EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
VIOLAÇÃO DO DEVER DE INFORMAÇÃO E COOPERAÇÃO PELO INSOLVENTE
INDEFERIMENTO LIMINAR DO INCIDENTE
Sumário

I - A exoneração do passivo restante é um instituto que é aplicável aos devedores singulares com o fito de dar uma oportunidade de começar de novo.
II - Os casos previstos no artigo 238.º do CIRE que são causa de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante são taxativos.
III - A violação do dever de informação e cooperação afronta directamente a própria natureza do instituto da exoneração do passivo restante, justificando o indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante.

Texto Integral

PROC. N.º[1] 2101/24.0T8STS.P1


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Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 2

RELAÇÃO N.º 224

Relator: Alberto Taveira

Adjuntos: Raquel Lima

Maria Eiró


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

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I - RELATÓRIO.

AS PARTES


Insolventes: AA e mulher

BB.

Administrador de Insolvência: CC.


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1 AA e mulher BB, apresentaram-se à insolvência no dia 12.07.2024 e, em simultâneo, requereram a exoneração do passivo restante, alegando que preenche todos os requisitos para o efeito.

2 Declarada a insolvência no dia 16.07.2024, apresentou o Administrador de Insolvência o respectivo relatório, no dia 03.09.2024, no qual declarou nada ter a opor à referida exoneração – despacho liminar.

3. O Administrador de Insolvência apresentou parecer a 18.10.2024 no sentido da insolvência ser declarada fortuita. O Mag do Ministério Público apresentou requerimento em igual sentido.

Por decisão de 22.11.2024 foi a insolvência declarada fortuita.

4. A 22.11.2024 é proferido o seguinte despacho:

Para efeitos de conhecimento do pedido de exoneração do passivo restante que formularam, notifique os requerentes para, no prazo de 10 dias e sob cominação de indeferimento liminar daquele pedido, cumprirem o disposto no art. 236.º, n.º 3 do CIRE, juntando declaração de que se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos 237º e seguintes do referido Código.

5. Os insolventes notificados nada vieram dizer aos autos.


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DA DECISÃO RECORRIDA


Após foi proferida DESCISÃO nos seguintes termos:

Na petição inicial, os devedores AA e BB vieram requerer o benefício da exoneração do passivo restante.

Nos termos do disposto no artigo 236º, n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), o pedido de exoneração do passivo restante deve ser acompanhado da declaração expressa de que os devedores preenchem os requisitos legais e se dispõem a observar todas as condições exigidas nos artigos 237º e seguintes do referido Código.

Por sua vez, de acordo com o artigo 238º, n.º 1, alínea g), do CIRE, o pedido de exoneração do passivo restante será liminarmente indeferido se o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que lhe são impostos pelo CIRE no decurso do processo de insolvência.

No caso em apreço, apesar de expressamente notificados, em 22-11-2024, no sentido de suprirem a omissão verificada, juntando aos autos a declaração exigida pelo artigo 236º, n.º 3 do CIRE, com a expressa cominação de indeferimento liminar do pedido que formularam, os devedores nada disseram ou requereram, não cumprindo o determinado naquela notificação, nem apresentando qualquer justificação para a sua omissão.

Ora, a falta da declaração referida no artigo 236º, n.º 3 do CIRE constitui, por si só, fundamento suficiente para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, na medida em que tal declaração constitui requisito essencial à admissibilidade do mesmo.

Por outro lado, a conduta omissiva dos insolventes configura uma violação grave dos deveres de colaboração e informação que lhes são impostos pelo CIRE, nomeadamente pelo artigo 83º, n.º 1, evidenciando, no mínimo, culpa grave, pois os insolventes foram expressamente notificados da omissão e das consequências do incumprimento, tendo optado por ignorar o despacho judicial e a notificação, enquadrando-se a descrita omissão na previsão do artigo 238º, n.º 1, alínea g), do CIRE, pelo que, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, a pretendida exoneração do passivo restante deve ser liminarmente indeferida.

Pelo exposto e sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos requerentes AA e BB.


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DAS ALEGAÇÕES


Os insolventes, vêm desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao recurso e em consequência ser alterada a decisão proferida em processo de insolvência assim se fazendo a sã e devida Justiça “.


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Os recorrentes apresentam as seguintes CONCLUSÕES:

I)O tribunal a quo entendeu proferir despacho de indeferimento de exoneração do passivo restante.

II) No entanto, os Apelantes solicitam a exoneração do passivo restante, já que estão preenchidos todos os requisitos legalmente exigidos, não estando verificadas nenhuma das condições de que resulte o indeferimento liminar constantes no artigo 238 do CIRE.“.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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II-FUNDAMENTAÇÃO.


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, a questão a decidir, é a seguinte:

Da junção de documento com as alegações de recurso.

A conduta dos insolventes integra a previsão legal da alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, e consequentemente, deverá ser deferido o pedido de exoneração do passivo restante.


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OS FACTOS


Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório.

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DE DIREITO.

A)


Da apresentação de prova documental por parte dos recorrentes.

Os apelantes juntamento com o requerimento de recurso, alegações e conclusões, vieram juntar, sem que fizessem expressamente menção de tal, um documento intitulado de “Declaração”.

Do mesmo consta:

Vejamos.

Dispõe o artigo 651.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, o seguinte:

As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância “.

Por sua vez o artigo 425.º do Código de Processo Civil:

Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento “.

Por fim, o artigo 423.º do Código de Processo Civil dispõe:

1- Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.

2- Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.

3- Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior

Portanto, o legislador impôs apenas três momentos processuais nos quais as partes podem (devem) apresentar prova documental:

Primeiro com os articulados em que se aleguem os factos necessitados de prova e que sejam fundamento da acção ou da defesa – artigos 552.º, n.º 6 e 572.º, alínea d) do Código de Processo Civil;

Segundo após os articulados, mas até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sem prejuízo da respectiva condenação em multa caso não demonstre a impossibilidade de apresentação em momento anterior;

Terceiro até ao encerramento da audiência final de julgamento – artigo 425.º do Código de Processo Civil – podem ser apresentados os documentos cuja junção não tenha sido possível até então e ainda aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.

Vigora no direito português o modelo de apelação restrita: a apelação não visa o reexame, sem limites, da causa julgada em primeira instância, mas tão-somente "a reapreciação da decisão proferida dento dos mesmos condicio- nalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu profe- rimento" (TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos cit., p. 395).

Como resulta de jurisprudência uniforme e reiterada, os recursos são meios processuais de impugnação de anteriores decisões judiciais e não ocasião para julgar questões novas. (…) Em princípio, não pode alegar-se matéria nova (ius novorum; nova) nos tribunais superiores, em recurso, não obstante o tribunal ad quem dever apreciar as questões de conhecimento oficioso (ver o n.° 5 da anotação ao art. 635).

Daí que, em princípio, não devam ser juntos documentos novos na fase de recurso.”, in Código de Processo Civil Anotado, Vol 3º, LEBRE DE FREITAS, RIBEIRO MENDES e ISABEL ALEXANDRE, 3ª ed., em anotação ao artigo 651.º do Código de Processo Civil.

Definida a natureza dos recursos no nosso Direito Processual, a regra é da não admissão de prova documental em fase de recurso, pois o recurso não pode conhecer de matéria nova que a primeira instância não tivesse tomado conhecimento.

2. Em sede de recurso, é legítimo às partes juntar documentos com as alegações quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse (superveniência objetiva ou subjetiva).

Podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.

A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.

A junção de certos documentos pode ainda verificar-se quando se mostre necessária para justificar a oportunidade de interposição do recurso (art. 638.º) ou o pressuposto processual da legitimidade extraordinária de que goze o recorrente (art. 631.º, n.º 2). E é claro que deve sempre considerar-se a necessidade de junção do acórdão-fundamento nos casos oportunidade a que se reporta o art. 637.º, n.º 2. “, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª Ed., em anotação ao artigo 651.º do Código de Processo Civil.

Deste modo, apenas em casos muito excepcionais a Lei processual admite a junção de documentos: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância.

E tem que ser o recorrente que se pretende valer de tais documentos a alegar e a demonstrar tal realidade.

Ora, nos autos os apelantes, pretendem juntar aos autos o elemento em falta, que deu causa e teve por fundamento o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.

Os apelantes, por um lado, não formulam pretensão de junção de documento.

Por outro lado, em sede de alegações de recurso, ponto 11, vêm alegar “A declaração solicitada apenas não foi remetida por questões de saúde que os impossibilitaram de tal.”

Contudo os apelantes não alegam e muito menos demonstram a efectiva realidade fáctica que permita preencher a hipótese legal da admissão dos documentos e supramencionados.

Pelo exposto, não se admite a junção do documento junto com as alegações de recurso.


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B)


A factualidade dada como provada (conduta do insolvente) não integra a previsão legal da alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, e consequentemente, deverá ser deferido o pedido de exoneração do passivo restante.

Dispõe o artigo 238.º, n.º 1, alínea e) do CIRE o seguinte:

Artigo 238.º

Indeferimento liminar

1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.

A decisão em crise fundamentou-se na absoluta omissão dos insolventes em responderem à solicitação/notificação feita na sequência do despacho de 22.11.2024, e aludido em 4 do relatório – “juntando declaração de que se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos 237º e seguintes do referido Código”, tendo concluído que os insolventes agiram com culpa grave ao não dar resposta à notificação que lhes foi feita.

A exoneração do passivo restante é um instituto que é aplicável aos devedores singulares com o fito de dar uma oportunidade de começar de novo.

Por via deste instituto, os credores do insolvente, não obtêm pagamento integral dos seus créditos do processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento – artigo 235.º do CIRE.

Para PAULO DA MOTA PINTO, na exoneração do passivo restante, há uma "colisão entre direitos ou valores constitucionalmente protegidos: de um lado, a proteção constitucional dos créditos, no quadro [...] da proteção geral do património; do outro lado, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos (neste caso, tendencialmente o devedor insolvente)", sendo a solução alcançada um sacrifício não desproporcionado do interesse do credor na satisfação do respetivo crédito - PINTO, Paulo da Mota, Exoneração do Passivo Restante: Fundamento e Constitucionalidade, in: "III Congresso de Direito da Insolvência", Almedina, Coimbra, 2015, pp. 187 e 194.”, citado por MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, in Manual de Direito da Insolvência, 8ª ed., pág. 400, anotação 1271.

De acordo com a citada autora, somente nos casos de comportamento que mereça uma nova oportunidade é de aplicar este instituto, pois, em caso contrário, deverá tal pedido ser objecto de indeferimento liminar – artigo 237.º, alínea a) do CIRE.

Os casos previstos no artigo 238.º do CIRE que são causa de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante são taxativos – assim Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 1034/11.5T2AVR-C.C1, de 12.06.2012, relatado pelo Des. ARTUR DIAS e Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra 6102/18.0T8CBR-G.C1, de 22.06.2020, relatado pela Des. MARIA JOÃO AREIAS.

Em face da factualidade dada como provada – e apenas essa poderá ser valorada – não podemos sufragar a pretensão dos apelantes e, em consequência, terá que se manter o decidido pelo M.mo Juiz. Vejamos porquê.

Quanto ao seu comportamento de absoluto silêncio processual, os apelantes limitam-se a alegar que não responderam ao solicitado pelo Tribunal, “por questões de saúde que os impossibilitaram de tal”.

De modo singular, os apelantes, quanto ao facto de tal elemento – apresentação de declaração na qual os insolventes declaram que preenchem os requisitos e de dispõem a observar todas as condições exigidas nos artigos subsequentes ao artigo 236.º do CIRE –, não discordam que a sua omissão é fundamento para o indeferimento liminar. Os apelantes não põem em causa tal argumento e fundamento jurídico.

Em face da razão ou fundamento da não apresentação da dita declaração, teriam os apelantes que alegar e comprovar que estiveram impossibilitados por questões de saúde de apresentar tal declaração, durante o período que mediou a sua notificação do despacho aludido em 4., de 22.11.2024, e o decurso do prazo de 10 dias que lhe foi dado na sequência de tal notificação.

Os apelantes foram devidamente notificados por ofício de 22.11.2024 na pessoa da sua mandatária e bem como da solicitadora.

A decisão de indeferimento liminar tem data de 21.01.2025.

Claramente apresentam os insolventes um comportamento que se pode classificar com culpa grave ao violarem o dever de colaboração com o Tribunal.

Face à factualidade assente, e não impugnada pelos recorrentes/insolventes, é indesmentível não terem os mesmos procedido à junção aos autos em devido tempo: aquando da junção do requerimento inicial, no qual foi formulado pedido de exoneração do passivo restante; e/ou na sequência do convite que lhes foi feito de apresentação e junção da declaração. Com efeito, inequívoco que os insolventes/recorrentes não juntaram em devido tempo tal declaração, e/ou apresentaram justificação para a sua não junção.

Em nosso entender a factualidade dada como provada é suficiente para sustentar a decisão proferida e ora e crise.

Os factos permitem concluir que os insolventes agiram pelo menos com culpa grave, pois, os mesmos não podem deixar de saber que é requisito do pedido de exoneração a apresentação da dita declaração, e mais sabem que foram notificados para vir suprir a falta de tal declaração, por iniciativa do Tribunal, correspondendo a um convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial de exoneração do passivo restante, e não responderam a tal convite.

Os insolventes com tal comportamento, sabem que sendo interpelados no âmbito de um processo judicial de insolvência, estão obrigados a prestar a colaboração que lhes é pedida, bem como a relevância da mesma para a apreciação da situação, ainda mais, no caso, uma situação por si pretendida.

O comportamento dos Recorrentes, se não foi intencional, foi, pelo menos, grosseiramente negligente, agindo com leviandade grave e censurável e não adoptando na sua conduta a diligência de um bom pai de família- critério que serve de base à apreciação da culpa, nos termos do disposto no artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil, revelando um grave desrespeito para com o tribunal.

Deste modo, teremos de concluir por os insolventes terem agido com culpa grave. A formulação de um juízo de censura não pode deixar de ser afirmada, pois que os mais elementares deveres de probidade, cooperação, honestidade e boa fé lhes impunham outro comportamento de colaboração e de informação para com o tribunal. Os insolventes com o seu comportado e com culpa grave, violaram os deveres que lhe são impostos pelo artigo 83.º, n.º 1 alínea a) e b) do CIRE.

A jurisprudência tem vindo repetidamente a afirmar tal tipo de obrigação e a subsequente caracterização de comportamentos como dolosos ou com culpa grave. Entre muitos outros, Acórdão Tribunal da Relação do Porto 539/24.2T8AMT.P1, de 14.01.2025, relatado pela Des LINA CASTRO BAPTISTA, “O art.º 238.º do CIRE traça os casos de indeferimento liminar, revelando que "A concessão da exoneração do passivo restante (...) depende, como facilmente se compreende, da verificação de certos requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém".[3] (...)

Ou seja, somente os interesses do insolvente digno e atuando de boa-fé justificam a aplicação do instituto da exoneração do passivo restante, em prevalência sobre os direitos dos respectivos credores.

Os comportamentos passíveis de censura, que são fundamento do indeferimento do pedido de exoneração, dividem-se estruturalmente em três grupos: um respeitante a comportamentos do insolvente que contribuíram ou agravaram a sua situação de insolvência (alíneas b), d) e e)); outro respeitante a situações ligadas ao passado do insolvente relevantes para a concessão do período de cessão (alíneas c) e f)) e um outro relacionado com condutas do devedor que consubstanciam a violação de deveres impostos no decurso do processo de insolvência (alínea g)).“, Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra 586/14.2TBFIG-C.C1, de 10.03.2015, relatado pela Des MARIA INÊS MOURA, “Percebe-se a razão de ser destas exigências no âmbito do instituto da exoneração do passivo. É que, apresentando-se a exoneração do passivo como um instituto penalizador para os credores, exige-se ao insolvente que dele pretende beneficiar um comportamento conforme à boa fé. A conduta do devedor insolvente é indiciadora da sua rectidão e é pressuposto da possibilidade de beneficiar da exoneração do passivo e das vantagens que tal instituto proporciona.” e Acórdão Tribunal da Relação do Porto 6856/23.1T8VNG.P1, de 10.09.2024, relatado pelo Des JOÃO DIOGO RODRIGUES, “Ora, o artigo 238.º, n.º 1, al. g), do CIRE é bem claro a este propósito: o pedido de exoneração deve ser liminarmente indeferido quando, “[o] devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultem do presente Código, no decurso do processo de insolvência”.

E, entre esses deveres, encontra-se o de “fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal” (artigo 83.º, n.º 1, al. a), do CIRE).

Não pode, pois, o devedor recusar-se a prestar essas informações, nem a juntar aos autos os documentos que lhe sejam solicitados, desde que relevantes para o processo. (…)

Todos estes elementos, no entanto, são, como dissemos, relevantes para a decisão do referido incidente. Seja, em razão da consequência prevista para a prática dos já citados crimes no período legalmente previsto, seja em razão da necessidade de concretização do rendimento disponível, que passa inelutavelmente pelo conhecimento da situação sócio económica do insolvente, devidamente atualizada. Matérias que este tem todo o interesse em clarificar, quando lhe são favoráveis.

Acontece que o Apelante, como dissemos, não o fez. Nem depois de advertido para as consequências gravosas da sua omissão.

Neste contexto, portanto, não pode deixar de se concluir que o mesmo atuou, no mínimo, com culpa grave. Isto é, atuou, no mínimo, com negligência grosseira. A tal ponto que se pode considerar, em tal enquadramento, que “só um devedor especialmente descuidado no cumprimento das suas obrigações é que não teria cumprido ou cumprido com verdade a obrigação de informação que recaia sobre si”[1]. No fundo, só uma pessoa particularmente negligente é que teria procedido de modo semelhante[2]. O que não pode deixar de ser particularmente censurável.

Até porque nos encontramos no âmbito de um incidente que visa a reabilitação económica do devedor.

O princípio geral nesta matéria – como se assinala no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03 - é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou no período de cessão.

Face ao exposto e à descrita factualidade, nenhuma censura merece o silogismo judiciário da decisão em crise, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao decidir o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.


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III DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto:

a) Rejeitar a admissão de documento;

b) E em julgar improcedente a apelação,

Custas pelos insolventes/apelantes (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

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Porto, 29 de Abril de 2025
Alberto Taveira
Raquel Lima
Maria Eiró
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.