I - Nas situações em que às arguidas nulidades da decisão quadra a regra da substituição ao tribunal recorrido e/ou em que se imponha à Relação sindicar e suprir deficiência da decisão de facto (e sendo que a omissão de pronúncia sobre factos relevantes não constitui vício na construção da sentença passível de integrar a nulidade por omissão de pronúncia, antes integra patologia a sindicar, mesmo oficiosamente, nos termos do art. 662º, nº 2, c) do CPC, enquanto deficiência da matéria de facto), queda sem qualquer interesse e relevo a sua apreciação, pois que tal redundará num mero exercício de verificação académica do cumprimento das regras próprias da elaboração e estruturação da decisão, sem efectivo relevo e impacto na sorte da apelação.
II - Nas situações referidas em I deve ultrapassar-se a apreciação dos arguidos vícios (abstendo-se a Relação de os conhecer), em razão da sua irrelevância para a sorte da apelação.
III - Ocorre incumprimento do ónus primário fundamental de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação (do nº 1 do art. 640º do CPC), cujo incumprimento determina a imediata rejeição do recurso (sem possibilidade de convite a aperfeiçoamento), quando não possa adquirir-se da peça recursória (sequer por actividade interpretativa) os concretos pontos de facto tidos por incorrectamente julgados e o resultado pretendido (resposta alternativa) para os mesmos.
IV - O arrendatário de parte de imóvel urbano não constituído em propriedade horizontal não goza, à luz do art. 1091º do CC (redacção introduzida pela Lei 64/2018, de 29/10) de direito de preferência na venda do imóvel – seja quanto à parte que ocupa a coberto do arrendamento, seja (individualmente) quanto à totalidade do prédio.
Apelados: Banco 1..., SA, A..., Ld.ª e CC (réus).
Juízo local cível do Porto (lugar de provimento de Juiz 5) – Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
1) lhes seja reconhecido ‘o direito de preferência’ sobre o prédio melhor identificado no artigo 1º da petição,
1.1) a condenação do réu Banco 1... a ‘cumprir com o disposto no artigo 1091º, nº 4 do Código Civil’, comunicando aos autos o valor da venda e permitindo que os autores se substituam à ré A... na aquisição do referido imóvel, condenando a última ao reconhecimento do direito dos autores a fazerem seu o prédio em causa,
assim não se entendendo,
1.2) a condenação dos réus A... e CC a ‘reconhecerem a preferência’ dos autores e o direito a haver para si o prédio em causa, substituindo-se ao último na aquisição dele,
assim não se entendendo,
2) lhes seja reconhecido o direito de preferência sobre a parte do prédio melhor identificado no artigo 1º da petição,
2.1) se ordene a determinação, por perícia, do valor proporcional da sua preferência sobre o negócio celebrado entre os réus Banco 1... e A...,
2.2) se declare o direito dos autores a haver para si a parte do prédio, cumprindo o pagamento do valor determinado,
assim não se entendendo
2.3) se condenem os réus A... e CC a reconhecerem a preferência dos autores sobre a parte do imóvel e o direito a substituírem-se ao último na aquisição daquela referida parte.
Alegam para tanto que residem no prédio sito na rua ..., União de Freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., no Porto, na sequência de contratos de arrendamento celebrados com os seus anteriores proprietários – inicialmente a autora era arrendatária do 3º andar do prédio e posteriormente, já casados, os autores tomaram de arrendamento o 1º andar do prédio por contrato celebrado em Dezembro de 1973, contrato posteriormente alterado quanto ao seu objecto mediato, tendo o seu proprietário (ao tempo) concedido aos autores, que aceitaram, a fruição de todo o prédio (artigos 8º, 9º, 10º, 36º, 37º e 39º da petição) –, mais alegando os negócios translativos da propriedade de que o prédio foi objecto: o primeiro entre o Banco 1... (alienante) e a A... (adquirente) que não lhes foi comunicado, desconhecendo os autores os contornos do negócio, sendo que posteriormente, em Março de 2021, reconhecendo-se a sua posição de inquilina do prédio, foi a autora notificada para o exercício da preferência por comunicação com várias irregularidades que descrevem; o segundo, de que tomaram conhecimento em Maio de 2021, entre a A... e o CC, que também lhes não foi comunicado.
Contestaram os réus, que além de se defenderem por excepção (invocaram a caducidade do direito dos autores e bem assim, a segunda ré, a renúncia dos autores ao invocado direito e ainda o terceiro réu o abuso de direito, a falta de depósito da totalidade do preço e a inconstitucionalidade do nº 8 do art. 1091º do CC), impugnaram expressamente o alegado pelos autores, mormente a qualidade de arrendatários de todo o prédio alienado, antes reconhecendo (e afirmando) a sua qualidade de arrendatários do primeiro andar do imóvel não constituído em propriedade horizontal.
Cumprido o contraditório quanto às excepções invocadas, considerando-se conterem os autos os elementos necessários a uma decisão de mérito, proferiu-se saneador sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu os réus dos pedidos.
De tal saneador sentença apelaram procedentemente os autores, tendo-se determinado o prosseguimento dos autos em vista de se apurarem factos tidos por relevantes (mormente os factos alegados nos artigos 8º, 9º, 10º, 36º, 37º e 39º da petição – relativos ao objecto do arrendamento, além dos demais factos alegados e tidos por relevantes para a apreciação dos fundamentos da acção e das defesas apresentadas).
Tramitada a causa, com organização da base instrutória e realização de julgamento, foi proferida sentença que, considerando os autores como arrendatários do 1º piso de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, concluiu não terem os mesmos direito de preferência, em razão do que se impunha a improcedência da acção.
Apelam novamente os autores, pretendendo a revogação da sentença e sua substituição por outra que julgue procedente o peticionado e os permita a preferir ‘sobre o negócio de aquisição’ do prédio identificado, ‘nos moldes melhor descritos na Petição Inicial’, terminado as alegações pela formulação das seguintes conclusões:
1. Na sua Petição Inicial, os Recorrentes alegaram que eram arrendatários do prédio sito na rua ..., inscrito na matriz predial urbana pelo artigo ... da União de Freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., concelho do Porto — de todo o prédio.
2. E, com fundamento nessa causa de pedir, pretendem que lhes seja reconhecido o direito de preferência na aquisição do imóvel, preferindo sobre a transacção do imóvel entre o R. Banco 1... e a Ré A... ou, subsequentemente, na transacção entre a R. A... e o R. CC.
3. Por despacho, datado de 12/10/2023, Ref.: 452664773, foram definidos como factos assentes:
4. No mesmo despacho definiram-se os seguintes temas de prova:
1. Saber se proprietário da altura alterou o arrendamento, concedendo aos autores a fruição total do prédio, se os mesmos se responsabilizassem pelas reparações do mesmo;
2. O que aconteceu, tornando-se os autores os únicos inquilinos do prédio;
3. Saber o ano em que tal ocorreu.
4. Saber se a comunicação referida em c) preenchia os requisitos legais.
5. Saber se aos autores apenas foi cedido, desde sempre, a utilização do 1º andar do imóvel em causa.
5. Em sede de audiência prévia, em 15/12/2023, foi proferido o despacho referência 454366259, o qual ampliou os temas de prova, da seguinte forma:
“Nessa medida, a reclamação deduzida pelos Autores só pode ser julgada procedente, dado que se trata de matéria de facto com inegável relevância para a decisão a proferir.
Assim, os temas da prova são alargados, por forma a incluir os seguintes:
- Saber se os Réus Banco 1... e A... comunicaram a intenção de negócio entre eles aos Autores;
- Saber se os Autores tiveram oportunidade de conhecer o negócio entre os Réus Banco 1... e A...;
- Saber se os Autores tiveram a oportunidade de preferir no negócio entre os Réus Banco 1... e A...”
- Saber se os Autores tomaram conhecimento do negócio de compra e venda entre o Réu Banco 1... e Ré A... em 8/7/2020
6. Determina o artigo 608º, nº 2 do CPC que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.
7. Por ignorar as questões que de seguida se tratam – alegadas, debatidas e sobre as quais foi produzida prova documental e testemunha, a decisão é nula, por omissão (artº 615º, nº 1, al. d) do CPC), invalidade processual que expressamente se invoca.
8. Quer da configuração expressamente dada à lide pelos temas de prova definidos, quer pela articulação entre temas e questões conexas verifica-se que a solução dada ao caso não pode ser a preconizada pela sentença sem desrespeito pelo citado artigo decorrendo assim a sua nulidade, por omissão (artº 615º, nº 1, al. d) do CPC), invalidade processual que expressamente se invoca.
9. Com efeito, o tema de prova 4, bem assim como todas as questões conexas com a missiva enviada pela Ré A... para exercício do direito de preferência importavam à causa para perceber qual a posição desta Ré em relação aos AA.
10. Mas mais do que isso, decidir sobre tal missiva, sua origem, perfeição e justificação, permitia resolver outro dos temas da prova que é abordado pela sentença mas de forma absolutamente deficitária e imperfeita.
11. Com efeito, a determinação da amplitude do arrendamento do AA sobre o prédio, que estes defendem ser sobre o todo e os demais Réus alegam ser só sobre o 1º Andar do nº ... da Rua ..., passa por entender o histórico da relação entre as partes e o porquê de a R. A... ter concedido na preferência pela carta que mandou.
12. Importa também perceber se a A... pretendia conceder na preferência sobre a totalidade do prédio (tese dos AA) ou na parte (tese dos RR), pois tal permite demonstrar qual o conhecimento que a R. tinha do arrendamento;
13. O que, por sua vez, permite, comprovar a tese dos AA ou dos RR.
14. Com efeito, a R. A..., pelo envio da missiva age tão de acordo com o direito que os AA se arrogam que é essencial saber porque o fez, e assim determinar a veracidade desse direito.
15. Por outro lado, a posição desta R é tão antitética da dos RR que o escrutínio dos documentos por si elaborados e a inquirição das suas testemunhas permite também conceder na discussão que todos os RR subscrevem como sendo essenciais à boa discussão da causa, de acordo com a reclamação que apresentaram à definição dos temas de prova.
16. É assim discussão que a todas as partes aproveita, porque todas as partes a quiseram trazer aos autos.
17. A solução dada pela sentença à matéria de facto, nomeadamente ao âmbito do contrato de arrendamento dos AA assenta somente na prova testemunhal feita e nas questões directamente relacionadas com esse arrendamento, determinando-se que a alegação dos AA “(…) não resultou minimamente demonstrada em face das apontadas deficiências probatórias, sendo certo que de acordo com o Artigo 414º do CPC “ a dúvida sobre a realidade de um facto (…) resolve-se contra a parte a que o facto aproveita”, sem que, no entanto se debruce no apontado meio de prova (carta) ou depoimento sobre a mesma.
18. Esta questão não sai prejudicada pela solução dada à demais matéria de facto e subsequente subsunção legal, mas antes responde e ajuda a confirmar se os AA tinham a fruição do prédio todo, pelo que precede a decisão proposta na sentença, que, dada per saltum e olvidando o disposto no artigo 5º do CPC, viola o disposto no artigo 608º, nº 2 CPC, e deriva na nulidade prevista no artigo 615º, nº 1, alínea d).
19. Mais releva que tenha sido feita a inquirição de DD, legal representante da A... e EE, colaboradora dessa Ré, amplamente contraditada com documentos, tendo prestado depoimento que, de forma clara, foi tentativa inglória e maquinada para distorcer o sentido da carta em análise, sendo que nada dessa controvérsia, tema ou questões conexas – e, novamente, precedentes e instrumentais à questão do âmbito do arrendamento – estão analisadas na sentença em crise.
20. Termos em que deve a sentença ser declarada nula pelos apontados termos e ordenada a sua modificação e renovação com respeito aos temas da prova e questões a decidir nos termos melhor definidos e por despacho prévio ao início da discussão da causa.
Sem prejuízo do que,
II - Do Erro na apreciação da matéria de facto
21. Para além da já invocada nulidade, o depoimento prestado por EE serve ainda para fundamentar um erro na apreciação da matéria de facto, juntamente com os depoimentos de FF e GG.
22. Com efeito, todos estes depoimentos versam sobre a amplitude do contrato de arrendamento dos RR e fruição que os mesmos fazem do imóvel em discussão nos autos.
23. EE, depõe indirectamente, ao debruçar-se sobre o documento 2 junto com a Contestação da A... – carta para exercício do direito de preferência sobre o imóvel sito na rua ..., no Porto – procurando justificar o conteúdo dessa missiva, que, conforme exposto, confirma na íntegra a versão trazida aos autos pelos AA.
24. FF, filho dos AA depõe nos autos, nos moldes descritos na sentença, discordando-se no entanto na apreciação que se faz quanto à credibilidade do depoimento.
25. Com efeito, diz-se no aresto que “Aqui chegados, cumpre referir que o depoimento testemunhal do filho dos AA foi analisado com muita cautela e prudência: para além do inegável interesse na causa e no seu desfecho, o relato dos acontecimentos que prestou – respeitante à cedência do gozo da totalidade do prédio, quer pelo senhorio, quer pelo arrendatário do 2º piso – afigurou-se-nos pouco ou nada verosímil, desde logo porque contrário às regras da experiência comuns e, sobretudo, pela ausência de qualquer corroboração objectiva, não podendo aqui relevar o depoimento de GG, que referiu ser seu amigo, pois, neste concreto âmbito, limitou-se a enunciar em audiência a versão dos factos que lhe havia sido transmitida pelo seu amigo.”
26. Tal proposição está errada, porque tal qual como consta do depoimento do referido GG, transcrito acima e que aqui se dá por reproduzido, o mesmo era visita de casa dos AA há muitos anos, e descreveu com facilidade e clareza o prédio e a utilização que dele era feita por aqueles, com referência a deslocações que fez ao mesmo, para além do que ia discutindo com FF.
27. Por outro lado, também se refere que o depoimento do próprio FF foi acompanhado pelo confronto com documentos juntos pelo R. CC, e pelos quais se explicou e demonstrou a utilização pelos AA de espaços do prédio que extravasam o primeiro andar, nomeadamente as oficinas que aquele FF tinha nas lojas (R/C) e demais pisos.
28. Conjugando os três depoimentos (nomeadamente as contradições de EE), confrontados e analisados com os documentos da A... e os documentos de CC – listados supra - conclui-se por uma contraditoriedade dos meios de prova que não permita concluir como no aresto em crise, pelo que, sem prejuízo do alegado sobre a nulidade da sentença, vem impugnada a decisão sobre a matéria de facto, devendo ser nessa parte ser anulada, nos termos do artigo 662º, nº 2, alínea c).
Sempre, sem prescindir
III – Da aplicação do artigo 1091º, nº 1 do Código Civil
29. Por dever de patrocínio e atendendo ao que de controverso tem a questão trazida aos autos, ataca-se também a subsunção dos factos à lei, conforme operado na sentença e por violação do disposto no artigo 1091º, nº 1 do Código Civil.
30. O reconhecimento do direito de preferência do arrendatário habitacional é um problema jurídico com décadas de discussão no nosso ordenamento, tendendo a doutrina e jurisprudência conforme a sucessão de leis no tempo.
31. Essas decisões dividiam-se entre a doutrina dos que entendiam não ser de conceder qualquer preferência ao arrendatário de parte de prédio em propriedade total ou vertical;
32. E a doutrina daqueles que entendem que esse mesmo inquilino tem direito a preferir na aquisição da totalidade do prédio.
33. Após o desaparecimento da referência à possibilidade de vários inquilinos poderem concorrer a preferir no mesmo negócio – ablução operada pelo NRAU - Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro – a jurisprudência tem adoptado, consistentemente, a primeira das teses, negando o direito do inquilino a preferir.
34. No entanto, a evolução legislativa recente indica-nos que tal não deve ser.
35. A lei presentemente vigente sobre o tema é o Código Civil que no seu artigo 1091º dispõe:
Artigo 1091.º
Regra geral
1 - O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes;
b) Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado.
2 - O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053.º
3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º
4 - A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º é expedida por carta registada com aviso de receção, sendo o prazo de resposta de 30 dias a contar da data da receção.
5 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º, sem prejuízo das especificidades, em caso de arrendamento para fins habitacionais, previstas nos números seguintes.
6 - No caso de venda de coisa juntamente com outras, nos termos do artigo 417.º, o obrigado indica na comunicação o preço que é atribuído ao locado bem como os demais valores atribuídos aos imóveis vendidos em conjunto.
7 - Quando seja aplicável o disposto na parte final do n.º 1 do artigo 417.º, a comunicação referida no número anterior deve incluir a demonstração da existência de prejuízo apreciável, não podendo ser invocada a mera contratualização da não redução do negócio como fundamento para esse prejuízo.
8 - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições:
a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;
b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;
c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.
9 - Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.
(Rasurado nosso, na parte declarada Inconstitucional)
36. Chamada a pronunciar-se sobre a questão, e atenta a interpretação do nº 1, deste artigo, até 2018, a Jurisprudência tem negado o referido direito, com base na já referida excisão de outros pontos que em redacções anteriores à do NRAU, explicitavam como vários inquilinos podiam preferir sobre o mesmo prédio, entendo-se que se tais previsões específicas haviam sido retiradas da lei, era intenção do legislador que o inquilino não preferisse nos casos dos prédios de propriedade total e dos arrendamentos parcelares.
37. No entanto, em 2018, pela Lei n.º 64/2018, de 29 de Outubro, foi introduzido o actual nº 8 a este artigo, mecanismo especificamente pensado para que o arrendatário nas propostas condições pudesse preferir.
38. E esta alteração faz tombar o argumento positivista que suporta a tese mais restritiva ao direito a preferir: o legislador efectivamente ditou o seu reconhecimento pelo direito de preferência do inquilino que arrenda parte do prédio em propriedade total e a preocupação em salvaguardá-lo.
39. Posteriormente, em 2020, o Tribunal Constitucional veio ditar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do nº 8 deste artigo 1091º - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de 18 de setembro, para o qual integralmente se remete.
40. Analisando tal acórdão somos, no entanto, levados a perceber que a mesma não encerra em si a negação do direito de preferência daquele inquilino, mas sim a demanda de um mecanismo para sua protecção melhor e mais justo do que aquele que o legislador de 2018 havia previsto.
41. O tamanho de tal decisão não permite, de forma minimamente tolerável para quem lê o presente, que aqui se transcrevam todo o conteúdo relevante desse acórdão, para o qual integralmente se remete, mas colhe-se de um dos seus parágrafos:
Não pode, na verdade, deixar de concluir-se que o regime especial de preferência contido no n.º 8 do artigo 1091.º sacrifica excessivamente o direito à livre transmissibilidade do prédio, sem satisfazer o objetivo da estabilidade habitacional. Como vimos, para o proprietário-senhorio, o exercício do direito de preferência traduz-se num duplo limite à livre disponibilidade do bem: está impedido de alienar a totalidade do prédio e, se o arrendatário declarar preferir, está obrigado a vender uma quota ideal do mesmo; e para os demais consortes, tem o efeito de impedir o uso de parte da coisa comum, enquanto não se proceder à divisão ou venda do prédio. Por sua vez, o arrendatário converte-se em comproprietário, sem ter a certeza sobre a possibilidade da coisa comum se dividir em substância, por se verificarem os requisitos da propriedade horizontal, e sem ter quaisquer garantias de que não ação de divisão de coisa comum o local arrendado lhe poderá ser adjudicado.
42. Este excerto pretende demonstrar que a ratio da declaração de inconstitucionalidade não é a negação da preferência, mas sim o reconhecimento de que o disposto no nº 8 do artigo 1091º CC é insuficiente e inadequado para proteger os direitos (e expectativas) do inquilino, por se exigir ao proprietário vendedor um sacrifício ao desproporcional - “retalhar” e vender, por preferência, uma parte ideal do imóvel ao seu inquilino, e assim possivelmente destruir o negócio, permitindo ao inquilino apenas preferir numa quota-parte indeterminada, sem qualquer garantia sobre se essa parte preferida iria ter as mesmas características e a mesma capacidade de ser fruída que o locado anterior, trocando-se um direito de arrendamento sobre um objecto perfeitamente definido, por uma propriedade indeterminada, à custa da eventual destruição de negócio do vendedor.
43. Contraía-se assim o direito de propriedade e a liberdade contratual do vendedor, em benefício de um direito de propriedade indeterminado e de utilidade duvidosa a favor do inquilino, que acabaria sempre por cair na indefinição de adquirir algo ideal e indefinido.
44. E com uma argumentação compreensível, foi assim afastado o nº 8 do artigo 1091º, mas facultando-nos, a partir da anterior positivação, de mais uma fonte interpretativa para o actual e ainda em vigor nº 1 do mesmo artigo.
45. De igual modo, o conhecimento e compreensão da hodiernidade, com a especulação do imobiliário e a crise do arrendamento a gerar uma das maiores crises da habitação do pós 25 de Abril, contribui para entendimento de como deve ser aplicado e protegido o instituto da preferência, protegendo o inquilino (2018) e mas não por pelo direito a preferir em parcela do locado.
46. Pelo cruzamento destes feixes valorativos, e estribando-nos na letra da actual lei, relembrando os melhores argumentos da teoria expansionista - vide Ac. 299/2020 – conclui-se que a satisfação da justiça passa pelo reconhecimento do direito do inquilino, e in casu¸os Recorrentes, a preferirem na aquisição do prédio, não obstante considerar-se que o seu direito de arrendamento incidia apenas sobre o 1º Andar do prédio sito na rua ..., Porto – o que aqui por mero dever de patrocínio se admite, ao abrigo e respeitando o anteriormente requerido nestas mesma alegações, sobre as deficiências da sentença
47. Termos em que, in liminte, a sentença recorrida deverá ser revogada, e mantendo-se que apenas foi possível aos Recorrentes demonstrar o seu direito de arrendamento sobre parte do prédio em propriedade vertical, deverá ser tido por procedente o peticionado e permitido preferir sobre o negócio de aquisição do mesmo, nos moldes melhor descritos na Petição Inicial.
Contra-alegaram todos os réus em defesa da sentença apelada e pela improcedência da apelação, sustentando além do mais a rejeição do recurso no segmento relativo à impugnação da decisão de facto, por incumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640 do CPC.
Considerando, conjugadamente, a sentença recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações da apelante (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 5º, nº 3, 608º, nº 2, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), as questões a decidir reconduzem-se a apreciar:
- da nulidade da decisão, por omissão de pronúncia (conclusões 6ª a 20ª),
- da censura dirigida à decisão da primeira instância sobre a matéria de facto – o que inclui apurar do cumprimento, pelos recorrentes, dos ónus que, para tal impugnação, lhes são impostos no art. 640º do CPC (questão que, além de expressamente suscitada pela apelada, é de oficioso conhecimento),
- da existência de direito de preferência dos autores apelantes nas vendas do imóvel e o reconhecimento da preferência nos termos peticionados.
FUNDAMENTAÇÃO
*
Factos provados
Na sentença recorrida consideraram-se como provados, com relevância para apreciação do mérito da causa, os seguintes factos:
1. Os autores são inquilinos no prédio sito na rua ..., inscrito na matriz predial urbana pelo artigo ... da União de Freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., concelho do Porto.
2. Os autores tomaram de arrendamento o 1º andar do aludido prédio, por contrato de arrendamento celebrado em 1/12/1973, com o proprietário original do imóvel HH.
3. Em 2018 o prédio em causa foi vendido judicialmente e adjudicado ao Banco 2..., passando depois para o Banco 1....
4. Por carta de 8/7/2020, que os autores receberam, a ré A... comunicou-lhes que havia adquirido o prédio em causa nos presentes autos ao anterior proprietário - Banco 1... S.A. -, solicitando-lhes que a partir de então os pagamentos das rendas passassem a ser efetuados para a conta bancária que indicava.
5. Os autores passaram a depositar as rendas na conta então indicada pela ré A....
6. Em 23/3/2021, a autora foi notificada para o exercício de preferência para aquisição do imóvel, conforme documento nº 2 apresentado com a contestação da ré A... e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
7. Tendo respondido que a comunicação em causa não cumpria com os requisitos legais, conforme documento nº 3 apresentado com a mesma peça processual e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
8. A ré A... vendeu ao réu CC o imóvel, através de escritura pública outorgada no dia 28/4/2021, por 170.000€.
9. Os autores só depositaram nos autos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1410º do Código Civil, o montante de 38.976€.
10. O prédio tem separação entre andares, através de patamares para o efeito.
11. O prédio em questão não se encontra constituído em propriedade horizontal Factos não provados
Considerou a sentença como não provados todos ‘os restantes factos descritos nos articulados, bem como os aventados na instrução da causa, distintos dos considerados provados - discriminados entre os “factos provados” ou considerados na “motivação” (aqui quanto aos instrumentais)’ -, designadamente:
1. Que os autores residem naquele imóvel, ao abrigo de uma sequência de arrendamentos celebrados com os seus proprietários, sendo que, inicialmente, a autora era inquilina do 3º andar, onde residia com os seus tios;
2. Que o prédio, posteriormente, foi vendido a II, que partilhava com os autores a ocupação do mesmo, tendo ocupado uma loja e arrecadações ao nível do rés-do-chão;
3. Que o proprietário foi descurando a manutenção do mesmo, por conta de uma série de problemas económicos, que eventualmente o levariam a abandonar a loja e o imóvel;
4. Que o descrito no ponto anterior levou à degradação geral do imóvel e a várias reclamações e queixas por parte dos autores;
5. Que confrontado com esta realidade e interpelado pelos autores para fazer obras, o proprietário alterou o arrendamento, concedendo-lhes a fruição total do prédio, se os mesmos se responsabilizassem pelas reparações do mesmo;
6. Que tal foi aceite pelos autores, pois não havia qualquer outra alternativa à manutenção do imóvel, atendendo a que o proprietário dizia estar depauperado e sem condições para tal;
7. Que, assim, os autores tornaram-se os únicos inquilinos do imóvel, tendo ocupado, fruído e feito a manutenção do mesmo, dentro dos limites das suas possibilidades;
8. Que, para esse efeito e por várias vezes, recorreram ao próprio filho, também ali residente, que por meios próprios foi fazendo as reparações necessárias e possíveis ao imóvel;
9. Que os autores só tomaram conhecimento das várias transmissões de propriedade quando o último proprietário tentou tomar conta do imóvel;
10. Que os direitos dos autores foram plenamente reconhecidos pelo Banco 1...;
11. Que os autores procuraram perceber o que se passava, dado que nenhum negócio lhes havia sido previamente comunicado, nem qualquer convite ao exercício do direito de preferência;
12. Que até à presente data os autores continuam sem saber os contornos do negócio em causa ou porque razão não lhes foi estendido o direito de preferência;
13. Que os autores tinham exigido respostas à B... para as várias questões problemas da venda anterior, bem assim como dos problemas do prédio que já assumiam contornos graves e de índole legal;
14. Que os autores tomaram conhecimento em 26/5/2021 de nova venda do imóvel, desta vez ao 3º réu;
15. Que o réu Banco 1... tenha transmitido ao proprietário seguinte a presença dos arrendatários no imóvel.
A. Da nulidade da sentença (omissão de pronúncia).
Imputam os apelantes à sentença apelada (conclusões 6ª a 20ª) o vício da nulidade por omissão de pronúncia (art. 615º, nº 1, d) do CPC), sustentando não terem sido tratadas todas as ‘alegadas e debatidas’ questões submetidas à apreciação do tribunal, impondo-se, assim, ordenar a ‘sua modificação e renovação com respeito aos temas da prova e questões a decidir’ em termos a identificar em despacho prévio ao início da discussão da causa.
Manifesta a irrelevância de apreciação do imputado vício (sem conceder a sua verificação).
Não é demais enfatizar a seguinte observação: mais do que a frequência com que, em sede de apelação, se suscita a nulidade da decisão recorrida, impressiona, vários anos volvidos sobre a introdução da regra da substituição do tribunal recorrido pelo tribunal ad quem, que não se haja ainda interiorizado que, caso conclua pela verificação do(s) vício(s), caberá à Relação supri-lo(s) e conhecer do objecto do apelação (art. 665º, nº 1 do CPC), salvo se alguma questão tiver sido considerada prejudicada e haja necessidade, para decidir, de recolher outros elementos não disponíveis nos autos (caso em que, então, os autos voltarão à primeira instância)[1] – solução que, nos casos em que a aplicação do preceito (art. 665º, nº 1 do CPC) se imponha, retira qualquer interesse prático à invocação do vício que, assim, quedará num mero exercício de verificação académica do cumprimento das regras próprias da elaboração e estruturação da decisão.
À situação trazida em recurso quadra, precisamente, a solução legal prescrita no art. 665º, nº 1 do CPC – ainda que seja de reconhecer a imputada patologia à decisão impugnada, sempre terá a Relação de suprir o vício e apreciar do objecto do recurso, por os elementos necessários para tanto se mostrarem disponíveis (note-se que se trata de apelação de decisão final).
Importando apreciar se se verifica ou não erro de julgamento da sentença apelada que importe a sua revogação e substituição por decisão que acolha a pretensão dos apelantes (revogação da decisão apelada e consequente reconhecimento da pretensão formuladas pelos autores apelantes), tal apreciação sempre se imporá a este tribunal, verifique-se ou não a invocada omissão de pronúncia, pois a verificar-se teria tal patologia de ser suprida por este tribunal de recurso, ao abrigo da regra da substituição ao tribunal recorrido, prescrita no art. 665º do CPC – e por isso que a apreciação da invocada nulidade fica destituída de interesse, sem efectivo relevo e impacto na sorte da apelação (a revogação ou alteração da decisão não depende da constatação de tal vício nem ele determina o sentido da decisão a proferir).
Assim, valendo inteiramente quanto ao imputado vício (omissão de pronúncia) a solução legal prescrita art. 665º, nº 1 do CPC ou, noutra perspectiva, impondo-se à Relação sindicar e suprir (seja porque a questão é suscitada pelas partes, seja oficiosamente) a deficiência da decisão de facto [entendemos que a omissão de pronúncia sobre factos relevantes não constitui vício na construção da sentença passível de integrar a nulidade por omissão de pronúncia, antes integra patologia a sindicar, mesmo oficiosamente, nos termos do art. 662º, nº 2, c) do CPC, enquanto deficiência da matéria de facto[2]; esta perspectiva que defendemos é que se nos afigura mais conforme ao nosso ordenamento jurídico-processual pois que constatada a deficiência da decisão de facto (por falta de pronúncia sobre factos relevantes – essenciais ou complementares), a Relação deve, mesmo oficiosamente, suprir o vício se tiver disponíveis os elementos para tanto ou, assim não sendo, determinar a ampliação da matéria de facto, com anulação da decisão[3] (sem prejuízo da possibilidade das partes impugnarem a decisão da matéria de facto); assim que a par dos demais vícios da matéria provada (como a obscuridade e a contraditoriedade), a deficiência resultante da falta de pronúncia (por omissão de tomada de posição, de julgamento) sobre factos relevantes à decisão da causa deve ser colmatada nos termos dos arts. 640º e 662º do CPC, não sendo a consequência dela a anulação do acto[4]], ultrapassa-se, em razão da sua irrelevância para a sorte da apelação (para apreciar da revogação ou alteração da decisão apelada), a sua apreciação (abstém-se a Relação de conhecer da arguida nulidade, por irrelevante à decisão) – da verificação e reconhecimento da imputada patologia não resulta qualquer consequência para o mérito da causa (não tem qualquer reflexo ou influência na decisão da causa e da apelação, pois a verificar-se, impor-se-á à Relação o seu suprimento, na medida do que seja necessário para o julgamento da causa).
B. Da impugnação da decisão da matéria de facto – do (in)cumprimento dos ónus prescritos no art. 640º do CPC.
Ainda que expressamente afirmando o propósito de se insurgirem contra a decisão da matéria de facto (imputando à sentença erro na apreciação da matéria de facto – conclusões 21ª a 28ª), quedam-se os apelantes pela inconsequente, insubstancianda e genérica manifestação de insatisfação com o decidido, não cumprindo (minimamente) os requisitos que para a impugnação de tal decisão se estabelecem no artigo 640º do CPC.
O regime legal consagra (além dum ónus secundário tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida que inclui a identificação das passagens da gravação dos depoimentos que fundamentam a impugnação, estabelecido no nº 2 do art. 640º do CPC, cujo incumprimento só implica a rejeição nos casos em que a falta ou inexactidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso[5]) um ónus primário fundamental de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação (vejam-se as alíneas do nº 1 do art. 640º do CPC), cujo incumprimento determina a imediata rejeição do recurso na parte afectada – sem possibilidade de convite a aperfeiçoamento[6], deve rejeitar-se o recurso na parte respeitante à impugnação da decisão de facto nas situações de falta de especificação (com enunciação na motivação e síntese nas conclusões) dos concretos pontos de facto que são tidos por incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, a) do CPC) e de indicação precisa (na motivação) da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre cada um dos factos impugnados (a falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada facto impugnado – indicação clara da resposta alternativa pretendida)[7].
A consagração normativa do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, como revela a sua curta história, é conformada quer pela ‘forte tendência de simplificação processual e abandono de ritos morosos e ineficientes e reafirmação da confiança do legislador na capacidade dos tribunais de 2ª instância de assegurarem a efectiva concretização desse duplo grau de jurisdição, num processo moderno que se quer bem gerido, eficiente e informado pelos princípios da cooperação de magistrados, mandatários e partes em busca da verdade material com vista à outorga de tutela jurisdicional efectiva’ – e por isso que a rejeição do recurso na vertente da impugnação da decisão de facto, ao abrigo do art. 640º, nº 1 do CPC, ‘só deve ocorrer quando dos termos em que a pretensão recursória vem formulada não resulte a identificação dos juízos probatórios visados, o sentido da pretendida decisão a proferir sobre eles nem a indicação dos concretos meios de prova para tal convocados.’[8]
Assim, as alegações cumprirão os ónus (mormente, no que releva na presente apelação, o primário) de alegação em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto solicitada em apelação (art. 640, nº 1 e 2, do CPC) se, ‘numa perspectiva equilibrada, razoável e proporcionada, de teor substancialista’, permitirem ‘explicitar e isolar o preciso objecto do recurso’ e, assim, à parte contrária exercer o contraditório e ao ‘julgador proceder ao seu juízo factual próprio de segundo grau de jurisdição (art. 662º, n.os 1 e 2, do CPC), sem se substituir ou fazer seu o ónus que cabe ao recorrente na concretização do objecto do recurso’, não reconduzindo a impugnação a uma ‘afirmação genérica, exemplificativa ou meramente subjectiva de inconformismo perante o decidido em 1ª instância.’[9]
Importa privilegiar análise que busque, ainda que através de actividade hermenêutica[10], extrair da peça processual (alegações – peça para a qual não está prevista um estrutura rígida) o que ‘verdadeiramente importa para a aferição da existência ou não de algum erro de julgamento da matéria de facto’[11] – ainda que deva constar das conclusões das alegações a indicação dos concretos pontos de facto tidos por incorrectamente julgados, certo é que se não exige a indicação dos números dos pontos impugnados, antes devendo mostrar-se identificada, com clareza, a matéria que se quer pôr em causa[12].
Analisadas as conclusões das alegações constata-se, numa primeira aproximação, não virem indicados, de forma expressa, os pontos de facto que se entendem como incorrectamente julgados.
Depois, ultrapassada esta primeira e óbvia constatação, analisando com detalhe e pormenor toda a peça recursória (motivação e conclusões), conclui-se não lograr o tribunal (muito menos sem violação dos princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade) apreender, ainda que por actividade interpretativa, o objecto da impugnação – ou seja, não se identifica o(s) ponto(s) de facto (por referência à concreta factualidade alegada nos articulados ou até a outra que ao tribunal se impusesse conhecer, ao abrigo do art. 5º do CPC) cujo julgamento merece censura dos apelantes nem se apreende o resultado pretendido para o respectivo ajuizamento (não se identifica a resposta alternativa pretendida).
Na verdade, sabendo-se que os apelantes não concordam com o julgamento proferido a propósito da ‘amplitude do contrato de arrendamento’ e da ‘fruição que fazem do imóvel em discussão nos autos’ (conclusão 22ª), certo é que não apontam (sequer na motivação), em concreto, os pontos de facto que entendem incorrectamente julgados (os vários pontos de facto que incidiram sobre a matéria respeitante ao objecto mediato do contrato de arrendamento) nem muito menos apontam (na motivação) o sentido que propugnam para o julgamento de tal matéria - em nenhum passo das suas alegações advogam dever jugar-se provado que ocupam todo o imóvel (sequer outras partes do imóvel que não o primeiro andar) a coberto de acordo com o senhorio, mediante o pagamento de uma contrapartida (renda), ou seja, a coberto de arrendamento.
Conclui-se, assim, que os recorrentes não delimitaram o objecto da impugnação da decisão de facto (não individualizaram nem especificaram, nas conclusões do recurso, os enunciados de facto que, em seu entender, foram erradamente julgados, não indicando também, na motivação, o resultado pretendido para o julgamento das matérias tidas por incorrectamente julgadas), impondo-se por isso rejeitar o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto.
C. Da existência do direito de preferência dos autores apelantes na venda do imóvel - o reconhecimento da preferência nos termos peticionados.
Assente que a lei confere ao arrendatário o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do ‘local arrendado’ há mais de dois anos (art. 1091º, nº 1, a) do CC, na redacção introduzida pela Lei 64/2018, de 29/10), a questão que se suscita é a de apreciar se tal direito à prelação existe ‘nos casos em que o locado não tem autonomia – quando o prédio não está sujeito ao regime da propriedade horizontal –, isto é, nas situações em que o arrendamento incide apenas sobre parte de um prédio’ não constituído e propriedade horizontal; nestas situações, ‘o prédio composto por várias partes suscetíveis de utilização autónoma e independente, só pode ser encarado na sua globalidade, como sendo uma coisa única onde o locado não tem qualquer autonomia jurídica, sendo uma parte integrante e não cindível e autonomizável do prédio’, tratando-se de casos em que não existe ‘qualquer coincidência entre o objeto do arrendamento – a parte do prédio indiviso locada – e o objeto a que respeita o direito de propriedade que se pretende adquirir através da prelação.’[13]
Doutra maneira: não se suscitam dúvidas sobre a existência do direito e preferência do arrendatário nas situações em que o objecto do arrendamento coincide integralmente com o objecto da alienação (da compra e venda ou dação em cumprimento), ou seja, nas situações ‘em que o objecto do arrendamento coincide com a totalidade de um edifício – v. g. uma moradia unifamiliar – e naqueles em que o prédio se encontre em regime de propriedade horizontal’, incidindo a preferência sempre sobre a parte do prédio que é objecto de locação (sobre o local arrendado); é nos outros casos [em que o ‘arrendamento incide apenas sobre a parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal que a circunstância de o locado não ter qualquer autonomia jurídica, sendo uma parte integrante da coisa única que é o prédio’, que a ‘descoincidência entre o objeto do arrendamento – a parte do prédio indiviso – e o objeto a que respeita o direito de propriedade que se pretende adquirir através do exercício da prelação’] que a questão pode debater-se e suscitar-se[14].
Esta, precisamente, a questão a apreciar nos presentes autos, pois que os apelantes lograram demonstrar a qualidade de arrendatários do primeiro andar de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não logrando já demonstrar essa qualidade relativamente às demais partes do prédio (prédio de andares) alienado (objecto dos negócios translativos da propriedade celebrados pelos réus).
Pode considerar-se consolidado na jurisprudência o entendimento segundo o qual os arrendatários de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal não têm o direito de preferência previsto no nº 1, alínea a) do art. 1091º do CC (dado não ser juridicamente possível a aquisição apenas do ‘local arrendado’) – ponderando o preceito a partir da vigência da Lei 6/2006, de 27/02 e bem assim depois da actual redação, introduzida pela Lei 64/2018, de 29/10 (sendo certo que na apreciação do exercício da preferência a fazer valer pelo arrendatário é aplicável o regime legal que estiver em vigor à data da ocorrência dos factos que sustenta o caso concreto[15] - a ‘lei reguladora do direito de preferência é a vigente à data da celebração do ato de alienação, pois o direito legal de preferência configura uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário que só a prática do negócio translativo da propriedade, sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo’[16]), tem-se entendido que o preceito (alínea a) do nº 1 do art. 1091º do CC) ‘reconhece ao arrendatário direito de preferência na venda ou dação em cumprimento do prédio apenas quando o contrato de arrendamento se refere a todo o prédio e não a parte dele’[17], isto é, que só é conferido ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio ou fracção autónoma dele quando o arrendamento incida sobre a totalidade do prédio ou fracção autónoma dele, não contemplando os casos em que o arrendamento se confina a uma parte do prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal[18].
O nº 8 do art. 1091º, na redacção introduzida pela Lei 64/2018 veio consagrar uma solução estranha[19], estendendo o direito de preferência do arrendatário habitacional a uma situação em que, de acordo com a alínea a) do nº 1 do preceito, tal direito não existe – e assim, ‘enquanto o arrendatário não habitacional, por força da alínea a) do nº 1 do artigo 1091º apenas goza de direito de preferência nos casos em que a venda se restringe ao local arrendado, o arrendatário habitacional’, nos termos de tal norma, tinha direito de preferência ‘em caso de alienação do prédio não constituído em propriedade horizontal que só esteja parcialmente arrendado’; a norma ‘permitia que o titular da preferência pudesse adquirir um bem diferente (uma quota alíquota) daquele cuja venda estaria projetada (um prédio não constituído em propriedade horizontal) pagando, não o preço negociado com o terceiro interessado na compra, mas um valor determinado em função de uma permilagem.’[20]
Declarada, com força obrigatória geral (acórdão do Tribunal Constitucional nº 299/2020, de 16/06/2020, no DR Iª Série, de 18/09/2020) a inconstitucionalidade da norma constante do nº 8 do artigo 1091º, na redacção introduzida pela Lei 64/2018, e desaparecido, com efeito retroactivo (art. 282º da CRP), tal regime sui generis (que, no caso dos autos, permitiria aos apelantes o exercício da prelação relativamente à parte que usufruíam ao abrigo do arrendamento – o primeiro andar do imóvel), subsiste a questão de apurar do direito dos apelantes arrendatários ao abrigo do nº 9 do art. 1091º do CC (preceito também introduzido pela Lei 64/2018) – em tal preceito prevê-se que caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, caso assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.
Além de outras questões que pode suscitar, interessa, na economia da presente apelação, apreciar se a norma prevê que a preempção possa ser exercida por um único arrendatário (se ‘qualquer um dos arrendatários pode adquirir a totalidade do prédio, face ao desinteresse dos demais, ou mesmo quando ele é o único arrendatário de uma parte do prédio’[21]).
Possibilidade (solução) que entendemos ser de recusar (mesmo concedendo que a aplicabilidade do nº 9 se não mostra prejudicada pela declaração de inconstitucionalidade do nº 8[22] e que tal número 9 ‘tem um alcance normativo próprio’, não respeitando apenas a um modo de exercício diferente das preferências conferidas pelo desaparecido número 8[23]) – apesar ‘de a expressão «os arrendatários […] que assim o pretendam», sugerir que poderá haver arrendatários que não pretendam exercer o seu direito, sem que isso impeça a aquisição do prédio pelos demais’, tal entendimento não pode sufragar-se pois se a aplicação do preceito ‘não fosse afastada caso apenas um dos arrendatários pretendesse exercer o seu direito, estar-se-ia a permitir uma situação que é vedada pelo nº 1 do mesmo preceito, ou seja, a permitir que apesar do arrendamento dizer respeito apenas a uma parte do imóvel o arrendatário possa preferir na venda de todo o imóvel’[24]; porque a preferência conferida pelo nº 9 do art. 1091 do CC a uma pluralidade de arrendatários do mesmo imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal ‘continua a reportar-se a uma aquisição, por cada um dos arrendatários, de uma quota do direito de propriedade na proporção da permilagem do locado no valor total da transmissão’, nenhum arrendatário de parte do imóvel poderá, ao abrigo desta norma, ‘preferir na aquisição da totalidade do direito de propriedade e com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma contida no n.º 8, do mesmo artigo, ficou irremediavelmente afastada a possibilidade do direito de preferência poder ser exercido apenas por alguns dos arrendatários parciais do prédio’[25].
Mesmo que se entenda que a lei (ao referir-se ao exercício da preferência «em conjunto») não determina que o direito de preferência tenha de ser exercido por todos os arrendatários, mas apenas por aqueles ‘que assim o pretendam’, sempre se terá de ponderar que a lei não prevê que a aquisição possa ser feita por um único arrendatário, prevendo antes, literalmente, a hipótese de ‘exercício conjunto de vários direitos de preferência, tendo em vista a aquisição da totalidade do prédio’[26] (solução que permite harmonizar o teor literal do nº 9, enquanto fundamento específico da pluralidade de preferências, com a regra geral prevista na alínea a) do nº 1, entendida como excludente do direito de preferência de um arrendatário na aquisição da totalidade do imóvel não constituído em propriedade horizontal – ainda que se mostre como solução ‘dificilmente compreensível do ponto de vista da razão de ser da norma’, a merecer clarificação pelo legislador[27]).
Conclui-se, do exposto, que os autores apelantes, arrendatários de parte (primeiro andar) de imóvel urbano não constituído em propriedade horizontal não gozam de direito de preferência na sua venda – não gozam da preferência para aquisição da parte que ocupam ou para aquisição da totalidade do prédio.
Inexistência do direito de preferência que determina a improcedência de todos os pedidos (que tinham como necessário pressuposto a existência de um tal direito) e, assim, a improcedência da apelação.
D. Síntese conclusiva.
Do exposto resulta a improcedência da apelação, com a consequente confirmação da decisão apelada, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:
………………………………
………………………………
………………………………
DECISÃO
*
Custas pelos apelantes (sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que gozam e que os dispensa do seu pagamento).