por morte, como resulta do art. 62.º do Código Civil, é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste. III - Contudo, o art. 20.º Do Reg (EU) 650/2012, consagra a aplicação universal das normas do Regulamento, o que, conjugado com o primado do direito comunitário, significa que as normas de conflitos do Regulamento prevalecem sobre as normas dos arts. 62.º a 65.º do Código Civil. IV - Dispõe o art. 21.º do Regulamento (UE) 650/2012, quanto à lei aplicável, e como regra geral, que, salvo disposição em contrário do mesmo regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito. Prevendo, ainda, que caso, a título excecional, resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso que, no momento do óbito, o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplicável nos termos do n.º 1, é aplicável à sucessão a lei desse outro Estado. V - Tendo o inventariado, para além da nacionalidade portuguesa, também nacionalidade francesa; tendo também residência em França; nesse país se encontrando quando celebrou o testamento que revogou o testamento que havia outorgado em Portugal; e nesse país (França) se encontrando a residir aquando do seu óbito, é com esse Estado que, para além de se considerar ser o da sua residência habitual, tinha uma relação manifestamente mais estreita no momento do óbito, pelo que a lei aplicável à sucessão do inventariado é a lei francesa. VI - O testamento lavrado pelo inventariado, e que é formalmente válido à luz da Lei Francesa, quando o inventariado tem também nacionalidade francesa, a par da portuguesa, e quando a disposição testamentária foi outorgada na França, local onde o inventariado residia, à data, e onde veio a falecer, respeitando a forma exigível no Estado onde foi feito, é válido para revogar um testamento anterior outorgado em Portugal, até porque, a disposição por morte feita pelo inventariado, enquadra-se, quanto à sua validade, nas als, a) a d) do n.º 1 do citado art. 27.º do Regulamento (EU) 650/2012.
(Sumário da responsabilidade da Relatora).
Texto Integral
Apelação n.º 827/20.7T8OAZ.P1
Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO:
No âmbito dos autos de inventário para partilha das heranças cumuladas, abertas por óbito de AA e de BB, requerido por CC, e em que é cabeça de casal DD, apresentada a relação de bens das ditas heranças cumuladas, veio EE apresentar reclamação à relação de bens.
Invocou, em síntese, que o inventariado BB revogou o testamento através do qual havia legado à requerente do inventário, CC, a nua propriedade de todo o seu património existente em Portugal; que o inventariado BB e a interessada EE casaram a ../../2017, sem convenção antenupcial, em França; e que a 25.07.2017 o inventariado BB celebrou testamento holográfico através do qual declarou que revogava todas as disposições testamentárias tomadas em Portugal, na sequência do seu casamento com a Sra. EE, deixando a esta, sua mulher, a totalidade dos seus bens.
Concluiu, assim, que por força deste segundo testamento, CC é parte ilegítima neste inventário, sendo que na partilha da herança aberta por óbito de BB, EE é a única herdeira, e na partilha da herança aberta por óbito de AA, as únicas herdeiras são DD e EE; para além de impugnar a relação de bens propriamente dita, quanto a algumas das verbas.
A cabeça-de-casal respondeu à reclamação deduzida, alegando, para o efeito, em síntese, que o testamento hológrafo celebrado em França não é válido em Portugal porque não atendeu à formalidade exigida em Portugal; que a letra e assinatura do dito testamento não são do punho e autoria do autor da herança BB, o qual em setembro de 2017 se encontrava doente e hospitalizado; que o depósito do testamento celebrado em 25.07.2017 só ocorreu a 13.09.2018 e a interessada EE declarou ainda em 11/01/2018 perante o notário Dr. FF que BB falecera e não deixara qualquer disposição testamentária, pronunciando-se, ainda, quanto aos bens reclamados.
Também a requerente CC respondeu à reclamação apresentada, acompanhando os argumentos expendidos pela cabeça de casal.
Por despacho de 07.05.2021 foi solicitado ao Gabinete de Documentação e Direito Comparado a sua colaboração, no sentido de ser solicitada à congénere em França informação sobre a validade formal e substantiva de testamento exarado por cidadão com dupla nacionalidade portuguesa e francesa, em França.
A este pedido foi respondido que:
“De acordo com o Código Civil francês, há 3 tipos de testamentos, o holográfico, o místico e o autêntico, sendo que os requisitos de forma de cada um deles estão previstos nos artigos 967º a 980º do Código Civil.
No caso de testamento holográfico, o caso sub judice, é um tipo de testamento que pode ser feito sem a presença de um notário, exigindo, contudo, que seja o mesmo inteiramente manuscrito pelo testador, tendo obrigatoriamente de ter a aposição de data e da sua assinatura, conforme estatuído no artigo 970º CC, sem necessidade de reconhecimento de assinatura. Ainda assim, tal tipo de testamento pode ser depositado e conservado em notário, para ser registado no Arquivo Central de Disposições Testamentárias, o denominado FCDDV (Fichier Central de Dispositions des Dernières Volontés), todavia, reitera-se, não ser obrigatório tal procedimento.
O testamento autêntico, também denominado “testamento por documento público”, é um instrumento autêntico. Ou seja, é lavrado por notário (profissional forense, especialista em direito da família), na presença de testemunhas, para organizar a sucessão do testador, obrigatoriamente registado no Arquivo Central de Disposições Testamentárias.
O testamento místico é um ato jurídico sob assinatura privada, a vontade mística requer a intervenção de um notário e duas testemunhas para a sua validade.
Nesse âmbito, esse tipo de testamento é então entregue em envelope lacrado ao notário, na presença de duas testemunhas, sendo que, por último, o notário emite ao testador um boletim de entrega e regista o documento no Arquivo Central de Disposições Testamentárias.
Não parece existirem disposições legais que possam variar em função da quantidade e qualidade dos bens que compõem a herança. No caso do documento nº 3, não parece ter sido violado os requisitos de forma, nesse âmbito, artigo 1035º, em especial, a 1047º do Código Civil. O testamento holográfico, como trás referido, não está sujeito a qualquer tipo de registo/depósito, nos termos do artigo 970º.
Os regimes de bens do casamento estão regulados nos artigos 1387º a 1581º do CC, pelo que na falta de contrato de casamento, os cônjuges ficam sujeitos ao regime legal da communauté réduite aux acquêts, contemplado nos artigos 1400º a 1491º.
Quanto ao direito das sucessões, regulado nos seus artigos 720º a 892º, em caso de morte, não existindo ascendentes e/ou descendentes, a totalidade da herança é entregue ao cônjuge sobrevivo, nos termos do artigo 757º/2 do CC.”.
Levadas a cabo as diligências que se tiveram por convenientes, veio a ser proferida, em 14-10-2024, a sentença que decidiu a reclamação da relação de bens, com o seguinte teor, na parte que para apreciação do recurso interessa: “A) Da bondade jurídica do testamento holográfico celebrado Com interesse para a apreciação desta questão, resulta demonstrada a seguinte factualidade: A. Por escritura pública lavrada a 30.01.2015, no Cartório Notarial ....ª Sr.ª Dr.ª GG, constante do Livro 7ª e a fls 122, BB fez testamento, ali fazendo constar o seguinte: “que por conta da sua quota disponível lega a EE (…) o direito de usufruto sobre todo o seu património em Portugal e em França, legando a nua propriedade do mesmo a CC (…). Que se a referida EE lhe não sobreviver, institui por sua única e universal herdeira a indicada CC.” B. AA faleceu a ../../2016. C. BB casou com EE a ../../2017. D. BB detinha nacionalidade portuguesa e nacionalidade francesa. E. O testamento holográfico foi por BB lavrado a 25.07.2017. e em cujo âmbito BB declarou o seguinte: “(…) declaro revogar todas as disposições testamentárias tomadas em Portugal, no seguimento do meu casamento com EE (…) Desta forma, deixo à minha mulher a totalidade dos meus bens.”. F. Esse testamento consta com a aposição de uma assinatura com a menção ao nome de BB. G. Esse testamento foi depositado em Cartório Notarial em 13.09.2018. H. BB faleceu a ../../2017 em França. I. EE efectuou rectificação das declarações que havia realizado anteriormente junto de Notário, fazendo constar a existência de deixas testamentárias, indicando-a como beneficiária dessas deixas, sem implicar rectificação de maior quanto aos herdeiros, perante a Lei Francesa. J. CC intentou o presente processo especial de inventário.
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Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão da presente questão, designadamente, não se demonstrou: 1) Que a assinatura constante no testamento holográfico, celebrado em França, não tenha sido aposta pelo punho de BB. 2) Que a 25.07.2017, data de celebração desse testamento, BB não estivesse ciente das declarações constantes desse testamento e com discernimento e vontade de celebrar o mesmo, por não reunir condições mentais adequadas, em virtude do seu estado de saúde.
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Para formação a sua convicção o Tribunal atendeu, sobremaneira, ao testamento junto pela requerente CC junto do Cartório Notarial, bem como, os assentos de óbito. A par disso, assumiram assaz pertinência os documentos juntos por EE a 02.01.2021, em particular, o assento de casamento de BB e EE; o testamento holográfico, a tradução e as declarações subsequentes. E por fim, foram atendidos os documentos juntos a 26.04.2021 por EE. Esta prova documental não foi infirmada por qualquer outra prova, razão pela qual revestiu importância probatória. Quanto à factualidade não demonstrada e constante de 1) e 2), importa dizer que, pretendendo colocar em causa a validade do testamento holográfico celebrado em França, competia à cabeça-de-casal e a CC demonstrar, com segurança, que a assinatura nele aposta não fora efectuada por BB e que este não reunia condições físicas e psíquicas aptas a compreender o teor e alcance das declarações que resultam daquele testamento. Ora, esta prova não foi efectuada desde logo porque nenhuma testemunha inquirida presenciou a celebração desse testamento em França. A par disso, pela testemunha HH foi mencionado que ninguém sabia do seu estado de saúde e, pela testemunha II foi respondido que, quando teve oportunidade de falar com BB, este sempre lhe pareceu igual, com a plenitude das suas capacidades mentais. Mais acresce que a requerida perícia à letra foi indeferida por despacho de 04.06.2021 por extemporaneidade. JJ, filha de CC, aludiu que conheceu EE há já muitos anos, mesmo quando ainda não era casada com BB e que, pese embora este último não tenha transmitido à família em Portugal a celebração do seu casamento, reconheceu a testemunha que há já 05 anos que esse assunto era abordado por aquele. KK, genro de CC, recordou que a sua sogra visitou BB uma semana antes do falecimento deste e que, nessa altura, este transmitiu que tinha casado com EE e que terá transmitido que pretendia que CC ficasse bem, que não trabalhasse mais. Ora, a este propósito muito se estranha que ante a argumentação de que, quer na data do seu casamento quer na data da celebração do testamento holográfico – ou seja, mais de dois meses antes do seu óbito -, BB não reunia capacidades mentais adequadas para compreender e querer celebrar aquele testamento e que, por isso, não foi o próprio a assinar esse testamento, porém, uma semana antes do seu infeliz decesso já reunia das suas faculdades mentais plenas e íntegras, de modo a transmitir a CC e ao genro desta que era seu desejo que ficasse bem na vida e não trabalhasse. Este relato não se mostrou coerente por isso não foi valorado pelo Tribunal. LL nada disse de revelante neste conspecto, o mesmo sucedendo com MM. NN declarou ter ideia que BB pretendia beneficiar CC e EE em testamento, contudo, não conseguiu descrever em que momento temporal ficou com essa lembrança, se mais próximo do testamento celebrado em Portugal em 2015 ou se, posteriormente, já no último ano de vida de BB. As declarações da cabeça-de-casal DD, da requerente CC e da reclamante EE foram auscultadas mas, isoladamente, não afectaram a relevância da prova documental e os esclarecimentos prestados por algumas testemunhas.
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Flui do disposto no art. 62º do Código Civil que “A sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste, competindo-lhe também definir os poderes do administrador da herança e do executor testamentário.”. E decorre do art. 65º do CC que “As disposições por morte, bem como a sua revogação ou modificação, serão válidas, quanto à forma, se corresponderem às prescrições da lei do lugar onde o acto for celebrado, ou às da lei pessoal do autor da herança, quer no momento da declaração, quer no momento da morte, ou ainda às prescrições da lei para que remeta a norma de conflitos da lei local. 2. Se, porém, a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração, exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, será a exigência respeitada.”. Temos presente que a lei pessoal corresponde à lei da nacionalidade de uma pessoa, assim decorre do art. 31º do CC, podendo o princípio da nacionalidade ser limitado pelo disposto no nº2 deste preceito legal, quando conferida relevância à lei da residência habitual e limitado aos negócios jurídicos do domínio do estatuto pessoal, celebrados por cidadão português no estrangeiro, de acordo com o critério da sua residência habitual, por forma a salvaguardar o princípio favor negotii. Contudo, no caso dos nossos autos, importa tomar em linha de conta que o inventariado BB detinha também nacionalidade francesa e, como tal e nesse âmbito, celebrou, de acordo com esta lei pessoal, um testamento holográfico. Este modelo de testamento é, segundo a Lei Francesa, inteiramente válido, como respondeu o Gabinete de Documentação e Direito Comparado, carecendo apenas de constar assinado e datado, sem necessidade de reconhecimento de assinatura e sem procedimento obrigatório de depósito e reconhecimento por Notário. Temos por certo que o Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, é aplicável às sucessões abertas a partir de 17.8.2015 (cf. Artigo 83º, nº 1) e a propósito deste diploma referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2ª ed., 2022, Almedina, p. 591, o seguinte: “O Reg. da UE veicula regras uniformes de competência internacional, lei aplicável e reconhecimento de decisões estrangeiras em matéria de sucessões internacionais, aplicando-se a relações sucessórias plurilocalizadas na União Europeia (com exceção do Reino Unido, Irlanda e Dinamarca) que têm pontos de contacto relevantes com mais de um país, nomeadamente por via da existência de bens sitos em vários países. A transnacionalidade da situação jurídica pode advir da sua conexão com um Estado-membro e com um país terceiro, ou seja, não tem de ser uma transnacionalidade contida dentro dos limites da União Europeia (RL 19-11-19, 28325/17). O art.º 20º consagra a aplicação universal das normas do Reg., o que, conjugado com o primado do direito comunitário, significa que as normas de conflitos do Reg. prevalecem sobre as normas dos art.ºs 62º a 65º do CC. Outra decorrência do carácter universal das normas é que, “através do funcionamento das respetivas conexões, as normas de conflitos tanto podem designar como aplicável o direito material de um Estado-membro como de um Estado terceiro” (Gomes de Almeida, “Apontamentos sobre o novo direito de conflitos sucessório”, Revista do CEJ, nº 2, pp. 35-36). O Reg. segue o modelo da sucessão unitária, aplicando-se uma única lei a toda a sucessão (art. 23º, nº 1), sem prejuízo de, no domínio do reenvio, a lex domicilii adotar o sistema da cisão (cf. art.º 34º; Afonso Patrão, “Problemas práticos na aplicação do Reg. europeu das sucessões”, BFDUC, vol. XCIV, t. II, 2018, pp. 1187-1188).”. Mais refere Helena Mota em Código Civil Anotado, Livro V, Direitos das Sucessões, Almedina, 2018, p. 335, que: “Donde poderemos concluir que o art.º 2223º (do nosso CC) foi tacitamente revogado pelo Regulamento das Sucessões Internacionais e que qualquer testamento feito de forma escrita por português em país estrangeiro será formalmente válido se forem observadas as exigências formais determinadas por qualquer uma das leis indicadas supra no artº. 27º do Regulamento não se lhe aplicando as demais exigências formais previstas na lei portuguesa, nomeadamente a intervenção de autoridade pública na sua feitura ou aprovação.” E, nos termos do Artigo 27º do Regulamento: “1. Uma disposição por morte feita por escrito é válida do ponto de vista formal se a sua forma respeitar a lei: a) Do Estado onde a disposição foi feita ou o pacto sucessório celebrado;(…) Para determinar se o testador ou uma das pessoas cuja sucessão é objeto do pacto sucessório tinham ou não o seu domicílio num determinado Estado aplica-se a lei desse Estado. (…) 2. Para efeitos do presente artigo, considera-se que diz respeito a questões de forma qualquer disposição legal que limite as formas autorizadas das disposições por morte referentes à idade, nacionalidade ou outras características pessoais do testador ou das pessoas cuja sucessão é objeto de um pacto sucessório. É aplicável a mesma regra às características que devem possuir quaisquer testemunhas exigidas para a validade de uma disposição por morte.”, preconizando esta norma uma conexão alternativa que admite múltiplas possibilidades para apoiar a validade das disposições por morte feitas por escrito (neste sentido vide, Luís de Lima Pinheiro, Direito Privado Internacional, Vol. II – Direito de Conflitos – Parte Especial, 2015, p. 287). Com fulcro no vindo de expender, importa ponderar que o testamento lavrado pelo inventariado BB em França é formalmente válido à luz da Lei Francesa. A par disso, BB detinha também nacionalidade francesa, o que exige a sua ponderação como lei pessoal deste inventariado. Esta leitura da predita disposição legal, não atribuindo primazia às exigências de forma, preconiza o sentido da conservação do negócio jurídico celebrado de acordo com a vontade expressa do testador e em conformidade com a lei de celebração do acto, permitindo a sua concretização plena. Pelo exposto, o testamento lavrado pelo inventariado, em 25.07.2017, respeitou a forma exigível localmente, consoante decorre da declaração notarial junta aos autos, ainda que a Lei Francesa não exija este procedimento de depósito/reconhecimento notarial de testamento holográfico. Não se olvida que CC colocou em causa a autoria da assinatura aposta nesse testamento, arguindo que competia à interessada EE provar essa autoria. A este propósito cumpre frisar que cabe ao interessado na invalidade do testamento que compete o ónus de alegar e provar factos correspondentes, não tendo que ser a outra parte a provar o contrário. E, nesta sede, da prova produzida em sede de audiência não resultou em momento algum que esse acto de outorga do testamento holográfico tenha sido presenciada pelas testemunhas inquiridas, por forma a inquinar a autoria da sua assinatura. A par disso, do depoimento das testemunhas não derivou com segurança que o inventariado não pretendia celebrar o dito testamento holográfico e, por via dele, consagrar EE como herdeira única e universal, revogando as deixas testamentárias celebradas em Portugal. Com efeito, não se provaram factos que permitam concluir que o testamento holográfico não foi assinado por BB. E não concordamos com a interpretação que CC realiza o teor do testamento celebrado em França. Ora, da tradução junta a 02.01.2021 decorre a seguinte menção: “Eu, BB, abaixo assinado, nascido a ../../1945 em ..., Portugal, declaro revogar todas as disposições testamentárias tomadas em Portugal, no seguimento do meu casamento com EE, nascida a ../../1951. Desta forma deixo à minha mulher a totalidade dos meus bens.”. Como seja, interpreta este Tribunal que, por força do casamento com EE, BB decidiu efectuar testamento holográfico e revogar as deixas testamentárias celebradas em Portugal, não seguindo a interpretação de que BB só pretendia revogar as deixas testamentárias efectuadas após o casamento, porque tal não decorre da letra da declaração e, para além disso, não existiu qualquer disposição testamentária celebrada por BB em Portugal após a data do seu casamento (../../2017). Mais se consigna o seguinte. O facto de BB ter efectuado dois testamentos em momentos temporais distintos é perfeitamente legal, uma vez que o testador, até ao último momento da sua vida, é livre de revogar parcial ou integralmente os testamentos celebrados anteriormente e, assim, afastar quaisquer sucessíveis designados nesses documentos anteriores. Na senda do vertido antes, sendo o testamento holográfico exarado por BB a 25.07.2017 em França, válido segundo a Lei Francesa, aquela que era também a lei pessoal deste (lei da nacionalidade), por ser formalmente válido e susceptível de ser atendido em Portugal por força do já exposto a propósito do Regulamento (EU) nº 650/2012 e do seu art.27º, a disposição revogatória nele exarada assume força suficiente para revogar a deixa testamentária realizada anteriormente em Portugal. Consequentemente, somos de considerar que o testamento holográfico deve ser atendido e relevado nos presentes autos, cuja deixa testamentária determinou a revogação do testamento celebrado anteriormente em Portugal. Pelo exposto, EE é, por força desse primeiro testamento e das disposições francesas inerentes à sucessão por morte (acima aludidas), a única e universal herdeira de BB, razão pela qual, os bens integrantes da herança aberta por óbito deste último, não são objecto de relação e partilha no presente processo, assim dispondo o art. 757º do Código Civil Francês. Assim, na partilha da herança aberta por óbito de AA, as únicas herdeiras são DD e EE e na herança aberta por óbito de BB faz parte o quinhão hereditário do mesmo na herança aberta por óbito de AA. Pelo exposto, CC não é parte legítima neste processo de inventário. (…) Pelo exposto, e nos termos dos fundamentos de facto e de Direito invocados, decide este Tribunal julgar procedente, por demonstrado, o incidente de reclamação à relação de bens, mais decidindo, em consequência: A – Que a Interessada Reclamante EE é a única e universal herdeira de BB, razão pela qual, os bens integrantes da herança aberta por óbito deste último, não são objecto de relação e partilha no presente processo e, B- assim, na partilha da herança aberta por óbito de AA, as únicas herdeiras são DD e EE, pelo que, CC não é parte legítima neste processo de inventário; C – Em consequência, deverá a Cabeça-de-Casal apresentar, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão, relação de bens integral e corrigida, respeitando o ora decidido (…)”.
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Foi desta decisão que CC, requerente do inventário, veio interpor o presente recurso, o qual foi admitido como de apelação, com subida imediata e nos próprios autos, uma vez que foi atribuído ao recurso, efeito suspensivo.
Apresentou a recorrente as seguintes conclusões das suas alegações: “A) Nos termos do art.º 662.º n.º 1 do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” B) Nos presentes autos discutia-se se o documento particular apresentado como sendo um testamento hológrafo, alegadamente celebrado em França pelo inventariado, cuja letra e assinatura foi impugnada e que só foi depositado depois da sua morte, pela sua beneficiária EE, é suscetível de ser atendido em Portugal e se, a revogação nele exarada tem força suficiente para revogar a disposição testamentária celebrada em Portugal por escritura pública outorgada a 30 de janeiro de 2015 no Cartório Notarial da Sr.ª Dr.ª GG. C) Nos termos do disposto nos artigos 25.° e 62.° do Código Civil a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste, sendo essa lei pessoal, segundo o artigo 31.°, n.° 1, do CC, a lei da nacionalidade do indivíduo. A nacionalidade é o primeiro elemento de conexão para a determinação da lei pessoal das pessoas singulares. D) O inventariado tinha dupla nacionalidade, portuguesa e francesa. E) A meritíssima Sr.ª Dr.ª Juíza do tribunal a quo entendeu que, tendo o inventariado dupla nacionalidade, a lei pessoal do inventariado era também a lei francesa e, por tal, esta era também a sua lei pessoal. Nessa medida, concluiu que o documento particular apresentado pela viúva como sendo um testamento hológrafo, sendo formalmente válido segundo a lei francesa, é suscetível de ser atendido em Portugal por força do artigo 27.º do Regulamento (EU) n.º 650/2012. F) Acontece que a Meritíssima Sr.ª Dr.ª Juíza na determinação da lei pessoal do inventariado não fez o raciocínio lógico dedutivo a que estava obrigada, não fazendo aplicação das normas constantes dos artigos 25.º, 62.º, 31.º n.º 1 do Código Civil e 27.º da Lei N.º 37/81 de 3 de outubro – Lei da Nacionalidade. Assim, errando, desde logo, na determinação da lei pessoal do inventariado. G) A correta determinação da lei pessoal do inventariado era essencial para a boa decisão a causa. A correta determinação da lei pessoal do inventariado demandava a aplicação da norma de conflitos de nacionalidade portuguesa e estrangeira plasmada no artigo 27.º da Lei da Nacionalidade. H) Nos termos do disposto no artigo 27.º da Lei da Nacionalidade se “alguém tiver duas ou mais nacionalidades e uma delas for portuguesa, só esta releva face à lei portuguesa.” I) O tribunal a quo violou o artigo 27.º da Lei da Nacionalidade ao concluir que o inventariado tinha nacionalidade francesa. J) Acresce que nos termos do disposto nos artigos 4.º e 21.º do Regulamento (EU) 650/12 são competentes para regular o conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito, desde que a relação do falecido com o respetivo Estado seja estreita e estável. K) Da prova produzida, nomeadamente da confissão inserta nas declarações da viúva, prestadas na sessão de julgamento do dia 14-12-2023, das 14:04 às 14:48 com a duração de 00:44:37 que se deixaram supra transcritas, é possível destacar a confissão do seguinte: - O inventariado passou a ficar na sua casa em Portugal a partir do dia 15 de agosto de 2008 (ao minuto 8:38); - O inventariado adorava a mãe e sempre teve o objetivo de vir para Portugal para estar com a mãe e queria viver cá (ao minuto 9:00); - Em agosto de 2008 a casa que restaurou já se encontrava habitável e ele instalou-se na casa onde cuidou da sua mãe que ficava um mês em casa dele e outro em casa da irmã (ao minuto 10:00); - o inventariado ia a França mas para tratar das coisas que tinha lá, mas onde vivia mesmo era em Portugal onde tinham cem passarinhos e galinhas, o que não lhes permitia também estar muito tempo fora porque tinham que cuidar dos animais (ao minuto 13:04); - o inventariado partilhou com a CC que se iria casar (28:40); - o inventariado estava a ser acompanhado no IPO ..., onde tinha ido a uma junta médica e foi a França para ter uma segunda opinião (ao minuto 20:48); - o inventariado pediu ao médico oncologista em França que lhe dissesse se o seu caso não tivesse solução pois queria voltar para Portugal e morrer cá em Portugal (ao minuto 33:20); Tais factos demonstram indubitavelmente a estreita ligação do inventariado a Portugal, país da sua nacionalidade e da sua residência habitual à data do óbito. Assim se demonstrando que estamos perante um cidadão português, residente em Portugal que se deslocou a França em busca de uma segunda opinião para o seu problema de saúde pois estava com cancro, tendo aí ficado retido e acabado por falecer, contra a sua vontade. L) Das aludidas declarações também ressalta que, cinco anos antes da morte do inventariado, ou seja, em 2012, este já teria pedido na interessada EE em casamento e esta já tinha aceite, o que bem demonstra a vontade do inventariado em, independentemente de se casar com EE, beneficiar a interessada CC instituindo-a beneficiária da quota disponível dos seus bens, pois que o testamento outorgado pelo inventariado data de 2015 aí tendo o mesmo feito constar por escritura pública e na presença de testemunhas essa sua incontestável vontade de beneficiar a interessada CC. M) Do exposto resulta que à matéria de facto assente devem ser aditados três novos pontos: O. O inventariado tinha a sua residência habitual em Portugal, na casa que restaurou sita no Lugar ..., freguesia ..., concelho .... P. O inventariado, BB, nasceu na freguesia ..., concelho ..., em Portugal, no dia 10 de julho de 1945. Q. Do assento de nascimento do inventariado constam os seguintes averbamentos: - o averbamento n.º 1 de 2011-10-12 de perda da nacionalidade portuguesa nos termos da alínea a) da base XVII da Lei n.º 2098, de 29 de julho de 1959, por ter adquirido voluntariamente por naturalização a nacionalidade francesa em 15 de julho de 1971; - o averbamento n.º 2 de 2011-10-12 de aquisição a nacionalidade portuguesa nos termos do artigo 31.º da Lei 37/81, de 3 de outubro, com efeitos a partir de 12 de agosto de 1992. Cfr. doc. junto aos autos sob o n.º 8 da reclamação a relação de bens. N) O tribunal a quo remeteu ao Gabinete de Documentação e Direito Comparado, em 10/05/2021, um ofício com várias questões acerca dos requisitos de validade dos testamentos em França, mas nada foi indagado acerca da possibilidade de um testamento hológrafo revogar um testamento autêntico. Tendo sido informado que o testamento autêntico, também denominado “testamento por documento público”, é o único dos três tipos de testamento que são admitidos em França que é um instrumento autêntico. “Ou seja, é lavrado por notário (profissional forense, especialista em direito da família), na presença de testemunhas, para organizar a sucessão do testador, obrigatoriamente registado no Arquivo Central de Disposições Testamentárias”. O) O Regulamento 650/12 visa assegurar a aceitação e a executoriedade em todos os Estados-Membros dos atos autênticos em matéria de sucessão. E, como se explica no considerando 62: “A «autenticidade» de um ato autêntico deverá ser um conceito autónomo que engloba elementos como a exatidão do ato, os seus pressupostos formais, os poderes da autoridade que elabora o ato e o procedimento segundo o qual o ato é elaborado. Deverá englobar também os elementos factuais consignados pela autoridade em causa no ato autêntico, por exemplo, o facto de as partes indicadas se terem apresentado perante essa autoridade na data indicada e de terem feito as declarações indicadas.” P) Ora, o documento apresentado não pode, sequer, ser considerado um ato autêntico na medida em que não se enquadra na definição de ato autêntico plasmada na alínea i) do n.º 1 do artigo 3.º do Regulamento 650/12. Nessa medida, não sendo um documento autêntico não se enquadra na previsão do artigo 27.º do Regulamento 650/12. Q) Atente-se que: - estamos perante um mero documento manuscrito, que a interessada EE quando participou o imposto de selo em Portugal, a 14/11/2017, declarou não existir. – Cfr. doc. 1 junto com a resposta de 20/04/2021 com a referência citius 11375348; - E que a interessada EE apenas o depositou em França num notário a 13/09/2018, ou seja, cerca de um ano após a morte do inventariado e já depois de a interessada CC ter comunicado o testamento no Serviço de Finanças ..., em 26/01/2018. – Cfr. doc. 2 junto com a resposta de 20/04/2021 com a referência citius 11375348 e doc.s 4 e 6 junto com o requerimento de 02/01/2021, com a referência citius 10972907. R) Discute-se nestes autos a validade do documento apresentado pela cabeça de casal como sendo um alegado testamento hológrafo. S) De acordo com a lei portuguesa estamos tão só perante um escrito particular cuja letra e assinatura foi impugnada no artigo 35 do requerimento apresentado, em 20/04/2021 com a referência citius 11375348, pela interessada CC. Suscitando-se a questão de saber como poderá ser aferida a autenticidade e assinatura do seu autor visto ter sido registado após a morte do inventariado? T) Dispõe o artigo 374.º do Código Civil que a assinatura apenas se considera verdadeira se não for impugnada. Estabelecendo o n.º 2 mesmo artigo que sendo impugnada a autenticidade da letra e assinatura incumbe à parte que tiver apresentado o documento a prova da sua veracidade. U) Ora, a interessada EE não fez qualquer prova quanto à autenticidade do documento que apresentou, pelo que, não poderia o tribunal ter considerado que o mesmo é da autoria do inventariado. V) O documento apresentado como sendo um testamento holográfico é um documento escrito particular, cuja autenticidade da letra e assinatura foram impugnadas. E não se diga que por ter sido depositado num notário francês quase um ano depois da morte do inventariado pela sua única beneficiária estará autenticado, é que o notário francês não se debruça sobre a autenticidade do documento, não atesta a veracidade da sua letra e assinatura limitando-se tão só a receber esse dito documento. W) Nos termos do artigo 21.º do Regulamento a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito, ou seja, Portugal. X) A lei portuguesa é particularmente rigorosa, no que respeita à validade dos testamentos. Estamos perante um alegado testamento para o qual a lei portuguesa é particularmente rigorosa, exigindo até que seja lavrado por notário e, no entanto, é um mero escrito particular um dito testamento que teria sido outorgado cerca de dois meses antes da morte do inventariado, que estava com um cancro, internado num hospital. Y) Um dito testamento que pretende revogar um testamento português exarado por notário em documento autêntico. Ora, nos termos do artigo 364.º do CC não podia esse testamento exarado por notário ser revogado por um mero escrito particular o qual, aliás, foi impugnado. Z) Violou a douta sentença, entre outras, as seguintes disposições legais: artigos 25.°, 31.º n.º 1, 62.°, 364.º e 374.º do Código Civil, artigo 27.º da Lei N.º 37/81 de 3 de outubro – Lei da Nacionalidade, artigos 3.ºn.º 1 alinea i), 4.º, 21.º e 27.º do Regulamento (EU) 650/12. (…) TERMOS EM QUE DEVE A PRESENTE APELAÇÃO SER JULGADA PROCEDENTE, POR PROVADA, E, EM CONSEQUÊNCIA, REVOGAR-SE A DECISÃO RECORRIDA EM CONFORMIDADE COM AS CONCLUSÕES, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE: 1) Adite três novos pontos à matéria de facto provada: L. O inventariado tinha a sua residência habitual em Portugal, na casa que restaurou sita no Lugar ..., freguesia ..., concelho .... M. O inventariado, BB, nasceu na freguesia ..., concelho ..., em Portugal, no dia 10 de julho de 1945. N. Do assento de nascimento do inventariado constam os seguintes averbamentos: - o averbamento n.º 1 de 2011-10-12 de perda da nacionalidade portuguesa nos termos da alínea a) da base XVII da Lei n.º 2098, de 29 de julho de 1959, por ter adquirido voluntariamente por naturalização a nacionalidade francesa em 15 de julho de 1971; - o averbamento n.º 2 de 2011-10-12 de aquisição a nacionalidade portuguesa nos termos do artigo 31.º da Lei 37/81, de 3 de outubro, com efeitos a partir de 12 de agosto de 1992. Cfr. doc. junto aos autos sob o n.º 8 da reclamação a relação de bens. 2) DECLARE QUE A LEI APLICÁVEL À SUCESSÃO DE BB É A LEI PORTUGUESA POR SER ESTA A SUA LEI PESSOAL; 3) DECLARE QUE O DOCUMENTO APRESENTADO PELA INTERESSADA EE, COMO SENDO UM TESTAMENTO HOLÓGRAFO, POR CONSUBSTANCIAR UM MERO ESCRITO PARTICULAR NÃO SE REVESTE DA AUTENTICIDADE E FORÇA PROVATÓRIAS NECESSÁRIAS PARA QUE POSSA SER ADMITIDO EM PORTUGAL, SENDO INSUSCEPTÍVEL DE REVOGAR A DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA VERTIDA NO TESTAMENTO OUTORGADO POR BB, EM 30 DE JANEIRO DE 2015, NO CARTÓRIO NOTARIAL DA DR. GG; 4) DECLARANDO-SE A REQUERENTE CC PARTE LEGÍTIMA NO PRESENTE INVENTÁRIO.”
A recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso com a confirmação da sentença recorrida, concluindo assim: “1.ª Toda a argumentação mobilizada pela Recorrente parte da premissa errada de que está em causa um testamento feito por um português em país estrangeiro, quando a verdade é que o Inventariado, além da nacionalidade portuguesa, possuía também, à data da outorga do testamento e da sua morte, nacionalidade francesa (facto provado “D”). 2.ª Significa que não está em discussão qualquer testamento feito por um português em país estrangeiro, mas antes um testamento feito por um francês num país de que é nacional. 3.ª Resulta clarividente da prova produzida que o Inventariado tanto estava em Portugal, como em França, dado que era neste último país que tinha grande parte do seu património e negócios. Significa isto que não foi produzida qualquer prova que permitisse ao Tribunal “a quo”, com segurança, dar como provado que o falecido BB residia habitualmente em Portugal. 4.ª Contrariamente, o que resulta dos autos é, precisamente, que o centro da vida do Inventariado estava em França, local onde construiu e organizou a mesma, quer ao nível pessoal quer ao nível financeiro. 5.ª De qualquer forma, e mesmo que assim não se entendesse, quando muito, segundo o artigo 82.º, n.º 1, do Código Civil, ter-se-ia de considerar que o falecido residia alternadamente nos dois países, tendo-se por domiciliado em qualquer deles. 6.ª Resulta do próprio assento de óbito junto aos autos que BB teve como última residência habitual ...71, rue de la ..., ... (...), França, tendo optado por contrair matrimónio com a Recorrida (com quem já mantinha uma relação de mais de 30 anos) neste mesmo país, em 10 de julho de 2017. 7.ª Quer isto dizer que, no momento da exaração do testamento, a lei pessoal do Inventariado era a lei francesa, não havendo qualquer errada determinação por parte daquele Tribunal, conforme pugna a Recorrente. 8.ª Mesmo que se considerasse que a lei pessoal do Inventariado era a lei portuguesa, a adição pretendida pela Recorrente do facto “L” em nada contribuía para aferir sobre a validade do testamento em discussão, já que, atenta a circunstância de estar em causa uma situação plurilocalizada, a apreciação da mesma cai no âmbito de aplicação do Regulamento (UE) 650/2012. 9.ª A circunstância de o Inventariado possuir, também, habitação em Portugal e aqui passar algumas temporadas, não tendo o condão de apagar o facto de ter nacionalidade francesa (facto provado D), em nada contribui para o que efetivamente se discute nos presentes autos: a validade do testamento holográfico celebrado pelo Inventariado em França. 10.ª A adição do facto “N” pretendida pela Recorrente, que mais não é do que uma transcrição do assento de nascimento do Inventariado, sendo uma mera repetição de um facto já assente na decisão recorrida (facto provado D), é absolutamente inócua para a decisão da causa, não se vislumbrando qualquer efeito útil em acrescentar tal facto. 11.ª O mesmo se diga relativamente ao facto “M” que a Recorrente pretende ver aditado, já que é totalmente irrelevante para a decisão a proferir nos presentes autos saber o local de nascimento do falecido, resultando, de qualquer forma, o mesmo da própria certidão de nascimento do Inventariado. 12.ª Face àquele que foi erigido como objeto do litígio (a bondade jurídica do testamento holográfico celebrado) não se vislumbra de que modo se poderiam introduzir na factualidade provada os factos pretendidos pela Recorrente, já que os mesmos não favorecem sequer o desfecho do litígio visado pela mesma. 13.ª Olvida a Recorrente que o documento em discussão nos presentes autos é um testamento redigido pelo Inventariado, inserindo-se, assim, sem qualquer dúvida, na definição de «disposição por morte» (“um testamento, um testamento de mão comum ou um pacto sucessório”) prevista na alínea d) do artigo 3.º do Regulamento (UE) n.º 650/2012. 14.ª Ignora ainda a Recorrente que a criação de tal Regulamento tinha (e tem) como principais objetivos determinar a lei aplicável à sucessão (nomeadamente tratando da questão de conflitos de leis e do reconhecimento mútuo), facilitar o reconhecimento de decisões e documentos, criar o certificado sucessório europeu, reduzir conflitos de jurisdição e respeitar a autonomia do testador. 15.ª Estando cumpridos os requisitos de validade formal do testamento (artigo 27.º do sobredito Regulamento), o mesmo enquadra-se no âmbito de aplicação daquele Regulamento n.º 650/2012, que visa, também, reconhecer a importância e garantir a validade formal dos testamentos, incluindo os holográficos. 16.ª O testamento em causa foi feito pelo Inventariado enquanto cidadão francês, que praticou um ato em França, de acordo com as leis desse país: em França o autor do testamento deve estar no pleno uso das suas faculdades mentais (artigo 901.º do Código Civil Francês) e deve ter capacidade jurídica (artigo 902.º do Código Civil Francês). 17.ª Quanto às condições de forma, atenta a informação prestada pelo Gabinete de Documentação e Direito Comparado em 11/05/2021, naquele país são reconhecidos três tipos de testamento, estando os requisitos formais de cada um deles previstos nos artigos 967.º a 980.º do Código Civil Francês. 18.ª Nestes tipos de testamento reconhecidos encontra-se o testamento holográfico, que é uma modalidade de testamento que pode ser feito sem a presença de um notário, exigindo, contudo, o seguinte: (i) seja inteiramente manuscrito pelo testador, (ii) tenha a aposição de data e (iii) da sua assinatura, conforme estatuído no artigo 970.º do Código Civil Francês, sem necessidade de reconhecimento de assinatura. Este testamento holográfico pode ser depositado e conservado em notário, para ser registado no Arquivo Central de Disposições Testamentárias, no entanto, este procedimento não é obrigatório para que o mesmo seja válido. 19.ª Segundo o Gabinete de Documentação e Direito Comparado, o testamento dos autos «não parece ter sido violado os requisitos de forma, nesse âmbito, artigo 1035º, em especial, a 1047º do Código Civil. O testamento holográfico, como atrás referido, não está sujeito a qualquer tipo de registo/depósito, nos termos do artigo 970º.» 20.ª Dúvidas não restam de que o testamento holográfico exarado pelo Inventariado, objeto de discussão nos presentes autos, é formalmente válido, produzido os competentes efeitos na sucessão. 21.ª O testamento em causa, sendo formalmente válido por cumprir os requisitos exigidos [cf. artigo 27.º do Regulamento (UE)] só seria impugnável se ofendesse, de alguma forma, o direito à legítima ou outro direito de que uma pessoa não possa ser privada pelo autor da sucessão, o que não acontece visto a única herdeira do Inventariado ser a Recorrida EE. 22.ª Para anular o testamento previamente redigido em Portugal é apenas essencial que o documento onde consta tal intento seja formal e materialmente válido, tal como ocorre com o testamento holográfico em discussão. 23.ª Vigorando no ordenamento jurídico português o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional (cf. artigos 4.º e 8.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa), no que ao fenómeno sucessório diz respeito, foi aprovado o Regulamento (UE) 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, o qual é aplicável a todos os Estados Membros (com exceção do Reino Unido, Irlanda e Dinamarca), a sucessões abertas a partir de 17/08/2015, onde se enquadra o caso dos autos. 24.ª Com efeito, estas normas de direito internacional derrogam o quadro normativo do ordenamento jurídico do foro, o que implica, necessariamente, que o artigo 2223.º do Código Civil tenha sido tacitamente revogado com aquele Regulamento (UE) 650/2012. 25.ª Mas mesmo que se aplicasse o disposto no artigo 2223.º do CC, o disjuntivo “ou” inserto no mesmo significa que a exigência de solenidade terá de estar presente ou na feitura, ou na aprovação do testamento pela entidade dotada de fé pública (neste sentido, v. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24/09/2019, processo n.º 835/06.0TCSNT.L1-7). 26.ª No que se prende com o ónus da prova relativamente à autenticidade da assinatura do testamento holográfico, a Recorrente não colocou em causa a mesma quando respondeu à reclamação da Recorrida, mas apenas quando confrontada com a validade do documento (perante a resposta apresentada pelo Gabinete de Documentação e Direito Comparado). 27.ª Embora não lhe cabendo tal prova, a Recorrida provou a veracidade da assinatura aposta no testamento holográfico junto aos autos, mediante a junção de documento de identificação francês do Inventariado, onde é possível constatar a assinatura do mesmo e a sua semelhança com a assinatura exarada no testamento holográfico. 28.ª Outra não poderia ser, assim, a conclusão se não a de que a validade do testamento redigido em França, de acordo com a lei francesa, tem como consequência a revogação da disposição testamentária feita em Portugal na qual a Recorrente se apoia (datada de 30 de janeiro de 2015), o que implica que a Recorrente CC seja parte ilegítima na presente cumulação de inventários para partilha das heranças abertas por óbito de AA e de BB. Nos termos do artigo 646.º do CPC, para além das peças processuais já indicadas pela Recorrente para efeitos de instrução do Recurso, requer-se certidão com vista a instruir o recurso o requerimento e respetivo documento juntos aos autos com a referência citius 1139822, de 26/04/2021. NESTES TERMOS, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, confirmando a sentença recorrida nos pontos que a Requerente/Recorrente pretende ver aqui alterados, V. Exas. Farão, como sempre a habitual JUSTIÇA!”
Colhidos os vistos legais, cabe decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
A matéria de facto a considerar, é a que resulta do relatório que antecede.
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DO MÉRITO DO RECURSO:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635.º, nº 4, 637.º, nº 2, 1ª parte e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante e pela apelada, são as seguintes as questões a decidir:
- Se deve ser alterada a matéria de facto dada como provada, com aditamento de três factos aos provados;
- Se à sucessão de BB deve ser aplicada a lei portuguesa ou a lei francesa;
- Se o testamento outorgado em França pelo inventariado é válido, nomeadamente, para revogar o testamento que o inventariado havia outorgado em Portugal;
- Se a requerente do inventário deve ser considerada parte legítima.
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a) Do aditamento à matéria de facto provada
O art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”.
O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através dos meios de prova e/ou da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação.
No caso concreto, o julgamento do incidente da reclamação da relação de bens foi realizado com gravação dos depoimentos prestados em audiência, sendo que a apelante impugna a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto que pretende ver aditados, indica a prova a reapreciar, nomeadamente as declarações prestadas pela interessada EE, bem como a decisão que sugere, indicando os três factos que pretende ver aditados, mostrando-se, assim, suficientemente, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida.
Segundo ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225, e a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Cabe, ainda, referir que neste âmbito da reapreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396.º do Código Civil.
E é por isso que o art. 607.º, nº 4 do CPC impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova.
Posto isto, cabe analisar se assiste razão à apelante, na parte em que entende que face à prova produzida, o Tribunal a quo deveria ter dado como provados os factos em causa e que são os seguintes: L. O inventariado tinha a sua residência habitual em Portugal, na casa que restaurou sita no Lugar ..., freguesia ..., concelho .... M. O inventariado, BB, nasceu na freguesia ..., concelho ..., em Portugal, no dia 10 de julho de 1945. N. Do assento de nascimento do inventariado constam os seguintes averbamentos: - o averbamento n.º 1 de 2011-10-12 de perda da nacionalidade portuguesa nos termos da alínea a) da base XVII da Lei n.º 2098, de 29 de julho de 1959, por ter adquirido voluntariamente por naturalização a nacionalidade francesa em 15 de julho de 1971; - o averbamento n.º 2 de 2011-10-12 de aquisição a nacionalidade portuguesa nos termos do artigo 31.º da Lei 37/81, de 3 de outubro, com efeitos a partir de 12 de agosto de 1992. Cfr. doc. junto aos autos sob o n.º 8 da reclamação a relação de bens.
Vejamos.
Antes de mais, cabe referir que não devendo o Tribunal praticar atos inúteis (art. 130.º do CPC), não cabe levar aos factos provados, aqueles que não tenham interesse para a decisão.
Assim, desde logo, os factos M) e N) que a apelante pretende ver aditados, sobre o local de nascimento do inventariado e sobre os averbamentos que constam do seu assento de nascimento afiguram-se inócuos para a apreciação do recurso, considerando que já se mostra provado e não foi impugnado, que o inventariado tinha nacionalidade portuguesa e francesa (facto provado D)), motivo pelo qual se indefere o pretendido aditamento.
No que diz respeito ao facto L), cujo aditamento a recorrente pretende, ou seja, que o inventariado tinha a sua residência habitual em Portugal, trata-se de uma das questões controvertidas que se colocam nos autos, já que pode ser o critério ou um dos critérios a ter em conta para a decisão sobre a lei aplicável no caso, pelo que, a prova, ou não, de tal facto já se afigura ter interesse para a decisão.
Conclui a recorrente que tal facto resulta da prova produzida, nomeadamente da confissão inserta nas declarações da viúva.
Vejamos.
Ouvida a prova gravada, nomeadamente as declarações prestadas pela viúva, resulta que a viúva e o inventariado viviam em França, já que o falecido trabalhava em Paris, vindo viver para Portugal desde 2009 para estar com a mãe do mesmo, pelo que nos últimos anos da vida da mãe, desde 2009, a mãe vivia um mês com o filho e um mês em casa da irmã deste. A mãe veio a falecer em 2016, altura a partir da qual eles iam para França tratar de assuntos, mas onde viviam mesmo era cá em Portugal, não podendo estar muito tempo fora porque cuidavam de animais. Contudo, em abril de 2017, o marido foi diagnosticado com cancro, e nessa altura foram para França para ter uma segunda opinião, aí tendo ficado, já que também tinham aí residência, a cerca de 70 quilómetros de Paris, aí tendo casado, no mês de julho, e aí tendo permanecido até que o marido faleceu, no mês de setembro, só regressando a Portugal para o funeral do marido.
Posto isto, se é certo que o inventariado foi para França para ter uma segunda opinião, certo é também que aí ficou a viver, na residência que aí tinha, até ao seu óbito.
Ora, tendo o inventariado nacionalidade portuguesa e francesa e tendo residência em ambos os países, dos factos resulta que a última residência foi em França, onde veio a falecer, residência que não podemos deixar de considerar a residência habitual nessa data.
Face ao exposto, entendemos que não se mostra provado que o inventariado tinha a sua residência habitual em Portugal, à data do óbito, sendo que, quando muito, tinha residência em ambos os países.
Improcede, assim, a impugnação da matéria de facto, na totalidade.
b) Da lei aplicável à sucessão por morte do inventariado BB
Alega a recorrente que nos termos do disposto nos artigos 25.º e 62.º do Código Civil, a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste, sendo essa lei pessoal, segundo o artigo 31.º, n.º 1, do CC, a lei da nacionalidade do indivíduo.
Assim, refere que a correta determinação da lei pessoal do inventariado é essencial para a decisão a proferir no âmbito dos presentes autos, entendendo que deve ser determinado qual a lei aplicável com base nos arts. 25.º e 31.º, nº 1 do Código Civil, bem como no art. 27.º da Lei da Nacionalidade (Lei nº 37/81, de 3-10), sendo que mesmo de acordo com o art. 4.º do Regulamento (EU) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, a lei competente é a do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito, afirmando que o inventariado para além de ter nacionalidade portuguesa, teve a sua última residência em Portugal.
Posto isto, cabe decidir.
Quando estamos perante uma situação plurilocalizada, no sentido de situações com relevância jurídico-privada que contactem com mais de um sistema jurídico, por ocorrerem no âmbito de eficácia de várias leis, devemos lançar mão do direito de conflitos.
As regras de conflitos são disposições legais que se limitam a indicar a lei ou leis aplicáveis a determinadas questões de direito que a relação suscita.
A norma de conflitos comporta dois elementos essenciais: o conceito-quadro e o elemento de conexão.
O conceito-quadro delimita a matéria sobre a qual versa a regra de conflitos, a que matéria se refere, e diz respeito e situações abstratas (por exemplo direitos reais, ou direito das sucessões).
O elemento de conexão é o elemento da factualidade típica, do caso concreto, que o legislador refere para designar a lei aplicável. O elemento de conexão diz quais são as ordens jurídicas em contacto com a situação concreta e qual a ordem jurídica que é considerada a mais adequada face aos interesses jurídicos que se pretendem acautelar. Pode haver uma conexão única ou conexões múltiplas.
Há normas de conflitos que constam dos Regulamentos internacionais e normas de conflitos constantes do Código Civil – arts. 14.º a 65.º.
Ora, no que para o caso interessa, resulta do art. 62.º do Código Civil que a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste.
E dispõe o art. 65.º do mesmo código, que “As disposições por morte, bem como a sua revogação ou modificação, serão válidas, quanto à forma, se corresponderem às prescrições da lei do lugar onde o ato for celebrado, ou às da lei pessoal do autor da herança, quer no momento da declaração, quer no momento da morte, ou ainda às prescrições da lei para que remeta a norma de conflitos da lei local. 2. Se, porém, a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração, exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o ato seja praticado no estrangeiro, será a exigência respeitada.”.
Finalmente, prevê o art. 31.º do Código Civil que a lei pessoal é a da nacionalidade do indivíduo.
Contudo, há que ter em conta que o Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, é aplicável às sucessões abertas a partir de 17.8.2015 (cf. o respetivo artigo 83º, nº 1).
Conforme se refere na decisão recorrida, a propósito deste diploma referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2ª ed., 2022, Almedina, p. 591, o seguinte:
“O Reg. da UE veicula regras uniformes de competência internacional, lei aplicável e reconhecimento de decisões estrangeiras em matéria de sucessões internacionais, aplicando-se a relações sucessórias plurilocalizadas na União Europeia (com exceção do Reino Unido, Irlanda e Dinamarca) que têm pontos de contacto relevantes com mais de um país, nomeadamente por via da existência de bens sitos em vários países. A transnacionalidade da situação jurídica pode advir da sua conexão com um Estado-membro e com um país terceiro, ou seja, não tem de ser uma transnacionalidade contida dentro dos limites da União Europeia (RL 19-11-19, 28325/17). O art.º 20º consagra a aplicação universal das normas do Reg., o que, conjugado com o primado do direito comunitário, significa que as normas de conflitos do Reg. prevalecem sobre as normas dos art.ºs 62º a 65º do CC. (…)”.
O Reg. segue o modelo da sucessão unitária, aplicando-se uma única lei a toda a sucessão (art. 23º, nº 1), sem prejuízo de, no domínio do reenvio, a lex domicilii adotar o sistema da cisão (cf. art.º 34º; Afonso Patrão, “Problemas práticos na aplicação do Reg. europeu das sucessões”, BFDUC, vol. XCIV, t. II, 2018, pp. 1187-1188).”.
Posto isto, dispõe o art. 21.º do Regulamento (UE) 650/2012, quanto à lei aplicável, e como regra geral, que, salvo disposição em contrário do mesmo regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito. Prevendo, ainda, que caso, a título excecional, resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso que, no momento do óbito, o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplicável nos termos do n.º 1, é aplicável à sucessão a lei desse outro Estado.
No caso, o inventariado tinha relação com o Estado Português e com o Estado Francês.
A lei pessoal do inventariado, correspondendo à nacionalidade, tanto era a portuguesa como a francesa.
O elemento de conexão essencial no caso, é, assim, a residência habitual no momento do óbito, a qual não temos dúvidas ser a lei francesa.
Foi em França que o inventariado faleceu, país onde, à data, residia, e onde foi celebrado o testamento.
E não colhe a alegação da recorrente quando refere que o inventariado residia em Portugal, desde que se reformou, o que não se mostra provado e nem resulta da factualidade apurada.
Não releva que o inventariado tenha nascido em Portugal, atenta a dupla nacionalidade.
E não corresponde ao que resulta dos autos que o inventariado tivesse tido a sua última residência em Portugal.
Admitindo-se que o mesmo quisesse viver em Portugal para dar apoio à sua mãe, o certo é que à data do óbito do inventariado, a sua mãe já tinha falecido há cerca de um ano e meio.
Ou seja, o inventariado tinha também nacionalidade francesa; tinha também residência em França; nesse país se encontrava quando celebrou o testamento que revogou o testamento que havia outorgado em Portugal; e nesse país se encontrava a residir aquando do seu óbito, pelo que, sem dúvida, que é com esse Estado que, para além de se considerar ser o da sua residência habitual, tinha uma relação manifestamente mais estreita no momento do óbito.
A lei aplicável à sucessão do inventariado BB é, pois, a lei francesa, como se decidiu na decisão recorrida.
c) Da validade do testamento celebrado em França
Definida qual a lei aplicável à sucessão em causa, analisemos a validade do testamento celebrado pelo inventariado e que revogou o testamento que, anteriormente, havia outorgado em Portugal.
Ora, nos termos do Artigo 27.º do Regulamento (UE) nº 650/2012:
“1. Uma disposição por morte feita por escrito é válida do ponto de vista formal se a sua forma respeitar a lei:
a) Do Estado onde a disposição foi feita ou o pacto sucessório celebrado;
b) De um Estado de que o testador, (…), era nacional, quer no momento em que a disposição foi feita ou o pacto celebrado, quer no momento do óbito;
c) De um Estado onde o testador, (…), tinha o seu domicílio, quer no momento em que a disposição foi feita ou o pacto celebrado, quer no momento do óbito;
d) Do Estado onde o testador, (…), tinha a sua residência habitual, quer no momento em que a disposição foi feita ou o pacto celebrado, quer no momento do óbito;
(…)
2. O n.º 1 aplica-se igualmente às disposições por morte que alterem ou revoguem uma disposição anterior. A alteração ou revogação é igualmente válida quanto à forma se respeitar uma das leis nos termos da qual, de acordo com o n.º 1, a disposição por morte que foi alterada ou revogada era válida. (…)”
Posto isto, temos por assente que o testamento lavrado pelo inventariado BB, em França, é formalmente válido à luz da Lei Francesa, pelos fundamentos que constam da decisão recorrida e aqui se dão por reproduzidos (embora não propriamente perante a informação do Gabinete de Documentação e Direito Comparado e sua congénere em França, cuja colaboração se considera importantíssima, mas a quem não cabe dar informação sobre a validade formal e substantiva de testamento, antes cabendo ao Gabinete de Documentação e Direito Comparado fornecer a documentação legal).
Temos igualmente por assente que o inventariado BB tinha nacionalidade portuguesa, mas também francesa, o que permite concluir que a lei pessoal, neste caso, tanto pode ser uma como outra.
Acresce que, a disposição testamentária em causa foi outorgada na França, local onde o inventariado residia, à data, e onde veio a falecer.
Perante esta factualidade, temos de concordar com o que se decidiu na decisão recorrida, quando aí se refere que o testamento lavrado pelo inventariado, em 25.07.2017, respeitou a forma exigível localmente, consoante decorre da declaração notarial junta aos autos, ainda que a Lei Francesa não exija este procedimento de depósito/reconhecimento notarial de testamento holográfico.
Aliás, a disposição por morte feita pelo inventariado, enquadra-se, quanto à sua validade, nas als, a) a d) do n.º 1 do citado art. 27.º do Regulamento (EU) 650/2012.
E assim sendo, o testamento mostra-se válido e capaz de revogar o testamento outorgado anteriormente, em Portugal.
Voltando ao que se refere na decisão recorrida, e citando o que diz Helena Mota em Código Civil Anotado, Livro V, Direitos das Sucessões, Almedina, 2018, p. 335: “Donde poderemos concluir que o art.º 2223º (do nosso CC) foi tacitamente revogado pelo Regulamento das Sucessões Internacionais e que qualquer testamento feito de forma escrita por português em país estrangeiro será formalmente válido se forem observadas as exigências formais determinadas por qualquer uma das leis indicadas supra no artº. 27º do Regulamento não se lhe aplicando as demais exigências formais previstas na lei portuguesa, nomeadamente a intervenção de autoridade pública na sua feitura ou aprovação.”.
Como já deixamos exposto, é esta também a nossa opinião, pelo que, improcede o recurso na sua totalidade, devendo manter-se a decisão recorrida.
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DISPOSITIVO:
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação improcedente, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.